A HISTÓRIA DO RIO CUBATÃO

O rio Ribeira de Iguape, conforme comentamos na postagem anterior, é uma exceção quando falamos dos sofridos rios localizados dentro dos domínios do bioma Mata Atlântica. Encravado dentro de uma das áreas florestais mais bem preservadas do país entre o Extremo Sul do Estado de São Paulo e Leste do Paraná, o rio Ribeira de Iguape mantém praticamente as mesmas características encontradas há época do seu descobrimento nos primeiros anos do século XVI. 

Em uma situação oposta encontramos o rio Cubatão (não confundir com o rio Cubatão do Sul de Santa Catarina) que já ostentou o nada dignificante título de rio mais poluído do Brasil. Esse rio passou por um verdadeiro processo de renascimento – de um corpo d’água praticamente morto, o rio Cubatão voltou a vida. Vamos conhecer um pouco dessa história. 

O rio Cubatão é um rio pequeno, com pouco mais de 50 km de extensão. Ele é formado pela junção das águas de vários rios da Mata Atlântica na vertente da Serra do Mar, com destaque para os rios Pilões, das Pedras, Perequê e Capivari. O rio atravessa todo o município de Cubatão e se abre num extenso delta ao chegar na região do estuário de Santos, onde forma uma grande região de importantes manguezais.  

O município de Cubatão está inserido na região conhecida como Baixada Santista, litoral do Estado de São Paulo. Essa região é formada por 9 municípios e abriga uma população na casa dos 2 milhões de habitantes. As águas da bacia hidrográfica do rio Cubatão abastecem cerca de metade dessa população, o que nos dá uma ideia da sua importância regional.

A região de manguezais no delta do rio Cubatão fornece grandes volumes de pescados e frutos do mar para consumo local, o que garante trabalho e renda para centenas de famílias caiçaras, nome que é dado para as populações tradicionais do litoral de São Paulo. 

Essa importante região começou a ser povoada em 1532, quando foi fundada a cidade de São Vicente e a Capitania homônima por Martin Afonso de Sousa. As primeiras referências históricas sobre Cubatão datam de 1533, quando Martin Afonso de Sousa fez a doação de terras na região aos irmãos Rui e Francisco Pinto. Até o início do século XIX, a região manteve características de zona rural. Em 1803, foi iniciada a construção do Povoado de Cubatão, embrião da futura cidade. 

A pacata vida provinciana de Cubatão começou a mudar em 1925, quando um decreto presidencial autorizou a construção do Complexo Energético Billings/Cubatão. Esse sistema previa a construção de uma grande represa na região do Planalto de Piratininga e de uma usina hidrelétrica em Cubatão, que depois passaria a ser conhecida como Usina Henry Borden. A eletricidade gerada nesse complexo seria fundamental para a industrialização da Região Metropolitana de São Paulo. 

As águas da Represa Billings, que desciam a Serra do Mar na direção da Usina Henry Borden através de grandes tubulações metálicas, se transformaram na primeira grande fonte de poluição do rio Cubatão. Parte das águas que abasteciam essa represa eram bombeadas a partir da bacia hidrográfica do rio Tietê, que àquela altura já sofria com o despejo de grandes volumes de esgotos domésticos e industriais. 

A partir de 1955, ano em que foi inaugurada a Refinaria Presidente Bernardes da Petrobrás, o rio Cubatão entrou numa fase de crescimento contínuo da poluição. Além de produzir combustíveis básicos como gasolina, óleo diesel e querosene, essa refinaria passou a produzir uma extensa gama de produtos petroquímicos voltados à produção de plásticos, fertilizantes e outros produtos químicos. Isso estimulou a instalação de um grande polo petroquímico com dezenas de indústrias no município de Cubatão.  

Com a abertura de tantas empresas, Cubatão passou a atrair grandes contingentes de trabalhadores, que enxergavam na cidade um caminho para uma vida melhor. Os grandes investimentos industriais não foram seguidos por políticas públicas para a construção de moradias populares e infraestrutura de saneamento básico. Como resultado desse descompasso, a cidade viu surgir grandes “comunidades” de casas improvisadas sobre palafitas nas áreas de mangues.

Aqui é importante lembrar que, naqueles tempos antigos, valia tudo em prol da industrialização e do desenvolvimento do país. Não havia uma legislação ambiental como a atual e as empresas podiam despejar seus efluentes livremente nos rios e também enterrar seus rejeitos industriais sem maiores preocupações. Foi dentro desse contexto caótico que, na década de 1980, o município de Cubatão passou a ser conhecido em todo o mundo como o “Vale da Morte” e o rio Cubatão passou a ocupar uma posição de destaque na lista dos rios mais poluídos. 

Eu tenho péssimas lembranças da Cubatão daqueles tempos. As rodovias que ligam a Região Metropolitana de São Paulo à Baixada Santista passam obrigatoriamente por Cubatão – sempre que a minha família fazia viagens até a praia, nós éramos obrigados a atravessar a densa nuvem de poluição que cobria essa região já no trecho final da rodovia. Lembro também das muitas notícias de bebes que nasciam com anencefalia (sem o cérebro), dentro de famílias pobres que se aglomeravam nas vilas de palafitas que se multiplicavam nos manguezais da região. 

A sina de Cubatão, do seu rio e da sua população sofrida mudaria radicalmente após uma sucessão de grandes tragédias como incêndio na Vila São José, conhecida pelos moradores como Vila Socó, uma ocupação improvisada que chegou a abrigar uma população de 6 mil pessoas (algumas fontes falam de 6 mil famílias). 

No dia 25 de fevereiro de 1984, um vazamento de 750 mil litros de gasolina de uma tubulação da Petrobrás deu início ao que muitos classificam como o maior incêndio já ocorrido no Brasil. Essa tubulação atravessava a Vila Socó e, rapidamente, a combinação de gasolina com o madeiramento das construções precárias se transformou em chamas com dezenas de metros de altura, surpreendendo os moradores que dormiam tranquilamente. 

O Governo Militar que dirigia o país há época usou de todos os mecanismos de censura e de controle das informações que dispunha para “conter” os fatos sobre essa tragédia. As informações oficiais divulgadas falavam de 93 mortos na tragédia. Dados não oficiais do processo de apuração, reaberto no ano de 2014, falam da morte de até 508 pessoas

Em 1985, uma outra tragédia de grandes proporções se abateu sobre Cubatão e, desta vez, o aparato de censura do Governo não conseguiu segurar as notícias, que repercutiram em todo o Brasil e no Mundo: o escorregamento de um grande trecho da Serra do Mar e a ameaça de outros deslizamentos que poderiam colocar parte do Polo Industrial e muitas comunidades sob intenso risco de soterramento.  

Depois de décadas de lançamento contínuo de todos os tipos de poluentes e materiais particulados na atmosfera, um trecho com 60 km² da vegetação da Mata Atlântica da encosta da Serra do Mar foi destruído. Com a morte da vegetação e com um verão com intensas chuvas, foi desencadeado um processo de escorregamento de grandes volumes de solo, pedras e detritos serra abaixo, ameaçando milhares de famílias.  

Essa sucessão de tragédias humanas e ambientais coincidiu com o fim do Regime Militar e com a volta da democracia ao Brasil em 1985. Com essa mudança nos ares da política, autoridades de todos os níveis dos Governos foram chamadas a realizar um grande esforço em prol de Cubatão. Medidas emergenciais foram tomadas para evacuação urgente de milhares de pessoas e a iniciar projetos para a construção de moradias populares longe das áreas de risco. Também foram implementadas inúmeras medidas para o combate da poluição no Vale da Morte. 

Falaremos sobre isso na próxima postagem. 

O DISCRETO E BEM CONSERVADO RIO RIBEIRA DE IGUAPE

Na sequência de postagens que estamos publicando temos mostrado a situação dramática dos rios localizados dentro dos domínios do bioma Mata Atlântica. Essa extensa floresta tropical, que cobria toda a faixa litorânea do país desde o Rio Grande do Sul até o Rio Grande do Norte e com trechos que entravam pelo interior do território, principalmente nas Regiões Sul e Sudeste, foi sendo sistematicamente retalhada e derrubada ao longo de nossa história. 

A cana de açúcar e o café, nossos primeiros produtos agrícolas de exportação em larga escala, deram início a um processo de devastação que seguiu o percurso da Região Nordeste em direção à Região Sul. Depois vieram a exploração de madeiras, a criação de animais, a produção de soja e outros grãos. Da área original de 1,2 milhão de km² dos primeiros tempos de nossa colonização, a Mata Atlântica está reduzida a valores entre 100 mil e 200 mil km² conforme a fonte pesquisada. Essa diferença se deve à enorme quantidade de pequenos fragmentos florestais remanescentes e às dificuldades para uma medição precisa

A enorme rede de rios e demais corpos d’água que dependiam da floresta para se manter em boas condições ambientais sofreu muito com a devastação da Mata Atlântica ao longo dos séculos. Os problemas vão desde a redução dos caudais ao assoreamento da calha dos rios, além dos gravíssimos problemas de poluição das águas gerados pela agricultura, pelas cidades e pelas indústrias.

Existe, felizmente, uma exceção a essa dramática regra – um rio discreto e bem preservado, localizado entre o extremo Sul do Estado de São Paulo e o Leste do Paraná. Falo aqui do rio Ribeira de Iguape. 

O rio nasce a pouco mais de 100 km da cidade de Curitiba, dentro do Parque Nacional dos Campos Gerais. Desde suas nascentes, o rio Ribeira de Iguape atravessará regiões de relevo bastante acidentado e, por causa disso, cobertas por densa vegetação de matas nativas e de onde brotam as águas de um sem números de rios bem conservados.

Ao longo do seu curso de 470 km, o rio Ribeira de Iguape vai atravessar uma sucessão de áreas de preservação ambiental: a Área de Proteção da Serra do Mar, os Parques Estaduais paulistas do Alto Ribeira e Jacupiranga, além das Áreas de Proteção Ambiental de Cananéia-Iguape-Peruíbe, da Ilha Comprida e a Estação Ecológica da Juréia. 

O relevo acidentado e as dificuldades de acesso foram fundamentais para a manter essa região isolada do grande avanço dos cafezais a partir de meados do século XIX. Foi graças a isso que extensas áreas florestais do chamado Vale do Ribeira acabaram sendo poupadas da devastação, o que resultou em boas condições para a preservação ambiental do rio Ribeira de Iguape.  

O Vale do Ribeira apresenta a porção mais bem preservada do bioma Mata Atlântica no Estado de São Paulo, uma característica que levou ao desenvolvimento de uma pujante “indústria” do turismo de aventura. Além disso, a região possui a maior concentração de cavernas do Brasil. Somente na área do PETAR – Parque Estadual Turístico do Alto Ribeira, localizado entre os municípios de Iporanga e Apiaí, existem mais de 200 cavernas catalogadas – a mais famosa e visitada é a Caverna do Diabo. 

A existência de tantas cavernas está diretamente relacionada aos solos de rochas calcárias da região. Esses solos são facilmente erodidos pela ação das águas, um processo que resulta na formação de extensas cavernas. Esses solos também levam à formação de bacias hidrográficas cársticas, onde as águas dos rios desaparecem dentro de fissuras nos solos e só voltam a reaparecer a longas distâncias. 

A bacia hidrográfica do rio Ribeira de Iguape ocupa uma área total de 25 mil km² – cerca de 2/3 dessa área fica dentro do território paulista e o restante dentro do território paranaense. Nessa região vive uma população de aproximadamente 360 mil pessoas, a maior parte vivendo em áreas urbanas de cidades como Registro, Cajati, Iguape e Apiaí. A base da economia regional é a agricultura, especialmente a produção de bananas, chá e arroz; mineração e extrativismo vegetal, principalmente o palmito. 

A agricultura, aliás, é uma das únicas fontes de problemas ambientais para o rio Ribeira de Iguape. Resíduos de fertilizantes e herbicidas usados nas plantações, especialmente de bananas, são carreados para as calhas dos rios da bacia hidrográfica, especialmente na temporada das chuvas. Estudos realizados nas águas da região encontraram resíduos desses produtos em 35% das amostras coletadas. As concentrações desses poluentes eram extremamente baixas e não comprometem a qualidade das águas para o consumo humano. Porém, é importante ligar o “sinal de alerta” e cuidar para que esses problemas não aumentem

O Vale do Ribeira é a região mais pobre do Estado de São Paulo e é justamente aqui onde estão os grandes riscos para a manutenção da boa qualidade ambiental da região. Sem maiores oportunidades de trabalho e renda, populações podem se sentir tentadas a devastar as áreas florestais remanescentes para aumentar os campos de produção agrícola e também a produção de lenha e madeira. A exploração do palmito nativo da espécie jussara, que já é grande na região, pode fugir ao controle e aumentar ainda mais. Em muitas regiões do Estado de São Paulo, a superexploração já levou essa palmeira a uma situação de iminente risco de extinção. 

Uma outra característica marcante do Vale do Ribeira é a grande concentração de pequenas comunidades indígenas e quilombolas. O isolamento dessas populações manteve vivo todo um conjunto de lendas e um folclore diferenciado do restante do Estado de São Paulo. Esse folclore é rico em criaturas míticas aquáticas e está muito próximo de elementos de outras regiões do país como o Vale do rio São Francisco e a Bacia Amazônica.  

Os primeiros registros de criaturas míticas encontradas nos rios brasileiros datam de meados do século XVI e se devem a cronistas como o padre José de Anchieta, Pero de Magalhães Gândavo e Gabriel Soares de Sousa. Uma dessas criaturas é a ipupiara, um tipo de monstro marinho que vivia nas águas dos rios e que costumava matar indígenas. Esses elementos míticos locais se fundiram aos mitos de origem africana trazidos pelos escravos como o Olokum, o deus do mar, e Oloxá, a deusa dos lagos. Do sincretismo surgiram lendas como a Iara ou Uiara, o Caboclo ou Nego D’água, a Cobra Grande, entre outros. 

Com o forte avanço da colonização do Estado de São Paulo a partir de meados do século XIX, grandes contingentes de imigrantes, especialmente estrangeiros, passaram a ocupar o território paulista e boa parte desses elementos folclóricos desapareceu. No Vale do Ribeira, muito dessa cultura tradicional sobreviveu. 

A preservação de importantes áreas florestais no extremo Sul do Estado de São Paulo e no Leste do Paraná resultou no bom estado de conservação ambiental do importante rio Ribeira de Iguape. E essa preservação ambiental também resultou na conservação de importantes elementos folclóricos das populações tradicionais da região.

Isso nos leva a uma interessante conclusão – preservação ambiental também é cultura.

A MINERAÇÃO, AS BARRAGENS DE REJEITOS MINERAIS E OS RISCOS PARA AS ÁGUAS DO RIO PARAÍBA DO SUL

Em uma postagem anterior comentamos sobre os graves problemas ambientais criados na calha do rio Paraíba do Sul pela mineração de areia. Material fundamental para a construção civil, a areia extraída nas margens do rio alimenta os insaciáveis mercados da construção civil das regiões metropolitanas de São Paulo, Campinas e de parte do Rio de Janeiro, além de inúmeras cidades ao longo do extenso vale do rio Paraíba do Sul. 

Essa mineração, entretanto, não fica restrita apenas a areia. Grande parte da bacia hidrográfica do rio Paraíba do Sul é ocupada por regiões com forte atividade mineradora, especialmente em regiões no Sul e Sudeste do Minas Gerais. Os minérios extraídos do solo raramente se apresentam puros e são acompanhados por diversas impurezas que precisam passar por um processo de beneficiamento.  

É aqui que surgem os famosos “rejeitos da mineração”, sobras que precisam ficar acumuladas em barragens específicas. Uma das técnicas mais usadas para a construção dessas barragens é o alteamento a montante, onde os próprios rejeitos minerais são compactados para a formação de uma barragem. Conforme o volume de rejeitos vai aumentando, essa barragem vai sendo aumentada em degraus.   

Por razões de segurança, essas barragens de rejeitos precisam ser monitoradas constantemente por pessoal técnico especializado, ocasiões onde são emitidos laudos que comprovam a sua estabilidade e segurança. Infelizmente, mesmo com todo o cuidado do mundo, existem inúmeros fatores que podem levar uma barragem ao colapso – movimentações de solo, excesso de fluidez nos rejeitos, temporais, terremotos, etc. Todos devem recordar de dois grandes acidentes recentes com barragens de mineração – os casos de Mariana e de Brumadinho

Tanto a barragem de Fundão em Mariana, quanto a barragem do Córrego do Feijão em Brumadinho, foram construídas usando a técnica do alteamento a montante. Os colapsos sofridos por essas duas barragens e o vazamento de gigantescos volumes de rejeito devastaram extensas áreas das calhas dos rios Doce e Paraopebas, o que comprova que os riscos de acidentes são reais.  

Um exemplo dos riscos enfrentados pelas populações que dependem das águas do rio Paraíba do Sul foi o rompimento de uma barragem de rejeitos da produção de celulose em Cataguases, ocorrido em 2003. Nesse acidente, vazou 1,4 bilhão de litros de lixívia ou licor negro, um rejeito tóxico do processo de produção da celulose (algumas fontes consultadas falam de um vazamento na ordem de 1 bilhão de litros).   

O vazamento atingiu primeiro o córrego do Cágado, atingindo na sequência o rio Pomba e, por fim, o rio Paraíba do Sul, provocando fortes danos ao meio ambiente e causando muitos prejuízos para as populações ribeirinhas de cidades nos Estados de Minas Gerais e Rio de Janeiro. A contaminação química da água foi tão grande que as autoridades ambientais proibiram a captação das águas do Rio Paraíba do Sul para abastecimento, deixando 600 mil pessoas sem água nas suas torneiras.  

Felizmente para cariocas e fluminenses da Região Metropolitana do Rio de Janeiro, esse vazamento ocorreu a jusante (rio abaixo) da barragem da Usina Elevatória de Santa Cecília, responsável por desviar parte das águas do rio Paraíba do Sul na direção das usinas hidrelétricas e do rio Guandu. Agora, imaginem se o rio Pomba tivesse sua foz algumas dezenas de quilômetros a montante e se parte desses rejeitos tóxicos fossem bombeados na direção dos complexos hidrelétricos Estado do Rio de Janeiro?  

É claro que numa situação como essa, bastaria que se desligasse o bombeamento da usina elevatória por alguns dias, até que os rejeitos tóxicos fossem diluídos e as águas do rio voltassem a apresentar uma qualidade melhor. Além disso, a Represa do Funil, já no Estado do Rio de Janeiro, poderia manter as águas fluindo na direção do rio Guandu por um bom tempo.

Mas, e se fosse uma torrente de rejeitos de mineração como a que atingiu o rio Doce? Passados mais de cinco anos desde o fatídico rompimento da barragem de Fundão, as águas do rio ainda apresentam altos níveis de contaminantes. Como ficaria o abastecimento da população da Região Metropolitana do Rio de Janeiro numa situação como essa?  

Esse incidente não é um caso isolado – nos últimos 40 anos foram diversos acidentes com despejos de resíduos de mineração nas águas do rio Paraíba do Sul. Vejam alguns desses casos: 

– Um vazamento de rejeitos minerais na empresa Paraibuna de Metais lançou, em 1982, mais de 18 milhões de litros de água com lama contaminada com mercúrio e cádmio (metais pesados altamente tóxicos) nas águas do rio Paraibuna (esse rio fica em Minas Gerais), um dos principais afluentes do Paraíba do Sul. A mancha do vazamento se estendeu até o município de Campos, no Norte Fluminense, numa extensão de cerca de 300 quilômetros.

A captação de água para o abastecimento das cidades ao longo do rio Paraíba do Sul teve de ser suspensa por uma semana. A repercussão deste acidente foi tão grande que, mesmo após a liberação do uso da água pela CEDAE – Companhia Estadual de Águas e Esgotos do Rio de Janeiro, a população das cidades se mostrou receosa em consumir a água; 

– Em 2006, após o rompimento de uma barragem da mineradora Rio Pomba Cataguases no Município de Miraí, na região da Zona da Mata Mineira, houve o vazamento de 400 milhões de litros de rejeitos de bauxita, água e lama, no rio Muriaé, um afluente do rio Paraíba do Sul. A cidade de Laje de Muriaé foi obrigada a suspender preventivamente a captação de água do rio para o abastecimento da população; 

– Em 2007, o rompimento de uma barragem da mesma empresa despejou mais de 2 bilhões de litros de lama misturada com bauxita e sulfato de alumínio no Rio Muriaé. O acidente forçou a remoção de um terço dos moradores da cidade, além de comprometer o abastecimento de água nos municípios de Muriaé e Patrocínio do Muriaé, em Minas Gerais e em Laje de Muriaé e Itaperuna, no Estado do Rio de Janeiro. 

Estudos realizados em 2013 pelo INEA – Instituto Estadual do Ambiente, órgão do Governo fluminense, encontrou cerca de 300 barragens de rejeitos minerais inseridas dentro da bacia hidrográfica do rio Paraíba do Sul. A maior parte dessas barragens fica dentro do território de Minas Gerais. Foram identificados riscos de acidentes em 12 dessas barragens, onde estão armazenados cerca de 22 bilhões de litros de resíduos minerais.  

Além de barragens de rejeitos de mineração, existem inúmeras indústrias instaladas em todo o Vale do Paraíba que produzem montanhas de rejeitos e escórias de metais – destaque para a CSN – Companhia Siderúrgica Nacional, em Volta Redonda. Basta um descuido na fiscalização de uma barragem de rejeitos ou nos depósitos de uma indústria química, ou ainda uma temporada de chuvas mais forte, para iniciar uma grande tragédia ambiental.  

Só para lembrar – cerca de 80% da água consumida pela população da cidade do Rio de Janeiro e de grande parte das cidades da Baixada Fluminense vem da bacia hidrográfica do rio Paraíba do Sul. Caso ocorra um “acidente” igual ao que se abateu com o rio Doce, em Minas Gerais, toda essa gente vai ficar de torneiras vazias, simplesmente por que não existe uma fonte alternativa de água. 

A TRANSPOSIÇÃO DE ÁGUAS ENTRE AS REPRESAS DO JAGUARI E DO ATIBAINHA, OU A VELHA DISPUTA PELAS ÁGUAS DO RIO PARAÍBA DO SUL CONTINUA?

Nos últimos anos, com a realização de diversas obras hidráulicas na região do Semiárido Nordestino, os sistemas de transposição de águas entre diferentes bacias hidrográficas ganharam bastante popularidade. Estações de bombeamento, canais e barragens construídos na região estão permitindo que as águas do rio São Francisco cheguem a regiões castigadas há séculos por fortes ciclos de estiagem. 

Esses sistemas, porém, não são exatamente uma novidade aqui no Brasil. Um grande exemplo de transposição de águas é o rio Guandu, o principal manancial de abastecimento da Região Metropolitana do Rio de Janeiro e de parte das cidades da Baixada Fluminense. A partir das primeiras décadas do século XX, com a realização de obras para a geração de energia elétrica no Estado do Rio de Janeiro, as águas da bacia hidrográfica do rio Paraíba do Sul passaram a ser transpostas na direção da bacia hidrográfica do rio Guandu – os caudais que sobram, como uma espécie de “subproduto” da geração elétrica, abastecem as populações das cidades. A primeira dessas obras foi o desvio parcial das águas do rio Piraí em 1907.

Uma obra bastante recente, inaugurada em 2018, é o sistema que permite a transposição ou bombeamento de águas da Represa do Jaguari (vide foto), na bacia hidrográfica do rio Paraíba do Sul, na direção da Represa do Atibainha, que faz parte do Sistema Cantareira. Feita dentro das regras de compartilhamento das águas do rio Paraíba do Sul entre os Estados de São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais, essa transposição costuma causar muita polêmica. Vamos entender o caso: 

No começo do último mês de outubro, auge do período da seca na região Sudeste, cerca de 90% de toda a água que estava chegando na Represa do Jaguari estava sendo bombeada para a Represa do Atibainha através do sistema de transposição. A soma do volume total de água que estava sendo despejado na Represa por todos os seus tributários – rios, córregos e ribeirões, era da ordem de 9 m³/s, mas o volume captado pela Sabesp, empresa de saneamento básico do Estado de São Paulo e operadora do sistema de transposição, era de 8 m³/s.  

Além dessa sangria local, a Represa do Jaguari era obrigada a liberar um volume de 40 m³/s de água na calha do rio Paraíba do Sul como parte do acordo de partilha das águas entre os Estados. Como consequência dessa situação, o nível da represa caiu há época para cerca de 25%.

Felizmente, com a chegada providencial da temporada de chuvas na região nas últimas semanas, a Represa já recuperou parte do seu volume e agora está com aproximadamente 33% da sua capacidade. Apesar da melhora na situação, as populações de cidades abastecidas com as águas da Represa do Jaguari como Igaratá e Santa Isabel se desesperam ante o risco de um eventual racionamento. 

A disputa pelas águas da bacia hidrográfica do rio Paraíba do Sul vem acirrando os ânimos de muitas populações há várias décadas e já teve inúmeros embates em Tribunais de Justiça, só sendo apaziguada em 2015 por uma decisão do STF – Superior Tribunal Federal. A Justiça repactuou a divisão das águas da bacia hidrográfica entre os Estados reclamantes e mudou a prioridade do seu uso para abastecimento de populações (antes era geração de energia elétrica). 

Apesar de estar completamente dentro da legalidade, o sistema de transposição Jaguari/Atibainha desagrada muita gente, especialmente no Estado do Rio de Janeiro, algo que é bem fácil de entender: 80% da água usada no abastecimento da população da cidade do Rio de Janeiro e em mais da metade das cidades da Baixada Fluminense vem da bacia hidrográfica do rio Paraíba do Sul. Das cerca de 14 milhões de pessoas que são abastecidas com essas águas, perto de 12 milhões vivem no Estado do Rio de Janeiro.  

Um conjunto de dez reservatórios de água existentes na bacia hidrográfica forma o chamado Sistema Hidráulico do Rio Paraíba do Sul. Além dos reservatórios, esse Sistema é formado barragens, estações de bombeamento de água e usinas hidrelétricas. Na prática, todas essas estruturas formam uma espécie de “reservatório virtual”, fundamental para o abastecimento da população do Estado do Rio de Janeiro. É esse complexo Sistema Hidráulico que permite a transposição de águas da bacia hidrográfica do rio Paraíba do Sul para o rio Guandu. 

Vejamos agora o outro dessa história – o Sistema Cantareira é o maior manancial de abastecimento das Regiões Metropolitanas de São Paulo e de Campinas, atendendo diretamente cerca de 8,8 milhões de pessoas. O Sistema possui cinco reservatórios: Jaguari (existe muita confusão entre esse reservatório e a Represa do Jaguari), Jacareí, Cachoeira e Atibainha, todos inseridos na bacia hidrográfica do Rio Piracicaba) e Paiva Castro, inserido na bacia hidrográfica do Alto Tietê. O Sistema também possui uma pequena represa no alto da Serra da Cantareira – o reservatório Águas Claras. 

Projetado e construído entre as décadas de 1960 e 1980, o discreto Sistema Cantareira acabou ocupando grandes manchetes em telejornais e jornais entre os anos de 2014 e 2016, época em que uma seca sem precedentes se abateu na região e levou a uma gravíssima crise hídrica. No auge dessa crise, o Sistema Cantareira entrou no chamado “Volume Morto”, formado por reservas de água que ficam abaixo do nível de captação das bombas. Obras emergenciais tiveram de ser feitas na represa, para permitir a captação dessas águas, e também para a construção de tubulações para interligação de outros reservatórios da Região Metropolitana de São Paulo, como foi o caso da Represa Guarapiranga

Essa crise hídrica expôs todas as fragilidades do sistema de abastecimento de água de parte substancial da população do Estado de São Paulo e explicitou a incompetência de muitas “otoridades” das autarquias, das empresas de saneamento básico e de muitos políticos paulistas. A construção do sistema de transposição entre as represas do Jaguari e do Atibainha fez parte da reorganização da segurança do sistema de abastecimento de água de São Paulo e foi inaugurado em 2018. 

Um ponto chave nas discussões que levaram a implementação desse sistema foi a possibilidade de direcionar os excedentes de água nas duas direções. Em momentos em que o Sistema Cantareira estiver cheio, as águas excedentes serão despejadas na Represa do Jaguari. Quando a situação for inversa, as águas da Represa do Jaguari serão bombeadas para o Sistema Cantareira

A grande reclamação dos usuários das águas da bacia hidrográfica do rio Paraíba do Sul é que, até o momento, foi somente o seu sistema que forneceu águas para a transposição – as represas do Sistema Cantareira não mandaram um único metro cúbico de água para o seu lado. O temor de muita gente é que essa situação se perpetue. 

Entre as justificadas preocupações desses usuários está a acentuada perda de matas nas cabeceiras de muitos dos rios formadores do Sistema Cantareira nas últimas décadas. Conforme já tratamos em outras postagens, a presença de vegetação é fundamental para os processos de recarga de aquíferos e lençóis subterrâneos de água, reservas essas que são essenciais na formação dos caudais dos rios, especialmente nos períodos de seca.  

Antigas áreas cobertas por remanescentes de Mata Atlântica foram substituídas por florestas comerciais de pinus e eucalipto, plantações e áreas de pastagens. Os baixos níveis apresentados pelas represas do Sistema Cantareira nos últimos anos é uma das consequências mais visíveis dessa devastação das matas. Existem muitos esforços de Governos, empresas e de cidadãos para recomposição de parte dessas matas destruídas por toda a região, mas ainda serão necessários vários anos para “zerar” as perdas e reestabelecer os volumes históricos de água nas represas. 

Enquanto isso tudo não se resolve, nervos vão continuar a flor da pele em muitas cidades e poderão voltar a acontecer novas batalhas em escaramuça na disputa pelas águas da bacia hidrográfica do rio Paraíba do Sul. 

A EXTRAÇÃO DE AREIA NAS ÁGUAS E MARGENS DO RIO PARAÍBA DO SUL E OS RISCOS PARA O ABASTECIMENTO DE CIDADES

A areia é um dos materiais de construção mais antigos usados pela humanidade. Misturada nas proporções corretas com materiais como a cal, as cinzas vulcânicas e, em tempos mais modernos, com cimento Portland, a areia pode ser transformada numa argamassa fluída e resistente, ideal para o assentamento de tijolos e pedras.  

Uma dessas argamassas antigas é o extraordinário opus caementicium, também conhecido como cimento romano, uma argamassa feita a partir da mistura de areia com cinzas vulcânicas. Um exemplo da resistência dessa técnica construtiva é o famoso Coliseu de Roma. Inaugurado no ano 79 da Era Cristã e construído em grande parte com tijolos e concreto romano, o Coliseu se encontra com a estrutura em ótimo estado de conservação até hoje – os revestimentos e acabamentos em pedra foram retirados e usados em outras construções, principalmente em igrejas. 

Conhecida no meio da construção civil como agregado fino, a areia é o resultado da desagregação natural de rochas como os granitos e os gnaisses, possuindo um diâmetro máximo de grão de 5 mm. Quando a areia é combinada com pedras britadas (agregados grossos) e cimento, chegamos ao concreto. O concreto armado, que combina o concreto com uma armação de ferro ou aço, é um dos melhores materiais estruturais para a construção de casas, edifícios, pontes, pisos de rodovias e outras estruturas de nossas cidades.  

A areia também é um importante componente da massa do asfalto usado na pavimentação de ruas, avenidas e rodovias. Entra ainda na composição de materiais construtivos como blocos, peças pré-moldadas, tubulações de esgotos, argamassas para o revestimento de paredes e assentamento de cerâmicas, entre outros usos. Areias com alto teor de sílica formam a matéria prima principal para a fabricação do vidro. A areia também é essencial nos processos de moldagem de peças em metal fundido, entre muitos outros usos. Em resumo – é um material barato, abundante na natureza e essencial para o nosso dia a dia. 

O consumo anual de areia no Brasil supera a casa de 300 milhões de toneladas. Somente na Região Metropolitana de São Paulo, esse consumo é de 70 milhões de toneladas ao ano. Durante muito tempo, a calha e as várzeas de rios como o Tietê, Tamanduateí, Pinheiros e de muitos ribeirões foram as principais fontes para extração da areia usada nas construções das cidades da Região Metropolitana.

Vestígios dessa época na cidade de São Paulo são a Raia Olímpica da USP – Universidade de São Paulo, os lagos do Parque do Ibirapuera e o Parque Cidade de Toronto. Todas essas instalações surgiram em locais tomados pelas crateras deixadas pela extração da areia. 

Com o crescimento das cidades da Região Metropolitana de São Paulo e a ocupação das áreas de várzeas, o rio Paraíba do Sul foi transformado na principal fonte para extração da areia usada na construção civil local. Nos Estados do Rio de Janeiro e na faixa Sudeste de Minas Gerais, o rio Paraíba do Sul também foi transformado em grande fornecedor de areia para obras civis em inúmeras cidades.  

A extração inadequada de areia para a construção civil é um problema recorrente em todo o Brasil. Grande parte das cavas é feita de maneira clandestina e sem contar com um projeto de licenciamento ambiental. Um estudo feito pelo Ministério Público de São Paulo em 2014 nos dá uma ideia do tamanho desse problema: 93% das cavas de extração de areia no Vale do Rio Paraíba na região Leste do Estado apresentavam irregularidades, especialmente quando aos limites da área de exploração.  

Os problemas associados à areia começam com a remoção das matas ciliares nas margens dos rios. Essas matas funcionam como uma barreira contra a entrada de sedimentos e lixo na calha do rio, garantindo a qualidade das águas. Essa vegetação marginal também tem um importante papel ecológico para as espécies que vivem nas águas e margens dos rios – elas ajudam a formar pequenas lagoas e áreas de remanso com muita vegetação, protegidas da correnteza e onde as espécies aquáticas/semi aquáticas – peixes, anfíbios, répteis, mamíferos e até mesmo aves, se reproduzem.

A destruição das matas e a escavação das áreas nas margens altera completamente o ciclo de vida destas espécies e, pior, o assoreamento que é provocado na calha do rio, entre outros gravíssimos problemas, soterra as comunidades bênticas ou bentônicas do fundo rio. Nessas comunidades vivem plantas, vermes, moluscos e crustáceos de tamanhos variados (a maioria muito pequena e microscópica). Essas criaturas formam a base da cadeia alimentar (também chamada de cadeia trófica) dos rios e sustentam todas as formas de vida superiores – inclusive a dos seres humanos (especialmente os ribeirinhos) que se alimentam com os peixes capturados nos rios.  

Outro problema são as cavas abandonadas, onde se formam lagoas devido ao acúmulo da água das chuvas ou pela drenagem de água do lençol freático. Essas lagoas acabam sendo transformadas em “áreas de lazer” pelas comunidades que vivem nas suas proximidades. Todos os anos, centenas de pessoas, especialmente jovens e adolescentes, morrem afogados ao nadar nessas lagoas, locais que costumam ter dezenas de metros de profundidade. A precariedade ou, simplesmente, a falta de opções de lazer nessas comunidades transforma essas lagoas em atrações irresistíveis nos dias quentes de verão.  

Dentro do Estado de São Paulo, os maiores problemas criados pela exploração de areia na calha e nas margens do rio Paraíba do Sul estão localizados nos municípios de Santa Branca, Jacareí e São José dos Campos. Pela proximidade das Regiões Metropolitanas de São Paulo e de Campinas, esses municípios foram transformados na principal fonte da areia usada na construção civil.  

As antigas matas que cercavam a calha do rio desapareceram há muito tempo e no seu lugar ficaram centenas de lagoas que se formaram nas crateras deixadas pelas antigas cavas (vide foto). Nesses locais se repetiu uma antiga lógica desse mercado – quando o recurso se esgota ou sua extração fica inviável, os areeiros simplesmente desaparecem e os problemas ambientais são deixados para trás

Nos trechos fluminense e mineiro do rio Paraíba do Sul todos esses problemas se repetem. O maior foco de degradação, entretanto, é encontrado no rio Guandu, o principal manancial de abastecimento de água da Região Metropolitana do Rio de Janeiro e que recebe águas transpostas da bacia hidrográfica do rio Paraíba do Sul.  

O grande centro produtor aqui é o Distrito Areeiro de Seropédica-Itaguaí (vide foto abaixo), distante cerca de 60 km do centro da cidade do Rio de Janeiro. As cavas de extração de areia se concentram em uma área de 50 km² na divisa desses dois municípios. Existem cerca de 100 empresas mineradoras (muitas ilegais) operando nessa área e juntas fornecem aproximadamente 90% da areia usada na Região Metropolitana – os 10% restantes saem das margens e da calha do rio Paraíba do Sul

Além de todo o “pacote” de problemas ambientais habituais da atividade, a extração de areia cria um enorme risco para o abastecimento de água das populações. Cerca de 14 milhões de pessoas dependem das águas do rio Paraíba do Sul para seu abastecimento – o Estado mais dependente dessas águas é o Rio de Janeiro. Só para lembrar: perto de 80% da água consumida pela população da cidade do Rio de Janeiro e de grande parte das cidades da Baixada Fluminense vem do rio Guandu e, por tabela, do rio Paraíba do Sul.

Além de toda a poluição criada pelo lançamento de esgotos domésticos e industriais, de metais pesados vindo de depósitos de rejeitos de mineração, e de muito lixo lançado nas águas do rio Paraíba do Sul, toda essa gente está sujeita a receber águas saturadas com resíduos minerais em suspensão gerados pela extração de areia. 

É simplesmente um abuso. 

A INDUSTRIALIZAÇÃO DO VALE DO RIO PARAÍBA DO SUL

Até o início do século XIX, o Vale do rio Paraíba do Sul tinha uma pequena população esparsa, espalhada por um punhado de cidadezinhas e fazendas assentadas ao longo dos caminhos de ligação entre o Rio de Janeiro, Minas Gerais e São Paulo, nada muito diferente de outras regiões brasileiras mais afastadas da faixa litorânea.

Foi então que, após a chegada da cultura do café ao Rio de Janeiro, a região saiu do quase completo isolamento e, em poucas décadas, se transformou na região mais rica e próspera do país. Os baixos custos das terras, o clima e a boa frequência de chuvas foram determinantes para a instalação de inúmeras fazendas produtoras de café por todo o Vale. 

Conforme comentamos em postagens anteriores, o avanço da cafeicultura no Vale do rio Paraíba foi baseado no uso inadequado dos solos, que tinham sua vegetação de Mata Atlântica derrubada e substituída por campos agrícolas. Sem a proteção da vegetação nativa, esses solos rapidamente perdiam sua fertilidade para a erosão.

Novas terras eram então desmatadas e transformadas em cafezais, num ciclo contínuo que levou à destruição quase total da Mata Atlântica na região. A abolição do trabalho escravo no Brasil em 1888 foi o golpe final na cafeicultura, que em poucos anos entrou em uma decadência econômica sem paralelo. Ao final do século XIX, todo o Vale do rio Paraíba do Sul era uma área absolutamente decadente. 

Um dos relatos mais fascinantes sobre essa tragédio no Vale do Paraíba pode ser encontrado no livro Cidades Mortas, de autoria de Monteiro Lobato e publicado em 1919. Natural da cidade de Taubaté, Monteiro Lobato (1882-1948) foi testemunha ocular das mudanças sociais e econômicas de sua região após a abolição da escravidão e fim da cafeicultura.

Naqueles, tempos, as cidades da região estavam cheias de grandes casas e palacetes vazios, que outrora haviam sido residências da nobreza do café e que agora estavam abandonadas. Fazendas decadentes eram loteadas e vendidas a baixos preços para pequenos sitiantes. Terras antes cobertas por extensos cafezais agora serviam, no máximo, de pastagem para o gado. Uma das citações mais interessantes do livro:

“Ali tudo foi, nada é. Não se conjugam verbos no presente. Tudo é pretérito!” 

A história econômica, e por extensão ambiental, do Vale do rio Paraíba do Sul pós cafeicultura pode ser dividida em três fases distintas, que mostram uma lenta e gradual mudança de uma economia baseada na produção agrícola para uma fase de industrialização. 

Até 1914, ano em que tem início a I Grande Guerra Mundial e que será marcante na história mundial, o Vale do Paraíba assistirá ao nascimento de um grande número de pequenas indústrias, notadamente dos setores têxteis, de alimentação e de produção de peças cerâmicas. Localizado no caminho de ligação entre a cidade do Rio de Janeiro, até então a Capital Federal e mais importante cidade brasileira, e de São Paulo, uma cidade que crescia sem parar impulsionada pela forte industrialização, o Vale do Paraíba tinha mercado certo para toda a sua produção. 

Há um detalhe importante nessa fase da história e que será detalhado em outra postagem: as margens e a calha do rio Paraíba do Sul, tanto no Estado de São Paulo quanto no Rio de Janeiro, serão transformadas em uma importante fonte de areia para a construção civil. Essa exploração predatória será marcante na destruição de importantes áreas de matas ciliares e será uma das principais marcas da degradação ambiental das águas do rio Paraíba do Sul ao longo de todo o século XX

Entre 1914 e 1943, todo o Vale do rio Paraíba sofrerá um forte processo de consolidação da industrialização. Com as dificuldades criadas pela I Guerra Mundial para a importação de uma série de produtos, o Governo brasileiro passou a criar uma série de políticas para o incentivo da produção local. O Vale do Paraíba, que naqueles tempos já era uma importante região produtora de leite, assistirá ao nascimento e consolidação de diversas indústrias do ramo da alimentação, do setor têxtil, do processamento de madeiras e também de minerais não metálicos. 

A terceira fase da história do Vale do rio Paraíba do Sul no século XX tem dois marcos importantes: o início da construção da Rodovia Rio-São Paulo (vide foto), batizada depois de Rodovia Presidente Dutra, em 1943 e a inauguração da CSN – Companhia Siderúrgica Nacional, em Volta Redonda no Estado do Rio de Janeiro, em 1946. Aqui tem início uma fase de forte crescimento industrial em várias cidades da região, o que será marcado por uma forte urbanização e crescimento das populações, geração e lançamento de grandes volumes de esgotos domésticos e industriais nas águas do rio Paraíba Sul, geração de resíduos de todos os tipos, poluição do ar, entre outros problemas. 

Antes do início das operações da CSN, a produção de aço no Brasil era bem pequena e se concentrava em cidades do Estado de Minas Gerais. A maior parte dessa produção era formada por barras e perfis de aço, usados principalmente pela construção civil. Aços planos em chapas, essenciais para a produção de inúmeros produtos, eram majoritariamente importados. Além dos altos custos em moeda forte, essas importações ficavam sujeitas a diversos problemas de fornecimento, algo que ficou muito claro ao longo das duas grandes guerras mundiais do século XX. 

A CSN foi criada em 1940 durante o Governo ditatorial do Presidente Getúlio Vargas (1930-1945). Após o início da II Guerra Mundial em 1939, o Governo dos Estados Unidos criou uma série de projetos para aproximação com os países latino americanos. Esses esforços foram chamados de Política da Boa Vizinhança.

Vistos até então como um grupo de “repúblicas de bananas” pelos norte-americanos, esses países repentinamente foram promovidos à condição de aliados preferenciais dos Estados Unidos e transformados em importantes fontes de matérias primas. Um exemplo dessa política de aproximação é o personagem Zé Carioca, criado pelos Estúdios Disney a pedido do Governo Americano. A Disney também criou personagens para representar o México – o Galo Panchito, e a Argentina – o Gauchinho Voador. 

Após uma série de negociações diplomáticas, que ficaram conhecidas como Acordos de Washington, os norte-americanos se “prontificaram” a financiar a construção de uma grande usina siderúrgica que “pudesse fornecer aço para os aliados durante a II Guerra Mundial e, na paz, ajudasse no desenvolvimento do Brasil.” Entre outras contrapartidas, o Brasil passou a apoiar o Estados Unidos no esforço de guerra, enviando inclusive as tropas da FEB – Força Expedicionária, Brasileira, para lutar na Itália a partir de 1943. 

Um novo salto na industrialização do Vale do Paraíba se deu no Governo do Presidente Juscelino Kubitschek (1956-1961), quando houve a criação de uma política de estímulo à fabricação de veículos em território brasileiro. Com a implantação da indústria automobilística e de toda uma cadeia de indústrias de autopeças, a CSN iniciou um forte ciclo de crescimento da sua produção e, consequentemente, aumentou os seus impactos ambientais. A empresa se transformou na maior consumidora individual de água do rio Paraíba do Sul, além de grande geradora de efluentes industriais e de resíduos sólidos. 

A partir da década de 1960, foram criadas diversas políticas de descentralização industrial, especialmente no Estado de São Paulo, o que estimulou a instalação de inúmeras empresas no Vale do Paraíba, especialmente em São José dos Campos, Taubaté e Jacareí, cidades que passaram a dar uma série de incentivos fiscais para atrair essas indústrias. A partir da década de 1970, com a consolidação do polo de indústrias de alta tecnologia ligadas ao setor aeronáutico, as cidades do Vale do Paraíba assistiram um novo ciclo de forte ciclo de crescimento populacional. 

Essa abertura de empresas e a criação de postos de trabalho estimulou um forte fluxo migratório para várias cidades da região. Um exemplo: entre 1940 e 1970, o crescimento populacional no trecho paulista do Vale do Paraíba foi de 109%. A população urbana, que até 1940 era estimada em 37,9%, saltou para 73,2% em 1970. Em cidades fluminenses como Volta Redonda, esse crescimento populacional se repetiu no mesmo período. 

Infelizmente, toda essa prosperidade criada pela industrialização e crescimento das cidades não foi seguida por investimentos em infraestrutura de saneamento básico. Aos inúmeros problemas ambientais criados na bacia hidrográfica do rio Paraíba do Sul pelos desmatamentos do ciclo do café, vieram se somar despejos cada vez maiores de efluentes domésticos e industriais, além de resíduos de todos os tipos. Em poucas décadas, o Paraíba do Sul seria transformado no 5° rio mais poluído do Brasil.  

Muita gente chama isso de progresso… 

PARAÍBA DO SUL: UM RIO DA MATA ATLÂNTICA

A bacia hidrográfica do rio Paraíba do Sul está totalmente inserida dentro dos domínios da Mata Atlântica e ilustra perfeitamente os impactos da destruição da cobertura florestal por atividades econômicas e suas consequências para as águas. 

Conforme comentamos na postagem anterior, as nascentes do rio Paraíba do Sul ficam na Serra da Bocaina, uma extensão da Serra do Mar e onde encontramos um dos trechos melhor preservados da Mata Atlântica. Essa importante região se estende desde áreas costeiras até as encostas íngremes de morros que superam a marca dos 2 mil metros acima do nível do mar.  

A vegetação inclui áreas de manguezais, brejos e restingas ao longo do litoral, Floresta Ombrófila Densa, que é dividida nos subsistemas Submontana, Montana e Alto Montana; Floresta Ombrófila Mista Alto Montana e Campos de Altitude. O relevo acidentado da região, que impediu o avanço da agricultura e da pecuária, foi uma peça chave para a conservação dessa importante região natural.

A maior parte dessa cobertura vegetal está contida no Parque Nacional da Serra da Bocaina (PNSB), que foi criado em 1971 e ocupa uma área total de 1.040 km².  Cerca de 60% do Parque Nacional fica dentro do Estado do Rio de Janeiro e os 40% restantes ficam dentro do território de São Paulo.

Os principais formadores do rio Paraíba do Sul são os rios paulistas Paraitinga e Paraibuna. As nascentes do rio Paraitinga são consideradas as mais distantes da foz e estão localizadas no município de Areias. Essas nascentes ficam dentro do Parque Nacional da Serra da Bocaina, em uma altitude da ordem de 1.800 metros e seu curso tem aproximadamente 200 km. O rio Paraibuna (vide foto) nasce no município de Cunha, a uma altitude de 1.600 metros e percorre cerca de 114 km até o encontro com o rio Paraitinga – o rio Paraíba do Sul surge a partir da junção das águas desses dois rios. 

Em 1970, a CESP – Companhia Energética de São Paulo, construiu a barragem da Usina Hidrelétrica de Paraibuna no trecho inicial do rio Paraíba do Sul. Com a barragem foi formada a Represa de Paraibuna, um espelho d’água com cerca de 177 km² e cerca de 200 ilhas. As águas dessa represa são consideradas como uma das mais limpas do Brasil. Os gravíssimos problemas ambientais do rio Paraíba do Sul começam a jusante dessa represa. 

As primeiras notícias de ocupação por colonizadores das margens do rio Paraíba do Sul remontam a 1537, quando Pedro de Góis recebeu a doação de um quinhão de terras entre o Norte do atual Estado do Rio de Janeiro e Sul do Espírito Santo, onde seria formada a Capitania de São Tomé. Em 1539 foi fundada a Vila da Rainha, um pequeno povoado próximo da foz do rio Paraíba do Sul. Após um curto período de relativa prosperidade, teve início um conflito de “cinco ou seis anos” com os indígenas das tribos goitacás e puris. O empreendimento colonial foi abandonado em 1548. 

Cerca de 50 anos depois, Gil de Góis, neto e herdeiro de Pedro de Góis, tentou retomar a colonização da região, não conseguindo maiores êxitos devido também a conflitos com as tribos indígenas. Por volta de 1627, o Governador do Rio de Janeiro, Martim Corrêa de Sá, recebeu ordens da Coroa Portuguesa para dividir o território em sesmarias e distribuir as terras entre diversos solicitantes, os chamados “Sete Capitães”.  

Esses homens eram veteranos de lutas contra as nações indígenas dos tupinambás e dos tamoios e, “por suas lutas em prol da Coroa” solicitaram as terras “ao Norte do rio Macaé“. Essa ocupação ocorreu em um momento em que as tribos indígenas enfrentavam epidemias de varíola e outras doenças trazidas pelos “brancos”, não apresentando maiores resistências aos colonizadores.

A região sediou importantes fazendas de criação de gado e produtoras de alimentos básicos, que passaram a responder pelo abastecimento da próspera cidade do Rio de Janeiro, a maior de toda a Colônia. Essa ocupação ficaria concentrada na região do Baixo Paraíba do Sul até o começo do século XIX.

A grande “virada” na história ambiental do rio Paraíba do Sul se dará a partir das últimas décadas do século XVIII com a chegada da cultura do café a terras fluminenses. Planta de origem africana, o café chegou ao Brasil através do Pará. Consta que o sargento-mor Francisco de Melo Palheta, um militar que atuou em serviços de demarcação da fronteira entre a Colônia do Brasil e Guiana Francesa, ganhou algumas mudas de café da esposa do Governador francês.

Essas mudas foram plantadas na cidade de Belém e dali a cultura se espalhou por fazendas de toda a Colônia. A bebida era consumida apenas pelos moradores dessas fazendas. A partir de meados do século XVIII, o café se transformou em uma bebida muito popular na Europa e nos Estados Unidos, o que criou um forte mercado para exportação do grão. Foram feitas diversas tentativas para a formação de grandes plantações em diversos locais nas regiões Norte e Nordeste, sem lograr maiores êxitos.

O café é uma planta bastante exigente em relação à temperatura ambiente, que precisa ficar entre um mínimo de 5° C e um máximo de 35° C. A planta também requer solos com alta fertilidade e abundância de chuvas. O café encontraria as melhores condições de plantio no Rio de Janeiro, onde chegou por volta de 1774

Os primeiros cafezais em terras fluminenses surgiram em áreas rurais ao redor da cidade do Rio de Janeiro e ocupando encostas de morros. Incluem-se na lista os atuais bairros de Jacarepaguá, Campo Grande, Guaratiba, Santa Cruz e Tijuca. Outra região próxima que já foi tomada por cafezais é a Baixada Fluminense, onde os pés de café paulatinamente foram substituindo os antigos canaviais. 

A busca por terras baratas levou a cultura cafeeira na direção do Vale do Paraíba, onde passou a se espalhar por cidades como Vassouras, São João Marcos, Resende, Valença, Paraíba do Sul e Cantagalo. O Médio Vale do rio Paraíba do Sul, ou simplesmente Vale para os fluminenses, apresentava clima, chuvas e altitudes perfeitas para a produção do café. Toda essa região era coberta há época pela densa vegetação da Mata Atlântica, apresentando solos de excepcional fertilidade. 

Grandes extensões de matas passaram a ser derrubadas sistematicamente, sem qualquer critério ou cuidado com a preservação da fertilidade dos solos. A bacia hidrográfica do rio Paraíba do Sul é formada em grande parte por solos gerados a partir de rochas graníticas, basálticas e gnáissicas antigas e altamente fragmentadas, que apresentam uma fertilidade baixíssima.

A aparente fertilidade desses solos vinha da grossa camada de matéria orgânica em decomposição criada pela Mata Atlântica. Era a própria floresta que se alimentava e que alimentava esses solos, num ciclo contínuo. Sem a presença da floresta, essa camada de solo fértil era rapidamente destruída e arrastada pelas chuvas. Em poucos anos os cafezais paravam de produzir

Esse “pequeno” detalhe ambiental não era um problema dos mais graves para os grandes fazendeiros – havia uma enorme disponibilidade de terras baratas com matas virgens ao redor de todo o Vale do rio Paraíba do Sul. Assim que uma fazenda deixava de ser produtiva, suas terras eram abandonadas e imediatamente substituídas por outras recém desmatadas em outra região.  

Essa estratégia insustentável de produção de café devastou a maior parte das florestas de Mata Atlântica ao redor do rio Paraíba do Sul em terras do Rio de Janeiro, Minas Gerais, Espírito Santo e, por fim, em São Paulo. O bioma, que ocupava praticamente a totalidade da bacia hidrográfica do rio Paraíba do Sul, acabou reduzido a cerca de 15% da área original, resistindo principalmente em terrenos altos e de difícil acesso

A cafeicultura perdeu relevância em todo o Vale do rio Paraíba do Sul nas últimas décadas do século XIX, quando foi sobrepujada pelos cafezais do Oeste paulista. Nos terrenos degradados que ficaram para trás, passou a ser desenvolvida uma pecuária de baixa produtividade e a produção leiteira, além de algumas atividades agrícolas de baixa e média escala de produção.

Muitos fragmentos florestais que haviam resistido ao avanço dos cafezais, desta vez acabaram sucumbindo. A região só voltaria a ganhar relevância econômica em meados do século XX com o advento da industrialização. 

Falaremos disso na próxima postagem. 

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O RIO PARAÍBA DO SUL E SUAS ÁGUAS DISPUTADAS POR TRÊS ESTADOS BRASILEIROS

O rio Paraíba do Sul é paulista de nascimento, fluminense por vocação e mineiro por extensão. O rio tem suas nascentes num trecho da Serra do Mar e, durante milhões de anos, foi um dos principais formadores do rio Tietê. Uma sucessão de eventos geológicos alterou o seu curso, transformando suas águas numa das mais disputadas do Brasil. 

Fruto da junção dos rios Paraibuna e Paraitinga, cujas nascentes brotam nas encostas da Serra da Bocaina em São Paulo, o rio Paraíba do Sul poderia ser mais um entre tantos rios pequenos e de pouca importância caso a natureza o tivesse direcionado rumo ao Oceano Atlântico, a poucas dezenas de quilômetros de sua nascente. A mãe natureza, caprichosa, soergueu os terrenos da Serra do Mar e fez o Paraíba do Sul seguir rumo ao Oeste, despejando suas águas inicialmente na bacia hidrográfica do rio Tietê. 

A guinada na história do rio se deu a partir da ocorrência de um fenômeno conhecido na geologia estrutural como Graben ou fossa tectônica. O movimento combinado de falhas geológicas paralelas ou quase paralelas levou ao afundamento de uma longa linha de terrenos, resultando na formação do que conhecemos hoje como Vale do rio Paraíba do Sul. Sem entrar em maiores detalhes, esse tipo de afundamento ocorreu devido à movimentação das Placas Tectônicas, também conhecida como Tectônica Global – se ficou curioso, pesquise sobre isto. 

A palavra Graben é de origem alemã e significa escavação ou vala. Os paredões que cercam a área afundada são chamados de Horst. Em algum momento, após a separação do grande bloco que forma a América do Sul daquele que forma a maior parte da África (originalmente, esses e outros blocos formavam o antigo supercontinente de Gondwana), ocorreu uma grande fratura nos solos da região onde hoje se encontra o Vale do rio Paraíba, separando a Serra do Mar da Serra da Mantiqueira.  

Esse afundamento nos solos da região desviou as águas do rio Paraíba do Sul para o Norte, formando um grande lago onde hoje encontramos os municípios de São José dos Campos e Taubaté. Com o passar do tempo, falando aqui em milhões de anos na escala do tempo geológico, o rio foi escavando seu curso até se encontrar com as águas do Oceano Atlântico. 

Em língua tupi, Paraíba significa algo como “rio de navegação impraticável” ou, segundo alguns linguistas, “rio que é um braço do mar”. Os primeiros europeus que exploraram o território brasileiro após o descobrimento encontraram um rio no território do atual Estado da Paraíba que era chamado assim pelos indígenas. Esse rio acabou sendo batizado inicialmente como rio São Domingos, mas depois acabou sendo chamado de rio Paraíba. Anos depois, foi encontrado um outro rio no litoral do Rio de Janeiro com o mesmo nome indígena e que passou a ser conhecido como rio Paraíba do Sul. 

Historicamente, o rio Paraíba do Sul foi fundamental para o povoamento, abastecimento, transportes e comunicações entre dezenas de cidades de uma extensa faixa territorial no interior do país (lembrando que a colonização do Brasil, durante séculos, se concentrou no litoral). O café, por exemplo, cultura que mudou dramaticamente os rumos econômicos do Brasil, começou a ser produzido em larga escala no trecho fluminense do Vale do Rio Paraíba, para só depois rumar para outras regiões.  

Um momento marcante da nossa história e que tem impactos até hoje entre os brasileiros se deu quando pescadores encontraram a imagem da Santa Padroeira do Brasil – Nossa Senhora Aparecida, nas águas do rio há cerca de 300 anos. O local foi transformando num centro de peregrinação religiosa, recebendo milhões de romeiros a cada ano. Nas últimas décadas, esse trecho do Vale do rio Paraíba foi transformado num polo de industriais de tecnologia de ponta, com destaque para as indústrias aeronáutica, de informática e metal/mecânica. 

Em terras fluminenses, a região de destaque ao longo das margens do rio Paraíba do Sul é Volta Redonda, a sede da CSN – Companhia Siderúrgica Nacional. Fundada em 1946, a CSN é a maior usuária individual de águas do rio, com um consumo da ordem de 10 m³/s. Para efeito de comparação, essa é a mesma demanda industrial de todo o trecho paulista do rio. Durante muitas décadas, a CSN foi uma das maiores poluidoras das águas do rio Paraíba do Sul. 

A poluição, aliás, é um dos maiores problemas ambientais do rio. Em uma disputa nada virtuosa, que conta com o Tietê (trecho da Região Metropolitana de São Paulo), Iguaçu no Paraná e Ipojuca de Pernambuco nas três primeiras posições, o Paraíba do Sul já está ocupando o 5° lugar na classificação geral dos rios mais poluídos do Brasil – em 2010, o rio estava na 9° colocação. O levantamento foi feito pelo IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. 

De acordo com a Ana – Agência Nacional de Águas, de um total estimado de 365 milhões de m³/ano de efluentes domésticos lançados na bacia hidrográfica do rio Paraíba do Sul, apenas 54,5 milhões de m³/ano ou apenas 15% do total de efluentes recebem um tratamento adequado. Essa conta não inclui os efluentes industriais que, apesar do rígido controle dos órgãos ambientais, ainda é lançado clandestinamente por muitas empresas. Também não são nada desprezíveis os volumes de efluentes originados em áreas de mineração, resíduos sólidos, sedimentos da mineração de areia, entre outros.

Quando esses dados sobre o lançamento de esgotos domésticos é analisado a partir das informações de cada Estado, percebe-se uma enorme discrepância nos índices de tratamento: enquanto os municípios da área paulista da bacia hidrográfica tratam, em média, 54,3% dos efluentes domésticos, no Estado de Minas Gerais o valor cai para 7,2% e no Rio de Janeiro são 5,7%. 

Para complicar um pouco mais a complexa equação do rio Paraíba do Sul, suas águas também são usadas no abastecimento de 14 milhões de pessoas nos Estados de São Paulo, Minas Gerais e, principalmente, no Rio de Janeiro. Somente na Região Metropolitana do Rio de Janeiro, onde as águas do Rio Paraíba do Sul chegam através de um complexo sistema de transposição, perto de 8 milhões de pessoas são abastecidas. O número total de usuários das águas inclui outros 4 milhões de habitantes em cidades do interior fluminense

Apesar de, legalmente, ser classificado como um rio de águas federais e sujeito a administração de autoridades do Governo Federal, a divisão das águas do rio Paraíba do Sul sempre foi motivo de disputas ferrenhas entre os Estados de São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro. Essa disputa acabou sendo levada aos tribunais e, por fim, acabou no STF – Superior Tribunal Federal. 

No final de 2015, num acordo costurado pelo STF, os Estados de São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais acertaram com o Governo Federal e com a ANA novas regras para a gestão compartilhada das águas do Rio Paraíba do Sul, estabelecendo vazões mínimas para os reservatórios e mudando a prioridade do uso das águas do rio para o abastecimento e não mais para a geração de energia elétrica. Entre mortos de sede e feridos, salvaram-se, pelo menos por enquanto, todos esses Estados. 

Essa questão, que eu costumo chamar de “as águas da discórdia”, definiu os critérios de partilha das cotas de água entre os grandes usuários, mas a solução para os grandes problemas ambientais do rio Paraíba do Sul ainda está bem longe de um fim. Falaremos disso nas próximas postagens. 

AS “EXPORTAÇÕES” DE ÁGUAS DEGRADADAS ENTRE DIFERENTES BIOMAS NO RIO GRANDE DO SUL

Na última postagem falamos dos grandes problemas ambientais do rio dos Sinos, um dos mais importantes da faixa Leste do Rio Grande do Sul. Uma característica marcante desse rio e que se repete em inúmeros outros rios gaúchos é o fato das suas nascentes estarem localizadas dentro de regiões nos domínios da Mata Atlântica, enquanto que a maior parte da sua calha e a foz se encontram dentro de áreas de Pampas. Esses dois biomas dominam as paisagens gaúchas. 

Falando de uma forma bastante simplificada, existem grandes diferenças entre os solos das áreas de domínio dos dois biomas no Rio Grande do Sul. Na faixa Norte do Estado, onde dominam a Floresta Ombrófila Densa e a Floresta Ombrófila Mista, chamadas genericamente de Mata Atlântica, encontramos solos profundos e férteis, que favoreceram o desenvolvimento de árvores de grande porte. Já nas regiões de domínio do bioma Pampa, encontramos solos mais rasos que favorecem o predomínio das gramíneas. 

O bioma Pampa ocupa pouco mais de 60% do território do Rio Grande do Sul. Esse bioma atravessa fronteiras e se estende na direção da Argentina e do Uruguai. O clima frio e seco dessas regiões resulta em processos de decomposição lenta da matéria orgânica e que levam à formação dos chamados chernossolos

Na faixa costeira e ao redor das grandes lagoas, os solos se desenvolveram sob condições de excesso de água e/ou com grande concentração de areia Nessas regiões são encontrados solos dos tipos gleissolos, planossolos e neossolos quartzarênicos. Todos esses solos favorecem o desenvolvimento de gramíneas, vegetação arbustiva e de pequenos bosques, características marcantes das paisagens dos Pampas. 

Essas diferenças nos tipos de vegetação também se refletem nos mecanismos de absorção de água e de recarga de lençóis freáticos e aquíferos. Em áreas de Mata Atlântica, as principais aliadas desses processos são as grandes raízes das árvores. Nas áreas de Pampas, as áreas dos banhados são as principais responsáveis por esses processos. 

Os banhados são ecossistemas extremamente ricos em vida, podendo ser comparados aos bancos de corais dos oceanos. Funcionando como uma espécie de “esponja natural”, as áreas de banhado acumulam grandes volumes de água nos períodos de chuva, auxiliando inclusive no controle das cheias dos rios.

Nos períodos de seca, os banhados fornecem água para as lagoas, garantido a sobrevivência de um sem número de espécies animais e vegetais. Um grande número de arroios, os pequenos córregos e riachos, e rios da região dos Pampas têm suas nascentes em áreas de banhados

E qual é a importância das áreas cobertas com florestas de Mata Atlântica para as regiões de campos dos Pampas? 

Importantes e caudalosos rios que cruzam os Pampas têm suas nascentes e principais rios formadores localizados em outros biomas. Como exemplo podemos citar o rio Paraná, o mais importante da Argentina. Os rios formadores do Paraná ficam dentro de áreas de Cerrado, de Mata Atlântica e do Pantanal Mato-grossense, dentro dos territórios do Brasil, Paraguai e Bolívia. Qualquer devastação ambiental nessas áreas tem reflexos diretos nos volumes e na qualidade das águas que correm na direção dos Pampas argentinos, criando problemas “em cadeia” nessa região. 

Um importante rio dos Pampas do Extremo Sul e que está enfrentando uma série de problemas ambientais criados dentro de áreas da Mata Atlântica é o rio Uruguai. Esse rio se forma na Serra Geral, na divisa dos Estados de Santa Catarina e Rio Grande do Sul, a partir da junção dos rios Pelotas e Canoas. O rio Uruguai percorre um total de 1.262 km, marcando primeiro a fronteira entre o Brasil e a Argentina, e depois a fronteira desse país com o Uruguai até atingir sua foz no rio da Prata.  

O trecho da bacia hidrográfica do rio Uruguai entre os Estados de Santa Catarina e Rio Grande do Sul fica quase que inteiramente dentro do bioma Mata Atlântica. Conforme apresentamos em diversas postagens anteriores, essas regiões sofreram grandes desmatamentos ao longo dos processos de ocupação dos territórios por diferentes frentes colonizadoras. A Mata das Araucárias, o mais importante subsistema florestal da Mata Atlântica na região foi o mais impactado com esses desmatamentos.  

De acordo com os levantamentos mais recentes, a Mata das Araucárias está reduzida a meros 3% de sua área original. Lembro aqui que o pinho das araucárias era uma madeira de ótima qualidade e de alto valor no mercado. Além das araucárias, essas florestas também eram ricas em outras espécies de árvores com madeiras nobres como a imbuia, o cedro, o marfim e a peroba. Esse fabuloso potencial madeireiro levou a uma superexploração dessas matas, que foram praticamente dizimadas. 

Essa tremenda perda de massa florestal, além de todos os problemas ecológicos para as espécies animais e vegetais, resultou em graves prejuízos para os corpos hídricos. Sem a presença da floresta, a infiltração da água das chuvas nos solos foi bastante reduzida. Com a redução das reservas subterrâneas de água, os volumes que brotam nas nascentes também foram reduzidos, um problema que fica mais evidente nos meses de seca. Também é importante lembrar que a cobertura florestal protege os corpos hídricos contra a entrada de sedimentos. 

A degradação da qualidade das águas nessas regiões por poluentes de origens diversas também é muito grande. No Oeste de Santa Catarina, onde existe uma grande concentração de propriedades rurais dedicadas à criação de porcos, os rios sofrem com o lançamento de grandes volumes de efluentes orgânicos gerados nessas criações – o rio Chapecó é um exemplo desse tipo de contaminação. O mesmo problema ocorre no Rio Grande do Sul, porém, com uma predominância de propriedades especializadas na criação de gado bovino. O rio Passo Fundo exemplifica esse problema. 

Outra fonte importante de poluentes que são carreados para as águas da bacia hidrográfica é a agricultura, formada principalmente por cultivos de milho, trigo e soja. Essas culturas demandam grandes volumes de fertilizantes e agrotóxicos, produtos que geram muitos resíduos e que são arrastados para as calhas dos rios pelas chuvas. O uso inadequado desses solos agrícolas também resulta em grandes carreamentos pelas águas das chuvas de areia, solos agrícolas e outros resíduos para os rios. 

Não menos importantes são os grandes volumes de esgotos domésticos e industriais gerados em cidades como Lages, Chapecó, Erechim e Passo Fundo, que são despejados nas águas dos rios sem tratamento. A esses efluentes se somam parte dos resíduos sólidos gerados nesses centros urbanos e que não recebem uma destinação adequada – parte desses resíduos, fatalmente, acabará sendo arrastada para os corpos d’água. 

Esses graves problemas no rio Uruguai ficaram mais evidentes nesses últimos meses devido à forte seca que assolou e que ainda que ainda assola grande parte do Rio Grande do Sul – dois terços dos municípios gaúchos estão em estado de emergência. O rio Uruguai apresenta atualmente os mais baixos níveis observados nos últimos 80 anos (vide foto). E com a redução do volume de água no rio, a concentração dos poluentes aumenta. 

Em resumo – grande parte dos problemas enfrentados pelo rio Uruguai dentro dos domínios do bioma Pampa estão sendo gerados pelo trecho da bacia hidrográfica que fica dentro de regiões de Mata Atlântica. A devastação dos Pampas, que é o segundo bioma brasileiro mais degradado e que já perdeu mais de 60% de sua área original, completa o quadro de degradação das águas do rio Uruguai e de muitos outros rios do Rio Grande do Sul. 

Nós maltratamos e destruímos os biomas e depois ficamos reclamando da seca e da falta de água.  

ITAPUÍ: “ÁGUA DO BARULHO DA PEDRA”, MAIS CONHECIDO COMO RIO DOS SINOS

O rio dos Sinos tem suas nascentes em áreas de Mata Atlântica em altitudes superiores a 800 metros no município de Caraá, na região Nordeste do Rio Grande do Sul. Ele percorre um curso bastante sinuoso com cerca de 190 km, localizado em sua maior parte já dentro do domínio dos Pampas, até desaguar na região do Delta do Rio Jacuí e Lagoa do Guaíba.

É justamente por causa desse curso cheio de curvas ou sinos, em um português mais arcaico, que o rio ganhou esse nome. Curiosamente, a palavra sino também está associada ao instrumento de percussão normalmente encontrado nas torres das igrejas e que converge ao mesmo significado do nome indígena do rio – Itapuí, a “água do barulho da pedra”. 

A região onde se encontram as nascentes do rio dos Sinos estão localizadas dentro da área de ocorrência da Unidade Geomorfológica Coxilha das Lombas, o terceiro maior aquífero do Rio Grande do Sul. Esse aquífero se estende desde a região de Tapes, na Lagoa do Guaíba até a Lagoa dos Barros, em Santo Antônio da Patrulha.

Além do rio dos Sinos, essa região também abriga as nascentes de outro importante rio gaúcho – o Gravataí. As nascentes de água dessa região são essenciais para o abastecimento da população da Região Metropolitana de Porto Alegre. 

A região onde encontramos o rio dos Sinos vem sendo ocupada, desde o século XVII, por estâncias voltadas a criação de gado, com forte tradição na produção de carne salgada e artigos de couro. A partir do século XIX, com a intensa imigração de colonos, especialmente de origem alemã, cidades foram fundadas em toda a região. A combinação da disponibilidade de couro e das técnicas de produção introduzidas pelos imigrantes, levou ao início do processo de industrialização regional voltado para os setor coureiro-calçadista.  

Com o desenvolvimento econômico, as cidades da região passaram a receber imigrantes vindos das áreas rurais e passaram a crescer fortemente. Desenvolvimento econômico e crescimento populacional, normalmente, acabam resultando na poluição de corpos d’água, o que infelizmente foi o que ocorreu com o rio dos Sinos e outros rios da região. 

Apesar de não ser um tão extenso quanto os rios Tietê e Iguaçu, o rio dos Sinos conseguiu a verdadeira façanha de chegar à posição de 4º rio mais poluído do Brasil. E não é só isso – junto com seus vizinhos, os rios Gravataí e Caí, eles formam a trinca dos rios mais poluídos do Rio Grande do Sul.  

Um exemplo do grau de degradação do rio dos Sinos – em 2006 houve um gigantesco desastre ambiental nas águas do rio e que resultou na mortandade de mais de 90 toneladas de peixes. Estudos posteriores feito por equipes de monitoramento da UNISINOS – Universidade do Vale do Rio dos Sinos, encontrou mais de 2.100 tubulações de despejos de esgotos domésticos ao longo das margens do rio e mais de 1.500 pontos onde a mata ciliar foi destruída.  

O relatório do caso divulgado na época pela FEPAM – Fundação Estadual de Proteção Ambiental, apontou como causas do desastre os despejos de efluentes químicos por seis empresas da região, além da alta carga de esgotos domésticos lançados in natura nas águas do rio. 

O rio dos Sinos atravessa uma região com importantes cidades, onde vive uma população de mais de 1,3 milhão de habitantes, conhecida como Região do Vale do Rio dos Sinos. Essa região tem uma forte economia com base industrial formada por curtumes, indústrias químicas, metalúrgicas, produtoras de plásticos e de componentes para calçados. A região concentra o maior polo calçadista do Brasil e, na esteira, um grande número de curtumes e indústrias associadas. 

A cidade de Novo Hamburgo, uma das mais importantes da região, é sede da FIMEC – Feira Internacional de Couros, Produtos Químicos, Componentes, Máquinas e Equipamentos para Calçados e Curtumes, considerada o maior evento do setor na América Latina e o segundo maior do mundo. Desde a década de 1970, o evento atrai comerciantes, empresários, industriais e clientes de todo o Brasil e países vizinhos, que buscam os novos lançamentos e as tendências do setor coureiro-calçadista. 

Agora vejam o outro lado – apesar de toda a sua importância econômica regional, Novo Hamburgo trata apenas 4% dos esgotos coletados na cidade. De acordo com informações da COMUSA – Companhia Municipal de Saneamento de Novo Hamburgo, a maior parte dos esgotos domésticos gerados diariamente pela população são despejados in natura nos arroios Pampa e Luiz Rau, que desaguam no rio dos Sinos. 

 O couro foi um dos primeiros materiais utilizados como matéria prima pela humanidade. Era uma espécie de subproduto dos animais caçados para alimentação dos grupos humanos. O couro era removido, limpo e seco, para então ser utilizado na forma de tapetes, de mantas, roupas e utensílios para o uso diário. Por se tratar de matéria orgânica, esses “objetos” tinham uma vida útil bastante curta – conforme o couro apodrecia, era substituído por novas peças retiradas de animais recém caçados.  

Com o passar do tempo, foram sendo descobertas técnicas para o tratamento do couro, o chamado curtimento, o que resultou num aumento progressivo da vida útil do material. O curtimento é um processo que mumifica o couro, estabilizando o teor de umidade e garantindo a durabilidade. Calcula-se que aproximadamente 80% do couro usado no mundo seja empregado na fabricação de calçados, o que justifica a presença de tantos curtumes na Região do Vale do Rio dos Sinos. O percentual restante é destinado a outros setores como o automotivo e a indústria da moda.  

Os couros mais utilizados no Brasil são os retirados do gado bovino, seguido pelos couros de cabras, ovelhas, búfalos e avestruzes. Atualmente, novos tipos de couros vêm sendo produzidos em pequena escala no país, como os couros de jacarés com origem em criadouros autorizados pelo IBAMA – Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis. Também estão aproveitados couros de algumas espécies de peixes comerciais (couro de tilápia, por exemplo), entre outros. 

As peças de couro bruto passam por um processo de raspagem, onde restos de carne, gordura, pelos e outras impurezas indesejadas são retiradas. Numa etapa seguinte, o couro recebe um tratamento químico para eliminação de todas as bactérias. Nos curtumes modernos, o processo final de curtimento dos couros utiliza sais de cromo. De acordo com informações do CRQ – Conselho Regional de Química, aproximadamente 98% dos couros produzidos no Brasil são tratados com sais de cromo.  

Após o processo de curtimento, que vai garantir maciez e durabilidade ao produto, alguns tipos de couro ainda passam por etapas tingimento, onde serão aplicados diversos corantes e produtos químicos, cujos efluentes se somarão aos resíduos gerados no curtimento. Durante décadas, os efluentes e resíduos, contaminados com produtos químicos e cromo, gerados nos curtumes das cidades do Vale do Rio dos Sinos, eram despejados nos arroios e rios da região sem qualquer tipo de tratamento. 

O cromo é um metal de transição com importantes aplicações na metalurgia, especialmente na produção do aço inoxidável. Os compostos de cromo (estado de oxidação +6) são muito oxidantes e podem ser altamente nocivos. Em altas concentrações, estes compostos podem causar diversos problemas à saúde humana, indo desde problemas respiratórios, infecções, infertilidade e deficiências congênitas. Algumas espécies de plantas e animais regulam suas funções metabólicas através de pequenas doses de cromo.  

Lançado junto com os efluentes nas águas dos rios, o cromo pode causar problemas nas guelras dos peixes e também provocar alguns tipos de câncer em animais que bebam ou mantenham contato com estas águas. Profissionais que trabalham nos curtumes, expostos diariamente a toda uma série de produtos químicos, podem apresentar problemas como rinite, lesões no estômago e na pele e, em casos extremos, riscos de desenvolver câncer no pulmão

Estudos publicados em 2012 indicavam que, de toda a carga bruta de cromo gerada no Estado do Rio Grande do Sul, cerca de 90% se encontrava na bacia hidrográfica do rio dos Sinos. Nos últimos anos, os órgãos ambientais do Estado do Rio Grande do Sul passaram a realizar um forte trabalho de controle das fontes geradoras de cromo e de outros efluentes industriais originados nas indústrias químicas e nos curtumes. Apesar dos lançamentos de efluentes industriais nas águas do rio dos Sinos estar sob controle, os lançamentos de esgotos domésticos continuam.  

Em média, apenas 5% destes dos esgotos gerados pelas cidades da região do rio dos Sinos recebem um tratamento adequado em ETEs – Estações de Tratamento de Esgotos. Ironicamente, o rio dos Sinos é um dos grandes mananciais de abastecimento das cidades da região, que captam e tratam suas águas poluídas para distribuir para a população, processo que consome inúmeros recursos e grandes quantidades de produtos químicos. 

Como se não bastasse toda essa gama de problemas ligados à indústria do couro, a bacia hidrográfica do rio dos Sinos também sofre com os problemas triviais de outros rios brasileiros: despejos e carreamento de resíduos sólidos, lixiviação de efluentes de aterros sanitários e de “lixões”, descarte de resíduos da construção civil, desmatamento de áreas de nascentes, carreamento de resíduos de agrotóxicos e fertilizantes de áreas de produção agrícola, entre outros. 

Além de todos os impactos a nível local, a degradação ambiental das águas do rio dos Sinos também terá seus reflexos na Região Metropolitana de Porto Alegre, um aglomerado de 34 municípios e onde vive uma população próxima dos 4,5 milhões de habitantes. Os vales dos rios do Sinos, Caí e Gravataí concentram grande parte dos pontos de captação da água usada no abastecimento dessa grande população. Apesar da aparente grande disponibilidade, a qualidade das águas desses mananciais é sofrível. 

A “receita da destruição” do rio dos Sinos é a mesma encontrada em outras regiões brasileiras: forte crescimento populacional devido a migração do campo para as cidades, combinada com um crescimento econômico “a qualquer custo”.