A TRANSPOSIÇÃO DE ÁGUAS ENTRE AS REPRESAS DO JAGUARI E DO ATIBAINHA, OU A VELHA DISPUTA PELAS ÁGUAS DO RIO PARAÍBA DO SUL CONTINUA?

Nos últimos anos, com a realização de diversas obras hidráulicas na região do Semiárido Nordestino, os sistemas de transposição de águas entre diferentes bacias hidrográficas ganharam bastante popularidade. Estações de bombeamento, canais e barragens construídos na região estão permitindo que as águas do rio São Francisco cheguem a regiões castigadas há séculos por fortes ciclos de estiagem. 

Esses sistemas, porém, não são exatamente uma novidade aqui no Brasil. Um grande exemplo de transposição de águas é o rio Guandu, o principal manancial de abastecimento da Região Metropolitana do Rio de Janeiro e de parte das cidades da Baixada Fluminense. A partir das primeiras décadas do século XX, com a realização de obras para a geração de energia elétrica no Estado do Rio de Janeiro, as águas da bacia hidrográfica do rio Paraíba do Sul passaram a ser transpostas na direção da bacia hidrográfica do rio Guandu – os caudais que sobram, como uma espécie de “subproduto” da geração elétrica, abastecem as populações das cidades. A primeira dessas obras foi o desvio parcial das águas do rio Piraí em 1907.

Uma obra bastante recente, inaugurada em 2018, é o sistema que permite a transposição ou bombeamento de águas da Represa do Jaguari (vide foto), na bacia hidrográfica do rio Paraíba do Sul, na direção da Represa do Atibainha, que faz parte do Sistema Cantareira. Feita dentro das regras de compartilhamento das águas do rio Paraíba do Sul entre os Estados de São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais, essa transposição costuma causar muita polêmica. Vamos entender o caso: 

No começo do último mês de outubro, auge do período da seca na região Sudeste, cerca de 90% de toda a água que estava chegando na Represa do Jaguari estava sendo bombeada para a Represa do Atibainha através do sistema de transposição. A soma do volume total de água que estava sendo despejado na Represa por todos os seus tributários – rios, córregos e ribeirões, era da ordem de 9 m³/s, mas o volume captado pela Sabesp, empresa de saneamento básico do Estado de São Paulo e operadora do sistema de transposição, era de 8 m³/s.  

Além dessa sangria local, a Represa do Jaguari era obrigada a liberar um volume de 40 m³/s de água na calha do rio Paraíba do Sul como parte do acordo de partilha das águas entre os Estados. Como consequência dessa situação, o nível da represa caiu há época para cerca de 25%.

Felizmente, com a chegada providencial da temporada de chuvas na região nas últimas semanas, a Represa já recuperou parte do seu volume e agora está com aproximadamente 33% da sua capacidade. Apesar da melhora na situação, as populações de cidades abastecidas com as águas da Represa do Jaguari como Igaratá e Santa Isabel se desesperam ante o risco de um eventual racionamento. 

A disputa pelas águas da bacia hidrográfica do rio Paraíba do Sul vem acirrando os ânimos de muitas populações há várias décadas e já teve inúmeros embates em Tribunais de Justiça, só sendo apaziguada em 2015 por uma decisão do STF – Superior Tribunal Federal. A Justiça repactuou a divisão das águas da bacia hidrográfica entre os Estados reclamantes e mudou a prioridade do seu uso para abastecimento de populações (antes era geração de energia elétrica). 

Apesar de estar completamente dentro da legalidade, o sistema de transposição Jaguari/Atibainha desagrada muita gente, especialmente no Estado do Rio de Janeiro, algo que é bem fácil de entender: 80% da água usada no abastecimento da população da cidade do Rio de Janeiro e em mais da metade das cidades da Baixada Fluminense vem da bacia hidrográfica do rio Paraíba do Sul. Das cerca de 14 milhões de pessoas que são abastecidas com essas águas, perto de 12 milhões vivem no Estado do Rio de Janeiro.  

Um conjunto de dez reservatórios de água existentes na bacia hidrográfica forma o chamado Sistema Hidráulico do Rio Paraíba do Sul. Além dos reservatórios, esse Sistema é formado barragens, estações de bombeamento de água e usinas hidrelétricas. Na prática, todas essas estruturas formam uma espécie de “reservatório virtual”, fundamental para o abastecimento da população do Estado do Rio de Janeiro. É esse complexo Sistema Hidráulico que permite a transposição de águas da bacia hidrográfica do rio Paraíba do Sul para o rio Guandu. 

Vejamos agora o outro dessa história – o Sistema Cantareira é o maior manancial de abastecimento das Regiões Metropolitanas de São Paulo e de Campinas, atendendo diretamente cerca de 8,8 milhões de pessoas. O Sistema possui cinco reservatórios: Jaguari (existe muita confusão entre esse reservatório e a Represa do Jaguari), Jacareí, Cachoeira e Atibainha, todos inseridos na bacia hidrográfica do Rio Piracicaba) e Paiva Castro, inserido na bacia hidrográfica do Alto Tietê. O Sistema também possui uma pequena represa no alto da Serra da Cantareira – o reservatório Águas Claras. 

Projetado e construído entre as décadas de 1960 e 1980, o discreto Sistema Cantareira acabou ocupando grandes manchetes em telejornais e jornais entre os anos de 2014 e 2016, época em que uma seca sem precedentes se abateu na região e levou a uma gravíssima crise hídrica. No auge dessa crise, o Sistema Cantareira entrou no chamado “Volume Morto”, formado por reservas de água que ficam abaixo do nível de captação das bombas. Obras emergenciais tiveram de ser feitas na represa, para permitir a captação dessas águas, e também para a construção de tubulações para interligação de outros reservatórios da Região Metropolitana de São Paulo, como foi o caso da Represa Guarapiranga

Essa crise hídrica expôs todas as fragilidades do sistema de abastecimento de água de parte substancial da população do Estado de São Paulo e explicitou a incompetência de muitas “otoridades” das autarquias, das empresas de saneamento básico e de muitos políticos paulistas. A construção do sistema de transposição entre as represas do Jaguari e do Atibainha fez parte da reorganização da segurança do sistema de abastecimento de água de São Paulo e foi inaugurado em 2018. 

Um ponto chave nas discussões que levaram a implementação desse sistema foi a possibilidade de direcionar os excedentes de água nas duas direções. Em momentos em que o Sistema Cantareira estiver cheio, as águas excedentes serão despejadas na Represa do Jaguari. Quando a situação for inversa, as águas da Represa do Jaguari serão bombeadas para o Sistema Cantareira

A grande reclamação dos usuários das águas da bacia hidrográfica do rio Paraíba do Sul é que, até o momento, foi somente o seu sistema que forneceu águas para a transposição – as represas do Sistema Cantareira não mandaram um único metro cúbico de água para o seu lado. O temor de muita gente é que essa situação se perpetue. 

Entre as justificadas preocupações desses usuários está a acentuada perda de matas nas cabeceiras de muitos dos rios formadores do Sistema Cantareira nas últimas décadas. Conforme já tratamos em outras postagens, a presença de vegetação é fundamental para os processos de recarga de aquíferos e lençóis subterrâneos de água, reservas essas que são essenciais na formação dos caudais dos rios, especialmente nos períodos de seca.  

Antigas áreas cobertas por remanescentes de Mata Atlântica foram substituídas por florestas comerciais de pinus e eucalipto, plantações e áreas de pastagens. Os baixos níveis apresentados pelas represas do Sistema Cantareira nos últimos anos é uma das consequências mais visíveis dessa devastação das matas. Existem muitos esforços de Governos, empresas e de cidadãos para recomposição de parte dessas matas destruídas por toda a região, mas ainda serão necessários vários anos para “zerar” as perdas e reestabelecer os volumes históricos de água nas represas. 

Enquanto isso tudo não se resolve, nervos vão continuar a flor da pele em muitas cidades e poderão voltar a acontecer novas batalhas em escaramuça na disputa pelas águas da bacia hidrográfica do rio Paraíba do Sul. 

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