OS VINHOS, OS QUEIJOS E A PRODUÇÃO DE SOJA DA FRANÇA

Desde meados de 2019, o Presidente da França, Emmanuel Macron, vem transformando a questão da Amazônia em um verdadeiro circo. Todos devem se lembrar de um discurso inflamado que ele fez há época para uma plateia de “micos amestrados”, onde usou a infeliz expressão “nossa Amazônia está pegando fogo”. No mesmo dia ele publicou um texto na internet onde usou uma foto antiga de um incêndio na Floresta Amazônica – inclusive, o autor dessa foto havia morrido vários anos antes. 

À fala de Macron, inúmeros ativistas, intelectuais, artistas e famosos se seguiram. Um deles, o jogador de futebol português Cristiano Ronaldo, chegou a publicar uma imagem de um incêndio nos Pampas do Rio Grande do Sul como se fosse uma queimada na Amazônia. Eu não sei quantos dos leitores tiveram a mesma impressão, mas, desde aqueles tempos, eu entendi que tudo foi uma enorme orquestração. Publiquei há época uma extensa série de postagens falando da Amazônia. 

Confirmei minhas suspeitas há poucos dias atrás – no último dia 3 de fevereiro, a “ativista” ambiental Greta Thunberg, aquela garota perturbada da Suécia que acusa os líderes do mundo de terem destruído o seu futuro, publicou por engano em sua página na internet um documento bastante suspeito. Nesse documento, um toolkit de um grupo anônimo, havia instruções completas para atacar o Governo da Índia durante um grande protesto de agricultores do país que estava previsto para meados de fevereiro. Esses trabalhadores estão lutando contra o fim de uma série de subsídios governamentais. 

O documento tinha todo um planejamento com datas e horários para as postagens contra o Governo Indiano, dicas para as falas e emails dos famosos a serem acionados, sugestões de fotografias, entre outros detalhes. Seria uma grande armação nos mesmos moldes da que foi feita em relação às queimadas da Amazônia. Investigações do Governo do Canadá já descobriram que uma ONG – Organização Não Governamental, local está por trás da iniciativa e também já têm uma série de suspeitos de financiar o “projeto” – todos canadenses de origem indiana. 

Pois bem – há poucas semanas atrás, o mesmo Emmanuel Macron apresentou a sua nova linha política na defesa da Amazônia – a França vai aumentar a sua produção de soja para, assim, não precisar comprar a soja brasileira que “é plantada em áreas desmatadas e queimadas da Floresta Amazônica”. 

A má fé do Presidente francês já começa aqui – a soja brasileira é plantada, majoritariamente, nos domínios do Cerrado, que se espalha entre as regiões Centro-Oeste, Sudeste e Nordeste, e também em áreas da Mata Atlântica e dos Pampas na Região Sul. O avanço dos campos de soja contra matas nativas é preocupante sim, mas falamos aqui de vegetação do Cerrado e de fragmentos remanescentes da Mata Atlântica e dos Pampas – a questão da Amazônia é outra. 

Na Amazônia propriamente dita (falo aqui do bioma Amazônia e não da Amazônia Legal), a soja tem uma importante área de produção em Rondônia, onde ocupou áreas dos Campos Amazônicos, uma “extensão” do Cerrado, ainda na década de 1970. Também existem algumas áreas lindeiras da Floresta Amazônica nos limites do Cerrado que foram ocupadas no auge da colonização da região ainda nos tempos do Regime Militar. Fora isso, não há maiores notícias de grandes desmatamentos dentro da Floresta Amazônica para formação das gigantescas plantações de soja como as que existem no Cerrado.  

Existem grandes problemas ambientais na Floresta Amazônica, especialmente, desmatamentos para exploração de madeira, para formação de pastagens para o gado, garimpos ilegais, além de abertura de áreas para a agricultura de subsistência, origem essa das grandes queimadas. Grandes áreas de produção de grãos como as que existem no Cerrado em Mato Groso e que se estendem por centenas e mais centenas de quilômetros, isso não existe na dentro do bioma Amazônia (a exceção de Rondônia) e precisamos todos nos esforçar para que continuem não existindo. 

Todo presidente ou líder político de uma nação conta com uma equipe de profissionais que os municiam com informações relevantes sobre todos os assuntos de interesse do país. E é claro que Emmanuel Macron sabe de tudo isso – o interesse, porém, é outro. Na minha modesta opinião, a ideia dos franceses é evitar a assinatura do acordo comercial entre o Mercosul e a União Europeia no curto prazo, o que atende aos interesses dos barulhentos agricultores franceses. Já no longo prazo, imagino que o objetivo é ressuscitar a velha ideia da internacionalização da Amazônia

A soja, como já afirmamos em outras postagens, é um grão rico em proteínas e sais minerais, com enorme potencial para a produção de ração para animais, especialmente porcos – bem por acaso, a carne mais consumida pelos povos europeus. A produção de soja em países da Europa é bem modesta e grandes volumes precisam ser importados de outros países para suprir as necessidades locais. Como ocupa a posição de maior produtor de soja do mundo, o Brasil fornece uma parte significativa da soja consumida na Europa. 

A França produz atualmente cerca de 500 mil toneladas de soja a cada ano, uma fração das necessidades do país. Em 2020, os franceses importaram 1,96 milhão de toneladas de soja, principalmente na forma de farelo de soja. De acordo com os planos de Emmanuel Macron, a França deverá aumentar sua produção nos próximos anos, caminhando para uma relativa autossuficiência em relação à soja brasileira. 

A aparente boa intenção do mandatário francês é, tecnicamente, bastante viável – a soja é natural de regiões de clima temperado na Ásia e a cultura se adapta facilmente ao clima da Europa. A França possui os melhores solos para a agricultura do continente e já há vários séculos ostenta o título de “celeiro europeu”. 

Dito isso, existem alguns pequenos problemas. O maior deles é a falta de espaço para a ampliação das plantações de soja no país. Grande parte dos solos da França, país que tem um tamanho equivalente ao Estado de Minas Gerais, já está ocupada por plantações tradicionais de uvas, essenciais para a indústria vinícola do país, oliveiras e pomares de frutas. Outras áreas são destinadas à produção de linho, famosa fibra têxtil da Europa, campos de alfazema e de flores, essenciais para a indústria cosmética e de perfumes, além das pastagens para bois, ovelhas e cabras.  

Os campos agrícolas já existentes produzem trigo, cevada, centeio, batatas e outros alimentos básicos para o consumo da população. Inevitavelmente, será preciso sacrificar algumas dessas culturas e produções para aumentar os campos de cultivo de soja. O que seria melhor: reduzir a produção dos famosos vinhos do país ou sacrificar parte da fabricação dos deliciosos queijos franceses? 

Uma opção seria ocupar áreas cobertas por florestas. Cerca de 31% do território da França é coberto por fragmentos e remanescentes florestais. A maior parte dessas matas formam reservas florestais e ficam em encostas de áreas montanhosas como os Pirineus e os Alpes. Mudando várias leis locais de preservação do meio ambiente, seria possível encontrar áreas onde seria possível implantar novos campos de soja. Seria interessante ver Macron justificando ao seu eleitorado a derrubada de matas em território francês em prol da “salvação” da Floresta Amazônica. Nesse caso, talvez fosse melhor a liberação da produção da soja na Guiana Francesa, território ultramarino do país na Amazônia.

Um outro problema sério para os franceses é o clima temperado, com invernos rigorosos e precipitação de neve, o que permite uma única safra de soja a cada ano. Aqui no Brasil, o clima tropical permite até duas safras de soja por ano, ainda sendo possível em algumas regiões uma safrinha de milho entre elas. A produtividade agrícola do Brasil é insuperável, o que se reflete em preços altamente competitivos. 

Encerrando, precisamos falar dos custos que estariam envolvidos nessa ampliação da produção francesa de soja. Os agricultores do país já recebem pesados subsídios governamentais na sua produção (por isso a preocupação com eventual acordo comercial com o Mercosul), o que se traduz em preços finais dos produtos altamente distorcidos. Para conseguir equiparar o preço da soja francesa com o da brasileira, o Governo da França teria de subsidiar os produtores locais com outras centenas de milhões de Euros. Será que o “cofre” do Macron está tão cheio assim? 

Apesar desses imensos subsídios e vantagens fiscais aos produtores, a agropecuária francesa, assim como outras da Europa Ocidental, usa como mão de obra trabalhadores vindos de países mais pobres da União Europeia como a Polônia, Eslováquia, Romênia e Bulgária. Recebendo salários miseráveis, esses trabalhadores viajam de seus países para as áreas de produção nos períodos de colheita e de plantio, fazendo todo o trabalho pesado e se hospedando em verdadeiros cortiços. Vamos falar disso na próxima postagem.

Os franceses vão colocar essa exploração humana ao lado das questões ambientais nessa provável ampliação da produção de soja? 

Diz aí Macron… 

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A DERROCADA DA AGROPECUÁRIA NA ARGENTINA, OU O “TANGO DO PORTEÑO DOIDO”

Segundo a base de dados do Maddison Project, criada pelo economista e prêmio Nobel de economia Angus Maddison e que fornece informações sobre o crescimento econômico comparativo e os níveis de renda dos países no longo prazo, a Argentina possuía o maior PIB – Produto Interno Bruto, per capita do mundo em 1896. Naqueles bons tempos, um argentino tinha um rendimento, em média, 29% maior que um francês e 14% maior que um alemão. Quando a comparação envolvia japoneses e brasileiros, a diferença era maior ainda: os rendimentos eram 3 e 5 vezes maiores, respectivamente. 

A origem da riqueza da Argentina começou na década de 1860, quando a produção agropecuária do país começou a crescer vertiginosamente. Os solos férteis da Pampa passaram a ser ocupados por grandes plantações de trigo, cultura que veio se juntar a já tradicional pecuária. Uma complexa rede de trilhos ferroviários passou a ligar as regiões produtoras aos portos do país, em especial o de Buenos Aires, e da lá os produtos argentinos seguiam para alimentar o mundo. 

Um exemplo da riqueza extraordinária do país nesse período foi a inauguração em Buenos Aires da primeira e única filial da famosa loja Harrods fora da Inglaterra em 1912. Já no ano seguinte, a cidade assistiu a inauguração da primeira linha de metrô da América Latina. A Capital porteña era, há época, a terceira maior cidade das Américas, ficando atrás de Chicago e Nova York. Nessa época, apenas para efeito de comparação, a cidade do Rio de Janeiro, que então era a capital do Brasil, recém havia eliminado os focos de mosquitos que causavam as grandes epidemias de febre amarela na cidade mais importante do país. 

A prosperidade argentina aumentou ainda mais durante a Primeira Guerra Mundial (1914-1918), período em que o país se tornou o principal fornecedor de alimentos para as nações que se aliaram na luta contra a Alemanha. Um dos principais produtos argentinos dessa época eram as carnes cozidas e enlatadas, que abasteciam diretamente os milhões de soldados que lutavam nos fronts.  

Essa fase dourada das exportações e da grande riqueza do país se manteria até o fatídico ano de 1929, quando ocorreu a quebra da Bolsa de Valores de Nova York e o mundo nunca mais seria o mesmo. A decadência contínua da economia argentina ganharia um outro componente em 1946, quando ascendeu ao poder o General Juan Domingo Perón, político que criaria um conceito de assistencialismo governamental populista que até hoje é muito forte no país – o peronismo. 

Nesse ano que passou, quando a Argentina estava imersa em mais um capítulo da sua interminável crise econômica, o país foi atingido em cheio pelas notícias da pandemia da Covid-19 e o Governo decretou aquele que seria o lockdown mais longo de todo o mundo. Para um país que já enfrentava uma grave recessão econômica, desemprego e aumento crescente da pobreza, corrosão das reservas financeiras e fuga de capitais, o fechamento da economia só fez o tamanho do desastre aumentar. 

Uma das primeiras medidas econômicas anunciadas pelo Governo no enfrentamento da pandemia da Covid-19 ainda em março de 2020, foi o aumento do imposto sobre as exportações de soja, que passou de 30% para 33%. Com uma produção da ordem de 60 milhões de toneladas, a Argentina é o terceiro maior produtor mundial de soja, só ficando atrás do Brasil e dos Estados Unidos. As exportações do produto, principalmente do farelo de soja que é usado para a produção de ração para animais, é vital para a economia do país. 

Essa sobretaxação do produto, que aumentou ainda mais um imposto que já era considerado extremamente elevado para os produtores, desencadeou uma crise gigantesca. Muitos produtores optaram por não colher a soja dos seus campos e, muito pior, concluíram que seria mais barato queimar as plantações ou simplesmente gradear as plantas com tratores. Como o preço da commodity é determinado pelo mercado internacional, não há espaço para repassar mais esse aumento nos custos de produção. O resultado desses “protestos” foi uma redução de 11,6% na safra da soja em relação ao ano de 2019. 

Além dos problemas ligados a produção da soja, importantes regiões agrícolas do país sofreram com a falta de chuvas ao longo do ano, um problema que comprometeu outras duas importantes culturas agrícolas do país: o milho e o trigo. Os produtores esperavam colher 50 milhões de toneladas de milho, mas só conseguiram colher 47 milhões de toneladas. Já no caso do trigo, a expectativa era de 21 milhões de toneladas, mas só foram colhidas 17,5 milhões de toneladas

Dando um tempero extra ao já complicado “caldo” da produção agrícola na Argentina em 2020, caminhoneiros, fiscais alfandegários e estivadores realizaram inúmeros protestos e paralizações em suas atividades para pressionar o Governo a aumentar as medidas de proteção contra a epidemia da Covid-19. Os sucessivos adiamentos nas exportações de commodities agrícolas comprometeram profundamente os níveis das reservas internacionais da Argentina, que praticamente zeraram em alguns momentos ao longo de 2020. 

Como se os problemas criados para a produção e exportação de grãos já não fossem suficientemente grandes, o Governo argentino tomou uma medida populista e chegou a impor limites para as exportações de milho do país. Matéria prima essencial para a produção de rações para animais, o milho é fundamental para a produção pecuária na Argentina – na cabeça dos governantes locais, ao se aumentar a oferta de milho para a produção de ração, os criadores argentinos de gado aumentariam os seus rebanhos e garantiriam o fornecimento de grandes volumes de carne barata para a população. Só que, como diz um velho ditado, “teoria na prática é outra coisa”. A exemplo de muitas empresas que optaram por abandonar a Argentina – o caso mais emblemático foi o Mercado Livre, muitos pecuaristas se mudaram de “mala e cuia” para o Uruguai.

Um argentino médio consumia anualmente cerca de 70 kg de carne até bem poucas décadas atrás – com as sucessivas e intermináveis crises econômicas do país, esse consumo já baixou para 50 kg/ano (é provável que tenha caído ainda mais ao longo de 2020). Para nós brasileiros, que consumimos algo próximo dos 37 kg/ano, esse número é bastante razoável; para os carnívoros argentinos, porém, isso é uma verdadeira tragédia – a carne é considerada um alimento básico por lá. 

Segundo muitas projeções econômicas internacionais, a economia da Argentina pode ter sofrido uma retração de aproximadamente 12% no ano de 2020. O número oficial ainda não foi fechado pelo Governo e, há muitos anos, as estatísticas do país são “editadas” – talvez esses números mostrem um cenário “menos pior” que a realidade. O índice mais grave, entretanto, se refere ao número de pessoas pobres no país – 42% da população já vive abaixo da linha da pobreza e cerca de 10% são considerados indigentes. Esses números já vinham crescendo há vários anos, porém, com o fechamento da economia por causa da Covid-19, os números explodiram. Forçar a mão sobre os produtores de gado para conseguir oferecer carne mais barata para essa população foi uma tentação irresistível para o Governo peronista da Argentina. 

Eu costumo assistir os noticiários da televisão argentina e lembro de ter visto que o Governo criou vários postos para a venda de carne mais barata nas principais cidades do país. Em dias determinados, gigantescas filas se formavam nesses locais – as pessoas passavam horas esperando até conseguir trocar seus desvalorizados pesos por alguns quilos de carne. 

Esse populismo de “quinta” categoria remete à lembrança imagens de tempos passados, quando a então Primeira-Dama da Argentina, Eva Perón (vide foto), mais conhecida como Evita (1919-1952), realizava trabalhos de assistência social aos mais pobres, inclusive, distribuindo notas de dinheiro. As pessoas formavam as mesmas filas gigantescas, onde passavam horas até chegar sua vez de receber uma nota de alguns pesos diretamente das mãos da “Mãe dos pobres”. 

Graças à excepcional qualidade de suas terras, a Argentina já foi um dos maiores produtores e exportadores de alimentos do mundo. Porém, ao longo das últimas décadas, possuir terras férteis para a produção agrícola e pecuária deixou de ser relevante para um país. O caso da Região Centro-Oeste do Brasil é um grande exemplo – graças ao uso da tecnologia, foram criadas sementes de grãos que crescem em solos ácidos e de baixa fertilidade – nosso desprezado Cerrado se transformou num verdadeiro celeiro agropecuário.

As tecnologias para a produção de fertilizantes e para a correção dos solos também evoluíram bastante e terras que eram consideradas improdutivas em várias partes do mundo hoje batem recordes nas colheitas. A alta fertilidade das terras dos Pampas argentinos deixou, há muito, de ser um diferencial estratégico para o país e uma garantia de altos rendimentos nas atividades agropecuárias. Infelizmente, os dirigentes do país parecem não estar vendo isso e as coisas desandam cada vez mais.

Enquanto a produção nos campos da Argentina perde o seu rumo, há uma pressão muito forte para o aumento mundial da produção de alimentos, principalmente pela crescente demanda da China, uma situação que está criando excelentes oportunidades de negócio para os países produtores. O Brasil está se beneficiando, e muito, dessa alta demanda. 

Enquanto isso, nossos hermanos argentinos dançam seu tango, cada vez mais trágico. É de chorar pela Argentina… 

PS: O título da postagem faz uma referência irônica a expressão “samba do criolo doido“, que é usada, no Brasil, para se referir a coisas sem sentido, situações incompreensíveis e também a textos mirabolantes e sem nexo.

EM SE PLANTANDO, TUDO DÁ

A frase usada no título é bastante conhecida e é derivada de um trecho da famosa carta de Pero Vaz de Caminha, o Escrivão-Mor da Esquadra de Pedro Álvares Cabral, que foi escrita a El Rey de Portugal em 1500, com notícias sobre a nova terra. A imagem que ilustra esta postagem mostra um trecho da carta. 

Águas são muitas; infindas. E em tal maneira é graciosa que, querendo-a aproveitar, dar-se-á nela tudo, por bem das águas que tem.” 

O aproveitamento das terras brasileiras começou já na década de 1530, quando as expedições de colonizadores trouxeram as primeiras mudas de cana de açúcar e também os primeiros bois. As canas teriam como destino final as moendas, caldeiras e casas de purga dos engenhos, onde seriam transformadas no valioso açúcar. Os bois seriam usados nos pesados trabalhos de transporte das canas cortadas, para acionar as rodas de algumas moendas e também para transportar lenha para as caldeiras. 

A partir dessa agricultura pioneira destinada à exportação do açúcar, o Brasil foi se consolidando cada vez mais como um grande produtor agropecuário. Contando com um relevo sem grandes montanhas, com disponibilidade de água em grande parte do seu território, contando com um clima sem variações bruscas de temperatura e com um inverno bastante ameno na sua faixa Sul, o Brasil apresenta algumas das melhores condições para a agricultura e a pecuária do mundo. 

Na postagem anterior falamos bastante da soja, uma cultura agrícola que ganhou uma enorme importância para as exportações do país nas últimas décadas, e também da região do Cerrado, o segundo maior bioma do país e que abriga as novas fronteiras da agricultura e da pecuária. Entretanto, nossa agropecuária vai muito além do Cerrado – terras e pastagens por praticamente todo o país abrigam as mais diferentes atividades desse setor.

Durante mais de quatro séculos, a maior parte da população brasileira esteve concentrada numa faixa de terras com largura aproximada de 350 km ao longo da faixa litorânea. A maior parte dessas terras está dentro dos domínios da Mata Atlântica, um extenso sistema florestal que se espalhava desde o Norte do Rio Grande do Sul até o Rio Grande do Norte. Por essa razão, as atividades agropecuárias ficaram concentradas nessa região até bem poucas décadas atrás.

Na região Sul e em parte do Sudeste, a Mata Atlântica avançava para o interior do território, com alguns trechos chegando ao Sul do Mato Grosso do Sul e a partes do Paraguai e da Argentina. Em grande parte do litoral nordestino, a floresta formava uma faixa com largura entre 60 e 80 km entre o litoral e o semiárido, onde os solos de massapê eram extremamente férteis e as fontes de água abundavam. Foi justamente nessa região do Nordeste onde se concentraram as principais atividades agropecuárias nos primeiros tempos da colonização, em especial a produção do açúcar. 

Os principais ciclos econômicos que se seguiram ao açúcar – a mineração do ouro nas Geraes, o café, a exploração madeireira na região Sul e a produção de grãos como a soja, o milho, o feijão e o trigo, ficaram concentrados dentro dos domínios da Mata Atlântica até meados da década de 1970. Foi somente a partir de 1975, quando passaram a ser comercializadas as sementes de grãos adaptadas ao clima e aos solos do Cerrado, que a grande predominância da agricultura e da pecuária nessa faixa litorânea foi quebrada. 

Se analisarmos os gráficos com a produção de cereais no Brasil, veremos que até por volta do ano de 2010 a Região Sul do país era a maior produtora. Foi então que a Região Centro-Oeste passou a frente, com o Estado de Mato Grosso assumindo a liderança absoluta na produção. As Regiões Sudeste e Nordeste vem em seguida, com a Região Norte ficando em último lugar com uma produção bastante modesta. É importante ressaltar aqui que as atividades agropecuárias empregam uma quantidade bastante expressiva de brasileiros.

Além da produção agrícola, nosso país tem uma longa tradição em pecuária bovina. As primeiras boiadas se formaram no litoral nordestino, bastante próximas das áreas de plantio de cana. Como os bois invadiam as plantações e comiam os brotos de cana de açúcar, a criação desses animais no litoral foi proibida e os criadores tiveram de rumar para os sertões do semiárido em busca de áreas de pastagens. Grandes trechos da vegetação da caatinga foram queimados para a formação de pastagens, o que agravou os problemas da seca na região. 

Outra região com muita tradição em pecuária é o Extremo Sul, principalmente na região dos Pampas. Esse gado começou a ser criado nas fazendas dos missionários jesuítas ao longo das margens do rio Uruguai. Após os diversos embates entre os bandeirantes paulistas, que buscavam indígenas para escravizar, e os jesuítas, grandes rebanhos desses gados acabaram soltos nos Pampas e formaram grandes manadas de animais que voltaram a ser selvagens. Com a posterior ocupação dos Pampas por colonos, esses animais voltaram a ser domesticados e a pecuária se transformou em uma das mais importantes atividades econômicas da região. 

Outra região que foi transformada em um importante polo de pecuária foi o Centro-Oeste. Ao longo do século XVIII foram descobertas várias áreas de mineração de ouro nessas regiões, bem mais modestas do que aquelas da região das Geraes, mas suficientemente importantes para atrair inúmeros aventureiros. As primeiras boiadas datam desses tempos e a região acabou se consolidando nessa atividade ao longo do tempo. 

Sem nos atermos a maiores detalhes, esse rápido quadro histórico mostra que as atividades na agricultura e na pecuária formaram importantes bases da economia brasileira, especialmente nos ciclos da produção do açúcar e do café. Nas últimas décadas, a produção agropecuária ganhou muito fôlego e o Brasil entrou em definitivo para o seleto grupo dos grandes paises produtores e exportadores de grãos e carnes. 

Além de soja, nossos campos produzem milho, arroz, feijão, algodão, cana de açúcar, amendoim, trigo, cevada, centeio, aveia, sorgo, girassol, mamona, mandioca, inúmeras espécies de frutas, florestas comerciais de madeira, entre muitas outras culturas. Falando da criação de animais, temos uma importante pecuária de gado de corte e leiteiro, além de uma grande produção de aves, suínos, ovinos, caprinos, piscicultura e aquicultura em geral, entre muitas outras espécies animais de grande valor comercial

Diferentemente de fábricas, lojas e escritórios, onde é possível mandar o pessoal ficar em casa e onde é possível parar completamente as atividades, na agropecuária isso não é possível. As plantas não param de crescer e de produzir seus frutos e sementes, existem épocas certas para realizar o plantio e a colheita, os animais precisam de cuidados contínuos – não existe um “botão” que permita ligar e/ou desligar essas atividades.   

A epidemia da Covid-19 paralisou grande parte da vida econômica e social nas áreas urbanas, mas trouxe poucas mudanças para a vida das populações das áreas rurais, que felizmente continuaram trabalhando e produzindo, garantindo assim a produção dos alimentos básicos para a população e também importantes volumes de commodities para exportação. O polêmico “fique em casa” seguido por muita gente nas áreas urbanas do país só foi possível por que as gentes que vivem nos campos e se dedicam às atividades agropecuárias “não ficaram em casa”.

As perspectivas econômicas para o Brasil no ano que passou eram as piores possíveis, com uma estimativa feita por órgãos internacionais como o FMI – Fundo Monetário Internacional, de uma queda no PIB – Produto Interno Bruto, na ordem de 8%. Felizmente, graças em grande parte aos negócios agropecuários que não pararam, essa queda ficou em “apenas” 4%. Esse ainda é um valor alto, porém, ele é muito menor do que o sofrido pela nossa vizinha Argentina, onde a retração econômica foi próxima dos 12%, ou da Inglaterra, que amargou uma baixa próxima dos 10% em sua economia

As incertezas sobre os rumos da Covid-19 e da economia ainda são enormes neste ano de 2021, mas, pelo menos na área do agronegócio as expectativas são boas. A CONAB – Companhia Nacional de Abastecimento, está projetando um aumento de até 8% na produção brasileira de grãos nessa safra 2020/2021, o que vai acabar se refletindo em outras áreas do agronegócio como a pecuária. Se o buraco em que a Covid-19 lançou o nosso país e o mundo é grande, a nossa agricultura e a nossa pecuária, ao menos, conseguem deixá-lo um pouco menos profundo para todos nós brasileiros. 

BRASIL: O PAÍS DO SAMBA, DO JEITINHO E DA SOJA

A soja é uma planta da família das leguminosas que produz um grão muito rico em proteína e sais minerais como o potássio, cálcio, magnésio, fósforo, cobre e zinco. A espécie foi criada há cerca de 5 mil anos atrás na China a partir do cruzamento de duas espécies selvagens. A soja é, desde a antiguidade, empregada na alimentação humana na forma de óleos, molhos, leites, proteínas e “queijo” do tipo tofu, além de ser largamente utilizada na produção de ração para animais. 

Cultivada tradicionalmente em países do Extremo Oriente e Sudeste Asiático, a soja foi trazida para os Estados Unidos no século XIX, se adaptando perfeitamente bem ao clima local. As primeiras experiências de plantio da soja por agricultores no Brasil foram feitas na década de 1920 na região Noroeste do Rio Grande do Sul. Albert Lehenbauer, um missionário luterano norte-americano, distribuíu sementes da espécie que trouxe do seu país para os agricultores pobres da região, imaginando que as plantas se adaptariam ao clima local que é bem semelhante ao de algumas regiões dos Estados Unidos. 

Rapidamente, os pequenos agricultores gaúchos perceberam o enorme potencial da soja para a alimentação e engorda de animais, especialmente os porcos, e a cultura começou a se espalhar rapidamente na região de entorno do município de Santa Rosa, berço da cultura. A produção em larga escala só começaria na década de 1940 e o grão começaria a ganhar cada vez mais espaços nas terras de clima subtropical da região Sul do Brasil. 

O grande salto na cultura da soja veio em meados da década de 1970, quando a EMBRAPA – Empresa Brasileira de Pesquisas Agropecuárias, conseguiu desenvolver sementes adaptadas aos solos e ao clima do Cerrado brasileiro. Ocupando quase 2 milhões de km², os solos do bioma Cerrado eram considerados de baixíssima fertilidade e totalmente inadequados para uma produção agrícola em larga escala. As novas variedades de soja, e depois de milho, promoveram uma verdadeira revolução agrícola nessa região, que foi transformada no “celeiro do Brasil”. 

Dentro da estratégia de ocupação de todo o território brasileiro que vinha sendo desenvolvida por sucessivos Governos desde o início do século XX, milhares de famílias de agricultores sem-terra, principalmente da Região Sul, receberam inúmeros estímulos para migrarem para as terras de fronteira do Centro-Oeste brasileiro e da Amazônia. Inúmeras estradas passaram a ser abertas, destacando-se as rodovias Cuiabá-Porto Velho, a Cuiabá-Santarém, a Porto Velho-Manaus, a Belém-Brasília, além da icônica Rodovia Transamazônica

Um dos slogans mais usados nas campanhas governamentais de estímulo à migração era “Amazônia: uma terra sem homens para homens sem-terra“. Muitos dos brasileiros que passaram a ocupar largas extensões da Região Centro-Oeste acreditavam inicialmente que tinham se mudado para a Amazônia, quando na verdade estavam ocupando áreas de Cerrado. 

A origem dessa confusão, que ainda hoje vem causando inúmeros problemas para o Brasil, tem a ver com um conceito criado em meados da década de 1950. Em 1953, o Governo Getúlio Vargas criou a SPVEA – Superintendência do Plano de Valorização Econômica da Amazônia. Além de abranger todos os territórios do bioma Amazônico e que eram efetivamente cobertos pela Floresta Amazônica, essa política criou o conceito da Amazônia Legal.  

Para estender uma série benefícios fiscais a muitos dos aliados políticos do Governo e que foram criados especificamente para a região da SPVEA , os limites da Amazônia foram estendidos, passando a compreender todo o território dos atuais Estados de Mato Grosso e Tocantins, e também o Maranhão. Somadas, as áreas desses três Estados totalizam cerca de 1,5 milhão de km², porém, bem menos de 500 mil km² correspondem as áreas localizadas dentro do bioma Amazônico – a maior dessas terras pertencem ao bioma Cerrado. 

As terras de domínio do bioma Cerrado se transformaram na grande fronteira agrícola do Brasil. A ocupação começou por áreas do bioma nos Estados de São Paulo, Minas Gerais, Goiás e Mato Grosso do Sul (que antes fazia parte de Mato Grosso), se estendendo depois para o Tocantins (que formava o Norte do Estado de Goiás) e Mato Grosso. Atualmente, o avanço da fronteira agrícola está concentrado na região conhecida como MATOPIBA, que abrange terras do Cerrado no Maranhão, Tocantins, Piauí e Oeste da Bahia. 

Esse conceito da Amazônia Legal está na raiz de grande parte das notícias que circulam nos meios de comunicação internacionais sobre as queimadas e ocupação de áreas da “Amazônia”. O que para nós brasileiros são áreas do bioma Cerrado, para os estrangeiros são trechos da Floresta Amazônica que foram completamente desmatados e transformados em campos agrícolas e em pastagens para gadoFalta muita informação e sobra má fé entre muitos Governos estrangeiros que tem suas próprias ideias sobre o “futuro da Amazônia.

O Cerrado é um importantíssimo bioma, conhecido como “berço das águas” do Brasil. Algumas das principais bacias hidrográficas brasileiras como as dos rios Paraná, Tocantins-Araguaia, São Francisco e Paraguai, tem as suas principais nascentes ou parte delas em áreas do Cerrado. Pela sua enorme importância, os recursos naturais do bioma precisam ser protegidos da melhor maneira possível ante o avanço das frentes agrícolas. Entretanto, é preciso informar ao mundo que Cerrado e Floresta Amazônica são dois biomas distintos. 

De acordo com informações do IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, a produção brasileira de grãos em 2020 foi estimada em 240 milhões de toneladas – metade dessa produção ficou por conta da soja. As áreas do Cerrado foram responsáveis por 51% da produção de soja do país, uma participação que deverá crescer substancialmente nos próximos anos. Ou seja, além de ser o país do samba e do carnaval, do jeitinho (capacidade de impovisação dos brasileiros) e das jabuticadas, o Brasil se transformou na terra da soja.

Segundo a ABIOVE – Associação Brasileira das Indústrias de Óleos Vegetais, a área ocupada pela soja no Cerrado passou de 7,5 milhões de hectares em 2000/2001 para 18,2 milhões de hectares nos anos 2018/2019, com um aumento de produtividade de 30%. Estimativas indicam que será possível dobrar a área plantada de soja no Cerrado nos próximos 10 anos apenas com o reaproveitamento de áreas de pastagens subutilizadas no bioma, ou seja, será possível plantar mais sem desmatar. 

A CONAB – Companhia Nacional de Abastecimento, está muito otimista e projeta um aumento de até 8% na produção brasileira de grãos nessa safra 2020/2021, o que é um número surpreendente em meio a todos os problemas criados pela pandemia da Covid-19. O país deverá colher perto de 278 milhões de toneladas de grãos

Além da soja, transformada na rainha dos campos brasileiros e que poderá alcançar uma produção de mais de 133 milhões de toneladas, existem ótimas expectativas para a produção de milho, arroz, feijão e algodão. O milho deverá atingir a marca de 113 milhões de toneladas, o arroz 12 milhões de toneladas e o feijão 3 milhões de toneladas. Grande parte da produção desses outros grãos vem do Cerrado.

A colheita da soja, que já deveria ter sido finalizada em janeiro, foi bastante prejudicada por chuvas acima da média em Mato Grosso, o maior produtor brasileiro do grão. De acordo com informações do canal de informações agrícolas Rural Business, existe uma enorme fila de navios cargueiros estrangeiros aguardando a chegada dessa soja em vários portos brasileiros. Até o último dia 15, eram 208 embarcações já atracadas e/ou a caminho do Brasil. O destino da maior parte dessa soja é a China. 

Entre os anos de 1975 e 2019, o consumo de soja pela China aumentou cerca de 1.400%, passando de 7 milhões de toneladas para um fabuloso montante de mais de 105 milhões de toneladas. Os chineses compram mais de 80% da produção brasileira de soja e dos seus derivados. Se a situação econômica do Brasil foi muito ruim em 2020 por causa da pandemia da Covid-19, ela teria sido infinitamente pior sem a heroica produção de nossos agricultores, principalmente daqueles que produzem a soja. 

Continuaremos na próxima postagem. 

AGROPECUÁRIA EM TEMPOS DE PANDEMIA

A agricultura e a pecuária formaram as bases para o desenvolvimento de todas as civilizações humanas. 

Em tempos de comunicações instantâneas e globais, do comércio virtual, da indústria 5.0, das viagens espaciais, da energia nuclear e de tantas outras modernidades, fazer uma afirmação dessas parece ser algo um tanto “fora de moda”. Vamos entender isso: 

Até algo entre 12 mil e 10 mil anos atrás, nossos ancestrais vagavam pelo mundo vivendo um dia de cada vez. Nômades, os humanos iam aos lugares onde existia caça, peixes e plantas comestíveis. Eram jornadas desesperadas e motivadas pela fome – o estilo de vida até então não permitia que se criassem ou se estocasse qualquer tipo de alimento. Tudo o que era caçado, pescado ou coletado era consumido imediatamente. 

Veio então o que se conhece como “A Primeira Onda” – os humanos aprenderam que era possível cultivar a terra e viver dos seus frutos. Esse conjunto de técnicas de plantar, cultivar e colher, que hoje chamamos de agricultura, não surgiu de uma hora para outro – foi um processo de aprendizado contínuo de muitas e muitas gerações, onde se sucederam muitos erros e poucos acertos. 

Com a incipiente segurança alimentar, esses povos antigos foram abandonando gradativamente o nomadismo e passaram a viver de forma estável em regiões onde as práticas agrícolas eram mais fáceis. Entre os principais berços da agricultura destacamos a região conhecida como Mesopotâmia, na Ásia Central, os Vales dos rios Indus e Ganges, no Subcontinente Indiano, além de outros rios importantes do Extremo Oriente e Sudeste Asiático. A agricultura também fez florescer o rio Nilo no Egito, criando uma das civilizações mais importantes de nossa história (vide foto). No rastro das plantações, as atividades de pastoreio e de criação de outros animais foram se consolidando. 

Tudo o que nós conhecemos e entendemos como civilização: a escrita e a literatura, as artes, a arquitetura, as religiões, as leis, as cidades, as artes da guerra e tudo o mais, só ganharam robustez após as populações humanas assegurarem que uma de suas necessidades mais básicas – a alimentação, estivesse garantida. De barriga vazia, praticamente nada dessa lista de conquistas humanas poderia ter se consolidado. 

Do ponta de vista ambiental, a agricultura e a pecuária são grandes fontes de impactos. A agricultura ancestral era praticada em terras abertas e sem grandes coberturas florestais. Cito como exemplo da Mesopotâmia, uma grande várzea alagável entre os rios Tigre e Eufrates, onde não foi necessária a derrubada de uma floresta antes de se começar a trabalhar a terra.  

Quando a agricultura saiu da Mesopotâmia e foi levada para regiões florestais da Eurásia e da África séculos ou milênios mais tarde, as coisas começariam a mudar. Foi preciso derrubar primeiro as florestas para só depois começar a trabalhar a terra. Esse foi o caso do Brasil em tempos históricos bem mais recentes, onde a Mata Atlântica foi sendo dizimada sistematicamente para o plantio de cana de açúcar, café, soja e tantas outras culturas agrícolas que estamos produzindo desde as origens de nosso país. 

A derrubada das matas tem impactos diretos nos recursos hídricos – sem a cobertura florestal, os solos não conseguem absorver e reter os grandes volumes de água necessários à alimentação das nascentes e fontes de água. Além dessa redução nos volumes dos caudais dos rios, o que por si só já forma um importante conjunto de problemas ambientais, as atividades agrícolas são insaciáveis quando se trata do consumo de água – perto de 70% dos recursos hídricos de uma região são consumidos pelas atividades agrícolas, com a pecuária seguindo de perto

Essa incrível saga, entretanto, não foi sempre um mar de rosas – foram incomensuráveis altos e baixos, a começar pelos incontroláveis fenômenos da natureza. Secas, enchentes, nevascas, vendavais, terremotos, maremotos e precipitações de todos os tipos. Nessa conta também entram pragas como os gafanhotos e a concorrência com animais como ratos e pássaros. As inúmeras guerras entre os povos também foram responsáveis pela devastação de um sem número de safras e rebanhos. 

Essa rápida explanação mostra o quão importante são as atividades agropecuárias na vida de todos nós seres humanos e quão impactante tudo isso é para o meio ambiente. Nesses nossos dias de grande modernidade e alta tecnologia, onde imaginávamos ter um domínio praticamente completo das atividades do campo, surgiu algo novo e devastador – a epidemia da Covid-19. Em apenas um ano, um vírus que ainda não foi completamente entendido pela ciência e que ainda não teve sua origem determinada, conseguiu alterar completamente as relações humanas e comprometer boa parte das atividades agropecuárias ao redor do mundo. 

Aqui no Brasil, um país de dimensões continentais, esses impactos não foram tão grandes. Longe das grandes e média cidades, lugares onde a epidemia ficou concentrada, a imensa maioria dos nossos produtores rurais não se abalou muito e continuou produzindo. Ao contrário de muitos países, nossa produção agropecuária até aumentou nesse ano de crise. Em outros países, infelizmente, as coisas estão complicadas. 

Um desses casos é a Inglaterra, um país que já há muitos anos vinha dependendo da mão de obra de imigrantes para trabalhar nos campos e nas colheitas. As estimativas mais recentes afirmam que, só na Região Metropolitana de Londres, mais de 700 mil estrangeiros que estavam trabalhando legalmente foram obrigados a voltar para seus países de origem por causa da pandemia.  

Esses estrangeiros realizavam os trabalhos braçais que os sofisticados ingleses se recusam a fazer: serviços de limpeza, trabalhos em cozinhas, construção civil, além de serviços na agricultura e na pecuária. Cerca de 98% da mão de obra que era empregada nas colheitas do país era formada por esses estrangeiros. A grande dúvida hoje: quem vai realizar a preparação dos solos, o plantio e a colheita da safra 2021 no país? 

Em países como a França, a Itália, a Espanha e a Alemanha a situação não é muito melhor e grandes quebras de safra agrícola e de produção pecuária são iminentes. Por outro lado, enquanto a produção de alimentos despenca em países da Europa, o insaciável apetite dos chineses não para de nos surpreender.  

Com uma gigantesca população da ordem de 1,4 bilhão de habitantes, a China foi talvez o único país do mundo que lucrou com a pandemia da Covid-19 e têm usado cada vez mais os seus ganhos para comprar mais alimentos para seu povo. 

O grande exemplo são as importações de soja, leguminosa que os chineses usam em sua maior parte para a produção de ração para animais, que não param de crescer. Nesse exato momento, produtores brasileiros de Mato Grosso estão lutando para colher a soja em meio a chuvas acima da média histórica nos seus campos, enquanto cerca de 200 navios cargueiros a serviço de importadores da China estão fazendo fila em portos por todos os cantos do Brasil ou estão a caminho do país para serem carregados com soja. 

Já nos Estados Unidos, um país que há muito tempo é um dos maiores produtores de alimentos do mundo, o plantio da safra 2021 está começando ante inúmeros problemas. No Meio Oeste do país, conhecido como o Corn Belt ou cinturão do milho, a seca está afetando quase 2/3 das terras. No Nordeste do país o problema são os rigores do inverno. Até o Estado do Texas no Sul do país, famoso pelo clima bem mais ameno, está sofrendo nesses últimos dias por causa de fortes nevascas. Recentemente, os norte-americanos foram superados pelo Brasil na produção de soja, mas o país continua muito forte na produção de milho, trigo e carnes, entre outros alimentos.

Complicando ainda mais os problemas mundiais na produção de alimentos, estamos vendo o confuso quadro da agropecuária na Argentina, país que sempre foi um grande produtor mundial. Graças às políticas populistas do Governo, que aumentou impostos para a exportação dos grãos e baixou cotas para a exportação de carnes, muitos produtores de soja abandonaram suas plantações – alguns inclusive optaram por queimar os campos, e muitos criadores de gado se mudaram para o Uruguai. Para piorar ainda mais o quadro, a Argentina enfrenta o mais longo lockdown do mundo – a população está recolhida há quase um ano.

Nas próximas postagens vamos mostrar um pouco desse momento complicado da agropecuária por todo o mundo nesses tempos de pandemia da Covid-19. 

CACHAÇA: A ÁGUA QUE OS PASSARINHOS E AS ONÇAS NÃO BEBEM

Nas postagens publicadas nesses últimos dias, começamos falando dos problemas decorrentes da falta de chuvas em áreas das Regiões Centro-Oeste e Sudeste, o que poderá criar dificuldades na capacidade de geração de energia elétrica. Essas duas regiões respondem por cerca de 70% de toda a energia hidrelétrica gerada no Brasil. O desenvolvimento desse assunto acabou nos levando à abordagens de outras fontes alternativas de energia como a fotovoltaica, a eólica e a queima da biomassa, um subproduto da cana de açúcar. 

Como entramos no tema cana de açúcar, precisamos falar da produção das cachaças brasileiras para fechar esse assunto. A cachaça recebe uma infinidade de nomes nas diferentes regiões do Brasil. Eu separei alguns dos mais populares e também alguns dos mais divertidos: aguardente, pinga, água que passarinho não bebe ou que onça não bebe, abençoada, arranca-bofe, benza-a-deus, carinhosa, depravada, destronca-peito, encorajadora, fumegante, jabiraca, limpa-trilho, loirinha, passa-dor, tenebrosa, urina-de-santo, vermífugo, xamêgo, entre muitos, muitos, outros. 

De acordo com informações do PBDAC – Programa Brasileiro de Desenvolvimento da Aguardente de Cana, Caninha ou Cachaça, a produção total da bebida está na casa de 1,3 bilhão de litros/ano, sendo que cerca de 75% desse total é proveniente da fabricação industrial e 25%, de alambiques artesanais. Esse volume corresponde a aproximadamente 1% da produção total de álcool ou etanol do Brasil

A cachaça de cana de açúcar foi “inventada” no Brasil dos primeiros tempos da colonização. Algumas fontes afirmam que os responsáveis pela criação dessa bebida genuinamente brasileira foram os escravos que trabalhavam nos engenhos de produção de açúcar. Esses trabalhadores buscavam uma bebida para aliviar e suportar as agruras do pesado trabalho nas lavouras, nas moendas e nas casas de purga. Eu acredito que pode até haver alguma verdade histórica nisso, mas é preciso lembrar que a humanidade já consumia bebidas destiladas muitos séculos antes disso e é muito provável que alguns desses escravos tenham sido trazidos desde regiões de Portugal ou dos seus territórios onde já se destilavam bebidas. 

Existem indícios arqueológicos que apontam para a produção de vinho no Cáucaso, famosa região da Eurásia, há cerca de 8 mil anos atrás. Além de indicações claras do cultivo de uvas pelas populações dessa região, foram encontrados vestígios de jarros e outros recipientes cerâmicos usados na produção e no armazenamento da bebida fermentada. Testes químicos feitos em sofisticados laboratórios isolaram traços desses vinhos ancestrais em muitas dessas peças cerâmicas. Na Mesopotâmia, região da Ásia Central que viu nascer uma infinidade de civilizações como os sumérios, os babilônicos e os assírios, era comum o consumo de vinhos e também de cervejas, uma bebida que até hoje faz muito sucesso. 

Os antigos egípcios ferviam algumas dessas bebidas fermentadas e aromatizadas em ambientes fechados, onde doentes eram colocados para inalar os “vapores com propriedades curativas“. Nesses procedimentos era usada uma espécie de chaleira com o bico recurvado para baixo, de onde pingava um caldo concentrado das bebidas. Ao estudar a origem dessa bebida concentrada, os sábios egípcios acabaram desenvolvendo o processo de destilação. Os gregos registraram e divulgaram por todo o mundo antigo o processo de destilação criado pelos egípcios, a partir do qual era extraída o que eles chamavam de “água que pega fogo” ou “água ardente”. Esse processo seria adotado por muitos alquimistas, que produziam uma infinidade de elixires e poções com propriedades místicas e medicinais. 

Com a popularização do processo de destilação, passaram a surgir novos tipos de bebidas como os conhaques destilados dos vinhos, as grapas italianas e as cachaças de bagaceira feitas a partir da fermentação das cascas das uvas, as vodcas de cereais tão comuns no Leste europeu e nas estepes da Ásia. Não podemos esquecer dos saquês do Extremo Oriente feitos a partir do arroz, do whisky das tribos celtas das Ilhas Britânicas, entre muitas outras bebidas criadas ao longo da história.  

Aqui no Novo Mundo surgiram o rum das Ilhas do Caribe, um destilado feito a partir do melaço da cana de açúcar, e a tequila mexicana, destilada de uma massa fermentada de cactos, bebidas essas contemporâneas da cachaça brasileira. Também é preciso citar os bourbons norte-americanos, uma espécie de “whiskey” de milho, e os piscos Andinos, um destilado muito parecido com a grapa e com a cachaça de bagaceira. Ou seja – as populações humanas sempre foram muito criativas para descobrir e desenvolver os mais diferentes tipos de bebidas alcoólicas.

Se existem dúvidas sobre a origem exata da cachaça, é fato histórico que ela se tornou uma bebida marginal, consumida pela grande massa de escravos negros e populações pobres do Brasil Colonial. As elites do país consumiam vinhos, conhaques e cachaças de bagaceira trazidos diretamente de Portugal, além de bebidas originárias de países “amigos” do Reino. A importação dessas bebidas era monopólio de alguns grupos econômicos poderosos e com relacionamentos muito próximos da nobreza lusitana. Esses grupos pagavam altos impostos a El Rey

Os senhores dos grandes engenhos de açúcar do país, que necessitavam da importação maciça de mão de obra africana, descobriram que essa bebida apreciada pela “ralé” podia ser usada como uma valiosa moeda de troca na compra das “peças” de escravos. Além da cachaça, os negociantes de escravos nas costas da África e também os traficantes que faziam o transporte para as Américas aceitavam escambos com fumo em rolo, armas de fogo e pólvora, além é claro de ouro e prata.

A escravidão na África já era uma prática milenar muito antes da descoberta das Américas e envolvia inúmeros grupos étnicos em eterno conflito no interior do continente. Grupos ou tribos derrotadas em guerra eram presos e levados como “mercadoria” para as muitas feitorias dos comerciantes de escravos do litoral. Muitos desses grupos não usavam moedas em suas negociações e preferiam fazer trocas por produtos do seu interesse – e a cachaça agradava muitos desses grupos. Essa nova “utilidade” para as cachaças acabou por retirar a produção da bebida da mais absoluta clandestinidade e por incluí-la na lista de produtos dos engenhos ao lado do açúcar, das rapaduras e dos melados. 

Por volta de meados do século XVIII, as autoridades portuguesas acabaram por aceitar oficialmente a produção da cachaça e passaram a taxar o produto. Durante muito tempo, essas autoridades vinham acusando a bebida de causar perda de produtividade nos engenhos de cana e de prejuízos nas atividades de mineração do ouro. Na realidade, o problema ficava por conta da concorrência “desleal” com os vinhos e cachaças produzidos em Portugal, o que gerava grandes prejuízos aos fabricantes e importadores dessas bebidas. 

A partir de 1756, a venda das cachaças de cana de açúcar passou a representar uma das mais importantes fontes de arrecadação de impostos da Coroa portuguesa no Brasil. Consta, inclusive que, grande parte dos volumes financeiros utilizados para a reconstrução de Lisboa depois do grande terremoto de 1755, vieram dos impostos sobre as cachaças. Mesmo legalizadas e importantes para a economia do Reino, a bebida popular ainda continuaria sendo ignorada e desprezada pelas elites do país. 

O grande divisor de águas na história da cachaça brasileira só ocorreria em 1922, durante a lendária Semana de Arte Moderna. Os artistas brasileiros ali reunidos como Mario de Andrade, Tarsila do Amaral, Oswald de Andrade, Victor Brecheret, Plínio Salgado, Anita Malfatti, Menotti del Picchia, Heitor Villa-Lobos, Sérgio Milliet e Di Cavalcanti, entre muitos outros, buscavam uma identidade própria e uma maneira mais livre para expressar a arte e a cultura dos brasileiros.  

A cachaça, uma bebida típica da população brasileira mais pobre e altamente discriminada pelas elites, foi transformada em um dos símbolos da “brasilidade”. Manifestações da cultura popular como o samba e o baião também foram destacadas por esses “subversores da arte” e “espíritos cretinos e débeis”, conforme afirmaram muitos dos grandes jornais há época. 

Desde então, as populares cachaças, caninhas e aguardentes começaram a sair dos guetos e foram conquistando seus espaços no mercado e na preferência das classes médias e altas da população. Os fabricantes passaram a investir em marcas, embalagens, propagandas e estratégias de mercado. Em 1997, foi publicado um Decreto Federal, de número 2314, o qual passou a padronizar e a classificar oficialmente a bebida. 

Para receber a denominação de cachaça, caninha, cana ou aguardente de cana, algumas das suas principais denominações, a bebida deve ter como matéria prima a cana de açúcar e apresentar uma graduação alcoólica entre 38% e 54%, a uma temperatura de 20°. A bebida pode receber a adição de até 6 gramas de açúcar para cada litro – nos casos em que essa adição seja superior a 6 gramas e inferior a 30 gramas de açúcar por litro, a denominação deverá ser acrescida da palavra “adoçada”.  

Todos os Estados brasileiros produzem suas próprias cachaças, existindo algumas características bem regionais em algumas delas. As cachaças artesanais ou de alambique estão concentradas nos Estados de São Paulo, Minas Gerais, Rio de Janeiro e Bahia. A maior parte da produção industrial de cachaça está concentrada nos Estados de São Paulo, Pernambuco e Ceará. A cadeia produtiva da cachaça envolve cerca de 30 mil produtores, a imensa maioria pequenos produtores artesanais.

A cachaça é a terceira bebida destilada mais consumida no mundo e a primeira no Brasil. As exportações ainda são modestas e tem como principais compradores Estados Unidos, Alemanha, Paraguai, Itália, Uruguai e Portugal, que consomem cerca de 8,5 milhões de litros/ano. Cachaças que são vendidas a preços entre US$ 1.00 e US$ 2.00 aqui dentro do Brasil, podem atingir preços acima dos US$ 20.00 nesses países, o que demonstra que produzir cachaça pode ser um ótimo negócio para muita gente.

Pessoalmente, eu não gosto da maior parte das bebidas destiladas onde incluo as cachaças. Todavia, quem gosta desse tipo de bebida, aqui no Brasil e no exterior, fala mil maravilhas das cachaças brasileiras. Então, se a bebida é boa e o povo gosta, não existe mal nenhum em beber uns “goles” com muita moderação e responsabilidade. 

A IMPORTÂNCIA AMBIENTAL DA CANA DE AÇÚCAR E DO ÁLCOOL

Comecemos com uma pergunta incômoda para muita gente: qual dessas grandes cidades tem o ar mais poluído: São Paulo ou Paris? 

Minha cidade, São Paulo, tem fama de ser “caótica, engarrafada e extremamente poluída” – logo, não vou estranhar que a maioria dos leitores tenham apontado, quase que instintivamente, o dedo para Sampa. Lamento informá-los, mas, no quesito poluição do ar, São Paulo perde feio para a cidade do Rio de Janeiro – quando o assunto é trânsito, nós levamos uma verdadeira surra da cidade do Recife, a “Veneza brasileira”. 

De acordo com dados da OMS – Organização Mundial da Saúde, compilados em 2010, a poluição média na cidade de São Paulo apresentou níveis de poluentes da ordem de 38 microgramas para cada metro cúbico de ar; no Rio de Janeiro esse índice foi de 64 microgramas. As belas montanhas que emolduram a “Cidade Maravilhosa” dificultam a dispersão dos poluentes. O índice considerado ideal pela OMS é menor ou igual a 25 microgramas de poluentes para cada metro cúbico de ar.

Na “romântica e bela” cidade de Paris (observem que estou destacando a fama que cada cidade possui) os níveis de poluição, especialmente nos meses de inverno, ultrapassam frequentemente a marca de 100 microgramas de poluentes para cada metro cúbico de ar. Esse índice fica muito abaixo daquele encontrado entre as cidades mais poluídas do mundo como Ulan Bator, na Mongólia, e Pequim, na China, onde se supera a marca das 900 microgramas nos meses de inverno, mas é duas vezes e meia maior que o índice paulistano. 

Entre os grandes vilões da poluição atmosférica, destacamos a queima do carvão mineral para a geração de energia elétrica nos casos da China e da Mongólia, e a poluição emitida pelos escapamentos de automóveis, ônibus e caminhões nos casos de São Paulo e Paris. E os tipos de combustíveis automotivos usados nessas duas últimas cidades estão na raiz do problema. 

Apesar de um grande crescimento no número de veículos movidos a eletricidade nos últimos anos, a frota parisiense é movida essencialmente por derivados de petróleo como a gasolina e o óleo diesel. Aliás, um dos grandes problemas da cidade é o grande número de carros velhos com motores a diesel, que por onde passam deixam uma nuvem escura de gases e partículas altamente poluentes. Nos meses de inverno, as dificuldades para a dispersão dessa grande massa de gases poluentes aumentam muito e a população sofre para respirar. 

Já em São Paulo, as coisas melhoraram muito, principalmente nos últimos 30 ou 40 anos. Eu lembro muito bem dos tempos em que essa cidade era muito poluída. Eu comecei a trabalhar como office boy ou mensageiro em 1978 e não me esqueço do ar sofrível do centro da cidade naquela época. De lá para cá as coisas mudaram bastante – muitas indústrias saíram da cidade e levaram suas grandes chaminés para regiões do interior do país; várias obras viárias, como o Rodoanel, foram implementadas para evitar que ônibus e caminhões em trânsito para outras cidades e estados precisassem entrar na cidade. Também é importante citar que as áreas verdes da cidade dobraram de tamanho nesse período

A maior mudança, entretanto, foi a adoção do álcool como combustível veicular. Segundo informações da ANFAVEA – Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores, após a introdução do álcool como combustível para veículos, a poluição do ar em grandes cidades brasileiras como São Paulo diminui em cerca de 40%. Eu não posso atestar se o percentual de redução foi esse mesmo, mas meu nariz e meus olhos podem confirmar que os níveis de poluição na cidade despencaram ao longo das últimas décadas. 

De acordo com informações da EMBRAPA – Empresa Brasileira de Pesquisas Agropecuárias, estudos feitos há época do lançamento do Pró-Álcool indicavam que motores a álcool emitiam 57% menos monóxido de carbono, 64% menos óxidos e 13% menos nitrogênio que motores a gasolina. Com o lançamento dos motores Flex em 2003, parte dessas reduções nas emissões foi perdida devido à menor eficiência desses motores, mas ainda continuam abaixo de motores a gasolina e a diesel

É importante ressaltar aqui que veículos com motores a álcool poluem menos que seus similares que usam gasolina e óleo diesel, mas continuam sendo uma fonte importante de poluição do ar. Para resolvermos em definitivo o problema de poluição do ar nas cidades, é importante que se adotem soluções de transporte que usem energia realmente limpa como a eletricidade gerada a partir de fontes renováveis como as hidrelétricas. Me veio a mente uma foto que recebi há algum tempo atrás, que mostrava um carro elétrico sendo recarregado em Portugal – o detalhe era que a fonte de energia elétrica era um gerador a diesel, o que mostra a complexidade da situação. Enquanto fontes realmente renováveis e limpas para a geração de energia não estiverem à disposição de todos, o uso de combustíveis como o álcool pode ajudar muito na redução da poluição atmosférica. 

Existe também um outro lado do uso do álcool que tem um papel ambiental importantíssimo – o crescimento acelerado dos canaviais sequestra enormes quantidades de carbono da atmosfera, algo que é fundamental para combater o efeito estufa. Conforme já comentamos em postagens anteriores, um dos principais gáses responsáveis pelo efeito estufa é o dióxido de carbono, um gás que é emitido em grandes quantidades durante a queima de madeiras e de combustíveis fósseis. 

O efeito estufa é um fenômeno natural da atmosfera terrestre e que tem um papel importantíssimo na estabilidade das temperaturas e do clima no planeta. Cerca de 98% dos gases que compõem a nossa atmosfera como o nitrogênio, oxigênio e argônio não absorvem calor. É aqui que entram em cena gases como o dióxido de carbono (CO2), o metano (CH4), os óxidos de nitrogênio (NOx) e o vapor de água, que absorvem parte do calor irradiado pela superfície terrestre e mantém a atmosfera aquecida. 

Desde os tempos da Revolução Industrial, que teve seu início em meados do século XVIII, as emissões de gases de efeito estufa não param de crescer. A concentração desses gases aumentou no período de 280 ppm (partes por milhão) para 360 ppm. A consequência mais direta desse aumento dos gases de efeito estufa já é visível – aumento das temperaturas do planeta e do nível dos oceanos

As emissões de carbono criadas pela geração de energia também não param de crescer – em 1997, essas emissões eram calculadas em 7 bilhões de toneladas ao ano; para o ano de 2100, as projeções falam de volumes da ordem de 26 bilhões de toneladas. A situação é dramática. 

Florestas em crescimento e culturas como o eucalipto, a palmeira do dendê e a cana de açúcar absorvem grandes quantidades desse carbono presente na atmosfera. Além de utilizarem as moléculas do carbono para a “construção” de caules, folhas e raízes, as plantas fixam parte desse carbono nos solos. Ou seja, mesmo que o uso da madeira do eucalipto, do azeite do Dendê ou do álcool resultem em novas emissões de carbono, o ciclo de crescimento das plantas sempre absorverá uma quantidade de carbono superior as emissões, o que significa uma neutralização dessas emissões. 

A cana de açúcar também pode ser utilizada como fonte de matéria prima para a produção de plásticos 100% biodegradáveis. Derivado do álcool ou etanol, esse plástico possui as mesmas características técnicas do polietileno comum feito a partir de derivados do petróleo, que é muito usado na fabricação de embalagens, sacolas e utensílios de cozinha. Além de ser produzido a partir de uma fonte renovável, esse plástico causa baixíssimos impactos ambientais uma vez que se degrada em poucos meses. Essa é uma tecnologia desenvolvida aqui no Brasil que ainda esbarra nos custos – produzir plástico a partir do petróleo é bem mais barato.

A poluição ambiental criada pelos resíduos plásticos aumentou muito nas últimas décadas, principalmente nos oceanos. Muitos cientistas afirmam que dentro de poucos anos haverá mais resíduos de plástico do que peixes nos mares. Em postagens anteriores já tratamos desse grave problema, mostrando inclusive as ilhas de plástico flutuante no Oceano Pacífico e no Mar do Caribe

Como é bem fácil de ver, a utilíssima cana de açúcar ajuda a resolver muitos desses problemas, com a vantagem extra de também produzir o açúcar e bebidas como a cachaça e o rum. Um brinde à cana! 

“CARRO A ÁLCOOL: VOCÊ AINDA VAI TER UM!”

Quem é um pouco mais velho deve lembrar desse slogan. Ele fazia parte de uma campanha publicitária governamental do final da década de 1970, tempos do Pró-Álcool – Programa Nacional do Álcool. O Governo Federal há época buscava incentivar a venda e o uso de carros movidos a álcool, um combustível alternativo aos caros derivados de petróleo daqueles tempos. 

Entre 1986 e 1989, eu fui um dos “felizes” proprietários de um carro a álcool. Havia uma série de vantagens – o álcool, ou etanol, era mais barato que a gasolina e, mesmo consumindo mais, ainda era vantajoso em termos financeiros. Também havia um desconto no valor do famigerado IPVA – Imposto sobre Propriedade de Veículos Automotores. No geral, o carro andava até que muito bem – os problemas ficavam por conta dos dias frios do inverno paulistano: era difícil fazer o motor pegar! 

A atual produção mundial de álcool supera a marca dos 100 bilhões de litros/ano. As principais matérias primas usadas nessa produção variam muito. O milho é usado em países como os Estados Unidos e o Canadá; a cana de açúcar é a estrela aqui no Brasil e a beterraba e a batata em países da Europa. Um caso interessante é Israel, onde o álcool é extraído da alcachofra. Os Estados Unidos figuram na posição de maior produtor mundial com 58% da produção, seguido pelo Brasil com 27%, União Europeia com 5% e a China com 3%. O Estado de São Paulo é o maior produtor brasileiro de álcool, respondendo por 55% da produção nacional e por 13% da produção mundial. Essa relevante posição ocupada pelo Brasil foi criada pelo Pró-álcool – consulte a postagem anterior

A produção do álcool ou etanol começa com a extração do caldo das canas através de moendas mecânicas. Conforme comentamos em uma postagem anterior, o bagaço da cana resultante desse processo é queimado em usinas térmicas para a geração de eletricidade. O caldo da cana possui cerca de 15% do seu volume em sacarose e outros 15% na forma de fibras. Esse caldo é esterizado e purificado, passando depois para tanques de fermentação com leveduras do tipo Saccharomyces cerevisae e por fim para unidades de destilação. Cada tonelada de cana produz até 180 litros de álcool. 

O uso do álcool como combustível nos motores automotivos é uma ideia bastante antiga. Já em 1894, pesquisadores alemães tentaram desenvolver motores adaptados para trabalhar com álcool e, em 1899, foi realizada uma corrida nas ruas de Paris com a participação exclusiva de automóveis movidos a álcool. A ideia acabou não vingando por que o álcool de beterraba e de batata produzido na Europa tinha um custo bastante elevado. 

Durante a I Guerra Mundial (1914-1918), muitos veículos leves e carros blindados da França foram convertidos para funcionar com álcool combustível. O país enfrentava problemas com a importação de petróleo e, apesar do seu alto custo, o álcool podia ser fabricado no próprio país. Ao longo da década de 1920, a Inglaterra fez diversas experiências para o uso do álcool extraído das batatas como combustível automotivo, mas a ideia não prosperou – as batatas eram vitais para a alimentação da população. Durante a II Guerra Mundial, alemães e japoneses voltaram a utilizar o álcool como combustível devido à escassez de petróleo nos seus respectivos países. 

Aqui no Brasil, os primeiros experimentos com álcool combustível remontam à década de 1920. Na década de 1930, um decreto do Governo Vargas tornou obrigatória a adição de álcool à gasolina importada na proporção de 5%. Essa medida tinha como principal objetivo salvar o setor sucroalcooleiro de uma grave crise econômica, o que por fim levaria à criação do IAA – Instituto do Açúcar e do Álcool em 1933. A criação do Pró-álcool em 1975, não foi uma novidade tecnológica tão grande assim, mas significou uma revolução na agricultura brasileira. 

Quando o primeiro carro movido exclusivamente a álcool ganhou as ruas brasileiras em 1979, nosso país produzia 6 milhões de toneladas de grãos e 2 bilhões de litros de álcool por ano. Por uma feliz coincidência do destino, data dessa mesma época o início da agricultura em larga escala na região do Cerrado brasileiro. A EMBRAPA – Empresa Brasileira de Pesquisas Agropecuárias, lançou as primeiras sementes de soja e milho adaptadas aos solos ácidos e ao clima do Cerrado em 1975. 

Ocupando quase 2 milhões de km² de nosso território, as terras do Cerrado eram consideradas de baixíssima fertilidade e não valiam praticamente nada. A partir dos trabalhos feitos pela EMBRAPA, o bioma foi transformado na grande fronteira agrícola brasileira e num dos maiores celeiros de grãos do mundo. A expectativa da safra brasileira em 2021 é de quase 270 milhões de toneladas, a maior parte produzida em áreas do Cerrado. Já a produção de álcool para esse ano deverá superar a marca dos 30 bilhões de litros. Com o crescimento da produção de grãos no Cerrado, outras terras agrícolas do país ficaram “livres” para receber os grandes canaviais.

No auge do Pró-álcool, entre os anos de 1983 e 1988, mais de 90% de todos os automóveis vendidos no Brasil tinham motores a álcool. Ao final da década de 1990, esse número havia caído drasticamente e apenas 1% dos carros novos tinham motores a álcool. Entre as causas desse verdadeiro desmantelamento da política dos carros a álcool destacamos uma grande desvalorização do petróleo nos mercados internacionais, uma forte elevação do preço do açúcar (o que desestimulava a produção do álcool) e também mudanças na política de subsídios ao álcool. 

Um outro ponto de desestímulo ao carro a álcool foi a criação das políticas industriais para a produção de carros populares com motor de 1 litro ou 1.000 cilindradas. Além de receberem subsídios na forma de redução da carga tributária, esses carros eram extremamente econômicos quando estavam equipados com motores a gasolina, superando as vantagens do preço mais baixo do álcool nas bombas dos postos de gasolina. A situação das usinas produtoras de álcool só não foi pior por que havia sido criada uma resolução que obrigava a adição do combustível à gasolina na proporção de 25%

O antigo mantra repetido nas antigas propagandas governamentais que afirmava que todos iriam ter um carro a álcool acabou se transformando em uma espécie de maldição. Houve uma grande redução na produção de álcool e muitos postos de combustíveis nunca dispunham de álcool em suas bombas. Os preços dos carros com motor exclusivamente a álcool sofreram forte desvalorização – havia muita gente querendo vender e quase ninguém disposto a comprar. Ter um carro a álcool se transformou em um grande “mico”. 

Eu lembro de muitas oficinas que ofereciam o serviço de conversão de motores a álcool para gasolina por essa época. Basicamente, os mecânicos trocavam o carburador e ajustavam o ponto de ignição do motor, além de substituir as velas de ignição e o filtro de combustível. O serviço ficava bem “mais ou menos”, mas o carro ganhava uma boa sobrevida e o proprietário passaria a contar com a farta disponibilidade de gasolina nos postos de combustível. Caso surgisse algum problema mecânico mais grave, havia uma grande oferta de carros com motor a álcool a preços “de ocasião” – era só comprar outro veículo e fazer uma nova tentativa de conversão para gasolina.

A situação do álcool combustível só voltaria a entrar nos eixos novamente a partir do ano de 2003, quando passaram a ser vendidos os carros com o extraordinário Motor Flex, que funcionava tanto com gasolina quanto com álcool. Circuitos eletrônicos detectavam automaticamente o tipo de combustível ou a mistura presente no tanque, ajustando automaticamente o sistema de injeção eletrônica de combustível e os circuitos de ignição do motor. Em 2008 eu comprei um carro Flex e confesso que nunca tive qualquer problema ao longo dos 7 anos em que fiquei com esse veículo. Com essa opção de escolha, o proprietário do carro nunca ficava na mão e podia sempre escolher o tipo de combustível que melhor lhe conviesse. Essa nova tecnologia automotiva voltou a estimular a produção do álcool pelas usinas.

A história do álcool ou etanol para uso como combustível veicular aqui no Brasil teve muitos altos e baixos. Muita gente ganhou rios de dinheiro, especialmente os grandes usineiros; proprietários desses veículos chegaram a ter prejuízos; áreas de cultivo de grãos foram transformadas em canaviais; cidades e plantações em algumas regiões do país passaram a disputar o uso dos recursos hídricos, entre outros problemas. 

Entretanto, nos dias atuais, quando as questões ambientais ganham cada vez maior relevância em todo o mundo, ter um combustível ecológico como o álcool sendo usado por grande parte da frota de veículos do país (grande parte com motores Flex) não deixa de ser um ponto muito positivo. Podem até continuar falando das queimadas da Amazônia, mas o álcool é nosso e pode ser encontrado em praticamente qualquer posto de combustíveis do país.  

O Pró-álcool custou muito caro para o Brasil, mas a “fatura” já foi paga. Agora, é só encher o tanque do carro e “sair por aí”! 

A CANA DO AÇÚCAR E DO ÁLCOOL

A cana de açúcar que nós que conhecemos aqui no Brasil, a saccharum officinarum, é uma gramínea originária da Índia e que resulta da hibridização de diversas espécies nativas do Sudeste Asiático, incluindo plantas da própria Índia, da China, Nova Guiné, Filipinas e Malásia, entre outras localidades. Os cientistas especulam que esse processo de hibridização das plantas começou por volta do ano 6.000 a.C.  

Foram os indianos que desenvolveram o processo de produção e refino do açúcar. A palavra açúcar vem do sânscrito çakkara. O açúcar a seguir passou a ser produzido na Pérsia (atual Irã) e dali foi espalhado por todo o mundo antigo pelos mercadores árabes. Os árabes adaptaram a antiga palavra em sânscrito para o árabe súkkar e posteriormente os gregos passaram a usar a palavra sáckcharon. A palavra saccharum é a transcrição latina do vocábulo grego.  

Nas principais línguas da Europa ocidental e países nórdicos é bastante fácil perceber que a palavra árabe seguiu o caminho dos mercadores: açúcar, azúcar, azucre, sucre, azukre, sucre, suggar, siúcra, zucchero, suiker, zucker, sukker, socker, sukke, sykur e sokeri, respectivamente em português, espanhol, galego, catalão, basco, francês, inglês, irlandês, italiano, holandês, alemão, dinamarquês, sueco, islandês, norueguês e finlandês. 

Além do açúcar, as caldas doces da planta também se prestavam à produção de bebidas alcóolicas fortes como as aguardentes aqui no Brasil e o rum na região do Mar do Caribe. Além do consumo pelas antigas populações coloniais em seus poucos momentos de descanso e lazer, grandes volumes dessas bebidas eram usados como moeda de troca nas costas da África – os traficantes pagavam parte do valor dos lotes de escravos comprados com essas bebidas e com rolos de fumo. 

Em séculos mais recentes, a cana de açúcar passou a ser usada com matéria prima para a produção de álcool, um produto com largas aplicações na indústria e como combustível. As primeiras experiências com o uso do álcool como combustível no Brasil datam da década de 1920. Foi, porém, a partir de 1975, que o álcool ganhou status como um importante combustível em motores automotivos – foi nesse ano que o Governo Federal criou o Pró-álcool – Programa Nacional do Álcool. Esse grande programa foi uma resposta à crise do petróleo que o mundo enfrentava naquele momento. 

Em outubro de 1973, os países membros da OPAEP – Organização dos Países Árabes Produtores de Petróleo, decretaram um grande embargo petrolífero, o que elevou rapidamente o preço do barril do produto de US$ 3.00 para US$ 12.00. Esse embargo foi uma resposta das nações árabes aos países que apoiaram Israel na Guerra do Yom Kipur, em especial os Estados Unidos, o Reino Unido, a Holanda, o Canadá e o Japão. Mais tarde, esse embargo foi estendido para outros países como Portugal e África do Sul. 

Esse embargo ficou conhecido como o Primeiro Choque do Petróleo e teve fortes consequências econômicas em todo o mundo. O Brasil, que naquele momento passava por um vigoroso crescimento econômico – o chamado Milagre Econômico Brasileiro, foi fortemente impactado por essa crise. Perto de 80% do petróleo consumido no país era importado, o que causava uma enorme sangria nas reservas financeiras do país. Em 1979, o mundo viveria uma segunda crise, essa batizada de Segundo Choque do Petróleo

Parte da resposta brasileira a essa crise veio com o lançamento do Pró-álcool. Aqui vale lembrar que vivíamos naqueles tempos o período da Ditadura Militar (1964-1985) e bastava uma ordem de uma autoridade “estrelada” para que as coisas acontecessem. Esse Programa criou uma série de incentivos fiscais para a produção e venda de veículos com motores adaptados para o uso exclusivo do álcool como combustível, assim como diversos incentivos para o plantio da cana de açúcar e a produção do álcool (ou etanol) nas usinas. 

Eu tinha pouco mais de 12 anos de idade naquela época e tenho muitas lembranças dessa “revolução brasileira nos combustíveis”. Meus avós eram há época sitiantes em Lutécia, uma minúscula cidade do Centro-Oeste do Estado de São Paulo, região famosa até então pela grande produção de café. Eu lembro bem que rodovia de acesso à cidade, que antes era cercada por imensos cafezais, gradativamente teve suas margens tomadas por um infinito mar de plantações de cana de açúcar. 

O primeiro carro com motor adaptado para funcionar exclusivamente com álcool combustível foi lançado no mercado em 1978 e, em 1991, cerca de 60% da frota de automóveis no Brasil era “movida a álcool”. Um detalhe importante do Pró-álcool: todos os postos de combustível do país passaram a vender esse combustível, algo que só foi possível por que vivíamos em um período de Governo ditatorial. Muitos países do mundo tentam até hoje viabilizar o uso de combustíveis alternativos como o etanol, mas, esbarram justamente na dificuldade de venda dos produtos em todos os postos de combustíveis. 

Outra lembrança forte que trago daqueles tempos é o cheiro do álcool que saía dos escapamentos dos automóveis. São Paulo já era há época uma cidade grande e poluída, com centenas de milhares de veículos soltando uma grossa camada de poluição na atmosfera. O cheiro do álcool trazia um certo alívio ao ar da cidade. Estimativas falam que houve uma redução de até 40% na poluição do ar das grandes cidades há época por causa do uso crescente do etanol como combustível

Apesar da mão forte dos militares na implantação do Pró-álcool, não deixaram de soar algumas vozes dissonantes que criticavam o Programa. Uma das críticas mais incisivas apontava o uso de algumas das melhores terras do país, como por exemplo as terras roxas do Oeste paulista, para o plantio da cana de açúcar em detrimento à produção de alimentos para a população. Outros criticavam o volume dos subsídios dados ao Pró-álcool, que consumia uma fatia substancial do orçamento do país, recursos que poderiam estar sendo utilizados em programas de educação, saúde e em saneamento básico

Entre os defensores do Programa há uma forte referência ao volume de recursos economizados com a importação de petróleo, o que é calculado em aproximadamente US$ 15 bilhões ao longo dos dez primeiros anos de vigência do Pró-álcool. Nos nossos dias atuais isso não parece grande coisa, mas, em valores há época, isso era uma verdadeira fortuna. Também falam muito do grande número de empregos criados no campo e no fortalecimento do agronegócio brasileiro.

Um impacto ambiental importante da massificação da produção de cana de açúcar naqueles tempos foi o brusco aumento no consumo de água pelas plantações. Em média, a cana de açúcar requer, dependendo do estágio de desenvolvimento da planta, volumes de água entre 1.500 e 2.500 mm para cada metro quadrado plantado. Esse consumo é bem mais expressivo ao longo do ciclo de crescimento da planta, diminuindo na fase de maturação.  

Qualquer deficiência nesses volumes de água criam mudanças morfológicas e fisiológicas nas plantas, resultando em uma redução no crescimento e no rendimento da cultura. A solução em muitas regiões foi o aumento da captação de água para irrigação das plantações, o que reduziu a disponibilidade de água para outros usos, inclusive para o abastecimento de cidades. Esse problema, que já foi muito mais grave no passado, até hoje ainda gera uma disputa entre produtores e populações em algumas bacias hidrográficas. 

Continuaremos falando desse tema na próxima postagem. 

A GERAÇÃO DE ENERGIA ELÉTRICA A PARTIR DA QUEIMA DO BAGAÇO DA CANA DE AÇÚCAR

Todos nós dependemos do uso da energia elétrica em nosso dia a dia. Dos usos mais simples, como ligar uma lâmpada em uma sala ou encontrar aquela providencial tomada onde recarregamos nossos amados e inseparáveis smartphones, até os usos mais complexos em indústrias e em sistemas de infraestrutura, nossa vida moderna depende cada vez mais da eletricidade. 

Existem as mais diversas fontes para a geração de energia elétrica. Vou destacar uma das mais insustentáveis – a queima do carvão mineral em usinas termelétricas – cerca de 40% da energia elétrica usada no mundo vem dessa fonte. A geração hidrelétrica, apesar dos fortes impactos ambientais que cria na formação dos grandes reservatórios, é no final uma das formas mais limpas e renováveis de geração de eletricidade. 

Nas últimas décadas, a busca por novas fontes para a geração de eletricidade tem sido incessante num mundo cada vez mais sedento por energia. Fontes renováveis e limpas como a energia eólica e a fotovoltaica tem ganhado cada vez mais destaque, inclusive aqui no Brasil, conforme destacamos em postagens anteriores

Uma fonte de geração de eletricidade que vem crescendo em importância aqui em nosso país nos últimos anos e que talvez você nunca tenha prestado atenção é a queima do bagaço da cana de açúcar. Subproduto da fabricação do açúcar e do álcool, o bagaço se transformou em um enorme problema para as usinas de produção. Parte acabava sendo lançada sobre os solos para uso com adubo orgânico e outra parte acabava sendo queimada para “liberar espaços” nos pátios das empresas. 

Certo dia, alguém deve ter olhado para uma grande montanha de bagaço ardendo em fogo e pensou – por que não usarmos essa energia para mover uma turbina ligada a um gerador elétrico? Isso acabou sendo feito e a ideia se mostrou excelente. De acordo com informações do CTBE – Centro Nacional de Ciência e Tecnologia do Bioetanol, entidade ligada ao CNPEM – Centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais, a geração elétrica a partir da queima do bagaço da cana contribui com cerca de 7% da matriz elétrica do Brasil

A cana de açúcar foi a primeira cultura agrícola produzida em grande escala no Brasil. As primeiras mudas chegaram no início da década de 1.530 nas mesmas naus que trouxeram os primeiros colonizadores portugueses. Não tardou muito para que extensas faixas da Mata Atlântica ao Longo do litoral do Nordeste e também nas então Capitânias de São Vicente e de Santo Amaro, atual Estado de São Paulo, fossem derrubadas e queimadas para dar lugar aos grandes canaviais. 

Naqueles tempos, o açúcar era um dos produtos mais valiosos do mercado internacional ao lado das famosas especiarias do Oriente. Era raro e caro, vendido em gramas em lojas das mais sofisticadas da Europa e acessível somente a pessoas de alto poder aquisitivo. Nas palavras do historiador Basílio de Magalhães: 

Era usual nas boticas, donde saía a título de cicratizante e para sarar doenças dos olhos, da garganta e de outros órgãos; mas, fora dos usos terapêuticos, artigo de luxo, gozado por grandes senhores e burgueses opulentos.” 

Um exemplo dessa opulência podia ser visto no casamento das filhas das famílias mais nobres do continente Europeu. Era extremamente elegante presentear a noiva com uma pequena trouxinha de tecido branco, onde se colocavam algumas gramas de açúcar, algo que simbolizava os mais sinceros votos de fartura e felicidade ao casal. 

O melhor açúcar daqueles tempos era trazido de lugares distantes como o Egito, o Iraque, a Pérsia e até da Índia. Os primeiros canaviais chegaram na Europa através dos Árabes, que a partir do século IX iniciaram plantações no Sul da Espanha e na Sicília. A produção de açúcar nessas regiões não era muito grande, o que mantinha os preços nas alturas. 

A partir das grandes navegações no século XV e com a descoberta de novas ilhas e territórios, a Coroa de Portugal passou a incentivar o plantio de cana e a produção de açúcar entre seus súditos. Com a descoberta das enormes extensões de terra aqui no Brasil, muitos nobres de Portugal se associaram com banqueiros da Holanda para instalar grandes engenhos e inundar as terras com um mar sem fim de mudas de cana de açúcar. 

Ao longo dos séculos XVI e XVII, o Brasil foi o maior produtor mundial de açúcar. Esse posto foi perdido para as ilhas e países da região do Mar do Caribe, onde a produção de açúcar começou a crescer vigorosamente e acabou suplantando a brasileira. As correntes oceânicas e o regime de ventos daquela região tornavam as viagens de transporte das cargas de açúcar até os grandes mercados consumidores na Europa bem mais rápidas e baratas do que aquelas feitas a partir das costas do Brasil, prejudicando, e muito, a competitividade do nosso produto. 

Entre altos e baixos, a produção açucareira se manteve forte no país, principalmente na Região Nordeste. A cana de açúcar, porém, só voltaria a ganhar um enorme destaque na economia do Brasil na década de 1970, quando o Governo Federal criou o Pró-ácool, um programa de incentivo à produção do álcool feito a partir da cana de açúcar como um substituto ao uso da gasolina em motores de carros. Naqueles tempos houve o chamado “Primeiro Choque do Petróleo”, quando os países produtores se reuniram em um grande cartel e elevaram fortemente o preço do produto. 

Com a produção maciça de carros com motores preparados para o uso do álcool como combustível, houve um aumento vertiginoso do plantio de cana de açúcar em diversas regiões do Brasil – em especial no Estado de São Paulo, com o objetivo de produzir álcool. A produção de bagaço de cana, que até então não era tão grande no país, se transformou em um enorme problema ambiental para as usinas.  Nos ultimos, uma infinidade de plantas para co-geração de energia elétrica a partir da queima do bagaço da cana passaram a ser criadas junto das grandes usinas – o que era um grande problema se transformou em lucro.

De acordo com a definição usada pela ANEEL – Agência Nacional de Energia Elétrica, a co-geração de energia é o processo de produção combinada de calor útil e de energia mecânica, sendo essa última convertida total ou parcialmente em energia elétrica. O bagaço da cana é queimado em uma fornalha e o calor gerado aquece uma caldeira onde é produzido vapor. Um jato de vapor aciona uma turbina que está ligada ao eixo de um gerador elétrico. 

Essa queima do bagaço da cana resolve de maneira extremamente eficaz o problema de produção de resíduos nas usinas, transformando a eletricidade em um valioso subproduto da cana de açúcar. Essa eletricidade é tanto utilizada nos processos produtivos das usinas, quanto vendida para as empresas de distribuição de energia elétrica. 

As centrais de co-geração utilizam sistemas de filtros nas suas chaminés para reduzir os impactos da queima do bagaço da cana na atmosfera, em especial a emissão de fuligem. Estudos indicam que a emissão de gases de efeito estufa nessas usinas são cerca de 7 vezes menores do que aquelas de fontes fósseis como o gás natural. Os canaviais em crescimento, por sua vez, absorvem grandes quantidades de carbono, neutralizando assim as emissões feitas durante o processo de geração de energia elétrica

Os trabalhos nas centrais de co-geração demandam o uso de muita mão de obra, o que beneficia diretamente as regiões produtoras de cana, onde o trabalho costuma ser sazonal nas épocas da colheita da cana. Por fim, há um menor custo na distribuição da energia elétrica uma vez que as principais regiões produtoras possuem um grande número de cidades ao seu redor e milhares de residências e consumidores ávidos por energia elétrica.

Finalizando: Para infelicidade de uma ex-Presidente, não é possível estocar o vento que move as pás das turbinas eólicas. Já o bagaço da cana, esse pode ser guardado para queima nos períodos mais secos do ano, quando as chuvas são raras e é necessário poupar a águas dos reservatórios das usinas hidrelétricas. 

Na próxima postagem vamos falar um pouco mais da produção de álcool a partir da cana de açúcar para uso em motores de veículos e dos seus impactos ao meio ambiente.