Estamos falando muito dos problemas e dificuldades que se desenrolam de forma dramática nas águas do Rio São Francisco. Um rio, porém, extrapola os limites do mundo físico das águas, dos relevos e das populações, e também flui sutilmente por caminhos imateriais. Simon Schama, escritor e historiador britânico, sintetizou esse sentimento com essa afirmação: “ver um rio equivale a mergulhar numa grande corrente de mitos e lembranças, forte o bastante para nos levar ao primeiro elemento aquático de nossa existência intrauterina”.
Marinheiros e pescadores são, desde os primórdios da história da humanidade, criaturas supersticiosas. A força, os perigos e os mistérios do mar, passados também para as águas dos grandes rios, deram origem a quantidades imensas de crendices e histórias folclóricas em todos os cantos do mundo. Relatos de monstros e serpentes marinhas, sereias, leviatãs, entre outras criaturas sobrenaturais, são encontrados ainda hoje na cultura popular de muitos povos. Não é de se estranhar que um Rio tão grande e importante como o São Francisco, com margens habitadas há séculos por diferentes populações (índios, negros e brancos), também tenha desenvolvido um folclore muito particular. Hoje, vamos amenizar a nossa usual conversa e conhecer um pouco do folclore do nosso Velho Chico.
Antigos moradores das costas da Escandinávia, os vikings nos legaram um importante conjunto de tradições folclóricas e uma complexa mitologia. Deixem-me fazer uma rápida apresentação de um dos seus costumes que, seguindo algum caminho improvável, acabou chegando ao Rio São Francisco:
Os velozes barcos destes implacáveis bárbaros eram chamados de knörr, na versão curta para transporte de carga, e langskip, uma versão com casco mais longo usada em batalhas. Uma característica marcante dessas naus era a presença de um dragão ou cabeça de serpente marinha, conhecido como drakkar, esculpido em madeira na proa do barco. O drakkar tinha a função de espantar monstros marinhos que, eventualmente, cruzassem o caminho da embarcação e, de quebra, colocavam em pânico qualquer população que avistasse uma dessas naus de perfil inconfundível navegando nas costas oceânicas dos mares do Norte.
Curiosamente e sem que haja uma explicação concreta para a prática, imagens antropomórficas muito parecidas com os antigos drakkar passaram a ser esculpidas pelas populações ribeirinhas do São Francisco, a partir de meados do século XIX, e instaladas nas proas das embarcações, virando uma espécie de marca registrada do Rio: as carrancas. A população ribeirinha passou a atribuir características místicas às carrancas: espantar os maus espíritos, evitar que a embarcação afundasse ou que passasse por maiores perigos durante as tempestades, além funcionar como um amuleto para atrair muitos peixes. Com a redução dos estoques pesqueiros em consequência de uma série de problemas ambientais e com as crescentes dificuldades de navegação, as carrancas têm presença cada vez menor nas águas do Rio São Francisco.
Entre as criaturas míticas do Velho Chico, merecem destaque o Nêgo D’água, a Uiara e o temido Minhocão:
O Nêgo D’água é uma criatura de pele escura, descrita com a aparência de um rapaz de porte atlético (vide foto). Tem a cabeça sem qualquer fio de cabelo e orelhas pontudas. Os pés e as mãos têm garras afiadas, com membranas interdigitais como os anfíbios. Vive no fundo Rio, junto com os surubins, dourados, piaus e curimatãs-pacus. Em outros rios do Brasil ele é conhecido como Caboclo D’água. Para alguns, ele é um protetor das águas; para outros, uma terrível ameaça. Os ribeirinhos dizem que ele gosta de gargalhar forte, o que costuma apavorar quem está por perto. De vez em quando, ele se deita sobre as grandes pedras no meio do Rio para tomar sol. Os pescadores fazem de tudo para não cruzar com o Nêgo D’água e sempre trazem uma garrafa de cachaça em seus barcos para uso nos casos de um encontro acidental: eles fazem a oferenda da bebida para que a criatura não vire a jangada ou a canoa.
Dizem que as oferendas de pouco adiantam: a brincadeira preferida do Nêgo D’água é atormentar os seres humanos tirando os peixes dos anzóis, partindo as linhas, rasgando as redes ou assustando quem estiver nos barcos. Também gosta de aterrorizar as mães: costuma carregar as crianças que tomam banho longe das margens do Rio.
Ribeirinhos mais antigos juram que no fundo do Velho Chico se esconde um gigantesco e multi centenário surubim, conhecido como Minhocão. De tão velha, a criatura perdeu as suas barbatanas e o corpo ficou anelado e comprido como o verme. Quando enfurecido, o ser desfere golpes violentos contra as embarcações, que naufragam e vão, aos destroços, para o fundo do rio. O Minhocão também tem a má fama de escavar sob os barrancos da beira do rio, derrubando as casas dos “beiradeiros”, que teimam em se aproximar perigosamente dos seus domínios.
A Uiara – a deusa do Rio São Francisco, é uma sereia de imensa beleza e longos cabelos, que costuma cantar nas noites de lua cheia. Pescadores, ribeirinhos e índios (lembrando aqui da versão do mito entre os índios da Amazônia – a Iara) prestam homenagens ofertando presentes para a Mãe D’água, lembrando muito as oferendas a Iemanjá, a rainha do mar de origens africanas. Dizem que é o Nêgo D’água quem se encarrega de recolher e entregar os presentes para a Uiara. Nas cercanias de Juazeiro e Petrolina, uma grande estátua da Uiara foi colocada sobre as pedras do São Francisco.
Tragicamente, mitos e águas podem desaparecer – no São Francisco, nenhum dos dois está a salvo…
[…] de seres vivos – plantas, animais e pessoas, são fontes de trabalho, renda, transporte e de muitas histórias e lendas. Os rios são as veias que irrigam e mantém a vida em todos os recantos de sua bacia […]
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[…] como o Olokum, o deus do mar, e Oloxá, a deusa dos lagos. Do sincretismo surgiram lendas como a Iara ou Uiara, o Caboclo ou Nego D’água, a Cobra Grande, entre […]
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