O VAZAMENTO DE MAIS DE 1 BILHÃO DE LITROS DE “LICOR NEGRO” EM CATAGUASES, MINAS GERAIS, EM 2003

licor negro em cataguases

Postagem publicada em 25 de novembro de 2016: O VAZAMENTO DA BARRAGEM EM CATAGUASES: LEMBRA?

Os acidentes em barragens de rejeitos de mineração e de resíduos químicos são bem mais frequentes do que todos podem imaginar. A maioria dos acidentes com essas estruturas ou são pequenos e não chamam muito a atenção das comunidades, ou acontecem em regiões distantes do Brasil e não chegam às redações dos grandes veículos de comunicação – os casos relatados nas últimas postagens sobre vazamentos em Barcarena, no Estado do Pará, são grandes exemplos disso. 

Um caso que fugiu a estas regras foi o vazamento de uma barragem de rejeitos químicos resultantes da produção de celulose na cidade de Cataguases, Em Minas Gerais. Nesse acidente, houve o rompimento de uma barragem de lixívia ou licor negro – as fontes divergem sobre o volume total, que está entre 1 e 1,4 bilhão de litros. Leia o texto: 

Há pouco mais de um ano (lembrando que esta postagem é de 2016), uma barragem de rejeitos de mineração rompeu em Mariana, Estado de Minas Gerais – 62 milhões de m³ de rejeitos vazaram, destruindo o distrito de Bento Rodrigues, onde morreram 19 moradores e poluindo a maior parte da extensão do Rio Doce, desde o Estado de Minas Gerais até a sua foz no Espírito Santo. Essa notícia deve estar bem fresca em sua mente. 

Agora eu pergunto: algum de vocês se lembra do rompimento de uma barragem de rejeitos da produção de celulose em Cataguases, também no Estado de Minas Gerais, em 2003? 

Para quem não lembra (provavelmente todo mundo), a barragem de uma indústria de celulose rompeu e vazaram cerca de 1,4 bilhão de litros de lixívia ou licor negro, um rejeito tóxico do processo de produção da celulose (algumas fontes consultadas falam de um vazamento na ordem de 1 bilhão de litros).  O vazamento atingiu primeiro o córrego do Cágado, atingindo na sequência os rios Pomba e Paraíba do Sul, provocando fortes danos ao meio ambiente e causando muitos prejuízos para as populações ribeirinhas de cidades nos Estados de Minas Gerais e Rio de Janeiro. A contaminação química da água foi tão grande que as autoridades ambientais proibiram a captação das águas do Rio Paraíba do Sul para abastecimento, deixando 600 mil pessoas sem água nas suas torneiras. 

O caso teve repercussão imediata: a imprensa dizia se tratar do maior acidente ambiental já ocorrido no Brasil até aquele momento. As equipes de reportagem mostravam imagens de famílias com as torneiras secas nas casas, pescadores de braços cruzados observando os peixes mortos nas águas dos rios e, especialmente, autoridades ambientais dos diversos níveis batendo cabeça, sem saber exatamente o que fazer. Uma das poucas providências que foram tomadas foi a aplicação de uma multa pelo IBAMA – Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis, no valor de R$ 50 milhões contra a empresa responsável pela operação da barragem de rejeitos. O processo jurídico foi tão confuso que, passados treze anos, ainda não houve uma conclusão definitiva e a empresa responsável pelo acidente luta na justiça para reaver o valor da multa. 

Enquanto as autoridades discutiam o que fazer e as populações afetadas pelo vazamento continuavam atônitas, a natureza silenciosamente fez a sua parte: diferente do acidente no Rio Doce, a correnteza do rio Paraíba do Sul diluiu gradativamente o licor negro, empurrando vagarosamente as águas poluídas e as carcaças dos peixes mortos para longe; com a melhoria da qualidade das águas, as sucessivas cidades foram restabelecendo os sistemas de captação, tratamento e distribuição de água potável.   

A empresa conteve o vazamento e recuperou a barragem em três dias; a unidade de produção foi fechada e os rejeitos industriais que restaram nos reservatórios foram tratados e gradativamente lançados nas águas dos rios, sem chamar muita atenção – o solo do fundo dos reservatórios recebeu um tratamento com gesso, argila e adubos, recebendo a seguir o plantio de vegetação. A memória curta de nosso povo fez a sua parte e o acidente foi sendo esquecido: os mais jovens da cidade de Cataguases mal sabem descrever o que aconteceu naquele dia do ano de 2003. 

O Brasil é líder mundial na produção de celulose de fibra curta de eucalipto, produzindo atualmente 15 milhões de toneladas – as projeções indicam que o país se tornará o segundo maior produtor mundial de celulose no ano de 2020, com cerca de 20 milhões de toneladas. A exportação de celulose, papel e chapas de fibra de madeira responde por 4% da pauta de exportações brasileiras, gerando milhares de empregos e quase US$ 8 bilhões em receitas para o país (2015). Apesar destes números vistosos, existem dezenas de barragens de rejeitos químicos semelhantes àquela da cidade de Cataguases, que merecem atenção e monitoramento constante da sociedade. 

Gerar receitas e empregos para o país é fundamental; os diversos tipos de papéis e produtos da indústria madeireira produzidos são importantes no nosso dia a dia, porém não é possível admitir que essa produção continue a deixar a qualidade das águas dos nossos rios em risco constante. 

 

 

AS LAMBANÇAS DA NORSK HYDRO EM BARCARENA, PARÁ

norsk hydro em barcarena

Postagem publicada em 26 de fevereiro de 2018 – O VAZAMENTO DE REJEITOS DE MINERAÇÃO EM BARCARENA, OU A CASA DA MÃE JOANA

Uma mineradora multinacional, um vazamento de rejeitos de mineração e populações ribeirinhas sofrendo com a contaminação das águas pelos mais diferentes tipos de minerais tóxicos. 

Quem acompanha as postagens aqui no blog já viu esse mesmo roteiro em outras tragédias ambientais: vazamentos de rejeitos de mineração no rio Doce, em Mariana; no rio Pomba em Cataguases e no rio Itabirito, na divisa entre os municípios de Congonhas e de Ouro Preto, todas no Estado de Minas Gerais. Neste Estado existem mais de 700 barragens, sendo que ao menos 450 destas estruturas são utilizadas para o armazenamento de rejeitos de mineração – logo, não há como se estranhar o grande número de “acidentes”. 

Em novembro de 2016, tratei de um “acidente” envolvendo caulim, um mineral utilizado na produção de papel, que vazou dos tanques de rejeitos de uma empresa e contaminou inúmeros igarapés no município de Barcarena, no Pará. Apesar do forte impacto para as comunidades locais, a notícia teve repercussão apenas em veículos de comunicação do Estado. A mesma Barcarena agora é manchete em todo o mundo graças a um novo vazamento, agora de resíduos de uma empresa multinacional produtora de alumina. 

O Estado do Pará é o segundo maior produtor de minérios do Brasil, só perdendo para Minas Gerais. A atividade gera aproximadamente 300 mil empregos diretos e indiretos, numa cadeia produtiva que corresponde a 20% do PIB estadual e a mais de 80% das suas exportações. As duas maiores jazidas minerais são Oriximiná, grande produtora de bauxita, a matéria prima para a produção do alumínio, e a Serra dos Carajás, onde se encontra uma das maiores reservas de minério de ferro do mundo, além de minerais como manganês, cobre, bauxita, níquel e ouro. O município de Barcarena concentra um grande número de empresas processadoras de minérios e há muitos anos vem registrando uma série de vazamentos de rejeitos de mineração, com a contaminação de igarapés e lençóis subterrâneos de água. O drama vivido pela população local raramente consegue ultrapassar os limites do Estado. 

Na última semana começaram a pipocar notícias na imprensa nacional e internacional, com informações sobre vazamentos de rejeitos minerais de barragens da empresa multinacional Norsk HydroA unidade industrial da empresa de origem norueguesa, registrada como Alumina do Norte do Brasil S.A, está sediada desde 1995 em Barcarena, sendo considerada a maior processadora de alumina do mundo, com uma capacidade de produção anual de 6 milhões de toneladas. As fortes chuvas que vêm castigando toda a Região Amazônica neste verão, com índices acima da média, elevaram perigosamente os níveis das barragens de rejeitos. De acordo com denúncias feitas pela população que vive nas circunvizinhanças,  essas barragens passaram a liberar a perigosa “lama vermelha”, contaminada com altos níveis de resíduos minerais. Inicialmente, a empresa emitiu nota negando qualquer vazamento de lama ou rejeitos minerais a partir de suas instalações. 

Um relatório do Instituto Evandro Chagas, instituição federal de pesquisas científicas sediada na cidade de Belém, identificou graves danos ao meio ambiente, com modificações drásticas das características físico-químicas e biológicas das águas superficiais e subterrâneas da região de entorno da unidade da Alumina. O laudo técnico atestou a presenças de altos níveis de produtos químicos como fósforo, alumínio, nitrato e sódio nas águas, que também sofreram uma forte elevação no pH (potencial hidrogeniônico), passando a alcalina e imprópria para o consumo. Os níveis de alumínio encontrados na água, para citar um único exemplo, estavam 25 vezes acima do nível máximo permitido pela legislação

Durante as vistorias realizadas pelas autoridades ambientais, uma nova e gravíssima irregularidade foi encontrada – uma tubulação clandestina despejava irregularmente água contaminada com rejeitos minerais da empresa em um igarapé. Rapidamente, o discurso de negação da empresa mudou, passando a admitir a existência dos vazamentos. A empresa também se disse “surpreendida” pela descoberta da tubulação clandestina de drenagem e informou que estava abrindo uma auditoria interna para identificar e punir os responsáveis pela instalação irregular. 

Apesar da enorme repercussão provocada pelo acidente nos últimos dias, as primeiras notícias sobre o vazamento foram divulgadas ainda no dia 12 de fevereiro por um site de notícias de Belém – há rumores deste vazamento circulando nas redes sociais desde dezembro. Naquela data, a população já reclamava da cor e do gosto da água usada no abastecimento de suas casas. Na ocasião, as barragens de rejeitos de mineração já ameaçavam transbordar e as equipes da empresa passaram a utilizar sacos de areia para elevar a altura das barragens e tentar assim evitar o transbordamento. De acordo com informações dos habitantes da região, as barreiras com sacos de areia não foram eficazes o suficiente para impedir o vazamento da lama vermelha. 

Barcarena é uma espécie de “casa da mãe Joana” das empresas de mineração. Contando com enorme apoio e incentivos dos Governos Estadual e Federal, além de energia elétrica farta (e com preços subsidiados) produzida pela Usina Hidrelétrica de Tucuruí, o município se tornou grande produtor e exportador de produtos minerais. Graças à industria da mineração, o Pará ocupa a 11° posição no PIB nacional, porém apenas a 22° posição em distribuição de renda, o que mostra claramente as distorções econômicas da atividade. A exploração e a produção mineral, como é do conhecimento de todos, são altamente degradantes e potencialmente poluidoras do meio ambiente, exigindo das empresas um alto comprometimento em relação ao atendimento de uma rigorosa legislação ambiental.  

Apesar dos discursos ambientalmente engajados das grandes empresas do segmento, especialmente das multinacionais, os desrespeitos no cumprimento da legislação ambiental são notórios em grandes complexos minerais pelo país afora e os chamados “acidentes de produção” tem se tornado cada vez mais frequentes. Em Barcarena, graças ao relativo isolamento do município em relação aos principais centros urbanos do país e da falta de fiscalização das autoridades, os problemas costumam ser mais frequentes do que a média nacional. 

Além das evidentes consequências negativas do acidente ambiental, que deixou centenas de famílias sem abastecimento de água potável – para falar o mínimo, causou maior espanto a postura da empresa, que negou categoricamente qualquer irregularidade, só passando a admitir o acidente após a divulgação da descoberta da tubulação clandestina. A Noruega, nação a que pertence a controladora da empresa, é referência mundial em qualidade de vida, tecnologia, educação, governança pública, energias alternativas e produção limpa, ética e sustentabilidade ambiental – nós brasileiros, sistematicamente, somos apontados por dedos noruegueses e acusados de todos os tipos de agressões ambientais e da destruição da Floresta Amazônica. Era de se esperar uma postura mais ética da empresa escandinava. Vou falar disto na minha próxima postagem

Ironizando o drama: derramamento de rejeitos de mineração na Amazônia dos outros é refresco.

RELEMBRANDO O VAZAMENTO DE CAULIM EM UM IGARAPÉ DO PARÁ

vazamento de caulim no pará

Postagem publicada em 28 de novembro de 2016 : O VAZAMENTO DA BARRAGEM EM CATAGUASES: LEMBRA?

Desde a última sexta-feira, quando começaram a ser divulgadas as primeiras notícias sobre o rompimento da barragem de rejeitos em Brumadinho, Minas Gerais, as visitas ao blog aumentaram consideravelmente. Entre os assuntos mais pesquisados, postagens sobre acidentes com barragens dispararam na liderança. Em sintonia com todo esse interesse, vou republicar a partir de hoje algumas das postagens mais relevantes sobre esse assunto. 

Vamos começar falando sobre inúmeros vazamentos de produtos e rejeitos minerais no município de Barcarena, no Pará. Talvez pelo isolamento do Pará, muitos desses acidentes ficaram restritos aos noticiários das TVs e dos jornais locais da Amazônia. Entre os muitos acidentes já ocorridos em Barcarena, destacam-se os sucessivos vazamentos de caulim – entre os anos 2000 e 2016, foram registrados 7 acidentes com esse mineral no município. 

O caulim é um minério composto de silicatos hidratados de alumínio, como a caulinita e a haloisita, e possui larga utilização nas indústrias de cerâmica, de tintas e de papel. A produção de papel responde por 45% do consumo mundial de caulim, que é usado para dar maior alvura, maior durabilidade, maior brilho e melhor resultado na impressão de todo o tipo de documentos. Do total de rejeitos da fabricação do papel, os resíduos de caulim respondem por 22% do volume. As maiores reservas e minas para a exploração do caulim no Brasil são encontradas nos Estados do Amapá e do Pará

A região Amazônica, como todos devem lembrar, concentra a maior rede hidrográfica do mundo – 70% das reservas superficiais de água doce do Brasil estão na região. Apesar da aparente farta disponibilidade, a água usada diariamente pelas famílias ribeirinhas não vem dos grandes e famosos rios, que carreiam grandes quantidades de argila e precisam passar por tratamento antes do seu uso para o abastecimento – é a água limpa e clara dos igarapés que abastece essa população. Quando a população pobre da Amazônia não dispõe de um igarapé nas proximidades de suas casas, é preciso recorrer a um poço para o abastecimento de água. Os igarapés são afloramentos das águas subterrâneas dos lençóis freáticos e aquíferos, e são contados aos milhares em toda a Amazônia. 

No início deste mês (01/11/2016) houve um novo vazamento de caulim, atingindo os igarapés Dendê, Curuperé e São João, todos em Barcarena. Centenas de famílias da região, que são abastecidas com a águas desses igarapés, estão tendo de buscar fontes alternativas para o abastecimento de suas casas. Uma nota publicada pelo Ministério Público informou: “Há fortes indícios de contaminação das águas por substâncias poluentes, cujo consumo pelo ser humano pode ocasionar danos irreversíveis a saúde, por isso, há necessidade de confirmação técnica de tais fatos danosos ao meio ambiente”. 

A cidade de Barcarena é um importante pólo industrial regional, onde diversos minerais produzidos em toda a região Amazônica passam por beneficiamento e industrialização. Entre esses minerais e produtos temos o caulim, a alumina e o alumínio, cabos metálicos para transmissão de energia elétrica, entre outros produtos. Na cidade está localizado o maior porto do Estado do Pará, a partir do qual esses produtos são exportados para outras regiões brasileiras e para mercados consumidores em todo o mundo. Essa é a razão de tantos acidentes ambientais e, graças ao forte lobby de industriais e políticos, da tão escassa divulgação desses problemas para o restante do Brasil. 

Observem que uma simples e inocente folha de papel branco que você vai utilizar no seu dia a dia, já carrega em seu “DNA” toda uma carga de agressões ambientais, seja nas plantações de eucalipto em larga escala, seja no uso desta matéria prima nas fábricas produtoras de celulose e papel ou ainda na produção dos insumos como o caulim que serão usados no beneficiamento do papel. Essa pequena incursão em um acidente ambiental num igarapé nos confins da Amazônia mostra que os problemas da produção do papel são bem mais profundos do que se pode imaginar e começam bem antes do início da produção do papel propriamente dita. 

A reciclagem e reutilização dos papéis são atividades fundamentais para a redução do volume de resíduos que seriam destinados aos lixões e aterros sanitários, temas que ainda trataremos nesta série de posts. Porém é fundamental reduzir sempre que possível o uso do papel, especialmente nos dias atuais em que as mensagens podem ser transmitidas exclusivamente através de meio eletrônico com leitura em tela. Lembro do início da era dos computadores pessoais na década de 1980 (quando meu departamento recebeu um “poderosíssimo” computador Apple II Plus para automatizar todo o controle do estoque de peças da empresa) – os gurus da época falavam que os computadores iriam acabar com o uso do papel nas empresas: em realidade, aconteceu justamente o contrário e o uso do papel no mundo não parou de crescer, inclusive nos escritórios. 

Ao repensar se é realmente necessário usar alguma folha de papel para uma determinada atividade, você estará contribuindo tanto para a redução dos resíduos sólidos na sua cidade quanto para a redução da poluição de caulim em um pequeno igarapé na Amazônia e ajudando uma família a garantir o seu abastecimento diário de água. 

Que mundo maluco e complexo é esse nosso… 

O VAZAMENTO DE BARRAGENS DE REJEITOS E OS RISCOS PARA O ABASTECIMENTO DE ÁGUA NO RIO DE JANEIRO

rio de janeiro

Desde a tarde da última sexta-feira, dia 25 de janeiro, todos estamos acompanhando os desdobramentos do acidente com a barragem de rejeitos em Brumadinho, Minas Gerais. Infelizmente, o número de mortos na tragédia não para de crescer e as consequências ao meio ambiente ainda são uma incógnita. As equipes de busca ainda terão muito trabalho pela frente e os ambientalistas tempo de sobra para avaliar os impactos ao meio ambiente. Todos esperamos que, desta vez, os culpados paguem por crimes. 

Esse novo acidente com uma barragem de rejeitos de mineração reacende uma questão que levantei há bastante tempo – os riscos para o abastecimento de 16 milhões de cariocas e fluminenses. Deixem-me explicar o case

Cerca de 85% da água consumida pelas populações das cidades do Rio de Janeiro e da maior parte das cidades da Baixada Fluminense são captadas no rio Paraíba do Sul. Um engenhoso sistema de transposição de águas entre diferentes bacias hidrográficas, criado originalmente para permitir a geração em usinas hidrelétricas no interior do Estado do Rio de Janeiro, retira grande parte das águas do leito do rio Paraíba do Sul e as direcionam para o rio Guandu, responsável por conduzir essas águas na direção da Região Metropolitana do Rio de Janeiro. 

Considerado o 5° rio mais poluído do Brasil, o Paraíba do Sul nasce nas Serra do Mar, no Estado de São Paulo. Em tempos geológicos distantes, ele era um dos muitos afluentes formadores do Tietê. Graças ao afundamento de um grande bloco de rochas por forças tectônicas, o que resultou na atual configuração física atual do Vale do Paraíba, o rio mudou o seu curso para o Norte e depois para o Leste, passando a correr na direção do Rio de Janeiro, onde se tornou o mais importante curso d’água do Estado. No seu caminho em direção ao Oceano Atlântico, o rio delimita grande parte da divisa entre os Estados do Rio de Janeiro e de Minas Gerais. 

Apesar de poluídas, as águas do rio Paraíba do Sul passaram a ser cada vez mais disputadas pelos Estados de São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro. Essa questão, que se desenrolou por vários anos, só chegou a bom termo no final de 2015, quando o STF – Superior Tribunal Federal costurou um acordo para o compartilhamento das águas. Os Estados aceitaram o acordo e acertaram com o Governo Federal e com a ANA – Agência Nacional de Águas, as regras para a gestão compartilhada das águas do Rio Paraíba do Sul, estabelecendo vazões mínimas para os reservatórios e mudando a prioridade do uso das águas do rio para o abastecimento e não mais para a geração de energia elétrica.  

Pois bem – vamos ao problema: grande parte da bacia hidrográfica do rio Paraíba do Sul é ocupada por regiões com forte atividade mineradora, especialmente em regiões no Sul e Sudeste do Minas Gerais. Os minérios extraídos do solo raramente se apresentam puros, mas são acompanhados por diversas impurezas e precisam passar por um processo de beneficiamento. É aqui que surgem os famosos “rejeitos da mineração”, que precisam ser acumulados em barragens específicas. Uma das técnicas mais usadas para a construção das barragens de rejeitos é o alteamento a montante, onde os próprios rejeitos minerais são compactados para a formação de uma barragem. Conforme o volume de rejeitos vai aumentando, essa barragem vai sendo aumentada em degraus.  

Por razões de segurança, essas barragens de rejeitos precisam ser monitoradas constantemente por pessoal técnico especializado, ocasiões onde são emitidos laudos que comprovam a sua estabilidade e segurança. Infelizmente, mesmo com todo o cuidado do mundo, existem inúmeros fatores que podem levar uma barragem ao colapso – movimentações de solo, excesso de fluidez nos rejeitos, temporais, terremotos, etc. Tanto a barragem de Fundão em Mariana, quanto a barragem do Córrego do Feijão em Brumadinho, destruída na última sexta-feira, foram construídas usando essa mesma técnica, o que comprova que os riscos de acidentes são reais e a destruição dos rios Doce e Paraopebas estão aí para confirmar isso. 

Um exemplo dos riscos enfrentados pelas populações que dependem das águas do rio Paraíba do Sul foi o rompimento de uma barragem de rejeitos da produção de celulose em Cataguases, ocorrido em 2003. Nesse acidente, vazou 1,4 bilhão de litros de lixívia ou licor negro, um rejeito tóxico do processo de produção da celulose (algumas fontes consultadas falam de um vazamento na ordem de 1 bilhão de litros).  O vazamento atingiu primeiro o córrego do Cágado, atingindo na sequência o rio Pomba e, por fim, o rio Paraíba do Sul, provocando fortes danos ao meio ambiente e causando muitos prejuízos para as populações ribeirinhas de cidades nos Estados de Minas Gerais e Rio de Janeiro. A contaminação química da água foi tão grande que as autoridades ambientais proibiram a captação das águas do Rio Paraíba do Sul para abastecimento, deixando 600 mil pessoas sem água nas suas torneiras

Felizmente para cariocas e fluminenses, esse vazamento ocorreu a jusante (rio abaixo) da barragem da Usina Elevatória de Santa Cecília, responsável por desviar parte das águas do rio Paraíba do Sul na direção da Região Metropolitana do Rio de Janeiro. Agora, imaginem se o rio Pomba tivesse sua foz algumas dezenas de quilômetros a montante e se parte desses rejeitos tóxicos fossem bombeados para o Estado do Rio de Janeiro? 

É claro que numa situação como essa, bastaria que se desligasse o bombeamento da usina elevatória por alguns dias, até que os rejeitos tóxicos fossem diluídos e as águas do rio voltassem a apresentar uma qualidade melhor. Além disso, a Represa do Funil, já no Estado do Rio de Janeiro, poderia manter as águas fluindo na direção do rio Guandu por um bom tempo. Mas, e se fosse uma torrente de rejeitos de mineração como o que atingiu o rio Doce? Passados mais de três anos desde o fatídico rompimento da barragem de Fundão, as águas do rio ainda apresentam altos níveis de contaminantes. Como ficaria o abastecimento da população da Região Metropolitana do Rio de Janeiro numa situação como essa? 

Além de barragens de rejeitos em regiões dos Estados de Minas Gerais e de São Paulo, existem inúmeras indústrias instaladas na região do Vale do Paraíba em São Paulo, montanhas de rejeitos e escórias de metais na região de Volta Redonda entre muitas outras fontes potenciais de poluição. Um descuido na fiscalização de uma barragem de rejeitos ou nos depósitos de uma indústria química, ou ainda uma temporada de chuvas mais forte, bastaria para iniciar uma grande tragédia ambiental. 

Sem outras fontes de abastecimento de água com produção suficiente para substituir as águas do rio Paraíba do Sul numa situação de emergência, uma opção a se pensar com muito carinho seria a construção de uma grande usina de dessalinização de água do mar na região.

Pena que as baías da Guanabara e de Sepetiba estão poluídas demais para sediar uma planta dessas…

O ROMPIMENTO DA BARRAGEM EM BRUMADINHO, OU SERIA UMA CRÔNICA DE UMA TRAGÉDIA ANUNCIADA?

brumadinho

No início da tarde desta sexta-feira, dia 25 de janeiro, fomos surpreendidos com a notícia do rompimento de mais uma barragem de rejeitos da empresa Vale do Rio Doce, desta vez na cidade de Brumadinho, distante pouco mais de 60 km de Belo Horizonte, em Minas Gerais. 

Segundo as informações divulgadas, a barragem do Córrego do Feijão se rompeu no início da tarde, liberando grandes volumes de rejeitos, que atingiram a área administrativa da unidade da Vale do Rio Doce e também parte da Comunidade da Vila Ferteco. O Córrego do Feijão é um afluente do rio Parauapebas 

Até o momento, as informações da Defesa Civil de Minas Gerais falam em pelo menos 7 mortes. A Vale do Rio Doce informa que havia 424 pessoas no local do acidente – 150 ainda estão desaparecidas. Infelizmente, ao longo das próximas horas e dias, teremos boletins informando o número real de vítimas, que tende a ser bem maior do que o número já anunciado. 

Esse novo acidente nos traz à lembrança a tragédia social e ambiental que foi provocada pelo rompimento da Barragem de Fundão, no distrito de Bento Rodrigues em Mariana, também em Minas Gerais. A semelhança é ainda maior quando lembramos que a mesma empresa, a Vale do Rio Doce, é uma das sócias da Samarco Mineração, a empresa responsável pela operação da Barragem de Fundão.  Outros acidentes semelhantes que podemos citar foram o de Barcarena, no Pará, e o de Cataguases, também em Minas Gerais.

O acidente de Mariana, que ocorreu em 5 de novembro de 2015, deixou um saldo de 19 mortos e centenas de desabrigados. O rompimento dessa barragem de rejeitos de mineração provocou o vazamento de 62 milhões de metros cúbicos de lama, ferro, manganês e outros resíduos minerais. Uma verdadeira onda de lama se espalhou por toda a calha do rio Doce até sua foz no Oceano Atlântico, na cidade de Linhares no Espírito Santo. Já se passaram mais de três anos e o rio Doce ainda não conseguiu se recuperar. Milhares de famílias ribeirinhas, pescadores e também os antigos moradores do Distrito de Bento Rodrigues ainda sofrem as consequências da tragédia. 

A tragédia da Barragem de Fundão produziu uma série de mudanças nos sistemas de fiscalização e controle das barragens de rejeitos da mineração nos últimos anos. Essa questão foi tema de um recente Workshop – “Gestão de barragens de rejeitos de mineração”, como parte dos eventos do CBMINA – Congresso de Minas a Céu Aberto e Subterrâneas. O evento foi organizado pelo IBRAM – Instituto Brasileiro de Mineração, e pela UFMG – Universidade Federal de Minas Gerais e realizado na cidade de Belo Horizonte no início do mês de agosto de 2018. 

De acordo com os dados do setor disponibilizados, existem hoje no Brasil 786 barragens de rejeitos, sendo que 417 dessas estruturas estão inseridas na PNSB – Política Nacional de Segurança de Barragens – em 2013, estavam cadastradas no PNSB 243 barragens em todo o país.

O número de barragens classificadas como de alto risco de acidentes em 2013 era de 41 – esse número baixou para 7 em 2018. Existem 36 barragens classificadas como de médio risco e 374 como de baixo risco. Entre os Estados, Minas Gerais continua na liderança em número de barragens de rejeitos com 355 estruturas seguido pelo Pará, com 109 e por São Paulo, com 79 barragens.  

Entre os anos de 2001 e 2018, seguindo os palestrantes, foram registrados 35 acidentes com barragens de rejeitos de mineração em todo o mundo, numa média de quatro acidentes por ano e destes, pelo menos um acidente á considerado de grande proporção. No Brasil, foram registrados cinco acidentes no período, incluindo-se na lista o rompimento da Barragem de Fundão, em Mariana, no ano de 2015.  

As perguntas que ficam: a Barragem do Córrego do Feijão, em Brumadinho, estava listada entre as sete barragens com alto risco de rompimento? A Vale, em função do desastre anterior em Mariana, não melhorou seus procedimentos de segurança nas suas barragens de rejeitos de mineração? A barragem tinha algum sistema de sirenes para alertar a vizinhança do rompimento da estrutura? 

Esperemos que o tempo traga as respostas a estas e a muitas outras perguntas e que, desta vez, os culpados pelo acidente sejam efetivamente e exemplarmente condenados. 

Por hora, resta-nos torcer por um menor número de vítimas e que os danos ao meio ambiente não sejam tão grandes como em outras catástrofes semelhantes. 

 

AFINAL DE CONTAS: A ÁGUA DESSALINIZADA É A ”SALVAÇÃO DA LAVOURA”?

Água em casa

Ao longo de uma série de postagens, apresentamos algumas experiências internacionais sobre o uso de usinas de dessalinização que tornam a água do mar potável. Aqui no Brasil, falamos do caso de Fernando de Noronha, um arquipélago marinho isolado e sem fontes naturais de água potável – a ilha principal, a única habitada, conta com uma usina de dessalinização desde o ano 2000, que vem suprindo parte do abastecimento da população. Outro exemplo é o caso da Região Metropolitana de Fortaleza que, a depender do andamento de um processo de licitação pública, poderá estar utilizando água dessalinizada a partir de 2022. 

Analisando esses diferentes casos, será possível afirmar que o uso da água dessalinizada pode ser a solução para o abastecimento de grandes cidades litorâneas, especialmente da região Nordeste, que sofrem frequentemente com problemas de escassez de água?  

Vamos pensar a respeito disso; 

A tecnologia de dessalinização e potabilização da água do mar para consumo por populações e para uso em agricultura evoluiu muito nas últimas décadas. Um dos maiores avanços se deu com o desenvolvimento das membranas de osmose reversa na década de 1960. Essas membranas são construídas usando polímeros que possuem furos microscópicos, que permitem a passagem das moléculas de água e retém as partículas de sal e outras impurezas encontradas na água marinha. Os processos de dessalinização por osmose inversa consomem entre 10 e 15 vezes menos energia que os antigos processos de destilação térmica, um fator determinante para a redução dos custos de operação das usinas de dessalinização. O custo médio para a produção de 1 m³ de água dessalinizada é de US$ 1.00; em Israel, esse custo está na ordem de US$ 0.60

À primeira vista, esse custo pode não parecer muito alto, mas ele pode elevar muito o valor da conta de água de uma família de baixa renda. Uma família com cinco pessoas tem um gasto diário médio de 1 m³ de água ou 1.000 litros. Se considerarmos, hipoteticamente, que toda essa água foi produzida por uma usina de dessalinização, teremos um custo de produção mensal de US$ 30.00 – ao câmbio de hoje (24 de janeiro de 2019 – R$ 3,77), serão R$ 113,10 de acréscimo no valor da conta. Esse valor se refere apenas ao custo da água, que se somará aos custos de distribuição da empresa de saneamento; em locais onde já existe rede coletora de esgotos e ETEs – Estações de tratamento de Esgotos, existe ainda a cobrança pelo tratamento dos esgotos, o que, normalmente é o mesmo valor cobrado pelo fornecimento de água.  

Sem nos prendermos a muitos detalhes, o valor total da conta de água de uma dessas famílias poderá mais do que dobrar. Felizmente, na maioria dos casos, a água dessalinizada é usada para complementar a água captada em outras fontes de abastecimento. No caso de Fortaleza, a expectativa do Governo local é suprir apenas 12% do consumo com água dessalinizada, um volume que vai ter pouco impacto nas contas de água da população. 

A exceção de Teresina, a capital do Piauí, todas as capitais nordestinas ficam localizadas no litoral e, praticamente todas, apresentam problemas no abastecimento de água das suas populações. Todos os mananciais produtores de água têm suas nascentes em áreas interioranas, especialmente na chamada Zona da Mata, que apesar de ser uma região mais úmida que as áreas do Agreste e do Semiárido, ela também sofre os efeitos de períodos de seca mais intensa. A implantação de usinas de dessalinização nessas capitais criaria fontes alternativas para o abastecimento das populações dessas áreas urbanas, o que minimizaria sensivelmente a carência de recursos hídricos. 

Porém, o uso de água dessalinização só resolve uma parte do problema – existem diversas frentes a serem trabalhadas com o objetivo de aumentar a oferta de água para a população. Vejam: 

reuso da água é uma das melhores alternativas para se reduzir a necessidade de novas fontes de água. Em Israel, um dos países com a maior utilização per capita de água dessalinizada do mundo, toda a água utilizada nas casas e industrias passa por estações de tratamento. O efluente tratado é transportado para as áreas rurais, onde é usado em sistemas de irrigação agrícola. Esse reuso da água poupa, todos os anos, dezenas de milhões de metros cúbicos de outras fontes, como o lendário rio Jordão e de poços. Essa água que foi “poupada” poderá ser usada por pequenas cidades e vilas em locais remotos, longe do oceano e das usinas de dessalinização. Também é importante citar aqui as EPAR – Estações de Produção de Água de Reúso, unidades que transformam os esgotos em água potável, que pode ser distribuída para o abastecimento da população.

Uma outra importante fonte de água que ainda não está sendo totalmente utilizada em regiões semiáridas aqui do Brasil são as águas pluviais. Na Ilha de Malta, no Mar Mediterrâneo, cerca de metade da água usada para o abastecimento da população e, especialmente, para irrigação agrícola vem de cisternas de armazenamento de águas da chuva. Conforme apresentamos em uma postagem anterior, Malta é um dos países mais secos do mundo e, desde a antiguidade, sempre dependeu do uso da água das chuvas. O uso da água dessalinizada na ilha é relativamente recente e cobre a outra metade das necessidades de abastecimento da população. 

Um dado que vai intrigar muita gente e que demonstra que falta um bom gerenciamento dos recursos hídricos na região do Semiárido brasileiro: no interior do Nordeste existem reservatórios com capacidade para acumular 37 bilhões de metros cúbicos de água – nenhuma outra região semiárida do mundo possui tal capacidade de armazenamento. O problema é que não existem sistemas de tubulações que interliguem esses reservatórios, permitindo assim a gestão e a transferência eficiente dos recursos hídricos entre as regiões. É comum vermos cidades sofrendo com a falta de água, mesmo tendo um reservatório cheio nas proximidades. 

Também não podemos deixar de falar da má gestão dos recursos financeiros. Muitas obras contra as secas não começadas e não são concluídas. Cito aqui o exemplo do Sistema de Transposição das Águas do Rio São Francisco, que foi vendido por políticos como sendo a “salvação do Nordeste”. As obras sofreram várias paralisações, os custos até agora são bem maiores do que no orçamento original e só parte do sistema já está funcionando. Enquanto isso, dezenas de cidades localizadas nas proximidades do rio São Francisco não possuem sistemas de tubulações que lhes permitam usar as águas do rio. São obras relativamente pequenas e de baixo custo, que resolveriam a vida de milhares e milhares de pessoas. 

Enfim, as usinas de dessalinização são muito bem vindas em cidades e regiões litorâneas com problemas de abastecimento. Porém, antes de se pensar em construir qualquer uma delas, existe muita “lição de casa” para administradores públicos, Prefeitos e Governadores fazerem. 

UMA USINA DE DESSALINIZAÇÃO NO ESTADO DO CEARÁ

fortaleza

Na postagem anterior fizemos uma rápida apresentação dos problemas de abastecimento no Ceará, falando inclusive de várias secas devastadoras. Uma das mais graves estiagens que se abateu sobre o Estado, entre 1877 e 1879, matou 100 mil pessoas, o que na época equivalia a metade da população cearense. Hoje, a população de várias regiões do Estado, principalmente na Região Metropolitana de Fortaleza, ainda sofre as consequências de uma forte seca que persistiu entre os anos de 2011 e 2017 – o Açude Castanhão, principal manancial de abastecimento do Ceará, ainda não conseguiu se recuperar e seu estoque de água permanece com menos de 4% de sua capacidade total. 

Sem contar com outras fontes de abastecimento, o Governo do Ceará passou a trabalhar com o projeto de construção de uma grande usina de dessalinização nas proximidades da cidade de Fortaleza. Ainda no final de 2017, foram escolhidas duas empresas, uma sul-coreana e outra espanhola, especializadas em consultoria de projetos de dessalinização. O principal objetivo do trabalho dessas empresas era a apresentação de estudos técnicos  de viabilidade, que apontassem as melhores alternativas tecnológicas e os melhores locais para a instalação da planta industrial. O Governo do Estado trabalhava com a expectativa de publicar no mês de dezembro de 2018, um edital internacional para a seleção de empresas ou consórcios de empresas para construir a usina de dessalinização, o que acabou não acontecendo ainda. 

De acordo com dados informados pelo Governo do Ceará, o investimento estimado para as obras será de R$ 500 milhões. A expectativa das autoridades é o atendimento de, pelo menos, 720 mil pessoas na cidade de Fortaleza com água dessalinizada do mar já a partir de 2020. Entre os locais já apontados com potencial para receber a usina despontam o Mucuripe, na margem direita do rio Cocó, e um trecho do litoral de Caucaia próximo à Fortaleza. Caso os planos se confirmem, o Ceará se tornará o primeiro Estado brasileiro  a contar com uma usina de dessalinização de grande porte. 

A cidade de Fortaleza tem 3,9 milhões de habitantes e consome cerca de 8 m³ de água por segundo. A contribuição inicial da usina de dessalinização será de 1 m³ por segundo, o equivalente a 12% do consumo de água da cidade. Uma das ideias em estudo avalia a possibilidade de se construir uma usina de dessalinização modular, como aquela usada na planta de dessalinização Jabel Ali de Dubai. Esse modelo permitirá uma ampliação progressiva da capacidade de produção, atendendo um número cada vez maior de habitantes e acompanhando o desenvolvimento tecnológico. 

Nos dias atuais, cerca de 300 milhões de pessoas em 150 países diferentes são abastecidas com água dessalinizada. Segundo informação de fabricantes de equipamentos e de usinas de dessalinização, existem aproximadamente 14 mil unidades em operação ao redor do mundo, produzindo mais de 86 milhões de metros cúbicos de água dessalinizada por dia. O custo médio de cada m³ (1.000 litros) de água dessalinizada no mercado internacional é de US$ 1.00. O Governo do Ceará pretende alcançar um custo de produção abaixo desse valor, reduzindo ao máximo os impactos na conta de água da população. 

O custo da energia elétrica, conforme comentamos em diversas postagens dessa série, corresponde, em média, a 50% dos custos de operação de uma usina de dessalinização. Diversos países que utilizam água dessalinizada têm altos custos para a geração de energia elétrica a partir de combustíveis fósseis como o carvão e o óleo. Esse alto custo da energia elétrica tem reflexos diretos nas contas de água e as populações são obrigados a reduzir ao máximo o consumo em suas residências. O Estado do Ceará está entre os mais pobres do Brasil e não existe qualquer margem no orçamento das famílias para cobrir eventuais aumentos no valor das contas de água. 

O Ceará, chamado por muitos de “Terra do Sol”, possui um dos maiores índices de insolação do mundo, o que abre inúmeras possibilidades para o uso de energia elétrica fotovoltaica para alimentação da futura usina de dessalinização. A título de comparação, a Alemanha, país líder mundial no uso de energia solar, possui uma insolação média em seu território 5 vezes menor que a do Ceará. Outra fonte de energia renovável que tem um enorme potencial de crescimento no Estado é a geração através de turbinas eólicas. As belas paisagens do litoral cearense apresentam, há vários anos, gigantescas torres de geração eólica, que já se tornaram verdadeiros cartões postais do Estado. Torçamos para que os planejadores do Estado estejam trabalhando nessa direção. 

O uso de fontes alternativas de energia é um dos segredos do sucesso das usinas de dessalinização de Israel. Com a descoberta de grandes campos de gás natural no território israelense, todas as plantas que já estavam em operação foram convertidas para o uso do gás natural e as plantas novas já foram projetadas para operar com esse combustível. O preço médio do m³ de água dessalinizada em Israel é da ordem de US$ 0.60, um dos mais baixos praticados no mundo

Sem nos alongarmos muito nesse ponto, é sempre importante lembrar que o principal parque de usinas hidrelétricas da região Nordeste fica no rio São Francisco. Esse combalido e enfraquecido rio, que já foi tema de dezenas de postagens aqui no blog, apresenta caudais cada vez menores, um problema que está na raiz de diversos males vividos por inúmeras cidades ribeirinhas. Uma eventual utilização de eletricidade gerada a partir das preciosas e escassas águas do Velho Chico seria de uma insensatez inominável – por isso a minha insistência no uso de outras fontes de energia renováveis como a solar e a eólica.. 

Encerrando essa postagem, uma informação importante que aparece nas entrelinhas dos comunicados emitidos pelo Governo do Ceará: a intenção de delegar a operação e a produção da usina de água dessanilizada nas mãos da iniciativa privada – o Governo se comprometeria a comprar toda a água produzida para uso no abastecimento da população. Empresas públicas, como a experiência de vida de cada um dos leitores já deve ter mostrado, costumam ser altamente ineficientes, custosas e propensas ao uso político pelos grupos que estão no poder. Cargos fantasmas, salários acima da média do mercado e com um número excessivo de benefícios, contração de cabos eleitorais, etc, são males que sufocam a maioria esmagadora das empresas públicas brasileiras.  

Se o projeto do Ceará seguir mesmo por esse caminho, o da administração privada, as coisas tenderão a melhorar muito no saneamento básico da Grande Fortaleza. 

AS SUCESSIVAS CRISES HÍDRICAS NO ESTADO DO CEARÁ, OU FALANDO DO USO DE ÁGUA DESSALINIZADA

açude castanhão

O Estado do Ceará está passando por um verdadeiro inferno astral nas últimas semanas. Até ontem, dia 21 de janeiro, foram registrados 231 ataques contra ônibus, carros, lojas, prédios públicos, pontes, torres de transmissão de energia, entre outros. As ações criminosas começaram na Região Metropolitana de Fortaleza no dia 2 de janeiro e foram se espalhando por todo o Estado, atingindo cerca de 50 dos 184 municípios do Ceará. As autoridades informaram que 411 pessoas envolvidas nesses ataques já foram presas. Estamos torcendo pelo povo cearense e esperamos que as autoridades do Estado consigam restaurar a ordem e a paz pública o mais rápido possível. 

Toda essa situação caótica acabou jogando para um segundo plano os problemas de abastecimento de água, um problema crônico que vem afetando toda a população da Região Metropolitana de Fortaleza há vários anos. Com 3,7 milhões de habitantes, o que corresponde a quase metade da população do Estado, a Grande Fortaleza sofre com a falta de fontes de água para o abastecimento da população. O maior reservatório de água do Ceará e principal manancial de abastecimento da Região Metropolitana de Fortaleza – o Açude Castanhão (vide foto), está com apenas 3,91% da sua capacidade total de armazenamento (volume em 17/01/2019 – Portal Hidrológico do Ceará). 

Localizado oficialmente no município de Alto Santo (o reservatório se distribui por vários municípios), o Açude do Castanhão foi inaugurado em 2002 e possui capacidade para armazenar 6,7 bilhões de m³. É considerado o maior reservatório para usos múltiplos da América Latina. Sua capacidade de armazenamento corresponde a 37% da capacidade total de armazenamento de todos os 8 mil reservatórios existentes no Estado do Ceará, incluindo-se na lista o Açude Orós, que durante décadas foi o maior de todos.  

Em sua capacidade máxima de armazenamento, o Castanhão tem condições de abastecer toda a Região Metropolitana de Fortaleza por 3 anos ininterruptamente. O problema é que desde 2012, com o início de uma forte estiagem que atingiu toda a região do Semiárido nordestino, os volumes das chuvas na bacia hidrográfica do rio Jaguaribe têm estado abaixo da média, sendo insuficientes para recuperar os níveis do Açude

Para preservar ao máximo o volume de água que restou no Castanhão, a companhia de águas local aumentou a captação de águas em outros reservatórios do interior do Estado, distantes até 250 km, transportadas através do chamado “Eixão das Águas”, para reforçar os níveis dos reservatórios da Região Metropolitana. Essa manobra permitiu uma redução substancial da captação de águas no Açude do Castanhão – até 2016, ele fornecia 70% da água consumida na Região Metropolitana de Fortaleza – atualmente, a sua contribuição é menor que 10%.  

O Estado do Ceará convive há séculos com problemas de falta de água e grandes secas. Registros históricos e observações de cronistas de época falam de grandes estiagens no Estado em 1744, 1790, 1846, 1877, 1915 e em 1932. A grande seca que assolou o Estado entre 1877 e 1879 foi uma das mais dramáticas: calcula-se que metade da população do Estado morreu em consequência da gravíssima estiagem. Outra seca que ganhou notoriedade no Ceará foi a de 1915 – a escritora Rachel de Queiroz, que foi testemunha ocular dessa grande tragédia humana e ambiental, imortalizou suas lembranças no romance “O Quinze”, um clássico de nossa literatura. 

Além de fatores geográficos e ambientais, a seca na região do Semiárido Nordestino tem uma grande parcela de contribuição humana. Desde os primeiros anos da colonização do Brasil, boiadas expulsas do litoral canavieiro passaram a penetrar pelos sertões da região. Na falta de grandes áreas de pastagens para o gado, os boiadeiros criaram o hábito de queimar grandes extensões dos caatingais para a formação de novas áreas de pastagens. O bioma também sofreu profundos danos com a abertura de áreas para prática de agricultura, fornecimento de madeira para a construção civil e para a produção de carvão, de lenha para as cozinhas, entre outras agressões. Dados recentes dos órgãos ambientais afirmam que metade do Bioma Caatinga já não existe mais e essa sua destruição têm impactos na amplificação dos efeitos naturais das secas e em processos de desertificação de solos

O botânico Alberto Loefgren (1854-1918), sueco de nascimento e depois radicado no Brasil, dedicou vários anos ao estudo da devastação das matas e das terras no Ceará. Em suas andanças pelos sertões cearenses, ele atribuiu um papel importante nesta degradação vegetal aos rebanhos soltos na região:  

“Outro fator não desprezível na devastação das matas, ou pelo menos para conservar a vegetação em estado de capoeira, são as cabras. Sabe-se quanto este animal é daninho para a vegetação arborescente e arbustiva e como a criação de cabras soltas no Ceará é, talvez, maior que a do gado, sendo fácil imaginar-se o dano que causa à vegetação alta”. 

Essa devastação ambiental da Caatinga, que tem raízes seculares, contínua a pleno vapor em nossos dias. Em um estudo realizado pelo Ministério do Meio Ambiente com dados do período entre 2002 e 2008, sete municípios do Ceará apareceram na lista dos 20 municípios nordestinos que mais desmataram a Caatinga. Essa lista inclui Acopiara e Tauá, dois municípios do Estado que ficaram com a primeira e a segunda posição desse ranking de desmatamento. Nesse período, o Ceará perdeu 4.123 km² de matas de Caatinga, o equivalente a 0,5% da área do Bioma no Estado. Mais de 60% da área original da Caatinga no Estado já foi destruída, uma situação absolutamente insustentável do ponto de vista ambiental. 

Diante desse quadro caótico e sem contar com outras fontes de água para o abastecimento de sua população, o Governo do Ceará vem estudando já há vários anos a construção de uma grande usina para dessalinização da água do mar. A expectativa das autoridades é atender mais de 720 mil habitantes da Região Metropolitana de Fortaleza com água dessalinizada a partir de 2020

Na nossa próxima postagem falaremos mais sobre isso. 

A IMPORTÂNCIA DA ÁGUA DESSALINIZADA EM FERNANDO DE NORONHA

SONY DSC

O arquipélago de Fernando de Noronha tem apenas 26 km² de superfície, mas é considerado por muitos como “o pedaço mais bonito do Brasil”. São 21 ilhas e ilhotas, distantes 545 km da costa do Estado de Pernambuco. Apenas a maior das ilhas, Fernando de Noronha, é habitada e conta com uma população residente de menos de 3 mil pessoas. Nos períodos de alta temporada, o arquipélago é invadido por turistas – são mais de 90 mil visitantes por ano. Toda essa gente se espreme em pequenos hotéis, pousadas e casas de moradores, não se importando muito com a falta de conforto e de maiores recursos na ilha. Isso pouco importa para a maioria – os encantos do lugar e a beleza das praias valem todo e qualquer esforço. 

Como todo ilha, Fernando de Noronha tem recursos naturais limitados, especialmente quando se fala em água. Como é comum em muitas ilhas oceânicas, o arquipélago não possui nenhuma fonte natural de água -as reservas de água potável do arquipélago dependem das fortes chuvas de inverno. Historicamente,os moradores locais sempre dependeram dessa água, que era armazenadas em cisternas e cacimbas, ou se abasteciam de carregamentos de água trazidos por navios em momentos de crise hídrica. A falta desse precioso recurso foi um dos principais obstáculos para o povoamento do arquipélago. 

Existem diversas hipóteses sobre a descoberta das ilhas, por diferentes expedições, entre os anos de 1500 e 1504. Fernando de Noronha (ou Fernão de Loronha no original) foi um rico comerciante, empreendedor e armador português, que figurou entre os financiadores das primeiras expedições exploratórias dos recursos naturais das recém descobertas terras brasileiras, especialmente do pau-brasil. Em 1504, Dom Manuel I, o Rei Venturoso, doou para Fernando de Noronha o arquipélago, chamado na época de Ilhas de São João da Quaresma, em agradecimento aos seus serviços. Ele nunca visitou as ilhas, que acabaram sendo rebatizadas com seu nome.  

Isolado do continente e sem fontes de água, o arquipélago ficou abandonado por muito tempo, tendo sido invadido sucessivamente por holandeses, franceses e ingleses, que também não se estabeleceram. Em 1700, o arquipélago foi integrado à Capitania de Pernambuco. Foi somente no final do século XVIII que o arquipélago ganhou uma função específica: foi transformado em um presídio, função que se manteve até o final da década de 1950. Durante a II Guerra Mundial, o aeroporto da ilha de Fernando de Noronha foi cedido aos Estados Unidos e utilizado como base de reabastecimento para os aviões americanos que se dirigiam para os campos de batalha na África.  

Em 1988, o Governo brasileiro transformou o arquipélago em Parque Nacional Marinho e 70% de sua superfície passou a ser considerada APP – Área de Preservação Permanente. Em 2001, a UNESCO – Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura, declarou o Arquipélago de Fernando de Noronha Patrimônio Natural da Humanidade. Como parte da estratégia de conservação ambiental, o Governo do Estado de Pernambuco limita o número de turistas que visitam Fernando de Noronha, cobrando, inclusive, uma Taxa de Preservação Ambiental. De acordo com informações do Site Oficial do Arquipélago de Fernando de Noronha, o valor da taxa em 2019 é R$ 73,52 por dia e deve ser pago no aeroporto no momento do desembarque ou pela internet.

O principal núcleo habitacional do arquipélago é a Vila dos Remédios, localizada na ilha de Fernando de Noronha. Essa ilha possui atualmente cerca de 40 poços e diversos açudes para abastecimento da população. No ano 2000, o Governo do Estado de Pernambuco instalou uma estação de dessalinização de água do mar com o objetivo de aumentar a oferta de água potável. Essa unidade passou  a fornecer cerca de 48 mil litros de água dessalinizada por hora, volume suficiente para abastecer 40% da população de Fernando de Noronha. A empresa responsável pelo abastecimento local de água está desenvolvendo um projeto para a ampliação da oferta de água dessalinizada

Entre as melhorias previstas destacam-se a instalação de novas tubulações, a construção de uma nova estação de bombeamento, a ampliação dos reservatórios, além da troca dos dessalinizadores por modelos mais modernos e eficientes. Com essas melhorias, a produção de água dessalinizada será ampliada em 50%, podendo chegar a 72 mil litros / hora. Existe ainda a expectativa de redução do consumo da energia elétrica utilizada no processo em 30%, algo fundamental para o arquipélago – a geração de energia elétrica em Fernando de Noronha é feita em unidades movidas a óleo diesel, um combustível caro que precisa ser “importado” do continente

A implantação da usina de dessalinização de água do mar em Fernando de Noronha foi um projeto pioneiro no Brasil, que ajudou a diminuir a dependência que a população tinha da água das chuvas. A temporada das chuvas no arquipélago é um evento natural que ocorre com razoável regularidade. Em alguns anos, porém, as chuvas tardavam a chegar, algo que sempre causava muita apreensão entre os moradores – viver isolado em uma ilha oceânica, sem acesso a água potável, é uma ideia bastante incômoda. Lendas e histórias reais de pessoas que morreram de sede em ilhas são bastante comuns no folclore local – uma dessas histórias ocorreu no Atol das Rocas, localizado a apenas 148 km de Fernando de Noronha. 

O Atol das Rocas é formado por pequenas ilhas de origem coralínea, que surgiram no topo de montanhas submarinas pertencentes à mesma formação geológica que originou as ilhas do arquipélago de Fernando de Noronha. Assim como acontece em Noronha, as ilhas do Atol das Rocas não dispõem de nenhuma fonte de água potável. Ao longo da história, ocorreram diversos naufrágios no local e muitos dos sobreviventes acabaram morrendo de sede enquanto aguardavam a chegada do socorro. O caso mais trágico aconteceu com a família do faroleiro da ilha em 1900. Um dos filhos desse homem deixou a torneira do reservatório de água aberta e todo o estoque de água das chuvas acabou se perdendo. Tempos depois, quando o navio da Marinha que levava os suprimentos chegou no Atol das Rocas, encontrou apenas o faroleiro vivo – a mulher e os filhos morreram de sede. 

O caso de Fernando de Noronha é um grande exemplo do uso da água dessalinizada para a complementação dos volumes de água necessários ao abastecimento de uma comunidade isolada. Acima de tudo, é uma garantia contra as eventuais mudanças climáticas globais e suas prováveis alterações nos ciclos de chuva. Ou seja, se as chuvas faltarem, a população tem segurança hídrica e a garantia de água para as necessidades mais básicas – enquanto a ajuda externa não chegar, de sede ninguém vai morrer!

ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE A DESSALINIZAÇÃO DA ÁGUA

filtros de osmose reversa

Ao longo das últimas postagens, apresentamos algumas informações sobre o uso da água dessalinizada em vários países ao redor do mundo. De acordo com informações divulgadas por empresas fabricantes de equipamentos e de usinas para dessalinização da água do mar, existem aproximadamente 14.000 plantas de dessalinização em funcionamento em 150 países diferentes. Cerca de 300 milhões de pessoas destes países bebem e usam água dessalinizada no seu dia a dia – esse número, para efeito de comparação, corresponde a 1,5 vezes a população do Brasil

Esses números mostram que o uso da água do mar para abastecimento de populações, há muito tempo, já deixou de ser uma ideia teórica é já uma realidade. Com o avanço da tecnologia de dessalinização nas últimas décadas e a possibilidade de se usar a energia de fontes renováveis como a fotovoltaica, abre-se uma larga gama de possibilidades para o abastecimento de populações que vivem em cidades e regiões com baixos estoques hídricos. E não estamos falando de pouca gente – trata-se de uma população calculada hoje em mais de 2 bilhões de pessoas em todo o mundo.

O primeiro país a inaugurar uma planta de dessalinização de grande porte para abastecimento da população foi a Ilha de Curaçao, no Sul do Mar do Caribe, em 1928. Essa planta pioneira utilizava o processo de destilação térmica – a água do mar é aquecida até ferver e começar a evaporar – o vapor é interceptado por uma superfície fria, que faz com que a água volte ao estado líquido e livre de impurezas, num processo que lembra o ciclo natural da água. Apesar de funcional, esse processo demanda uma grande quantidade de energia. 

Ao longo das décadas seguintes, o processo de dessalinização da água do mar passou por uma série de aperfeiçoamentos técnicos. Esses projetos foram patrocinados por institutos de pesquisas públicos e privados, especialmente em centros de pesquisas militares ligados às Marinhas de diversos países. Essas instituições buscavam uma tecnologia eficiente para a produção de água potável nos navio de guerra, algo que aumentaria a autonomia das embarcações. O foco principal das pesquisas era o uso de filtros para a retirada do sal dissolvido na água – na década de 1960 surgiram os primeiros sistemas de filtragem por membranas de osmose reversa (vide foto). 

Essas membranas são construídas com polímeros que contém furos microscópicos, suficientemente pequenos para reter as partículas de sal e suficientemente grandes para a passagem das moléculas de água. Os furos têm um diâmetro de 0,2 nanômetros (1 nanômetro equivale a um bilionésimo de metro). Essa tecnologia é bem mais eficiente que a destilação térmica e gasta de 10 a 15 vezes menos energia para produzir a mesma quantidade de água dessalinizada. Nas usinas de dessalinização por osmose reversa, a energia elétrica é usada basicamente nos processos de bombeamento e, principalmente, na pressurização da água, que assim é forçada a atravessar a membrana. 

As maiores plantas de dessalinização de água do mar atualmente em operação estão instaladas no Oriente Médio, uma das regiões mais secas do mundo. Uma das maiores e mais modernas plantas fica localizada na costa da Mar Mediterrâneo, próximo da capital do Estado de IsraelTel Aviv. Essa usina produz atualmente mais de 600 milhões de litros de água dessalinizada por dia, o que é suficiente para abastecer 1/6 da população israelense. Utilizando gás natural como fonte de energia primária, essa usina israelense tem um custo de produção de US$ 0,70 por metro cúbico de água dessalinizada, um dos mais baixos do mundo. 

Outro exemplo de produção de água dessalinizada em grande escala é a planta de Ras al-Khair, no leste da Arábia Saudita. Essa planta tem capacidade para produzir 1 bilhão de litros de água dessalinizada por dia. A Arábia Saudita tem um grande território, com 2,1 milhões de km², formado basicamente por solos desérticos e ricos em petróleo, porém, com pouquíssimas fontes naturais de água. A implantação de usinas de dessalinização no país foi a forma encontrada para abastecer uma população que vinha crescendo rapidamente e atualmente está na casa dos 33 milhões de habitantes. 

Além dos custos financeiros decorrentes da compra de equipamentos e construção das plantas das usinas de dessalinização, os custos de operação são determinantes para a implantação de uma dessas unidades em uma região ou comunidade. Cerca de metade dos custos de operação se referem aos custos de energia – elétrica ou térmica (combustíveis fósseis). Esse custo terá reflexos diretos no valor da conta de água repassado para a população. Em uma das postagens dessa série, foi citado o caso da Ilha de Malta, localizada no Mar Mediterrâneo ao Sul da ilha italiana da Sicília. O custo proibitivo da conta de água força toda a população a reduzir o consumo de água em suas casas ao máximo possível. 

Um outro aspecto que deve ser levado em conta nos projetos para a implantação de plantas de usinas de dessalinização de água é o meio ambiente. Falando a grosso modo, para cada metro cúbico de água dessalinizada produzido gera-se, pelo menos, cerca de dois metros cúbicos de salmoura, água com altos níveis de concentração de sal e que precisa ser descartada no meio ambiente. Quando um ambiente marinho recebe uma descarga de água com altos níveis de sal, toda a vida marinha local fica prejudicada. Um outro problema desses efluentes é a alta temperatura (falando das unidades que usam o processo de destilação térmica), que pode ser altamente prejudicial a toda a cadeia de vida marinha de uma região costeira próxima do ponto de descarte dessa água. 

Um projeto piloto e bastante promissor, em fase de implantação na África do Sul, utiliza a energia elétrica produzida por uma central fotovoltaica para alimentar uma pequena usina de dessalinização de água do mar por osmose reversa. Utilizando exclusivamente a energia solar, essa unidade tem capacidade para produzir até 100 mil litros de água dessalinizada por dia, volume suficiente para atender a metade das necessidades da pequena cidade costeira de Witsand. Em caso de necessidade, a unidade pode ser conectada à rede elétrica local, passando a produzir água durante as 24 horas do dia, alcançando uma produção de até 300 mil litros diários. Essa combinação de usinas de dessalinização de pequeno porte e o uso de energia fotovoltaica pode ser altamente viável em localidades de clima árido e semiárido, com alta insolação e baixa disponibilidade hídrica, o que é o caso da região Nordeste do Brasil. 

A partir das próximas postagens vamos falar sobre alguns projetos já implantados e outros em estudo para implantação de usinas de dessalinização em diferentes regiões brasileiras.