DIKEROGAMMARUS VILLOSUS – O CAMARÃO ASSASSINO QUE INVADIU OS GRANDES RIOS DA EUROPA

Dikerogammarus villosus. Photo by S. Giesen (1998).

Em uma postagem anterior falamos da invasão do mexilhão-dourado (Limnoperna fortunei) em rios brasileiros e de países vizinhos da América do Sul. Esse molusco bivalve é originário de rios do Sudeste e Leste Asiático, tendo chegado ao continente americano através da problemática água de lastro de navios cargueiros. Detectado pela primeira vez em 1991 na Praia de Bagliardi na Argentina, o mexilhão-dourado rapidamente começou a se espalhar pela bacia hidrográfica do rio da Prata. Vale lembrar que essa espécie exótica não possui praticamente nenhum predador natural na América do Sul e suas populações cresceram de forma exponencial.

No Brasil, já foram encontrados espécimes do mexilhão-dourado em rios do Pantanal Mato-grossense, da bacia hidrográfica do rio Paraná e em alguns pontos do rio São Francisco. Uma das regiões brasileiras com maior incidência dessa espécie invasora é o Complexo Lagunar Guaíba / Lagoa dos Patos. É apenas questão de tempo até que o mexilhão-dourado invada os rios da Bacia Amazônica.

A invasão de ecossistemas por espécies invasoras, infelizmente, é uma triste realidade em todo o mundo. Introduzidas de forma consciente ou acidental, espécies exóticas provocam grandes impactos ambientais e podem levar espécies nativas a extinção. Um exemplo dos impactos criados pela introdução de uma espécie exótica pode ser visto em diversos rios da Europa, onde a chegada de um camarão originário das águas de rios ao largo dos Mares Negro e Cáspio, na Eurásia, está desequilibrando diversos ecossistemas. Falamos do Dikerogammarus villosus – o camarão assassino que está devastando os grandes rios da Europa.

O Dikerogammarus villosus é uma espécie de camarão que sempre foi muito comum em rios da região do Mar Negro e do Mar Cáspio. Essa região fica entre a Europa Oriental e a Ásia, sendo comumente chamada de Eurásia. O animal é um crustáceo anfípode de água doce, que pode atingir o tamanho de até 30 mm e possui mandíbulas relativamente grandes, uma característica que torna esse pequeno camarão um predador bastante eficaz. A espécie possui um crescimento rápido, atingindo a maturidade sexual entre 4 e 8 semanas.

Em seu nicho ecológico natural, esses camarões não são uma espécie abundante e se alimentam de uma grande variedade de invertebrados, insetos, ovas e pequenos peixes, vermes e outras espécies que habitam as comunidades bentônicas. Fora de seu ambiente natural, as populações da espécie crescem desordenadamente e passam a competir agressivamente com as espécies nativas. Esse camarão possui uma grande tolerância às variações de temperatura, podendo colonizar águas com temperaturas entre 0 e 30° C, com baixas concentrações de oxigênio e níveis de salinidade de até 20%. Trata-se de uma espécie oportunista, que se adapta facilmente a novos ambientes em rios, lagos e canais, comendo qualquer alimento que encontre pela frente e que possa triturar com suas mandíbulas.

A dispersão geográfica dos camarões assassinos teve início nos tempos da antiga URSS -União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, período em que a navegação fluvial e lacustre ganhou uma enorme importância para os países do Bloco Comunista. Uma das mais importantes obras do setor foi a construção de um canal de ligação entre os rios Volga e Don, que passou a permitir a navegação entre o Mar Cáspio, o maior mar interno do mundo, o Mar de Azov e, por fim, o Mar Negro. Viajando dentro dos tanques de lastro de embarcações de transporte de passageiros e de cargas, os camarões primeiro consolidaram os seus domínios nos rios que desaguam nas águas desses três Mares. O passo seguinte foi o início de uma “grande operação” de desembarque em águas de grandes rios europeus, façanha que se tornou possível através da intensa navegação na Hidrovia do rio Danúbio.

A Hidrovia do rio Danúbio é uma das mais importantes do mundo, tanto em termos de volumes de cargas e de pessoas transportadas todos os anos quanto pelo número de países cortados por ela: Alemanha, Áustria, Eslováquia, Croácia, Sérvia, Hungria, Bulgária, Romênia e, na região do Delta do Danúbio, um trecho da Ucrânia nas margens do Mar Negro. A lista de países fica ainda maior quando se incluem os afluentes navegáveis da bacia hidrográfica: República Tcheca (rio March), Bósnia-Herzegovina (rio Save) e Moldávia (rio Pruth). A maior parte dos países listados não têm acesso direto ao mar, algo que representaria um enorme obstáculo ao seu desenvolvimento econômico, uma vez que o comércio marítimo é fundamental para os grandes países. A intensa movimentação de embarcações na Hidrovia do Danúbio foi o caminho de entrada do Dikerogammarus villosus na Europa Central.

A partir de 1992, com a inauguração do Canal Meno-Danúbio, o caminho para a invasão total dos camarões assassinos foi consolidado. Essa obra, um canal com 171 km de extensão, imaginada ainda no reinado do Imperador Carlos Magno há cerca de 1.200 anos, permitiu a integração entre as Hidrovias dos rios DanúbioReno através do rio Meno (Main em alemão), que é navegável por 388 km entre as cidades de Bamberg, na Baviera, e Wiesbaden, sua foz no rio Reno. Essa interligação passou a permitir a navegação direta por via fluvial entre a cidade romena de Constança, no Mar Negro, e o porto holandês de Rotterdam, no Mar do Norte (Oceano Atlântico).

A partir dessa data, o Dikerogammarus villosus passou a ser encontrado nos principais rios da Europa Ocidental, onde se inclui o Ródano, Loire, Sena, Mosela, Reno e Meno, além de ser encontrado nas águas de diversos rios que desaguam no Mar Báltico. Em 2010 surgiram os primeiros relatos sobre a chegada dos camarões assassinos na Inglaterra e no País de Gales. Um dos grandes temores atuais das autoridades é uma possível migração dos Dikerogammarus villosus para a região dos Grande Lagos, na América do Norte. É intenso o trafego de embarcações de carga entre os portos da Europa e da América do Norte, com enormes possibilidades dos camarões assassinos serem carregados junto com as águas dos tanques de lastro.

Um exemplo da agressividade dos camarões assassinos pode ser vista nos rios e canais da Holanda – o Dikerogammarus villosus está ameaçando tanto a sobrevivência de espécies nativas do país como o Gammarus duebeni, quanto espécies invasoras como o Gammarus tigrinus, uma espécie originária da América do Norte, que chegou ao continente Europeu também através da água de lastro de navios. No rio Reno, onde está em pela operação a segunda mais importante hidrovia da Europa, a chegada dos camarões assassinos já levou à extinção de uma série de pequenos crustáceos nativos, alterando profundamente a cadeia alimentar de importantes espécies comerciais de peixes desse rio, incluindo-se na lista as enguias-europeias (Anguilla anguilla), sobre as quais falamos em postagem anterior.

E como é comum entre as espécies invasoras, os camarões Dikerogammarus villosus tem um sabor que não agrada os grandes predadores naturais das águas dos rios europeus. Sem inimigos naturais e com um apetite voraz, a espécie segue aumentando sua população e dizimando as espécies nativas que ocupam o seu mesmo nicho ecológico. Enquanto não se identificar um predator natural local, os pequenos camarões assassinos prosseguirão e aumentarão ainda mais os seus domínios nas águas de rios por todo o continente.

Com espécies invasoras é assim: elas invadem e dominam novos ambientes com relativa facilidade, podendo alterar completamente a biodiversidade nativa. Já para combatê-las, as coisas se tornam muito complicadas e, muito raramente, se consegue obter qualquer êxito.

O DESAPARECIMENTO DAS ENGUIAS DE RIOS EUROPEUS, ASIÁTICOS E AFRICANOS

Anguilla_anguilla

Ao longo de uma sequência de postagens publicadas no último mês, falamos dos impactos da poluição e da degradação dos recursos hídricos na vida de espécies aquáticas e semiaquáticas em todos os cantos do Brasil. Esse, porém, não é um mal que afeta apenas as águas de rios brasileiros – esse problema se repete em rios de todo o mundo e inúmeras espécies estão ameaçadas de extinção. Um dos exemplos mais intrigantes é o das enguias-europeias, uma espécie de peixe que já foi muito comum em rios do continente, mas que está ficando cada vez mais rara. 

A enguia-europeia (Anguilla anguilla) é uma espécie de peixe eurialino, isto é, que suporta variações acentuadas na salinidade da água. A espécie nasce nas águas salgadas do Mar dos Sargaços, uma extensa região do Atlântico Norte entre a Europa e a América do Norte, migrando depois para as águas frescas dos rios da Europa, Norte da África e também para rios que desaguam no Mar Negro, na Ásia. Existem cerca de 15 espécies descritas pela ciência (muitas espécies tem sua classificação contestada por alguns especialistas), vivendo em águas tropicais e temperadas de rios e oceanos de todo o mundo. 

As enguias possuem um corpo cilíndrico e longo, muito parecido com as serpentes marinhas. Os animais possuem nadadeiras peitorais bem desenvolvidas e uma única nadadeira na parte traseira do corpo. A espécie apresenta um grande disformismo sexual, com fêmeas que podem atingir até 1,5 metro de comprimento e machos com apenas 60 cm. O ciclo de vida completo das enguias-europeias sempre foi um grande mistério – durante séculos não se soube ao certo como e onde se dava a reprodução da espécie. Filhotes recém-nascidos e enguias jovens nunca haviam sido vistas por ninguém.

O grande mistério sobre o local de nascimento das enguias-europeias só começou a ser desvendado em 1920, quando o biólogo dinamarquês Johannes Schmidt descobriu que esses animais se reproduziam na região do Mar dos Sargaços. Depois de viver toda a sua vida adulta nas águas de rios continentais, as enguias primeiro descem os rios até atingirem as águas dos oceanos e dali nadam em direção ao Mar dos Sargaços, numa jornada que pode durar até seis meses. O Mar dos Sargaços é uma região alongada do Atlântico Norte, circundada por diversas correntes oceânicas: do Golfo, do Atlântico Norte, das Ilhas Canárias e Equatorial do Atlântico Norte. 

Após realizar essa grande jornada migratória, onde os animais nadam sem parar e sem se alimentar, as exaustas enguias buscam parceiros sexuais para o acasalamento, morrendo logo em seguida. Os ovos fecundados a uma profundidade de cerca de 400 metros passam a flutuar e eclodem próximo da superfície. As larvas, chamadas leptocéfalos, possuem um corpo achatado e serão arrastadas pelas correntes marinhas na direção das costas da Europa por um período entre dois e três anos. Ao longo dessa jornada em sua fase inicial da vida, cerca de 80% das larvas morrerão ou serão predadas por outras espécies marinhas.

Após ter atingido as águas litorâneas, os animais crescerão até atingir um estágio do seu ciclo de vida onde são chamadas de enguias-de-vidro ou meixão. Contando com um tamanho da ordem de 8 cm, os animais passarão por alterações em sua fisiologia e se tornarão tolerantes à uma vida em águas salobras. Isso lhes permitrá passar a viver em regiões estuarinas e de lagunas costeiras ao largo das costas da Europa, Norte da África e regiões circunvizinhas ao Mar Negro. 

Nesses novos ambientes, os animais mais aptos e que conseguirem sobreviver, passarão por um processo de metamorfose: após atingir um tamanho da ordem de 15 cm, os animais passam a apresentar uma cor verde-acastanhada no dorso e amarelada no ventre, característica que faz com que os animais passem a ser conhecido como enguias-amarelas. É nessa fase que as enguias passam por um período de forte crescimento, se alimentando de pequenos caranguejos, camarões, peixes e vermes durante o período do verão. Com a chegada do inverno, as enguias-amarelas se enterram na areia e ficam meses sem se alimentar. 

Na última metamorfose de suas vidas, as enguias passam para a fase adulta, quando o corpo assume uma cor negra no dorso e prateada no ventre, passando a ser chamadas genericamente de enguias-prateadas. É a partir dessa fase que os animais passam a tolerar uma vida em ambientes de água fresca. Essa passagem ocorre quando os machos apresentam um tamanho de aproximadamente 50 cm e as fêmeas cerca de 60 cm. Essa fase também é marcada pela migração dos animais para as calhas dos rios, onde viverão até atingir o ápice de sua maturidade sexual, quando vão iniciar a sua última grande jornada para a procriação no Mar dos Sargaços. 

As enguias-europeias possuem uma carne considerada saborosa e rica em teores de gordura saturadas, que podem representar até 60% do peso do animal. Essa importante fonte nutricional e calórica sempre foi muito explorada pelas populações, o que sempre levou à pesca dos animais em todas as fases de sua vida. As enguias-de-vidro ou meixões, por exemplo, são muito apreciadas nas culinárias de Portugal e da Espanha, o que resulta numa superexploração dos animais nessa fase da vida. Outras fontes de problemas para a espécie são a construção de represas, o que impede a migração rumo às cabeceiras dos rios, e a poluição. A somatória de todos esses problemas vem tendo como consequência uma redução drástica das populações de enguias-europeias

Um exemplo da rarefação das enguias pode ser comprovado no rio Tâmisa, o principal curso d’agua da Inglaterra. Poluído desde o final do século XVIII, quando teve início a chamada Revolução Industrial, o rio Tâmisa passou por um profundo processo de despoluição a partir de meados do século XX e que durou cerca de 50 anos. O auge desse processo se deu com o retorno dos salmões ao rio Tâmisa, além de outras 125 espécies de peixes que haviam desaparecido das suas águas desde a década de 1950. As populações de enguias-europeias, que também haviam retornado ao rio e estavam em crescimento, declinaram abruptamente e hoje representam apenas 5% dos valores encontrados em 2009. O consumo da carne do peixe, que é popular entre a população de Londres desde o século XVIII, agora depende da importação de enguias da Irlanda

O complexo e delicado ciclo de vida das enguias-europeias agora tem enfrentado um problema surreal – resíduos de cocaína presentes nas águas residuárias dos esgotos tratados das cidades tem atingido o curso dos rios e vem causando uma série de problemas físicos nos peixes. Esses resíduos se juntam a outros originados no lixo, em fertilizantes e herbicidas, além de traços de anticoncepcionais e antibióticos. Quando expostas a esse verdadeiro coquetel de produtos químicos, as enguias passam a apresentar uma forte degeneração muscular, o que fatalmente irá impedi-las de realizar as suas derradeiras migrações para procriação. 

Estudo feito no trecho londrino do rio Tâmisa encontrou concentrações de benzoillecgonina (um resquício metabólico que sai na urina de usuários de cocaína) da ordem de 17 bilionésimos de grama por litro de água. Em testes realizados em laboratório, enguias foram expostas a essa concentração de resíduos e passaram a apresentar degeneração muscular em poucos dias.  Mesmo após serem retiradas dessa água contaminada e colocadas em água limpa, essas enguias não conseguiram se recuperar. Sem suas perfeitas condições musculares para enfrentar uma jornada de milhares de quilômetros em rios e mares até chegar na região do Mar dos Sargaços para procriar, a sobrevivência das enguias-europeias no longo prazo é incerta.

Para encerrar – um estudo recente feito no rio Pó (o nome é esse mesmo – não é trocadilho), o principal do Norte da Itália, mostra o tamanho do problema – as medições encontraram um volume diário equivalente a 4 kg de cocaína nas águas do rio. As enguias que vivem nessas águas têm tudo para ficar “muito doidonas” e doentes. 

UMA BREVE HISTÓRIA DAS ENCHENTES NA CIDADE DO RECIFE

Enchentes no Recife

Nesses últimos dias, a Região Metropolitana do Recife, mais uma vez, está sendo assolada por fortes chuvas e pelas já tradicionais enchentes de sempre. Uma das consequências desse excesso de chuvas são os deslizamentos de encostas – até a última sexta-feira (26/07/2019), já havia sido contabilizadas 12 mortes, a maioria formada por vítimas desses deslizamentos. 

A história da cidade do Recife é muito parecida com a de outras grandes cidades localizadas ao longo da extensa costa do Brasil. Já nos primeiros anos após o descobrimento, exploradores portugueses passaram a percorrer o nosso litoral, mapeando a costa, batizando pontos geográficos e, principalmente, buscando locais adequados para fundear os grandes navios. Apesar de muito grande, a costa brasileira não possui quantidades expressivas de áreas naturais com condições técnicas ideais para a construção de portos, especialmente baías e estreitos entre ilhas e o continente. Em grande parte do litoral do Nordeste, as dificuldades para fundear os navios eram aumentadas pela presença de grandes formações de recifes de coral ao largo da costa. 

No litoral de Pernambuco, os antigos cartógrafos haviam identificado uma região que combinava duas características excepcionais para a fundação de uma grande cidade – uma área abrigada na foz de um grande rio e com grande capacidade para receber embarcações de alta tonelagem. Exatamente ao lado, um terreno elevado, que possibilitava o monitoramento de uma grande extensão de terras e mares. No alto dessas ladeiras, Duarte Coelho, o Donatário da Capitânia de Pernambuco, fundou a cidade de Olinda em 1535. Na carta dos direitos feudais – o foral, concedido por Duarte Coelho em 1537, havia uma referência a um certo “Arrecife dos Navios”, uma pequena vila de marinheiros e pescadores, que se transformou no embrião da futura Cidade do Recife

Na época da fundação da Capitânia de Pernambuco, o açúcar era um dos produtos mais valorizados do mercado mundial e o principal objetivo do Reino de Portugal para a sua grande Colônia americana era transformá-la num dos maiores centros de produção açucareira do mundo. Nesta época, Portugal já tinha perto de quatrocentos anos de experiência com o produto. Existem documentos históricos que comprovam a existência de plantações de cana-de-açúcar (Saccharum officinarum) na região do Algarves, Sul de Portugal, desde o ano de 1159, quando Dom João I arrendou terras para um mercador genovês de açúcar – João de Palma

Em 1425, as primeiras mudas de cana chegaram na Ilha da Madeira, que rapidamente se tornou um grande centro de produção e exportação de açúcar. Um detalhe histórico interessante é que o italiano Cristóvão Colombo, que se tornaria o célebre navegador a serviço da Coroa de Espanha que descobriria a América, começou sua carreira como um marinheiro em navios que transportavam o açúcar da Ilha da Madeira para a Europa. Em 1460, os canaviais chegaram ao Arquipélago dos Açores e em 1493 nas Ilhas São Tomé e Príncipe na costa africana. O desembarque da planta em terras brasileiras seria apenas uma questão de tempo. 

A Região Nordeste do Brasil, já no início do século XVII, passou a ser considerada como uma das maiores produtoras mundiais de açúcar. Um relatório do ano de 1620 das Autoridades Coloniais informava que “em três Capitanias (Pernambuco, Itamaracá e Paraíba), havia uma produção de 500 mil arrobas de açúcar (equivalente a 7,5 milhões de toneladas), que bastaria para carregar todos os anos 130 a 140 naus.” O relatório prossegue informando a área ocupada com o cultivo da cana-de-açúcar: “50 ou 60 léguas de costas ocupadas (entre 300 e 360 km), e dentro de 10 léguas para o sertão (60 km).” Feitos os devidos cálculos, chegamos a uma área total entre 18 e 21,6 mil km² – para efeito de comparação, a área do Estado de Sergipe corresponde a 22 mil km². As primeiras notícias sobre canaviais na Região Nordeste datam do ano de 1535, o que demonstra o vertiginoso crescimento das atividades açucareiras. 

Para abertura dos campos agrícolas onde seriam formados os canaviais, grandes extensões de mata foram derrubadas a “ferro e a fogo” – e é justamente aqui que tem início a história das grandes enchentes na região conhecida com Zona da Mata. Sem a proteção da cobertura vegetal nativa, as águas das fortes chuvas passariam a correr diretamente para a calha dos rios, levando junto grandes volumes de sedimentos dos solos desnudos. Esse processo contínuo criou uma série de problemas ambientais e econômicos: esses sedimentos carreados pelas chuvas formavam os solos férteis de massapê – as terras perdiam rapidamente a fertilidade, o que reduzia a produtividade dos canaviais. Para repor os estoques de terras férteis, era necessária a derrubada contínua de novas áreas de mata, o que amplificava ainda mais os problemas de erosão de solos e assoreamento dos canais de rios como o Capibaribe, Beberibe, Una e Ipojuca

As enchentes na região passaram a fazer “parte da paisagem”. O primeiro registro histórico de uma enchente no Capibaribe data do ano de 1632, pouco tempo depois da invasão holandesa. Registros da época informam que as chuvas foram muito fortes, “causando perdas de muitas casas e vivandeiros estabelecidos às margens do Rio Capibaribe”. Anos mais tarde, em 1638, o Conde Maurício de Nassau autoriza a construção da primeira barragem do Rio Capibaribe – o Dique dos Afogados, com o objetivo de proteger a cidade do Recife das constantes enchentes. Há registros históricos de uma infinidade de enchentes na cidade: 1824, 1842, 1854, 1862, 1869, 1914, 1920, 1960, 1966 (vide foto), 1970, 1975, 1977, 2004 e 2005 – a lista é muito maior e esses são apenas alguns exemplos.  

Com a forte urbanização das cidades da Zona da Mata a partir das primeiras décadas do século XX, os problemas foram sendo ampliados – grandes trechos de encostas de morros passaram a ter seus fragmentos florestais derrubados para a construção de moradias populares. Sem um planejamento urbanístico adequado e sem uso de técnicas construtivas apropriadas às características técnicas dos solos, centenas de bairros foram surgindo nos morros do Recife, Olinda e outras cidades da Região Metropolitana. Os desmoronamentos de encostas e o soterramento de casas e pessoas nos períodos das chuvas passaram a ser comuns, aumentando os já tradicionais dramas das enchentes. 

Depois de todo esse grande conjunto de alterações no meio físico, que associam a devastação das áreas florestais, o assoreamento dos canais de drenagem e, mais recentemente, a ocupação das encostas de morros com habitações, a única forma de se amenizar os problemas criados pela chegada das chuvas é a construção de grandes obras de infraestrutura, como as barragens de armazenamento de água. Se efetivamente construídas, essas barragens resolveriam dois problemas simultaneamente: acumulariam a água excedente das chuvas, evitando as enchentes, ao mesmo tempo que garantiriam estoques de água para o abastecimento das populações nos períodos de seca

Em Pernambuco, Estado que está entre os mais atingidos pelas fortes chuvas nesse ano, estava prevista a construção de barragens para o controle de cheias nos rios Una, Pirangi, Sinharém e Panelas. De todos os projetos anunciados, somente a Barragem de Serro Azul, no rio Una, ficou pronta. Os demais projetos – Igarapeba, Panelas II, Gatos e Barra de Guarabirapa, ou não saíram do papel ou acabaram com obras iniciadas e não concluídas. Além da conclusão dessas obras, também seria necessária a remoção de milhares de famílias que vivem em áreas de risco nas encostas dos morros das cidades. Como praticamente nada do deveria ter sido feito foi efetivamente feito, as enchentes, os deslizamentos de encostas e as mortes provocadas pelas chuvas continuam sendo uma dura realidade na vida da Região Metropolitana do Recife. 

O drama das enchentes é o resultado de centenas de anos de agressões sistemáticas ao meio ambiente e não vai ser de uma hora para outra que as coisas irão se resolver – muito trabalho terá de ser feito para resolver todos esses problemas já existentes e outros que ainda virão. 

AS CHUVAS, OS DESLIZAMENTOS E AS MORTES PROVOCADAS PELAS CHUVAS NA REGIÃO METROPOLITANA DO RECIFE

Desmoronamento de Morro no Recife

Falar de tragédias provocadas pelas chuvas, infelizmente, é coisa frequente aqui no blog ano após ano. Depois do rompimento de uma barragem de armazenamento de água há poucas semanas atrás na região Nordeste do Estado da Bahia, as fortes chuvas agora estão castigando a faixa litorânea Leste da Região Nordeste. Uma das regiões mais castigadas vem sendo a Região Metropolitana do Recife, onde já se registraram 12 mortes. Vamos falar um pouco sobre isso hoje. 

Há cerca de 20 dias atrás, minha irmã organizou um jantar em sua casa para receber alguns dos nossos primos que vemos muito raramente. Entre os presentes estava uma prima que mora na Holanda há muitos anos; ela estava acompanhada da filha, que tem cerca de 8 anos, e do marido, um pernambucano da Cidade do Recife, que mora em Amsterdam desde criança. Enquanto conversávamos, esse “primo” fez uma pergunta sobre a sua cidade natal que, bem pôr acaso, eu conheço muito bem. Há alguns anos atrás, eu publiquei uma extensa monografia, onde mostro os impactos negativos da cultura da cana de açúcar e da criação de bois no trecho nordestino da Mata Atlântica e da Caatinga – o Estado de Pernambuco está bem no centro de todos esses problemas.  

Em umas duas horas de conversa, falei desde a chegada de Duarte Coelho, o primeiro donatário da Capitânia, da cana e do início do Ciclo do Açúcar, da invasão holandesa e dos grandes feitos de Maurício de Nassau na Suickerland, da destruição do trecho pernambucano da Mata Atlântica, das boiadas do sertão nordestino, entre muitas outras histórias. 

Ontem, vi uma postagem desse “primo” numa rede social, com o texto em holandês e com fotos de ruas alagadas – ele e a família foram visitar parentes no Recife e estavam presos numa residência há dois dias, sem energia elétrica e com dificuldades no acesso à rede de telefonia e a internet. Numa postagem recém-publicada, ele informou que as águas estavam baixando e que era hora de ajudar os familiares a fazer uma faxina no condomínio. Repensando cuidadosamente toda a nossa conversa semanas atrás, eu percebi que esqueci de falar das grandes enchentes que assolam a capital pernambucana ano após ano – uma falha imperdoável. 

Enchentes catastróficas na cidade do Recife não são novidade para ninguém – o primeiro registro histórico de uma enchente no Capibaribe data do ano de 1632, pouco tempo depois da invasão holandesa. Registros da época informam que as chuvas foram muito fortes, “causando perdas de muitas casas e vivandeiros estabelecidos às margens do Rio Capibaribe”. Anos mais tarde, em 1638, o Conde Maurício de Nassau autoriza a construção da primeira barragem do Rio Capibaribe – o Dique dos Afogados, com o objetivo de proteger a cidade do Recife das constantes enchentes. Há registros históricos de uma infinidade de enchentes na cidade: 1824, 1842, 1854, 1862, 1869, 1914, 1920, 1960, 1966, 1970, 1977, 2004 e 2005 – a lista é muito maior e estou apenas citando alguns casos

Entre os dias 17 e 18 de julho de 1975, a cidade do Recife viveu a maior catástrofe natural da sua história: o transbordamento do rio Capibaribe atingiu 31 bairros e alagou 80% da superfície da cidade – 350 mil pessoas foram desalojadas de suas casas e, tragicamente, 104 pessoas morreram. As fortes enchentes também atingiram outros 25 municípios da bacia hidrográfica do rio Capibaribe. Esta não foi nem a primeira, nem a última grande enchente do rio Capibaribe, mas sem dúvida é uma das mais trágicas da história. Já se passaram quase 45 anos desde essa grande tragédia e, desgraçadamente, percebemos que a cidade do Recife e toda a sua Região Metropolitana ainda não estão preparadas para conviver com a temporada das chuvas, um fenômeno natural que se repete todos os anos. 

Até a noite de ontem, dia 25/07/2019, já haviam sido confirmadas 12 mortes, a grande maioria provocada por deslizamentos de encostas de morros (vide foto). Dessas mortes, 4 ocorreram em Olinda, cidade famosa pelos seus morros e ladeiras. A ocupação irregular das encostas dos morros da cidade está na origem dessas tragédias – sempre que as chuvas começam na região, a população já espera pelo pior. Em outra cidade da Região Metropolitana – Abreu e Lima, as aulas estão suspensas e cerca de 6 mil alunos foram afetados. Os serviços públicos estão muito prejudicados pela falta de funcionários, que não conseguem chegar aos seus locais de trabalho por causa dos alagamentos e paralização dos sistemas de transporte. 

Em outra cidade, Vicência, a grande preocupação é a barragem da adutora do Siriji, que atingiu o seu nível máximo e está “sangrando” desde o dia 23/07. O risco de rompimento da estrutura não está descartado e famílias que vivem nas áreas de risco estão sendo removidas para áreas mais seguras sob orientação da Defesa Civil. Em Igarassu, pelo menos 6 casas localizadas em áreas de risco já desabaram. Existem cerca de 100 pessoas abrigadas em escolas municipais da cidade. De acordo com informações da Secretaria de Educação e Esportes de Pernambuco, 155 das 351 escolas da Rede Estadual de Ensino na Região Metropolitana do Recife estão com as atividades suspensas. 

A ocupação irregular de encostas de morros e das áreas de várzea é uma triste realidade na maioria das grandes e médias cidades brasileiras. O intenso processo de urbanização vivido pelo país nas últimas décadas não vem sendo acompanhado por políticas públicas para a construção de moradias populares. E sem um ordenamento do crescimento das cidades, explodiram os casos de ocupações irregulares, com favelas e cortiços surgindo nos lugares mais inadequados. Tradicionalmente, os terrenos mais desvalorizados de uma cidade são aqueles localizados nas proximidades dos córregos e áreas de várzeas, lugares sujeitos a alagamentos e enchentes nas épocas das chuvas. As áreas de morros e os terrenos mais acidentados e de difícil acesso também entram nessa lista e, até décadas bem recentes, ainda se encontravam cobertos por vegetação nativa. 

Com o crescimento vertiginoso das cidades nas últimas décadas, essas áreas passaram a ser intensamente ocupadas, seja a partir da invasão de áreas públicas e privadas por favelas, seja pela formação de loteamentos irregulares, onde os terrenos eram vendidos a “preços” populares e parcelados a “perder de vista”. As precárias condições técnicas desses terrenos para a construção de moradias, que vão da declividade excessiva e baixa resistência dos solos até as dificuldades de drenagem nas áreas excessivamente planas, foram grandemente pioradas pelas construções.  

A supressão de remanescentes florestais e o corte dos terrenos nas encostas de morros para a construção de casas está na origem da maioria dos desmoronamentos que assistimos na época das chuvas. Quando os solos desses morros ficam saturados por água, tem início processos de escorregamentos, levando grandes volumes de lama, pedras e construções “morro abaixo”, soterrando construções localizadas nas partes mais baixas. Nos terrenos planos das antigas áreas de várzea, são as enchentes que provocam as grandes tragédias. Sem espaço na calha dos córregos e rios, as águas das chuvas invadem as ruas e as casas sem pedir licença, causando todos os tipos de problemas para as populações pobres que, sem outras opções, passaram a viver nesses locais. 

Na Região Metropolitana do Recife, todos esses problemas são agravados por uma longa história de degradação ambiental – desde o início da colonização da região, a partir de década de 1530, houve uma intensa derrubada da cobertura vegetal original, a Mata Atlântica, e um intenso processo de assoreamento dos corpos d’água. Sem a vegetação para proteger os solos e com os canais naturais de drenagem completamente assoreados, temos a receita perfeita para as grandes enchentes e os desmoronamentos de encostas de morros.  

E mais uma vez, os cerca de 4 milhões de pernambucanos que vivem nessa região ficam sujeitos às enchentes, aos riscos de soterramento, às doenças de veiculação hídrica e sem saber a quem recorrer. 

O DESAPARECIMENTO DE ESPÉCIES DE ANFÍBIOS EM TODO O MUNDO

Sapo

Vamos começar a postagem de hoje com um pouco de poesia: 

Enfunando os papos,  
Saem da penumbra,  
Aos pulos, os sapos.  
A luz os deslumbra.  
 
Em ronco que aterra,  
Berra o sapo-boi:  
– “Meu pai foi à guerra!”  
– “Não foi!” – “Foi!” – “Não foi!”. 

Esses são os versos iniciais da antológica poesia Os Sapos, uma das obras primas do pernambucano Manoel Bandeira, um dos maiores poetas brasileiros de todos os tempos. A poesia foi escrita em 1919 e foi lida num das sessões da Semana de Arte Moderna de 1922. Manoel Bandeira foi convidado a participar do evento, mas não pode comparecer devido a problemas de saúde. Com uma linguagem bem popular e muita ironia, o modernista Bandeira se opôs ao rigor gramatical e ao preciosismo linguístico dos poetas tradicionalistas – os parnasianos. Vale a pena ler a poesia completa. 

Começamos com essa alegre poesia como uma introdução a um tema árido – anfíbios de todo o mundo, como nenhuma outra classe animal, são os que mais estão sofrendo com os efeitos do aquecimento global e da degradação da qualidade das águas. A classe dos Anfíbios inclui animais vertebrados como sapos (vide foto), rãs, pererecas, salamandras e cobras-cegas, que vivem entre o meio aquático e o ambiente terrestre. Geralmente, esses animais nascem e passam sua fase inicial da vida dentro da água, passando depois a viver em ambientes terrestres próximos aos corpos d’água. Esses animais normalmente têm uma pele sensível, que precisa ser mantida constantemente úmida. Os sapos costumam ter uma pele mais resistente e seca, o que lhes dá uma maior autonomia em ambientes terrestres. 

Os anfíbios foram os primeiros animais terrestres, tendo evoluído a partir de peixes pulmonados há cerca de 350 milhões de anos atrás. Como herança dessa história evolutiva, os anfíbios tem o seu ciclo de vida dividido em duas fases – uma fase inicial aquática e uma fase terrestre quando adultos. Uma das formas mais comuns de reprodução dos anfíbios (existem cerca de 6 mil espécies de anfíbios com 39 formas diferentes de reprodução), as fêmeas depositam os seus ovos em ambientes aquáticos lênticos (de águas paradas em rios e lagoas), sobre plantas e pedras. Esses ovos são protegidos por uma camada de material gelatinoso. A fecundação dos ovos é feita por jatos de esperma lançados pelos machos. Após o período de incubação, os filhotes eclodem na forma de girinos, formas de vida completamente adaptadas para uma vida aquática, dotadas de guelras e nadadeiras. 

Conforme esses animais vão crescendo, seus corpos passam por um processo de metamorfose, onde surgem as mudanças físicas que determinarão os ambientes onde viverão em sua fase adulta. Sapos e rãs, que pertencem à ordem Anura (sem cauda), desenvolverão patas e pulmões; já as salamandras (ordem Urodela), desenvolverão um corpo com cauda semelhante ao dos lagartos. Os anfíbios da ordem Gymnophiora não possuem patas, como é o caso das chamadas cobras-cegas. Os anfíbios estão presentes nos mais diferentes tipos de ambientes terrestres, inclusive com algumas espécies adaptadas para a vida em regiões desérticas como o sapo do rio Colorado (Bufo Alvarius), uma espécie que vive no Deserto de Sonora, entre os Estados Unidos e o México. A maioria dos anfíbios, entretanto, prefere ambientes chuvosos e úmidos como as florestas. 

Os anfíbios são extremamente sensíveis às mudanças ambientais e são considerados importantes bioindicadores das condições físicas de um ecossistema. Com a destruição de áreas florestais e/ou a partir da elevação da temperatura de uma região, os anfíbios são o primeiro grupo de animais a ser impactados, apresentando redução ou extinção de populações. Com a intensa derrubada de florestas em todo o mundo e com os efeitos do aquecimento global, centenas de espécies de anfíbios correm sérios riscos de extinção. A situação desses animais fica ainda mais crítica devido a intensa poluição e degradação de rios, lagos e represas. 

Os anfíbios desempenham um importante papel dentro da cadeia alimentar de um ecossistema. Esses animais tem nos insetos uma importante fonte de alimentação, ajudando a controlar suas populações. Um destaque importante aqui se dá no controle das populações de mosquitos, insetos transmissores de uma série de doenças aos seres humanos – destacamos aqui o mosquito Aedes Aegypt, transmissor de doenças como a Dengue, a Zica e a Chikungunya. A predação aqui começa com os anfíbios na fase aquática, quando as pupas dos mosquitos são uma ótima fonte de proteína para os jovens.  

Na sua fase adulta, sapos, rãs e pererecas usam a sua língua pegajosa para capturar os mosquitos em voo. Os anfíbios também fazem o papel de presas para uma infinidade de répteis, mamíferos e aves. O súbito desaparecimento ou a redução da população de uma espécie de anfíbios provoca um efeito cascata nas populações de presas como os insetos, que podem aumentar exponencialmente, e também no grupo dos predadores, que perdem uma importante fonte de alimentos. 

Muitas das espécies de anfíbios produzem substâncias venenosas, usadas pelos animais na sua defesa contra predadores. Os seres humanos descobriram a importância de muitas dessas substâncias desde a antiguidade – esses venenos eram usados em pontas de flechas e de lanças, atiradas contra presas e inimigos. Muitas tribos indígenas de todo o mundo ainda se valem dessas substâncias. Em nossos tempos, muitas dessas substâncias têm demonstrado uma grande importância na indústria química-farmacêutica, que tem desenvolvido uma enorme gama de medicamentos derivados dessas substâncias naturais. A extinção em massa de anfíbios em todo o mundo poderá representar uma enorme perda nesses esforços de busca por novos medicamentos e cura de muitas doenças que assolam a humanidade. 

Muitos dos leitores talvez tenham lembranças de tempos antigos, onde era fácil encontrar córregos e pequenos cursos d’água nas cidades, cheios de girinos e pequenos peixes. Na minha infância aqui na cidade de São Paulo, caçar esses pequenos animais era uma das diversões das crianças do meu bairro – existiam dezenas de “minas” e córregos com águas limpas por todos os lados. Com o crescimento da cidade, com a sistemática canalização de cursos d’água e com o aumento da poluição das águas, esses animais simplesmente desapareceram da mancha urbana. A última vez que vi um sapo perdido andando nas ruas da vizinhança foi há mais de 30 anos – em fragmentos de mata que sobraram em algumas regiões e em parques da cidade ainda é possível encontrar alguns remanescentes dessas antigas populações de anfíbios paulistanos. 

Além de todo o empobrecimento ambiental direto, a redução ou desaparecimento dos anfíbios também empobrece a vida de todos nós – a sinfonia noturna feita por esses animais nos rios e lagoas sempre foi um elemento importante na vida das populações humanas de todo o mundo, com forte prença na cultura e no folclore. Manuel Bandeira e seus Sapos que o digam…

O AMEAÇADO PEIXE-BOI DA AMAZÔNIA

Peixe-boi

Essa série de postagens sobre os impactos da degradação das águas sobre a biodiversidade aquática e semiaquática não ficaria completa sem falarmos dos peixes-boi da Amazônia, uma das espécies animais mais ameaçadas do Brasil. Juntamente com seus primos marinhos, os peixes-boi amazônicos sempre foram intensamente caçados por causa da sua saborosa carne vermelha, do forte couro e também pela sua gordura, matéria prima usada para a fabricação de um óleo usado para iluminação pública em séculos passados. 

Eu tenho lembranças de peixes-boi desde a minha mais tenra infância na cidade de São Paulo – no caminho que eu fazia até a escola havia um camelô que vendia uma pomada milagrosa feita com a “autêntica gordura do peixe-boi da Amazônia”. O homem fazia uma interessante performance teatral, apresentando em detalhes as características “mágicas” do produto, que curava de dor de dente a “mau-olhado”. A apresentação era concluída com uma luta entre uma cobra e um lagarto, algo muito tradicional entre os camelôs de São Paulo. Se a pomada milagrosa funcionava ou não, tenho minhas dúvidas – sei que esse homem passou décadas vendendo esse produto no Largo 13 de Maio, em Santo Amaro. 

Os peixes-boi pertencem a ordem dos Sirênios ou Sirenia, uma grande família de mamíferos que sofreu um longo processo evolutivo para uma vida totalmente aquática. Existem registros fósseis de dezenas de espécies desses animais, que viveram em épocas e lugares diferentes em todo o mundo. De todas essas espécies, 5 chegaram aos tempos modernos e 4 ainda sobrevivem em mares e rios

O peixe-boi amazônico (Trichechus inunguis) é a menor entre as espécies existentes atualmente, podendo chegar até 2,5 metros de comprimento e a um peso de até 300 kg. É encontrada nos rios da Bacia Amazônica e também na Bacia do rio Orenoco, a principal da Venezuela. Entre as espécies marinhas, o peixe-boi-marinho ou manatee (Trichetus manatus)  é a espécie encontrada ao longo da costa do Oceano Atlântico desde a Flórida, no Sul dos Estados Unidos, até a Região Nordeste do Brasil. Uma outra espécie, o peixe-boi-africano (Trichetus senegalensis) vive ao longo da costa africana do Oceano Atlântico. Essas espécies podem atingir até 4 metros de comprimento e um peso superior a 800 kg. 

Uma espécie extinta, a vaca-marinha-de-steller (Hydrodamalis gigas), também conhecida como dugongo-de-steller e vaca-marinha-de-bering, habitava uma extensa faixa do Oceano Pacífico entre o Norte do Japão e a costa da Califórnia, nos Estados Unidos. Esses animais atingiam mais de 8 metros de comprimento e até 11 toneladas de peso. A espécie foi descrita pela primeira vez em 1741 pelo naturalista alemão Georg Steller, num momento em que já estava seriamente ameaçada pela intensa caça – em 1768 foi capturado o último exemplar da espécie. 

O quarto e último membro da ordem dos Sirênios ainda vivos é o dugongo (Dugong dugon), que já foi encontrado em uma extensa área de mares tropicais dos Oceanos Índico e Pacífico, mas que atualmente está restrito ao Estreito de Torres, entre o Norte da Austrália e a Nova Guiné, e a região da Grande Barreira de Coral Australiana. Esses animais podem atingir 3 metros de comprimento e mais de 500 kg de peso. Diferente dos seus primos peixes-boi, os dugongos possuem dentes, o que lhes permite comer, além de plantas, pequenos peixes e crustáceos. O nome da espécie vem da palavra malaia duyung, que significa sereia. 

Os primeiros avistamentos de peixes-boi amazônicos por europeus se deram nos primeiros anos do século XVI, quando cartógrafos e exploradores a serviço das Coroas de Espanha e Portugal passaram a vasculhar as extensas terras recém descobertas nas Américas. Nesses primeiros encontros, esses exploradores supersticiosos imaginavam se tratar das mitológicas sereias, criaturas que hipnotizavam os marinheiros com seu canto mágico. Logo depois, descobriram que a carne desses animais era muito semelhante à carne do boi e que sua densa gordura produzia um óleo semelhante ao óleo de baleia, um produto muito valorizado na época medieval e que era usado em lamparinas para a iluminação de casas e ruas. Começou assim a superexploração da espécie.

A caça dos peixes-boi em larga escala teve início em meados do século XVII, quando os padres Jesuítas instalaram as suas primeiras missões na região Amazônica. Esses religiosos chegaram junto com os primeiros contingentes militares de Portugal, que receberam a missão de construir fortificações e assentamentos que garantiriam a posse das terras. Pelo Tratado de Tordesilhas, assinado entre Portugal e Espanha em 1494, todas as terras localizadas a Leste de um meridiano imaginário pertenceriam a Portugal – esse meridiano cruzava o território brasileiro nas proximidades da cidade de Belém do Pará, ao Norte, e da Ilha de Santa Catarina, ao Sul. O Forte Presépio, que foi o embrião da cidade de Belém do Pará, foi uma dessas primeiras construções na região Amazônica. 

A missão principal dos Jesuítas era o contato com os indígenas com o objetivo de convertê-los à fé cristã. Devido aos intensos embates que passaram a ser frequentes entre os militares portugueses e as tribos indígenas, os Jesuítas decidiram criar grandes fazendas para abrigar os índios – esse processo ficou conhecido na história como os “descimentos”. Dentro da filosofia de trabalho dos religiosos, separar os indígenas da floresta e das suas tradições culturais era o caminho mais fácil para civilizá-los e convertê-los ao cristianismo. 

Além de todos os esforços civilizatórios e de educação religiosa, os Jesuítas passaram a treinar os indígenas nas mais diferentes artes e ofícios. Não tardou muito para as fazendas dos Jesuítas se transformarem em grandes centros de produção e exportação dos mais diferentes produtos, indo de móveis e instrumentos musicais fabricados com as excelentes madeiras de lei da Amazônia, tecidos, cestarias, drogas do sertão (especiarias e temperos similares aos produzidos no Extremo Oriente), peixes e carnes salgadas – incluindo aqui o pirarucu, peixe amazônico que era exportado para Portugal com o rótulo de bacalhau, entre outros produtos. 

Um dos destaques da pauta de produtos das fazendas Jesuítas era o óleo feito com a gordura do peixe-boi. Na época do período Colonial brasileiro, a principal fonte de óleo para iluminação eram as baleias, animais caçados impiedosamente em mares de todo o mundo. No Oceano Atlântico Sul, baleeiros ingleses se instalaram nas Ilhas Falkland (as famosas Ilhas Malvinas pleiteadas pela Argentina) ainda no século XVII. Esses baleeiros passaram a capturar as baleias que migravam das águas da Antártida rumo as costas do Brasil, restando poucos animais para serem caçados por baleeiros brasileiros. Com a pouca oferta de óleo de baleia, o produto feito com a gordura dos peixes-boi, amazônicos e também marinhos, passaram a suprir as necessidades das cidades brasileiras e também da Metrópole em Portugal. 

Essa caça intensa se manteve até o final do século XVIII, quando os Jesuítas foram expulsos de todos os territórios de Portugal por ordem do Marques de Pombal, Sebastião José de Carvalho e Melo (1699-1782), um dos mais importantes e controversos políticos da história portuguesa. A partir de meados do século XIX, quando teve início o Ciclo da Borracha na Amazônia, os peixes-boi se transformaram numa importante fonte de proteína animal e de couro para o imenso contingente de seringueiros espalhados pela floresta. Com o colapso da produção do látex a partir de 1910, os seringueiros acabaram transformados em caçadores de animais silvestres, que tinham seus couros e peles altamente valorizados no mercado internacional. 

De acordo com estudos de pesquisadores brasileiros, cerca de 110 mil peixes-boi foram mortos entre 1904 e 1967, quando a caça de animais silvestres foi proibida no Brasil. Isso se refere apenas ao número oficial de animais abatidos para aproveitamento do couro, que foi exportado legalmente no período. A esses números precisam ser somados os animais caçados ilegalmente, especialmente após 1967, e também os animais que foram capturados para consumo da carne pelas populações locais. Mesmo tendo a sua caça proibida, a carne de peixe-boi é muito apreciada pelos “amazônidas” e não é difícil encontrar o produto nos mercados populares. 

Além da caça predatória, o peixe-boi é vítima frequente das redes dos pescadores, onde muitos animais ficam presos e acabam morrendo por afogamento. Um outro problema sério da espécie é o baixo número de filhotes que nascem – a gestação do peixe-boi dura 13 meses, nascendo normalmente um filhote de cada vez, que será cuidado pela mãe ao longo de pelo menos 4 anos até uma nova gestação. Esse baixo crescimento da população de peixes-boi é uma grande ameaça para a sobrevivência de uma espécie com população declinante. Existem atualmente diversos projetos de conservação e institutos de pesquisa que lutam para manter esses simpáticos animais vivendo livres nos rios da Bacia Amazônica. 

A luta pela sobrevivência dos peixes-boi é insana, mas, felizmente, ela agrega um número cada vez maior de pessoas motivadas e instituições de pesquisa. Que continue assim…

AS POUCO CONHECIDAS LONTRAS BRASILEIRAS

Lontra

Na nossa última postagem falamos dos ratões-do-banhado, um grande roedor que já foi muito comum em rios da Região Sul do Brasil e de parte do Estado de São Paulo. Essa espécie foi muito perseguida em décadas passadas por caçadores para o aproveitamento da sua vistosa e macia pelagem. Em nossos dias, os ratões-do-banhado sofrem com a destruição dos seus habitats devido a intensa poluição dos rios e supressão das matas ciliares, locais onde a espécie costuma construir suas tocas. Para piorar a situações dos ratões, a espécie apresenta uma incômoda semelhança com os ratos cinzentos, chamados de ratazanas e gabirus em outras regiões, especialmente pela presença de um grande rabo sem pelos – filhotes de ratões-do-banhado são confundidos com ratos cinzentos e acabam sendo mortos pelas populações. 

A triste situação dos ratões-do-banhado lembra a situação das lontras, uma espécie semiaquática com ocorrência em rios da maioria das regiões brasileiras, que sofre de alguns males parecidos, especialmente a destruição de habitats e a caça predatória para a retirada da sua pelagem. Animais semiaquáticos como as lontras, os ratões-do-banhado, ariranhas e capivaras possuem uma pelagem dupla muito espessa, adaptada para proteger e manter seus corpos aquecidos em suas longas horas passadas em águas frias. Essas peles sempre foram muito procuradas para a confecção de botas, próprias para países com invernos muitos rigorosos.  

No Hemisfério Norte, onde sempre foi comum a caça de animais com características similares como castores, focas e lontras marinhas, a demanda por essas botas “quentes” sempre foi muito grande. A caça de animais silvestres aqui no Brasil era permitida até 1967 e centenas de milhares de animais eram abatidos todos os anos para remoção dos seus couros e peles para exportação. Na lista das espécies mais caçadas encontravam-se as lontras, o que fez a espécie sumir de muitos rios do país. O avistamento de lontras na natureza, que já era muito raro devido aos hábitos noturnos dos animais, ficou ainda mais difícil. 

A lontra é um mamífero carnívoro que pertence à família dos mustelídeos e que é encontrada na Europa, Ásia, África, no Sul da América do Norte e em toda a América do Sul. Existem 13 espécies no total, divididas em 7 gêneros, com inúmeras espécies vivendo em rios e lagos, além de espécies totalmente adaptadas para uma vida em águas marinhas. São exímias nadadoras, com dedos dotados de membranas interdigitais, com capacidade para mergulhos de até 6 minutos e que podem atingir uma velocidade de até 12 km/h. Sua alimentação consiste de peixes, crustáceos, moluscos e répteis, além de aves e pequenos mamíferos com menor frequência. O nome do animal deriva do latim lutra, um epiteto (nome utilizado para qualificar algo) que indica “que tem cauda longa”. 

A lontra neotropical (Lontra longicaudis), que por aqui é conhecida como lontra brasileira, ocupa um extenso território que vai do México até a Argentina e ocorre em praticamente todo o território brasileiro, a exceção das regiões semiáridas do Nordeste. A espécie vive em ambientes aquáticos como rios, lagoas e represas, dependendo da existência de matas ciliares próximas, onde constrói as suas tocas em buracos cavados nos barrancos. Essas tocas costumam ficar a cerca de 150 metros das margens dos rios, o que facilita o acesso fácil à água ao mesmo tempo em que garante uma relativa segurança aos filhotes em momentos de enchentes. 

As lontras podem atingir um comprimento de mais de 1,3 metro de comprimento, incluindo nesse tamanho a sua longa cauda. O peso pode variar entre 5 e 12 kg. Para efeito de comparação, a ariranha (Pteronura brasiliensis), que é um membro gigante da família das lontras, pode atingir até 2 metros de comprimento e um peso entre 25 e 45 kg. Diferente de outros membros da sua grande família que costumam viver em grupos entre 10 e 15 indivíduos, nossas lontras costumam viver solitárias ou em casais somente na época do acasalamento. Geralmente, as lontras apresentam hábitos noturnos, período em que saem das suas tocas para caçar, característica que faz com que os animais raramente sejam avistados na natureza. 

Essa raridade de avistamentos de lontras em rios e corpos d’água aqui no Brasil faz com que a maioria das pessoas não saiba que ela é uma animal típico da fauna brasileira. Eu mesmo sou obrigado a dar a mão à palmatória – em diversos livros e materiais pedagógicos que escrevi e ilustrei, sempre fiz questão de colocar animais típicos de nossa fauna silvestre entre os personagens. Macacos, capivaras, jabutis, jacarés-do-papo-amarelo, gatos-maracajás e papagaios-do-peito-roxo são frequentes nas minhas historinhas – já as simpáticas lontras, não sei por que, nunca sequer foram cogitadas. 

As perseguidas lontras agora estão enfrentando um novo desafio – em diversos países do Extremo Oriente, em especial Japão, Indonésia, Tailândia e Malásia, os animais passaram a ser adotados como animais de estimação. Está se tornando cada vez mais comum se verem pessoas andando em centros comerciais e cafés com lontras no colo – as selfies com a espécie também estão sendo muito frequentes nas redes sociais. A espécie que está abastecendo a maior parte desse mercado é a lontra-de-garras-pequenas, encontrada em rios da China e de países do Sudeste Asiático. Em menor escala, estão sendo vendidas as espécies lontra-eurasiática, lontra-sul-indiana e lontra-de-nariz-peludo. Cada exemplar desses animais é vendidos por milhares de dólares, o que estimula a caça ilegal e o contrabando.

A lontra-de-garras-pequenas é uma das menores espécies da família dos mustelídeos, com carinha rechonchuda, pelos macios e olhos grandes e muito brilhantes, e que está fazendo a alegria de muita gente nesses países. Apesar de estar concentrada hoje no outro lado do mundo, essa moda tem grande chance de se espalhar por outros países e passar a pressionar a nossa espécie local. Apesar da caça de animais silvestres ser proibida aqui no Brasil, nada impede que caçadores de países vizinhos invadam o nosso território para capturar filhotes de lontras brasileiras, que depois serão vendidas como “autênticas” lontras paraguaias ou bolivianas. A caça dos jacarés-do-pantanal, que quase levou a espécie a extinção décadas atrás, é um grande exemplo da facilidade dessa modalidade de caça.

A moda com esses animais silvestres tem tudo para dar errado – filhotinhos fofinhos que são comprados com um comprimento de 30 ou 35 cm e um peso de pouco mais de 4 kg, um dia vão crescer e ficar com mais de 1,3 metro e mais de 12 kg de peso. E assim como aconteceu com muitas outras espécies silvestres como iguanas, cobras, aranhas caranguejeiras e “mini” porcos, esses animais crescem demais e perdem a graça – muitos acabarão sendo abandonados em matas, o que pode criar uma competição predatória com as espécies nativas da região. 

Uma característica dos mustelídeos que também poderá comprometer essa moda das lontras de estimação é o cheiro forte dos animais. Como é comum em espécies semiaquáticas, as lontras possuem uma glândula que libera uma gordura, que o animal espalha sobre os pelos com as patas. Essa gordura deixa os pelos brilhantes e impermeáveis a ação da água – porém, essa gordura também possui um odor forte, que é usado pelos animais para a demarcação dos territórios. Conviver com esses animais fofinhos e “fididinhos” em casas e apartamentos fechados pode se transformar em um grande problema a longo prazo, o que poderá levar muita gente a sair desovando lontras exóticas em habitats selvagens alheios. 

Perseguidas ao longo dos séculos por causa da sua pelagem, sofrendo com a devastação e perda dos seus habitats naturais e poluição dos rios e lagos, as lontras agora são vítimas dessa moda dos “pets” exóticos. Vida de lontra nunca foi fácil… 

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OS RATÕES E OS GABIRUS

Ratão-do-banhado

Há uns bons tempos atrás, eu voltava à noite para minha casa num ônibus urbano. Numa poltrona próxima, duas senhoras com um forte sotaque nordestino falavam sobre os problemas de sua comunidade. Eu não tenho o hábito de ficar escutando as conversas alheias, mas, naquele caso, era bastante difícil não acompanhar o curso do diálogo. A uma certa altura, uma das mulheres começou a falar sobre o tamanho dos gabirus que circulavam pelas vielas do bairro – alguns chegavam a ter “dois palmos de comprimento”, segundo a descrição. Gabiru, para quem não conhece, é o nome dado aos ratos de esgoto em alguns lugares da Região Nordeste. 

Nos meios urbanos encontramos, normalmente, três espécies de ratos: o rato preto ou de telhado (Rattus rattus), que se alimenta de restos de comida que são jogados no lixo e também de alimentos e rações servidas aos animais domésticos como cães e gatos; o rato cinza (Rattus norvegicus)também conhecido como ratazana e gabiru, que vive em esgotos e ao longo de córregos; e os camundongos (Mus domesticus), espécie de ratos pequenos, que vivem em residências e são oportunistas quanto a alimentação, atacando despensas, armários e latas de lixo. As três espécies são transmissoras de doenças e seres humanos tem, normalmente, aversão aos ratos. 

Os ratos cinzas ou gabirus são originários das estepes da Ásia Central e foram “domesticados” há milhares de anos pelos seres humanos. Os animais aprenderam a viver nas proximidades das vilas e fazendas, onde conseguiam encontrar restos de comidas e depósitos de grãos. As migrações humanas por todo o mundo antigo foram acompanhadas bem de perto pelos ratos, que passaram a viver nas valas de esgotos e canais de água das cidades.  Com o passar do tempo, outras espécies de ratos silvestres também passaram a viver nas cidades e encontraram seus respectivos nichos ecológicos. Com o início da era das grandes navegações, os ratos passaram a invadir os porões dos navios em busca de alimentos e assim foram espalhados por todo o mundo. 

Com a nossa precária infraestrutura de saneamento básico, onde grandes volumes de esgotos e lixo são lançados em rios e córregos, além de entulhos e resíduos sólidos de todo o tipo sendo descartados de forma irregular em terrenos baldios, nossas cidades acabaram sendo transformadas em verdadeiros paraísos para todas essas espécies de ratos e criaram fontes potenciais para a transmissão de inúmeras doenças. A leptospirose, citando um exemplo, é uma doença infecciosa transmitida pela bactéria do tipo Leptospira presente na urina de ratos, que encontra as condições ideais de propagação nos períodos de fortes chuvas, quando a população entra em contato com as águas de enxurradas e pontos de alagamentos. 

A bactéria Leptospira entra no corpo humano através da pele, pela boca e pelos olhos. Nos casos mais graves, a leptospirose provoca falência renal, meningite, falência hepática e deficiência respiratória, podendo até levar a morte. As enchentes também forçam os ratos a abandonar suas tocas, aumentando a possibilidade de aproximação com os seres humanos, o que pode resultar em ataques e mordidas. No passado, doenças transmitidas por ratos provocaram grandes epidemias e milhões de pessoas acabaram morrendo. Um grande exemplo foi a famosa Peste Negra, conhecida atualmente como peste bubônica, matou entre 75 e 200 milhões de pessoas (conforme a fonte consultada) na Ásia e Europa no século XIV. 

Na conversa que citei no início da postagem existe um detalhe importante, que muda um pouco o ritmo da “prosa” – uma das mulheres falou que em sua comunidade se avistavam “gabirus com dois palmos de comprimento”, um tamanho exagerado para um rato cinza, mas adequado para um ratão-do-banhado jovem. Essa é uma espécie de mamífero roedor da fauna brasileira, que era encontrada com abundância em rios de toda a Região Sul, além das regiões Sul e Leste do Estado de São Paulo. Os animais também são encontrados no Uruguai, Argentina, Chile e Paraguai. 

O ratão-do-banhado (Myocastor coypus), também conhecido como caxingui, ratão-d’água e nútria, é um grande roedor da família dos miocastorídeos, que pode atingir até 1 metro de comprimento, onde se inclui a grande cauda. Possui uma grossa pelagem castanho-avermelhada, uma característica que tornou a espécie alvo de caçadores de peles, quase levando os ratões à extinção. São animais de hábitos noturnos e que se alimentam normalmente de capim, raízes e plantas aquáticas, não dispensando, conforme a oportunidade, carne, peixe e grãos. 

Os ratões-do-banhado são animais semiaquáticos, dotados de patas com membranas interdigitais, característica que torna a espécie uma grande nadadora. Em terra, os ratões-do-banhado caminham devagar e com bastante dificuldade. Os animais constroem suas tocas em matas nas beiras dos rios, onde se escondem e dormem durante a maior parte do dia. Esses animais possuem uma glândula no canto da boca que libera uma substância gordurosa, que é esfregada com as patas em todo o corpo – essa gordura deixa os pelos impermeáveis e permitem que o animal permaneça por longos períodos na água. Além dos seres humanos, os maiores predadores dos ratões na natureza são as onças e os jacarés. 

Uma característica marcante dos ratões-do-banhado é a cauda grossa e despida de pelagem, muito parecida com a cauda dos ratos cinza ou gabirus. Essa semelhança entre os ratões-do-banhado e os ratos de esgotos faz com que a espécie seja perseguida e morta por muita gente – filhotes desses ratões são confundidos com os ratos de esgotos e muitos acabam sendo mortos pelas populações ao andaram nas proximidades de núcleos habitacionais. Na cidade de São Paulo, citando um exemplo, ratões-do-banhado são encontrados vivendo nas margens dos poluídos rios Tietê e Pinheiros, e também ao longo das margens das represas Guarapiranga e Billings, áreas densamente povoadas da cidade e que colocam os animais frequentemente em contato com seres humanos e a riscos. 

A poluição das águas de rios e córregos e a destruição de habitats estão entre as principais causas da redução das populações, e até mesmo da extinção regional dos ratões em muitos lugares. Apesar de proibido, muitos ratões-do-banhado ainda são caçados por causa de sua vistosa pele e também para o consumo da carne, que muitos consideram uma iguaria. Décadas atrás, quando o uso de peles de animais pela indústria da moda estava em alta, ratões-do-banhado capturados vivos foram levados para países como Estados Unidos e Europa para tentativas de criação da espécie em cativeiro, como é feito com as chinchilas originárias dos Andes. Essa experiência acabou não sendo muito bem-sucedida e muitos ratões-do-banhado acabaram fugindo desses criatórios, invadindo florestas e rios desses países, e passando a competir com espécie locais como os castores norte-americanos e lontras europeias. 

Ao contrário do que pode sugerir o nome ou a semelhança com os ratos de esgoto, os ratões-do-banhado são animais bastante inofensivos, altamente sociáveis e conseguem conviver tranquilamente com os seres humanos e com animais domésticos, a exemplo de outros animais silvestres como as capivaras. Infelizmente, a vida desses animais, assim como de outras espécies aquáticas e semiaquáticas, não está sendo nada fácil. É preciso uma maior divulgação da espécie e de bons projetos de educação ambiental junto às populações. 

OS JACARÉS, A DEGRADAÇÃO DAS ÁGUAS E A BUSCA POR LUCRO FÁCIL

Jacaré

Na série de postagens que estamos publicando, temos mostrado o impacto dos diversos tipos de agressões ambientais nas comunidades de animais aquáticos e semiaquáticos. Essas agressões incluem a poluição das águas por efluentes líquidos e resíduos sólidos, a urbanização, a agricultura e os resíduos de fertilizantes e agrotóxicos, a construção de barragens dos mais diferentes tipos, entre outras. Esses impactos alteram dramaticamente os habitats, podendo levar espécies à extinção. 

Entretanto, as agressões ambientais não são as únicas responsáveis pela destruição de habitats e comunidades de animais aquáticos e semiaquáticos: fatores exclusivamente econômicos também podem ser fatais para muitas espécies. A caça de animais silvestres para aproveitamento do couro e peles já se mostrou quase mortal para inúmeras espécies. Um grande exemplo desse impacto pode ser verificado na sina de várias espécies de jacarés. Acompanhem: 

Existem atualmente 23 espécies de crocodilianos em todo o mundo e 6 dessas espécies são encontradas aqui no Brasil: jacaretinga (Caiman crocodilus), jacaré-do-papo-amarelo (Caiman latirostris), Jacaré-do-pantanal (Caiman yacare), jacaré-açu (Melanosuchus niger), jacaré-anão (Palesuchus palpebrosus) e jacaré-corôa (Paleosuchus trigonatus). Em postagens anteriores, nós falamos de três dessas espécies e dos seus respectivos problemas: jacaré-do-papo-amarelo, jacaré-do-pantanaljacaré-açú

O jacaré-do-papo-amarelo é a espécie brasileira mais impactada pela perda de habitas e degradação das águas. Os antigos domínios desses animais se sobrepõem às áreas mais populosas do país, especialmente na região dos domínios da Mata Atlântica e bacia hidrográfica do rio Paraná. Alguns dos grandes impactos que a espécie vem sofrendo foram mostrados em uma postagem onde contamos a história do Teimoso, um jacaré-do-papo-amarelo que foi encontrado nadando nas águas poluídas do rio Tietê no início da década de 1990; em outra postagem, falamos da situação caótica dos jacarés que vivem no Sistema Lagunar de Jacarepaguá, na Zona Oeste da cidade do Rio de Janeiro. 

A bacia hidrográfica do rio Tietê é a principal rede de drenagem de águas da Região Metropolitana de São Paulo. Em tempos passados, os rios, riachos e córregos dominavam as paisagens do Planalto de Piratininga e toda a região apresentava uma exuberante vida animal e vegetal. Ponto de encontro dos biomas Cerrado, Mata Atlântica e Mata das Araucárias, as águas do Planalto apresentavam grandes populações de jacarés. Com o crescimento desordenado das cidades, canalização de córregos e riachos e extrema poluição das águas, esses animais simplesmente desapareceram. O avistamento do jacaré Teimoso nas águas do Tietê, simplesmente o rio mais poluído do Brasil, funcionou como um grito de alerta sobre a degradação ambiental das águas e desencadeou uma série de movimentos populares que pediam mudanças na política ambiental do Estado de São Paulo. 

A situação dos répteis das lagoas da cidade do Rio de Janeiro é praticamente a mesma – a intensa especulação imobiliária na região da Barra da Tijuca e o crescimento desordenado da cidade ilharam grandes populações de jacarés-do-papo-amarelo em espaços cada vez menores. Os impactos ambientais foram agravados pelos problemas de infraestrutura típicos das cidades brasileiras – o esgoto lançado nas águas sem qualquer tratamento transformou a vida dos animais num verdadeiro calvário, reduzindo a oferta de alimentos e criando dúvidas sobre o futuro da espécie na região.  A trágica situação dos animais ganhou recentemente as manchetes do país após uma forte ressaca atingir a orla do Rio de Janeiro – dezenas de jacarés foram arrastados na direção das praias do Recreio dos Bandeirantes. 

No caso dos jacarés-do-pantanal, a situação atual é completamente adversa – esse é o bioma menos degradado e em melhor situação ambiental do Brasil. A população atual de jacarés é calculada na casa de 10 milhões de animais, que contam com fartura de alimentos e águas de ótima qualidade. Porém, entre as décadas de 1970 e 1980, esses animais foram caçados intensamente por coureiros brasileiros, bolivianos e paraguaios – o mercado internacional de couros de crocodilianos estava aquecido, com uma alta demanda do produto pela indústria da moda. Jacarés e crocodilos foram caçados impiedosamente em várias partes do mundo – somente no Pantanal Mato-grossense, calcula-se que 5 milhões de animais foram abatidos ilegalmente (a caça de animais silvestres é proibida no Brasil desde 1967)

O Pantanal Mato-grossense fica localizado numa região isolada do país, ocupando áreas do Sudoeste do Estado de Mato Grosso e Leste do Mato Grosso do Sul. O bioma também ocupa áreas da Bolívia e do Paraguai, uma característica que sempre facilitou a entrada de caçadores vindos desses países vizinhos, assim como o contrabando dos couros. Curtumes instalados nesses países compravam os couros de qualquer vendedor que aparecesse com o produto nas mãos e sem fazer qualquer pergunta. Essa facilidade “logística” para o escoamento dos couros, a grande abundância de animais numa região relativamente pequena, falta de policiamento ambiental e fiscalização das fronteiras, quase foram fatais para a espécie. Felizmente, o couro de jacarés e crocodilos saiu da moda, o que reduziu imensamente a demanda e praticamente acabou com a caça ilegal. 

Um outro caso onde as razões econômicas estavam por trás da intensa caça de animais para a venda dos couros é o dos jacarés-açú da Amazônia. Maior representante da família dos jacarés do mundo, o açú, palavra de origem indígena que quer dizer “grande”, pode passar de 6 metros de comprimento e mais de 300 kg de peso. Uma peça de couro vinda de um animal desse tamanho era uma espécie de “sonho de consumo” para as indústrias da moda, permitindo a confecção de grandes peças de vestuário como casacos longos e vestidos sem a necessidade de costurar peças pequenas de couro. Essa era uma das razões para o couro escuro dos jacarés-açú ser tão valorizado no mercado internacional. 

De acordo com um detalhado estudo publicado por cientistas brasileiros na renomada revista Science Advances em 2016, entre 1904 e 1969, foram abatidos mais de 4,4 milhões de jacarés-açú em toda a Amazônia brasileira para aproveitamento do couro. Esses números dizem respeito ao volume total de couros exportados legalmente nesse período e lembrando que até 1967 a caça de animais silvestres era legalizada. Se considerarmos as exportações ilegais e o total de animais batidos após a proibição da caça, o número de jacarés-açú abatidos foi muito maior. 

Observem que a exemplo da Região do Pantanal Mato-grossense, a região Amazônica estava praticamente intacta até a década de 1960, época em que a caça de animais silvestres foi proibida. Mesmo nos dias atuais, quando a tão falada destruição da Floresta Amazônica preocupa muita gente no mundo, mais de 80% da área florestal original ainda está de pé. Mesmo com essas condições ambientais praticamente perfeitas, os jacarés-açú desapareceram dos principais rios da Bacia Amazônica e hoje estão restritos a áreas protegidas de parques nacionais e Terras Indígenas. Isso mostra que não é apenas a degradação dos habitats e a poluição das águas que dizimam as espécies aquáticas e semiaquáticas de animais pelo mundo afora – a busca pelo dinheiro fácil também. 

Esses rápidos exemplos mostrando a história dessas três espécies de jacarés aqui do Brasil ajudam a reforçar o importante e moderno conceito da Sustentabilidade – é preciso que encontremos um ponto de equilíbrio entre o Meio Ambiente, a Economia e as nossas Sociedades Humanas. Sem entendermos tudo isso, não teremos futuro garantido nesse nosso Planeta Azul. 

JACARÉ-AÇÚ: O GIGANTE AMEAÇADO DOS RIOS DA AMAZÔNIA

Jacaré-açú

No ano de 2010, eu acompanhei uma história assustadora que aconteceu na cidade de Guajará-Mirim, no interior do Estado de Rondônia: um imenso jacaré-açú atacou uma menina de 11 anos na beira de um igarapé e, em seguida, mergulhou e desapareceu com a vítima. O local, uma área de banho, estava lotado e diversas testemunhas acompanharam o ataque do jacaré. Eu morava em Porto Velho há época e acompanhei apreensivo pelos telejornais locais, que apresentavam reportagens ao vivo a cada meia hora. 

Grupos de moradores da cidade, pescadores, ribeirinhos e bombeiros iniciaram buscas nas margens dos rios da região, que fica na fronteira do Brasil com a Bolívia e marca o ponto de encontro entre os rios Mamoré, Guaporé e Beni, formadores do rio Madeira. Depois de um dia de buscas, as equipes localizaram o corpo da menina – esses animais arrastam o corpo de suas vítimas para um esconderijo, onde poderão comê-las aos poucos, ao longo de vários dias. O jacaré foi localizado e abatido logo depois – o animal tinha 4,2 metros de comprimento e um peso calculado em 350 kg.  

O jacaré-açú (Melanosuchus niger), também conhecido como jacaré-negro, caimão-preto, jacaré-aruana e jacaré-gigante, é uma espécie exclusiva da América do Sul e que já foi muito abundante nos rios da Bacia Amazônica. É o maior membro da família dos jacarés, podendo atingir um comprimento de 4,5 metros e um peso da ordem de 300 kg. Existem relatos bastante consistentes de exploradores e cientistas de tempos passados que falavam de exemplares capturados que tinham mais de 6 metros de comprimento e peso da ordem de 500 kg. O jacaré-açu é um predador de topo de cadeia alimentar, atacando praticamente tudo o que encontrar em seu caminho, o que inclui peixes, anfíbios, aves, répteis (inclusive jiboias e sucuris), mamíferos de grande porte como onças, capivaras e antas, e, é claro, seres humanos. 

Um animal silvestre desse porte não fugiria do folclore das populações ribeirinhas e é personagem em uma infinidade de histórias fantásticas, que vão de barcas despedaçadas por golpes da cauda de um jacaré-açú à pescadores engolidos com canoa e tudo por espécimes exageradamente grandes. Um exemplo dos exageros dessas “histórias verídicas verdadeiras” é uma fake news que circulou nas redes sociais meses atrás, mostrando a suposta carcaça de um jacaré-açú, com cerca de 14 metros de comprimento, que foi encontrado morto na Ilha de Marajó, no Pará. A notícia afirmava que o animal tinha perto de 170 anos de idade e estaria envolvido no naufrágio de uma grande barca da região há cerca de 40 anos atrás. Um detalhe interessante da suposta “notícia” é que o animal que aparecia na foto, que tinha proporções bem avantajadas, era na verdade um crocodilo africano, um primo distante do jacaré-açú. 

Histórias e causos à parte, o tamanho dos jacarés-açú foi um dos principais responsáveis pelo desaparecimento da espécie em grande parte dos rios da Amazônia. Conforme comentamos na postagem anterior, a intensa caça de animais silvestres em todo o Brasil até poucas décadas atrás para obtenção de peles e couros para a exportação, levou diversas espécies à beira da extinção. Essa triste lista inclui felinos como onças-pintadas, jaguatiricas e gatos maracajás; veados, capivaras e antas, além de espécies aquáticas e semiaquáticas como peixes-boi, ariranhas, lontras, jiboias, sucuris e jacarés de diversas espécies. O couro escuro do jacaré-açu, que podia cobrir uma área com até 10 m² de superfície, estava entre as mais valorizadas do mercado mundial

De acordo com um detalhado estudo publicado por cientistas brasileiros na renomada revista Science Advances em 2016, entre 1904 e 1969, foram abatidos mais de 4,4 milhões de jacarés-açú em toda a Amazônia brasileira para aproveitamento do couro. Aqui, é importante lembrar que, até 1967, a caça de animais silvestres era legal no Brasil e os números apresentados se referem às quantidades de couro de jacaré exportados legalmente pelo país. Considerando-se os famosos descaminhos e jeitinhos, tão comuns em nosso dia a dia, é possível que os números reais sejam ainda maiores e mais dramáticos. 

Os rios e igarapés da Amazônia sempre foram os principais caminhos para o transporte de pessoas e cargas por toda a floresta e, por essa razão, os animais aquáticos e semiaquáticos sempre foram os mais perseguidos pelos caçadores. Aos números dramáticos de jacarés-açu abatidos nesse período, podemos acrescentar 100 mil peixes-boi, 386 mil ariranhas e 400 mil capivaras. Da fauna terrestre, foram 5,4 milhões de catetos, uma espécie de porco selvagem, 4 milhões de veados-mateiros, entre outras vítimas. Os números totais oficiais contabilizam 23 milhões de mamíferos e répteis silvestres abatidos entre 1904 e 1969, cujas peles e couros foram exportados

A origem dessa verdadeira carnificina animal foi o Ciclo da Borracha, que teve início em meados do século XIX e se estendeu até o início do século XX. O látex é uma seiva natural produzida pela seringueira ou árvore-da-borracha (Hevea brasiliensis), uma espécie típica da Floresta Amazônica, sendo um produto conhecido e utilizado pelos índios da região há milhares de anos. Em 1839, o inventor americano Charles Goodyear desenvolveu o processo conhecido como vulcanização, onde calor e pressão são aplicados em um composto a base de látex natural, que se transforma na borracha, um produto com inúmeras aplicações industriais. Essa invenção criou um gigantesco mercado para o látex – como detentor da maior reserva natural de seringueiras do mundo, o Brasil rapidamente passou a monopolizar a produção e exportação do produto, fazendo a fortuna de muita gente. 

Ao longo de várias décadas, dezenas de milhares de trabalhadores de todas as regiões do Brasil, especialmente de Estados da Região Nordeste, foram recrutados para trabalhar na exploração do látex na Floresta Amazônica. Os contratos de trabalho falavam de altos ganhos financeiros e inúmeros “benefícios”, que nunca chegaram nem perto de serem cumpridos – tratamos dessa trágica página de nossa história em uma série de postagens anteriores. A partir de 1912, o látex produzido em plantações de seringueiras do Sudeste Asiático passou a ser vendido no mercado mundial, derrubando o preço do produto Amazônico. Essas plantações foram formadas por empresários ingleses em territórios do antigo Império Britânico, onde foram usadas sementes de seringueira contrabandeadas da Floresta Amazônica. 

Com a decadência da indústria do látex, centenas de milhares de seringueiros passaram a ser aliciados por comerciantes de couros e peles, sendo rapidamente transformados em mortais caçadores. O conhecimento adquirido ao longo de vários anos em caminhadas pelo meio da floresta em busca das seringueiras foi fundamental na busca e abate dos animais em seus habitats naturais. As mesmas redes de navegação que eram usadas para o escoamento das pélas de borracha, passaram a ser usadas para a venda dos couros e peles, assim como para o transporte dos produtos para as grandes cidades da Amazônia, onde se encontravam os depósitos dos grandes comerciantes internacionais.

Cálculos atualizados afirmam que esse comércio internacional de couros e peles de animais silvestres da Amazônia movimentou aproximadamente US$ 500 milhões entre 1904 e 1969. É claro que a imensa maioria dessa fabulosa massa de recursos ficou na mão dos grandes comerciantes e intermediários – os caçadores, que faziam o trabalho sujo e insano nos confins da Floresta, ficaram com as migalhas. Passadas várias décadas dessa fase negra de nossa história, muitas das populações animais ainda não recuperaram suas antigas populações, especialmente as espécies aquáticas e semiaquáticas. 

Para sorte dos animais, o couro de jacaré saiu de moda no mercado internacional, o que desestimulou a caça. Grupos ambientalistas passaram a lutar nas últimas décadas contra o uso de peles de animais, o que está garantindo a sobrevivência de várias outras espécies caçadas. 

Os jacarés-açu, felizmente, já saíram da lista de espécies ameaçadas e, ao menos por enquanto, sobrevivem em recantos isolados da Floresta Amazônica.