A ideia de se transferir a capital para o interior do Brasil era antiga, defendida por muitos que entendiam que esta era a melhor forma de se estimular a ocupação do nosso vasto território. Depois de muitas discussões e debates, foi definido na Constituição da República de 1891 que a capital deveria ser transferida para a região do Planalto Central. Em 1956, mais de meio século depois, o Presidente Juscelino Kubitschek lançou o edital de um concurso para a escolha do projeto urbanístico da nova capital. Vinte e cinco projetos foram apresentados, alguns altamente detalhados – o vencedor foi um projeto inovador, apresentado como um esboço de projeto feito a mão, acompanhado de um descritivo com pouco mais de vinte páginas. O autor – o urbanista Lúcio Costa, que confessou que não imaginava vencer e que se desculpou por não ser detalhista. Ele escolheu o arquiteto Oscar Niemayer para projetar os edifícios e o paisagista Roberto Burle Marx para cuidar dos jardins e terraços da nova cidade.
O jornalista e escritor Otto Lara Resende escreveu anos depois que a construção de Brasília foi “uma espécie de produto da conjugação de quatro loucuras”: de Juscelino Kubitschek, o Presidente da República, de Lúcio Costa, o urbanista, de Oscar Niemayer, o arquiteto, e de Israel Pinheiro, o presidente da Terracap, a empresa criada pelo Governo para gerenciar a construção da cidade. Em 1960, a tão sonhada “cidade do futuro” foi inaugurada e tudo virou história.
Brasília foi imaginada como uma cidade de médio porte, para uma população máxima entre 400 e 500 mil moradores – o Distrito Federal tem hoje aproximadamente 1,8 milhões de habitantes, a maioria vivendo em cidades satélites que em nada lembram os eixos do Plano Piloto e as superquadras imaginadas no projeto original. Crescimento desordenado e problemas de infraestrutura, transportes, educação, saúde e segurança estão por todos os lados – no centro, mansões, palácios, edifícios e uma pequena parte da população vivendo numa espécie de “ilha” com a maior renda per capita e um dos IDHs – Índice de Desenvolvimento Humano, mais altos do pais. Brasília é a terra dos contrastes.
Entre todos os problemas vividos pela população do Distrito Federal, um tem tirado o sono de muita gente desde o final do ano passado – a seca prolongada e a exaustão dos recursos hídricos armazenados, que são usados para o abastecimento da população. Desde o início de janeiro deste ano, as autoridades do Distrito Federal impuseram, pela primeira vez na história da cidade, um esquema de racionamento de água – em decisão tomada há poucos dias, devido ao agravamento da situação, as medidas para a economia de água se tornarão mais rígidas.
O Distrito Federal conta com dois reservatórios, que são os responsáveis pelo armazenamento da água utilizada para abastecer a população: a barragem do Descoberto, que fica em Brazlândia, e a barragem Santa Maria, que fica dentro do Parque Nacional de Brasília. O reservatório do Descoberto, responsável por 65% da água consumida no Distrito Federal, possui uma área total de drenagem de 460 km², abrangendo as bacias hidrográficas dos córregos Alto Descoberto, Ribeirão Rodeador e Ribeirão das Pedras, apresentando um espelho d’água de 12,55 km². O reservatório Santa Maria possui aproximadamente 120 km² de área de drenagem, onde fica localizada a bacia hidrográfica do Ribeirão do Torto – o espelho d’água do reservatório tem uma área de 7,65 km². De acordo com informações da última medição feita pela ADASA – Agência Reguladora de Águas, Energia e Saneamento Básico do Distrito Federal, o nível do reservatório do Descoberto no último dia 8 de outubro apresentava um volume acumulado equivalente a 14,9% de sua capacidade; o nível no reservatório de Santa Maria era de 27,9%. Situação crítica.
De acordo com os registros meteorológicos, este é o mês de outubro mais seco dos últimos 37 anos. As autoridades esperavam um volume de chuvas de 166 mm para o mês – as chuvas observadas chegaram apenas a 14 mm. O volume de chuvas medido nos últimos anos na bacia hidrográfica do córrego Alto Descoberto entre os meses de setembro a dezembro sempre esteve na faixa de 669 mm – no ano passado choveu o equivalente a 520 mm no mesmo período; para piorar a situação, o volume de chuvas no mês de janeiro deste ano foi muito abaixo da média. O consumo de água per capita pela população, ao contrário, cresceu 16% nos últimos 6 anos. Completando o quadro de desolação, foram feitos poucos investimentos em infraestrutura, especialmente na ampliação dos sistemas de captação e armazenamento de água. As perdas de água na rede de distribuição também não são nada desprezíveis – perto de 35% da água distribuída se perde, seja por vazamento nas tubulações seja por furto (os famosos “gatos”). São aproximadamente 86 bilhões de litros de água perdidos, que estão fazendo falta neste momento de crise. O quadro vivido por toda a região do Distrito Federal desde 2016 lembra muito a crise hídrica vivida pela Região Metropolitana de São Paulo em 2014 – a diferença é que na grande São Paulo existiam dois grandes reservatórios, as represas Guarapiranga e Rio Grande, com reservas de água mas sem tubulações de interligação com os demais sistemas (o que foi resolvido com obras emergenciais). No Distrito Federal não existem fontes alternativas para abastecimento da população.
Diante deste quadro nada animador, a ADASA autorizou a CAESB – Companhia de Saneamento Básico do Distrito Federal, a reduzir de pressão na rede, realizar o rodízio do abastecimento, efetuar a paralisação parcial do abastecimento, além de veicular campanhas de incentivo à redução do consumo de água. A CAESB iniciou o processo de racionamento no final de 2016 com a redução da pressão nas redes de tubulações, medida que afeta a oferta de água e que obriga a população a economizar. Com o agravamento da queda dos níveis nas barragens, a CAESB decidiu iniciar o rodízio do abastecimento de água nas localidades atendidas pela barragem do Descoberto. O rodízio no fornecimento passou a valer para as 14 regiões administrativas abastecidas pela barragem, atingindo as localidades de Ceilândia, Recanto das Emas, Riacho Fundo II, Vicente Pires, Colônia Agrícola Samambaia, Vila São José, Jóquei, Santa Maria, DVO, Sítio do Gama, Polo JK e Residencial Santa Maria. O sistema fornece água normalmente por 3 dias, 1 dia fica sem fornecimento e 2 dias se destinam à estabilização completa do abastecimento. A partir do final do mês de fevereiro, o rodízio passou a valer também para as regiões abastecidas pela barragem Santa Maria. De acordo com dados da CAESB, a economia obtida com estas medidas equivale a 550 litros de água por segundo – água suficiente para abastecer a região de Ceilândia, que tem uma população de 360 mil habitantes.
Nas áreas rurais do Distrito Federal, mais de 4 mil produtores rurais estão sendo afetados pelo racionamento. O uso dos sistemas de irrigação só podia ser feito entre 6 e 9 horas da manhã. Nos últimos dias, com regras mais rígidas, o uso de água só poderá ser feito nos dias ímpares, por um período máximo de 3 horas. Muitas lavouras de frutas e de verduras estão sendo inviabilizadas pelas novas medidas de economia.
A grande ironia desta situação é que a região do Planalto Central está estrategicamente no centro divisor das águas do Brasil, onde nascem os rios de três das mais importantes bacias hidrográficas brasileiras: os rios Tocantins/Araguaia, Paraná e São Francisco.
Resta-nos rezar para chover e economizar o máximo possível de água.