O RACIONAMENTO DE ÁGUA NO DISTRITO FEDERAL

Brasília

A ideia de se transferir a capital para o interior do Brasil era antiga, defendida por muitos que entendiam que esta era a melhor forma de se estimular a ocupação do nosso vasto território. Depois de muitas discussões e debates, foi definido na Constituição da República de 1891 que a capital deveria ser transferida para a região do Planalto Central. Em 1956, mais de meio século depois, o Presidente Juscelino Kubitschek lançou o edital de um concurso para a escolha do projeto urbanístico da nova capital. Vinte e cinco projetos foram apresentados, alguns altamente detalhados – o vencedor foi um projeto inovador, apresentado como um esboço de projeto feito a mão, acompanhado de um descritivo com pouco mais de vinte páginas. O autor – o urbanista Lúcio Costa, que confessou que não imaginava vencer e que se desculpou por não ser detalhista. Ele escolheu o arquiteto Oscar Niemayer para projetar os edifícios e o paisagista Roberto Burle Marx para cuidar dos jardins e terraços da nova cidade.

O jornalista e escritor Otto Lara Resende escreveu anos depois que a construção de Brasília foi “uma espécie de produto da conjugação de quatro loucuras”: de Juscelino Kubitschek, o Presidente da República, de Lúcio Costa, o urbanista, de Oscar Niemayer, o arquiteto, e de Israel Pinheiro, o presidente da Terracap, a empresa criada pelo Governo para gerenciar a construção da cidade. Em 1960, a tão sonhada “cidade do futuro” foi inaugurada e tudo virou história.

Brasília foi imaginada como uma cidade de médio porte, para uma população máxima entre 400 e 500 mil moradores – o Distrito Federal tem hoje aproximadamente 1,8 milhões de habitantes, a maioria vivendo em cidades satélites que em nada lembram os eixos do Plano Piloto e as superquadras imaginadas no projeto original. Crescimento desordenado e problemas de infraestrutura, transportes, educação, saúde e segurança estão por todos os lados – no centro, mansões, palácios, edifícios e uma pequena parte da população vivendo numa espécie de “ilha” com a maior renda per capita e um dos IDHs – Índice de Desenvolvimento Humano, mais altos do pais. Brasília é a terra dos contrastes.

Entre todos os problemas vividos pela população do Distrito Federal, um tem tirado o sono de muita gente desde o final do ano passado – a seca prolongada e a exaustão dos recursos hídricos armazenados, que são usados para o abastecimento da população. Desde o início de janeiro deste ano, as autoridades do Distrito Federal impuseram, pela primeira vez na história da cidade, um esquema de racionamento de água – em decisão tomada há poucos dias, devido ao agravamento da situação, as medidas para a economia de água se tornarão mais rígidas.

O Distrito Federal conta com dois reservatórios, que são os responsáveis pelo armazenamento da água utilizada para abastecer a população: a barragem do Descoberto, que fica em Brazlândia, e a barragem Santa Maria, que fica dentro do Parque Nacional de Brasília. O reservatório do Descoberto, responsável por 65% da água consumida no Distrito Federal, possui uma área total de drenagem de 460 km², abrangendo as bacias hidrográficas dos córregos Alto Descoberto, Ribeirão Rodeador e Ribeirão das Pedras, apresentando um espelho d’água de 12,55 km². O reservatório Santa Maria possui aproximadamente 120 km² de área de drenagem, onde fica localizada a bacia hidrográfica do Ribeirão do Torto – o espelho d’água do reservatório tem uma área de 7,65 km². De acordo com informações da última medição feita pela ADASA – Agência Reguladora de Águas, Energia e Saneamento Básico do Distrito Federal, o nível do reservatório do Descoberto no último dia 8 de outubro apresentava um volume acumulado equivalente a 14,9% de sua capacidade; o nível no reservatório de Santa Maria era de 27,9%. Situação crítica.

De acordo com os registros meteorológicos, este é o mês de outubro mais seco dos últimos 37 anos. As autoridades esperavam um volume de chuvas de 166 mm para o mês – as chuvas observadas chegaram apenas a 14 mm. O volume de chuvas medido nos últimos anos na bacia hidrográfica do córrego Alto Descoberto entre os meses de setembro a dezembro sempre esteve na faixa de 669 mm – no ano passado choveu o equivalente a 520 mm no mesmo período; para piorar a situação, o volume de chuvas no mês de janeiro deste ano foi muito abaixo da média. O consumo de água per capita pela população, ao contrário, cresceu 16% nos últimos 6 anos. Completando o quadro de desolação, foram feitos poucos investimentos em infraestrutura, especialmente na ampliação dos sistemas de captação e armazenamento de água. As perdas de água na rede de distribuição também não são nada desprezíveis – perto de 35% da água distribuída se perde, seja por vazamento nas tubulações seja por furto (os famosos “gatos”). São aproximadamente 86 bilhões de litros de água perdidos, que estão fazendo falta neste momento de crise. O quadro vivido por toda a região do Distrito Federal desde 2016 lembra muito a crise hídrica vivida pela Região Metropolitana de São Paulo em 2014 – a diferença é que na grande São Paulo existiam dois grandes reservatórios, as represas Guarapiranga e Rio Grande, com reservas de água mas sem tubulações de interligação com os demais sistemas (o que foi resolvido com obras emergenciais). No Distrito Federal não existem fontes alternativas para abastecimento da população.

Diante deste quadro nada animador, a ADASA autorizou a CAESB – Companhia de Saneamento Básico do Distrito Federal, a reduzir de pressão na rede, realizar o rodízio do abastecimento, efetuar a paralisação parcial do abastecimento, além de veicular campanhas de incentivo à redução do consumo de água. A CAESB iniciou o processo de racionamento no final de 2016 com a redução da pressão nas redes de tubulações, medida que afeta a oferta de água e que obriga a população a economizar. Com o agravamento da queda dos níveis nas barragens, a CAESB decidiu iniciar o rodízio do abastecimento de água nas localidades atendidas pela barragem do Descoberto. O rodízio no fornecimento passou a valer para as 14 regiões administrativas abastecidas pela barragem, atingindo as localidades de Ceilândia, Recanto das Emas, Riacho Fundo II, Vicente Pires, Colônia Agrícola Samambaia, Vila São José, Jóquei, Santa Maria, DVO, Sítio do Gama, Polo JK e Residencial Santa Maria. O sistema fornece água normalmente por 3 dias, 1 dia fica sem fornecimento e 2 dias se destinam à estabilização completa do abastecimento. A partir do final do mês de fevereiro, o rodízio passou a valer também para as regiões abastecidas pela barragem Santa Maria. De acordo com dados da CAESB, a economia obtida com estas medidas equivale a 550 litros de água por segundo – água suficiente para abastecer a região de Ceilândia, que tem uma população de 360 mil habitantes.

Nas áreas rurais do Distrito Federal, mais de 4 mil produtores rurais estão sendo afetados pelo racionamento. O uso dos sistemas de irrigação só podia ser feito entre 6 e 9 horas da manhã. Nos últimos dias, com regras mais rígidas, o uso de água só poderá ser feito nos dias ímpares, por um período máximo de 3 horas. Muitas lavouras de frutas e de verduras estão sendo inviabilizadas pelas novas medidas de economia.

A grande ironia desta situação é que a região do Planalto Central está estrategicamente no centro divisor das águas do Brasil, onde nascem os rios de três das mais importantes bacias hidrográficas brasileiras: os rios Tocantins/Araguaia, Paraná e São Francisco.

Resta-nos rezar para chover e economizar o máximo possível de água.

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VIDAS SECAS, OU A VIDA SEM ÁGUA

Sobradinho

No último mês de junho, escrevi uma série de postagens onde tratei dos grandes problemas ambientais enfrentados pelo nosso bom e velho rio São Francisco. Dentro desta série, destaco algumas postagens onde falei especificamente da construção da Barragem de Sobradinho e de todos os problemas que foram gerados para os moradores da área que foi alagada – algumas organizações calculam que mais de 70 mil pessoas tiveram de ser removidas. Estas postagens sobre Sobradinho se tornaram as mais acessadas deste blog nos últimos meses. 

Naquele mês de junho, o nível da represa de Sobradinho estava um pouco abaixo de 15% e os especialistas já falavam que aquele era o seu pior momento. Poucos dias depois, a CHESF – Companhia Hidrelétrica do rio São Francisco foi obrigada a reduzir a vazão da hidrelétrica para 650 m³/s, a menor de sua história, numa medida para evitar que a represa entrasse no chamado “volume morto”. A mesma medida foi estendida para a Hidrelétrica de Xingó, já na região do Baixo Rio São Francisco. Com a redução da vazão do rio São Francisco, os problemas de intrusão de água salgada (também chamada de “língua salina”) através da foz no Oceano Atlântico só fizeram aumentar e diversas cidades da região passaram a enfrentar dificuldades ainda maiores para o abastecimento das suas populações. A cidade de Piaçabuçu em Alagoas, para citar um exemplo, vive uma verdadeira epidemia de casos de hipertensão arterial na população devido ao fornecimento de água pelas redes públicas de abastecimento com altos níveis de sal. 

Os problemas não pararam por aí – no início deste mês de outubro, o reservatório de Sobradinho caiu para um volume útil de apenas 5% de sua capacidade total (vide foto) e a CHESF está operando com apenas duas das seis turbinas instaladas na hidrelétrica. Como as chuvas estão muito fracas na região das cabeceiras do rio São Francisco, os especialistas já estão trabalhando com a possibilidade de Sobradinho atingir o “volume morto” no final de outubro. A ANA – Agência Nacional de Águas, já autorizou uma nova diminuição da vazão da barragem, como forma de retardar os acontecimentos. O caso de Sobradinho está muito longe de ser um caso isolado – no Estado de Goiás, Serra da Mesa, a maior represa em capacidade de armazenamento do Brasil, está com apenas 8% de sua capacidade total. Diversas outras barragens de usinas hidrelétricas estão com baixos níveis de armazenamento e a ANEEL – Agência Nacional de Energia Elétrica, autorizou o aumento da bandeira tarifária para Vermelha Patamar 2 a partir do mês de novembro, o que vai significar a cobrança extra de R$ 5,00 para cada 100 kwh (quilowatt hora) consumido. 

No Estado do Rio Grande do Norte, 90% dos 167 municípios estão em situação de emergência; na Bahia, mais da metade dos municípios enfrentam o mesmo problema – são 227 municípios sofrendo com a seca, o que está afetando a vida de 5 milhões de baianos. Em Pernambuco, a situação também é grave: 7 em cada 10 municípios está sofrendo com a seca prolongada. 

Secas na Região Nordeste não são novidades para quem mora no semiárido –  a região está sujeita a ciclos de seca em intervalos regulares. Em intervalos maiores, acontecem secas generalizadas e de efeitos devastadores. Exemplos dessa anomalia climática aconteceram em 1915 no Ceará e em toda a região do semiárido em 1877 e 1932, as duas maiores crises até hoje registradas. Normalmente as secas, mesmo as mais extensas, ficam limitadas ao período de um ano, mas não é raro que esse desequilíbrio alcance um período maior, dois anos e até três, como aconteceu em 1877 e em 1932. Essa estiagem atual já entrou no seu sexto ano, o que é um recorde. 

Mas os eventos de falta de chuva e de secas não estão limitados apenas ao semiárido nordestino: entre 2014 e 2015, uma forte estiagem se abateu sobre o Estado de São Paulo e Sul de Minas Gerais – quem não se lembra do Sistema Cantareira entrando no “volume morto” e ameaçando o abastecimento de toda a população da Região Metropolitana de São Paulo. Depois foram intensificadas as estiagens no Espírito Santo, Goiás, Distrito Federal e região do Triângulo Mineiro. Também existem problemas de seca em regiões de Mato Grosso e Mato Grosso do Sul, que estão atrasando o plantio de várias culturas, especialmente a soja. Em Goiás e no Triângulo Mineiro, a seca poderá provocar uma forte quebra na safra do milho deste ano. 

No Distrito Federal, a seca prolongada forçou a adoção de um inédito sistema de racionamento de água já no final de 2016. No último dia 20 de outubro, a Adasa – Agência Reguladora de Águas do Distrito Federal liberou uma portaria em que autoriza a Caesb – Companhia de Saneamento do Distrito Federal a ampliar de 24 para 48 horas o racionamento de água em todas as cidades atendidas, tendo em vista que as chuvas não chegaram e os reservatórios não param de secar. A seca na região também está afetando as áreas de preservação natural – um forte incêndio no Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros, que fica a pouco mais de 260 km de Brasília, consumiu mais de 68 mil hectares de mata nativa do Cerrado até ser controlado poucos dias atrás. 

Os problemas com a seca não se limitam apenas às fronteiras brasileiras – nos Estados Unidos, a forte seca no Estado da Califórnia, o mais populoso do país, está sendo seguido por intensos incêndios florestais que já destruíram mais de 1.500 residências, forçando mais de 20 mil pessoas a sair de suas casas e provocaram a morte de, pelo menos, 10 de pessoas – existem relatos de mais de 100 pessoas desaparecidas. Em regiões do Centro e Norte de Portugal e na região da Galícia, na Espanha, a forte seca resultou em inúmeros incêndios florestais, que deixaram um rastro de destruição e cerca de 40 mortos. Alguns meses atrás, regiões do sul da Espanha, da França, da Itália e dos Balcãs também sofreram com fortes incêndios florestais – o ponto em comum: as regiões passaram por períodos de forte estiagem. Se você começar a pesquisar, vai perceber que eventos semelhantes estão ocorrendo com uma frequência anormal em diferentes partes do mundo – a frequência das chuvas diminuiu muito em algumas regiões do planeta, o que está facilitando a ocorrência de incêndios florestais. 

Durante muito tempo, aqui neste blog, falamos bastantes dos problemas ligados ao abastecimento e tratamento da água, geração e tratamento de esgotos, águas pluviais e também da poluição dos rios, represas, lagos e de uma infinidade de outros corpos d’água. Vamos inverter o rumo das nossas postagens e passaremos a falar um pouco dos problemas associados à falta de água, um mal que está afetando cada vez mais gente a cada ano que passa e em lugares cada vez mais inusitados. 

Até o nosso próximo post

O PROJETO MANUELZÃO E A RECUPERAÇÃO DO RIO DAS VELHAS, OU ERA UMA VEZ EM CORDISBURGO

Guimarães Rosa

João Guimarães Rosa (1908-1967) era mineiro da cidade de Cordisburgo. Foi médico, diplomata, contista, novelista e escritor – considerado um dos maiores escritores brasileiros de todos os tempos. Uma característica marcante de Guimarães Rosa era o seu profundo conhecimento de línguas – em suas próprias palavras: “Falo: português, alemão, francês, inglês, espanhol, italiano, esperanto, um pouco de russo; leio: sueco, holandês, latim e grego (mas com o dicionário agarrado); entendo alguns dialetos alemães; estudei a gramática: do húngaro, do árabe, do sânscrito, do lituânio, do polonês, do tupi, do hebraico, do japonês, do tcheco, do finlandês, do dinamarquês; bisbilhotei um pouco a respeito de outras.”

Foi talvez por causa deste imenso conhecimento linguístico que Guimarães Rosa aprendeu, como nenhum outro escritor, a falar e a escrever a língua do povo dos sertões mineiros. No início da década de 1950, ele organizou uma boiada entre a Fazenda Sirga, a 60 quilômetros de Andrequicé, um distrito de Três Marias (MG), e uma fazenda em Araçaí (MG). O objetivo do escritor era conhecer de perto os costumes e a vida do povo simples do sertão, registrando lugares, palavras, expressões e personagens típicos. A viagem durou 10 dias e serviu como base para a criação de dois dos mais importantes livros de nossa literatura – Grande Sertão: Veredas e Corpo de Baile, publicados em 1956. Entre inúmeros vaqueiros que conheceu nesta aventura, um foi marcante e acabou imortalizado em sua obra: Manuelzão, cujo nome real era Manuel Nardi. Inspirado no vaqueiro, Guimarães Rosa escreveu o conto Uma Estória de Amor, que faz parte do livro Corpo de Baile – posteriormente, esse livro foi desmembrado em três volumes: Manuelzão e Miguilim, No Urubuquaquá, no Pinhém e Noites do Sertão. Segundo alguns estudiosos, o personagem Riobaldo foi baseado no arquétipo de Manuelzão.

O Projeto Manuelzão foi criado por professores da UFMG – Universidade Federal de Minas Gerais em 1997; o nome do projeto homenageia o homem e o personagem. O projeto está ligado a uma das disciplinas obrigatórias do curso de Medicina – Internato em Saúde Coletiva, mais conhecido como “Internato Rural”. Os estudantes passam um período de três meses em pequenas cidades e municípios do interior de Minas Gerais, desenvolvendo atividades de medicina preventiva e social, algo muito parecido com o programa Saúde da Família, adotado por algumas prefeituras. Durante este “Internato”, professores e alunos passaram a perceber que só medicar a população não era o suficiente – era preciso combater as causas das doenças, ou seja, era preciso trabalhar por melhorias no saneamento básico e nas condições ambientais. Só assim seria possível promover a qualidade de vida destas populações.

A recuperação da bacia hidrográfica do rio das Velhas foi escolhida como a bandeira principal do projeto. Dentro da moderna visão da gestão ambiental a partir da bacia hidrográfica, os professores e alunos perceberam que o estudo desta região possibilita uma análise sistêmica e integrada de todos os problemas, assim como apontar quais são as intervenções necessárias. O projeto foi pensado para funcionar em parceria com os municípios compreendidos na bacia hidrográfica, com o Governo do Estado e com a sociedade, além de muitos outros parceiros. O projeto é estruturado na forma de núcleos, conhecidos como Núcleos Manuelzão, espalhados por toda da bacia hidrográfica. Nestes Núcleos, a sociedade civil é chamada para debater com o poder público e com os demais usuários das águas as questões ambientais locais, podendo contar com a parceria e orientação dos especialistas do Projeto Manuelzão.

O Projeto também desenvolve importantes atividades no campo da pesquisa, onde professores, colaboradores e estagiários trabalham no Núcleo Transdisciplinar e Transinstitucional pela Revitalização da Bacia Hidrográfica do Rio das Velhas – NuVelhas. As pesquisas se desenvolvem em diferentes campos como o biomonitoramento, geoprocessamento e a recuperação de matas ciliares. Contando como uma parceria com o curso de Comunicação Social da UFMG, o Projeto lançou o Jornal Manuelzão, que cresceu e mais tarde passou a ser a Revista Manuelzão.

Em 2003, o Projeto Manuelzão organizou uma expedição que percorreu toda a extensão do rio das Velhas, desde as nascentes na Cachoeira das Andorinhas em Ouro Preto até a foz do rio em Barra do Guaicuí. A expedição durou 29 dias e foi recebida com festa pelas comunidades, escolas e membros dos Núcleos Manuelzão. Os relatos anotados no “diário de bordo” dos expedicionários foi transformado em livro com dois volumes – Navegando o Rio das Velhas das Minas aos Gerais. O primeiro volume do livro detalha os acontecimentos da expedição e o segundo volume, mais técnico, forma uma enciclopédia sobre a bacia hidrográfica. A partir desta expedição de 2003 foi desenvolvida uma proposta, excessivamente otimista na minha opinião, para a revitalização do rio das Velhas até 2010.

A proposta recebeu o simpático nome de Meta 2010: navegar, pescar e nadar no rio das Velhas. O foco da proposta é a região do Alto rio das Velhas, a mais poluída da bacia hidrográfica, em especial o trecho entre a foz do rio Itabirito e o ribeirão Jequitibá. Como já tratado em postagem anterior, este trecho do rio sofre imensamente com os resíduos da mineração e com os lançamentos de grandes volumes de esgotos domésticos e industriais. As ações propostas incluem obras de infraestrutura de saneamento básico, educação socioambiental, mobilização social e participação popular, além de trabalhos para a recuperação de trechos da vegetação nativa e das matas ciliares.

Em 2005 foi realizado o Festivelhas Manuelzão: arte e transformação, em Morro Garça, evento que contou com a presença de artistas de todas as regiões da bacia hidrográfica. A partir do sucesso deste evento, foi realizado em 2007 o Festivelhas Jequitibá: arte e cultura na capital mineira do folclore. Em 2009, o Festivelhas foi realizado simultaneamente em maio e junho em Ouro Preto, Santa Luzia, Curvelo, Barra do Guaicuí e Belo Horizonte, como parte da programação da Expedição pelo Velhas 2009: encontros de um povo com sua bacia.

Ao longo de mais de 80 postagens nos últimos quatro meses, apresentei a lista dos dez rios mais poluídos do Brasil, mostrando os problemas e os desafios enfrentados pelas populações que vivem ao longo de suas margens e que dependem das suas águas para o abastecimento de casas e indústrias, irrigação, e também, para diluir e transportar os esgotos e rejeitos industriais das cidades e povoados. Nesta última postagem desta série, quis trazer uma mensagem diferente: ao invés de ficar reclamando dos problemas do rio, nada melhor do que arregaçar as mangas e passar a lutar pela sua recuperação, como tem feito o Projeto Manuelzão.

Concluindo, deixo as palavras de outro grande escritor mineiro – Carlos Drummond de Andrade, através das linhas iniciais de um poema onde fala de “Um chamado João”, numa homenagem ao imortal conterrâneo das Minas Gerais:

“João era fabulista?
fabuloso?
fábula?

Que vivam para sempre – João, Carlos e o rio das Velhas…

OS ALTOS E BAIXOS DA POLUIÇÃO NO RIO DAS VELHAS 

Cachoeiira das Andorinhas

O rio das Velhas é um dos mais importantes do Estado de Minas Gerais. Com sua nascente principal na cachoeira das Andorinhas em Ouro Preto (vide foto), o rio das Velhas percorre uma extensão total de 802 km até encontrar sua foz no rio São Francisco, do qual é o segundo tributário mais importante – só perde para o caudaloso rio Paracatu. A bacia hidrográfica do rio das Velhas ocupa uma área de mais de 29 mil km² dentro do Estado de Minas Gerais, onde se encontram 51 municípios, sendo que 47 estão totalmente inseridos na bacia hidrográfica e 7 parcialmente. Como acontece em outros grandes rios brasileiros, considerados altamente poluídos como o Tietê e o Iguaçu, o rio das Velhas apresenta variações na qualidade de suas águas em diferentes trechos da bacia hidrográfica. 

A bacia hidrográfica do rio das Velhas é dividida em trechos, segundo os cursos Alto, Médio e Baixo. O Alto rio das Velhas é o trecho onde encontramos a maior densidade populacional e, logo, a maior quantidade de problemas de qualidade das águas, classificada como Ruim. Este trecho vai de Ouro Preto até o trecho onde se encontra o rio Paraúna. Deste ponto até o córrego Salobinho na divisa dos municípios de Curvelo e Corinto fica o chamado trecho do Médio rio das Velhas, com água com qualidade considerada Média; o trecho final até a foz do rio no Rio São Francisco é conhecido como Baixo rio das Velhas e apresenta uma água considerada de Boa qualidade. Esses diferentes níveis de qualidade estão associados ao uso das águas, que varia muito ao longo da bacia hidrográfica em função dos diferentes processos de uso e ocupação do solo. Na região Metropolitana de Belo Horizonte, conforme apresentamos na última postagem, o rio das Velhas sofre com o lançamento de grandes volumes de esgotos domésticos, industriais e despejos de lixo e resíduos sólidos nas águas de muitos dos seus tributários; na região do Quadrilátero Ferrífero, como já diz o próprio nome, são as atividades ligadas à mineração as principais responsáveis pelos problemas que afetam a qualidade das águas, em especial o assoreamento por rejeitos da mineração e a contaminação por metais pesados e produtos químicos. O Quadrilátero Ferrífero tem o município de Ouro Preto no limite Sul dessa região e os municípios de Belo Horizonte, Contagem e Sabará como limite Norte. Desmatamentos, agricultura, poluição por agrotóxicos e pecuária são outras atividades desenvolvidas ao longo da bacia hidrográfica do rio das Velhas e que também contribuem, em diferentes graus, com os problemas ambientais das águas. 

As atividades ligadas a mineração estão entre as principais degradadoras da qualidade ambiental das águas do rio das Velhas.  Os solos da bacia hidrográfica apresentam grandes veios de minerais metálicos e não metálicos, especialmente no trecho do Alto rio das Velhas, entre São Bartolomeu e Sete Lagoas. Essa região, mais conhecida como Quadrilátero Ferrífero, é de extrema importância econômica para o Estado de Minas Gerais – ela representa mais de 90% da arrecadação do ICMS da atividade extrativa mineral no Estado. Os minerais mais importantes da região são o ferro, cobre, manganês, arsênio, urânio, alumínio e ouro. Uma espécie de subproduto das atividades mineradoras são os famosos rejeitos – os minerais nunca são encontrados em estado puro nos solos e precisam passar por processos que realizam a separação das impurezas, que formam os chamados rejeitos da mineração. Esses rejeitos minerais, juntamente com lama e areia, são armazenados em barragens, projetadas para permitir a percolação da água e a compactação da massa de resíduos sólidos. Além dos problemas ligados à contaminação dessa água percolada com metais pesados, que chegará aos rios, essas barragens de rejeitos de mineração podem apresentar riscos de rompimento, como o que aconteceu em Mariana e que destruiu o rio Doce em 2015. Além dos riscos das barragens chamadas ativas, existem diversas barragens abandonadas e sem manutenção, que apresentam riscos iminentes de rompimento – um exemplo citado em postagens anteriores são as barragens da extinta Mundo Mineração em Rio Acima, onde existem rejeitos contaminados com arsênio. O rio das Velhas atravessa uma parte da região do Quadrilátero Ferrífero e recebe uma classificação da Qualidade da Água Ruim no trecho. No médio curso do rio das Velhas existe a exploração de calcário, usado como matéria prima na indústria de cimento, enquanto a extração de areia ocorre ao longo de toda a bacia hidrográfica. 

Outra grande fonte de degradação ambiental, comentada na última postagem, são os lançamentos de esgotos domésticos e industriais nas águas do rio das Velhas. Os municípios que mais contribuem com esses efluentes são Nova Lima, Belo Horizonte, Caeté, Sabará, Pedro Leopoldo, Santa Luzia, Lagoa Santa, Sete Lagoas, Baldim e Santana do Pirapama. Além de apresentarem baixos índices de coleta ou de tratamento dos esgotos domésticos, estes municípios apresentam importantes polos com indústrias de adubos e fertilizantes, bebidas, matadouros, fábricas de papel e papelão, leite e laticínios. Este trecho do rio das Velhas, que recebe toda esta carga de poluentes através de ribeirões como o Arrudas, o Onça e o Matadouro, além dos os córregos Caeté e Diogo, recebe a classificação de Qualidade da Água Muito Ruim

De acordo com dados fornecidos pela COPASA – Companhia de Saneamento de Minas Gerais, no município de Belo Horizonte são coletados 96% dos esgotos gerados e 70% deste volume recebe o tratamento. Conforme comentado na postagem anterior, a empresa admite que mais de 25 mil imóveis na bacia hidrográfica do Ribeirão Arrudas não estão ligados na rede coletora de esgotos já instalada, o que contribui para os altos índices de poluição nas águas. De acordo com dados da FEAM – Fundação Estadual do Meio Ambiente, existem diversos municípios com índices muito baixo de tratamento de esgotos na região. O município de Sete Lagoas coleta 97,5% dos esgotos, porém, só trata 15% deste volume. Em Caeté, a situação é ainda pior: 90% dos esgotos são coletados e somente 3% recebem o tratamento. No município de Santa Luzia são tratados cerca de 21% dos 78% dos esgotos coletados; em Baldim coleta-se 99% do esgoto gerado, mas não há estação de tratamento de esgoto; em Funilândia coleta-se 38,52% do esgoto gerado e não há tratamento. 

A produção agropecuária se concentra nas regiões do Médio e Baixo rio das Velhas, com destaques para a produção de soja, milho, feijão, cana-de-açúcar, mandioca, café e tomate. A área ocupada pelas atividades agropecuárias corresponde a 1% da área total da bacia hidrográfica. A silvicultura, especialmente a produção de eucalipto, ocupa uma área equivalente a 4,1% da bacia hidrográfica. Já as áreas de pastagens usadas pela pecuária extensiva ocupam 45,6% da área da bacia, senda a atividade mais importante do trecho do Médio Rio das Velhas. As atividades agropecuárias representam baixos impactos para as águas do rio das Velhas. A enorme capacidade de autodepuração dos rios, associada aos grandes volumes de águas que o rio das Velhas recebe de muitos dos seus tributários, se reflete na qualidade das águas: no Médio rio das Velhas a Qualidade é considerada Média e no Baixo rio das Velhas é considerada de Boa Qualidade, o que é fundamental para ajudar na combalida “saúde” ambiental do rio São Francisco. 

Entre altos e baixos, o rio das Velhas segue na sua luta pela sobrevivência.

A POLUIÇÃO NOS RIBEIRÕES ARRUDAS, ONÇA E ISIDORO

Canalização de Córrego em BH

Em qualquer lugar do Brasil, quando se fala em Minas Gerais, as primeiras lembranças que vem a mente das pessoas incluem a tradicional culinária mineira, os queijos, as montanhas e, principalmente, as cidades históricas que nasceram durante o Ciclo do Ouro no século XVIII. Muitos são levados a pensar, inclusive, que a grande cidade de Belo Horizonte, atual capital do Estado, nasceu neste período. A história é um pouco diferente:

A histórica Ouro Preto foi capital da Província até 1897. Com suas ladeiras íngremes e ruas apertadas, a cidade não apresentava condições técnicas para ampliação da estrutura administrativa do Governo de Minas Gerais. Para resolver este problema, a região do antigo Arraial Curral del Rei foi escolhida em 1893 para sediar a nova capital de Minas Gerais. Em 1894, foi iniciada a construção de uma cidade totalmente planejada e moderna – em 1897 foi inaugurada a Cidade de Minas, nome que foi mudado para Belo Horizonte em 1901. O resto virou história. A nova capital nasceu e cresceu ao redor de um importante curso d’água – o Ribeirão Arrudas.

O Ribeirão Arrudas tem nascentes na Serra do Rola Moça e atravessa toda a cidade de Belo Horizonte até desaguar no rio das Velhas, no município de Sabará. Ao longo do seu curso de cerca de 40 km, o Arrudas recebe contribuições de uma infinidade de córregos: Jatobá, Barreiro, Bonsucesso, Cercadinho, Piteiras, Leitão, Acaba Mundo, Serra, Taquaril, Navio-Baleia, Santa Terezinha, Ferrugem, Tijuco, Pastinho entre outros. Como sempre aconteceu na história da maioria das cidades brasileiras, o Ribeirão Arrudas, desde os primeiros anos da fundação de Belo Horizonte, passou a funcionar como um coletor de esgotos da cidade: as casas e edifícios foram sendo construídos e as manilhas de esgotos foram instaladas sob as ruas e avenidas, com as saídas de efluentes nas margens do Ribeirão. Com o processo de industrialização, os efluentes industriais em escala crescente também descobriram rapidamente o Ribeirão dos Arrudas. O forte crescimento urbano estrangulou as margens do Arrudas para permitir a construção de grandes avenidas, o que somado à destruição de áreas verdes e a impermeabilização dos solos trouxe as grandes enchentes dos períodos das chuvas.

De acordo com as medições feitas pelo IGAM – Instituto Mineiro de Gestão das Águas, o Ribeirão Arrudas é o tributário mais poluído do Alto Rio das Velhas. As águas escuras, contaminadas por esgotos e lixo, é o resultado dos despejos dos esgotos domésticos de Belo Horizonte, Contagem e Sabará e também de efluentes de uma infinidade de indústrias dos ramos da metalurgia, siderurgia, química e têxtil. Dados disponíveis indicam que, somente nas sub-bacias dos Ribeirões Arrudas e do Onça, existem mais de 3.100 indústrias, das quais metade são consideradas poluidoras, uma vez que as indústrias não realizam um adequado tratamento dos efluentes. O Ribeirão Arrudas, juntamente com os Ribeirões Onça e Isidoro são os grandes poluidores do rio das Velhas, poluição que se soma aos efeitos dos resíduos da mineração já presentes nas águas do rio.

Os níveis de poluição no Ribeirão Arrudas estão muito próximos dos níveis encontrados em rios “campeões” no ranking dos mais poluídos do Brasil como o Tietê, o Iguaçu e rio dos Sinos. Tecnicamente, o Ribeirão Arrudas é classificado como um corpo d’água Classe 3, categoria onde as águas podem ser captadas e utilizadas para consumo humano após um tratamento convencional ou avançado, podem ser usadas para dessedentação animal, para irrigação e também para a navegação. Na prática, porém, os altos níveis de poluição nas águas estão muito mais próximos da chamada Classe 4, denominação usada para indicar corpos d’água altamente poluídos, com uso restrito apenas a navegação e para compor a harmonia paisagística como em lagos e lagoas. Testes laboratoriais indicam que os níveis de coliformes (bactérias encontradas no intestino humano e que são eliminadas junto com as fezes), de fósforo, manganês e de detergentes domésticos estão acima dos limites permitidos pela legislação.

O crescimento desordenado das cidades onde se incluem grandes loteamentos clandestinos e áreas de invasão, não foi acompanhado de um crescimento proporcional das infraestruturas de saneamento básico – historicamente, sempre que as populações não dispõem de sistemas de tubulações apropriados para o lançamento dos esgotos gerados em suas casas, partem para o improviso: moradores se juntam em mutirões e constroem suas próprias redes coletoras de esgotos, onde na ponta final sempre existe um córrego ou rio que vai funcionar como o “coletor principal” dos esgotos do sistema .

Outra fonte importante de poluição conhecida das autoridades são os imóveis que não foram ligados às redes coletoras instaladas pelas empresas de saneamento das cidades. Esse “esquecimento” da parte dos moradores tem uma razão muito clara: evitar a cobrança da taxa de coleta, afastamento e tratamento dos esgotos que, normalmente, faz o valor da conta de água dobrar. De acordo com a COPASA – Companhia de Saneamento de Minas Gerais, existem mais de 25 mil imóveis que não foram ligados às redes coletoras de esgotos já instaladas e em operação na bacia hidrográfica do Ribeirão Arrudas. Se considerarmos que em cada um destes imóveis vivem 4 pessoas, estamos falando do volume de esgotos de 100 mil habitantes sendo lançado diariamente em sarjetas, ruas e redes de águas pluviais, que desaguarão em algum momento no Ribeirão Arrudas.

Existe um outro problema que nem sempre aparece nas listas de poluidores dos rios – a chamada poluição difusa. Todo o lixo descartado nas ruas e calçadas, restos de legumes, frutas e verduras das feiras livres, poeira, areia, resíduos de pneus, óleo e graxa de veículos, restos da construção descartados irregularmente, animais domésticos mortos, entre outras agressões ambientais diárias, acabam sendo carreados pelas águas das chuvas ou são lançados diretamente nas águas pela população – aqui vale lembrar que na bacia hidrográfica do Arrudas vive uma população estimada em 1,6 milhão de habitantes e muita gente usa o Ribeirão como lixeira. 

Uma outra causa importante que ajuda a explicar os altos níveis de poluição no Ribeirão Arrudas e comum em outras grandes cidades brasileiras são os chamados “rios invisíveis” (vide foto). Explico: durante o processo de crescimento desordenado das grandes cidades, os governantes descobriram que, canalizando ou desviando córregos e rios urbanos, surgiriam áreas livres para serem utilizadas para a construção de grandes avenidas, as chamadas Vias de Fundo de Vale. Com o “desaparecimento” repentino dos córregos e rios sob uma grossa camada de terra e asfalto, ficou muito difícil de se saber onde estão as ligações e despejos irregulares de esgotos e efluentes, que só irão dar as “caras” nas águas do Ribeirão Arrudas. Muitos destes “rios invisível” estão escondidos e esquecidos há tanto tempo no subsolo que só voltam a serem lembrados quando ocorre o desabamento de uma laje ou de uma tubulação de concreto – eventualmente, durante os reparos deste problema, algum funcionário da prefeitura ou da companhia de saneamento irá descobrir uma ligação clandestina de esgotos. Na maioria das vezes, é muito difícil encontrar esses “gatos”.

E é assim que os Ribeirões Arrudas, Onça e Isidoro, entre tantos outros de tantas cidades, dão a sua “singela” contribuição para transformar o rio das Velhas num dos mais poluídos do Brasil.

ROMPIMENTO DE UM DUTO DE REJEITOS EM OURO PRETO, OU OS FANTASMAS DA BARRAGEM DE MARIANA

Barragem de rejeitos de mineração

No início do último mês de maio, acorreu o rompimento de um duto de rejeitos da Mina de Fábrica, que ocupa uma área entre as cidades de Congonhas e Ouro Preto – o vazamento só foi identificado no dia 13. Com o vazamento, o Córrego Prata foi contaminado, atingindo depois o Córrego Almas e na sequência o Ribeirão Mata Porcos que se transforma no Rio Itabirito, afluente do rio das Velhas.

Em 17 de agosto, um novo vazamento em uma tubulação da Mina de Fábrica atingiu cinco mananciais da região e só não teve consequências maiores porque a maior parte dos rejeitos acabou acumulada na represa da PCH – Pequena Central Hidrelétrica, Agostinho Rodrigues. Esta centenária geradora de energia elétrica já foi responsável pelo abastecimento da cidade de Itabirito e hoje é a responsável pelo abastecimento de energia elétrica para uma tecelagem. A represa, que já chegou a ter uma profundidade máxima de 14 metros, atualmente tem uma profundidade média de 4 metros – em alguns pontos esta profundidade não passa de 2 metros. A PCH opera hoje com uma capacidade de geração elétrica reduzidíssima.

A barragem já sofreu enormes danos estruturais devido a sucessivos vazamentos de rejeitos e a situação é considerada tão crítica que os técnicos responsáveis afirmam que as comportas não podem ser abertas. A mancha de resíduos desse último vazamento atingiu 70 km de extensão no leito do rio das Velhas e chegou bem perto do ponto de captação de água para o abastecimento da Região Metropolitana de Belo Horizonte. O rio das Velhas é o maior manancial de abastecimento da Região Metropolitana, fornecendo até 70% do total de água usada pela cidade de Belo Horizonte e também 40% da água usada pelos demais municípios da Região.

Em 10 de setembro de 2014, o rompimento de um dique de contenção da Mineração Herculano, que resultou na morte de três funcionários, trouxe uma imensa onda de rejeitos minerais para a represa. No ano seguinte, um erro de operação na Barragem Forquilha VI, da mesma Mina de Fábrica, trouxe uma outra grande onda de rejeitos minerais para a represa da PCH. Com o último vazamento de rejeitos em setembro, a situação da barragem atingiu um ponto crítico e, tanto a empresa responsável pela operação da PCH quanto a Defesa Civil de Itabirito, temem pelo rompimento da estrutura caso ocorram chuvas fortes na região. As autoridades ambientais do município afirmam ser necessária a elaboração de um plano para a retirada dos resíduos que ameaçam a represa.

A proprietária da Mina de Fábrica é uma velha conhecida de todos vocês – a Vale do Rio Doce, que não por acaso é uma das proprietárias da Samarco Mineração em sociedade com a anglo-australiana BHP Billiton. Para quem não lembra, foi a barragem de rejeitos de mineração da Samarco na cidade de Mariana que se rompeu em 2015, matando 19 pessoas, arrasando o Distrito de Bento Rodrigues e destruindo o Rio Doce, naquela que é considerada a maior tragédia ambiental já ocorrida no Brasil. Passados dois anos desde o acidente, o rio Doce está longe de voltar aos níveis de qualidade existentes antes do acidente e as cidades das bacia hidrográfica continuam enfrentando sérios problemas para abastecer suas populações com água potável; agricultores, pescadores e demais antigos usuários das águas do rio Doce continuam sem alternativas para retomar as suas atividades.

Esses exemplos mostram os problemas que a mineração vem causando ao rio das Velhas e as ameaças que representam para o abastecimento de água dos 6 milhões de habitantes da Região Metropolitana de Belo Horizonte e demais cidades e usuários ao longo das suas margens.

Em Minas Gerais existem mais de 700 barragens, sendo que, pelo menos, 450 são utilizadas para o armazenamento de rejeitos de empresas de mineração, uma das principais atividades econômicas do Estado. Existem 46 barragens de rejeitos na região do Alto Rio das Velhas, de acordo com o Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM) – um acidente de grandes proporções em qualquer uma destas estruturas pode transformar o rio das Velhas em um curso de águas mortas, como aconteceu com o rio Doce, e levar a Região Metropolitana de Belo Horizonte e outras cidades que usam as águas do rio a ter sérios problemas para o abastecimento de suas populações.

Uma das situações mais críticas poderá ser encontrada nas barragens da Mundo Mineração em Rio Acima (vide foto), uma antiga mineradora que extraía ouro a céu aberto e que encerrou suas atividades em 2011. As duas barragens utilizadas pela empresa estão cheias de resíduos dos processos da extração do ouro, especialmente arsênico, um metal pesado altamente tóxico. Sem receber manutenção há muito tempo, as barragens de terra compactada estão cobertas por mato e apresentam sinais de erosão. O arsênico (trióxido de arsênio) é carcinogênico para seres humanos e a sua ingestão oral é responsável por aumento na incidência de tumores no fígado, sangue e pulmões. Todos os compostos de arsênio são tóxicos. A dose letal para humanos é de 1 a 2 mg/kg por peso do corpo.

As autoridades dos diversos níveis de governo vêm sendo alertadas sistematicamente por grupos ambientalistas sobre os riscos de rompimento destas barragens e seus impactos na água utilizada para abastecimento de populações humanas. Suspeita-se, inclusive, que resíduos das barragens já estejam vazando e contaminando as águas lentamente. Os especialistas alertam que é preciso reforçar as barragens e manter um programa de monitoramento contínuo. Providências até o momento – nenhuma.

Além das grandes mineradoras e suas problemáticas barragens de rejeitos de mineração, a bacia hidrográfica do rio das Velhas está cheia de pequenos mineradores ilegais, os famosos garimpeiros, que montam dragas nas águas dos rios e trabalham na busca do cobiçado ouro. Além dos grandes volumes de sedimentos lançados pelas dragas nas águas, os garimpeiros utilizam o mercúrio, um outro metal tóxico, para separar o ouro dos outros minerais. Além de provocar graves danos à saúde dos garimpeiros, o mercúrio pode contaminar o solo, as águas e se acumular ao longo da cadeia alimentar dos rios – peixes contaminados por mercúrio poderão contaminar as pessoas que venham a comer sua carne.

As atividades mineradoras também afetam a flora e a fauna – trechos de matas são removidos para permitir o acesso aos veios minerais, provocando a fuga de animais silvestres pela destruição dos seus habitats. O carreamento de sedimentos gerados pelas escavações das mineradoras atinge as calhas dos rios, o que cria todas as condições para enchentes e transbordamentos nos períodos de chuva. Muitos trechos do rio das Velhas lembram muito a represa da PCH citada no início da postagem – há muito mais sedimento do que água na calha.

Continuamos no próximo post.

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O ROMPIMENTO DA BARRAGEM EM BRUMADINHO, OU SERIA UMA CRÔNICA DE UMA TRAGÉDIA ANUNCIADA?

RIO DAS VELHAS, O 6° RIO MAIS POLUÍDO DO BRASIL

Rio das Velhas

A Região Metropolitana de Belo Horizonte se apresenta como a terceira maior aglomeração urbana do Brasil, com uma população total de aproximadamente 6 milhões de habitantes. A Região é o centro político, financeiro, comercial e cultural do Estado de Minas Gerais, concentrando aproximadamente 40% do PIB estadual e 25% da população do Estado. Toda essa grandiosidade numérica se concentra nos arredores de um rio poluído e malcheiroso que é, ao mesmo tempo, o principal manancial de abastecimento de água e o principal corpo hídrico receptor dos esgotos da população da Região Metropolitana – o rio das Velhas. Não por acaso, o rio das Velhas é classificado como o 6° rio mais poluído do Brasil.

A água do rio das Velhas é captada a montante da região, ou seja, antes das águas se aproximarem da Região Metropolitana, em um trecho onde a água apresenta condições de qualidade mais favoráveis. A água tratada e potabilizada é distribuída para a população e, após o uso, é devolvida para a bacia hidrográfica do Rio das Velhas com muito esgoto in natura, despejados em afluentes como o Ribeirão Arrudas e Ribeirão do Onça. Esta situação se repete em centenas de rios que abastecem pequenas e médias cidades de todo o Brasil, onde a água dos rios é tratada da mesma maneira. Grandes volumes de esgotos são lançados  no leito de rios como o das Velhas, se misturando aos resíduos da mineração, da agricultura e ao lixo gerado nas cidades, degradando cada vez mais os caudais que chegam aos grandes rios. Estamos falando demoradamente destes temas nesta sequência de postagens, onde apresentamos situações exatamente iguais em rios como o Tietê, em São Paulo, rio Iguaçú, no Paraná, rios Capibaribe e Ipojuca em Pernambuco, entre muito outros.

O Rio das Velhas é hoje um corpo hídrico altamente poluído e malcheiroso, especialmente a jusante da Região Metropolitana de Belo Horizonte, apresentando altos volumes de esgotos nas suas águas barrentas e em tons vermelhos, cores resultantes da grande quantidade de resíduos de mineração, atividade econômica das mais importantes do Estado de Minas Gerais e causadora de inúmeros problemas ambientais. O alto grau de assoreamento da calha do rio das Velhas também é marcante. Não custa lembrar que o rio das Velhas é o mais extenso e um dos mais importantes afluentes do rio São Francisco, de longe o mais importante rio da região Nordeste – o São Francisco e toda a população das cidades ao longo de suas margens sofrem com a redução cada vez maior do volume de suas águas, com o assoreamento da calha e com a redução dos estoques de peixes. A destruição de afluentes importantes como o rio das Velhas está na raiz dos problemas do nosso Velho Chico.

A história de Minas Gerais se confunde com a própria história do rio das Velhas – durante o histórico Ciclo do Ouro, o rio foi um dos principais eixos da mineração na região central de Minas Gerais, ligando a cidade de Ouro Preto, antiga capital da Província e onde fica a nascente do rio, e também importantes cidades como Sabará e Santa Luzia ao Rio São Francisco. O sertão nordestino se transformou num grande fornecedor de carne e outros alimentos no período da mineração na região das chamadas Geraes e o vale do rio São Francisco era a principal rota de acesso, tanto por caminhos marginais quanto por embarcações fluviais. Esse intenso vai e vem de pessoas e de mercadorias nas águas dos rios São Francisco e das Velhas levou ao surgimento de inúmeras vilas e povoados ao longo de suas margens, que ao longo dos séculos se transformaram em importantes municípios com forte vocação em mineração e em diversos setores industriais.

A bacia hidrográfica do Rio das Velhas abrange 34 municípios, com destaque para grandes cidades como Belo Horizonte, Contagem, Betim, Nova Lima e Lagoa Santa. A Região tem forte concentração industrial – somente nas sub-bacias dos Ribeirões Arrudas e do Onça existem mais de 3.100 indústrias, das quais metade são consideradas poluidoras, uma vez que as indústrias não realizam um adequado tratamento dos efluentes. Além dos esgotos industriais, as águas recebem enormes quantidades de esgotos domésticos e resíduos da mineração, além de resíduos sólidos descartados de forma inadequada pelas cidades.

Com o fim do chamado Ciclo do Ouro, houve um longo período de decadência nas cidades mineiras, que pouco a pouco foram encontrando um novo caminho. O sub solo rico em minerais ferrosos e a forte tradição em atividades de mineração, herdadas dos áureos tempos do ouro, criaram as bases para uma economia que só se fortaleceu com o início da industrialização do país, onde ferro e aço estão na base da cadeia produtiva. A intensa extração mineral cobrou seu preço em Minas Gerais: a mineração sem maiores preocupações com o meio ambiente provocou enormes estragos nos rios da região, incluindo-se aqui o rio das Velhas, que sofreu (e ainda sofre) com o carreamento de sedimentos e resíduos da mineração. A fundição dos metais exige grandes quantidades de energia, tradicionalmente gerada pela queima de carvão mineral; na falta de grandes fontes de carvão (só existem minas de carvão na região Sul do Brasil), as fundições e siderúrgicas de Minas Gerais sempre se valeram do carvão de origem vegetal, o que levou à destruição de grandes extensões de matas, com consequências diretas na destruição de inúmeros cursos d’água – o rio das Velhas sofreu e ainda sofre muito com essa destruição da cobertura vegetal.  Vamos explorar todos estes temas ao longo de várias postagens.

Finalizando, uma pequena ironia do destino: a cidade de Ouro Preto, além de toda a sua importância para a história do Brasil, é um marco importante na história do saneamento básico no Brasil – foi uma das primeiras cidades brasileiras a implantar um sistema de águas e esgotos com estações de tratamento, a partir da década de 1870. O Museu da Inconfidência que fica na cidade tem entre suas peças em exposição algumas curiosas manilhas de esgotos antigas, feitas em pedra sabão, datadas do século XVIII. Infelizmente, essa iniciativa pioneira do saneamento básico em Ouro Preto não avançou e os cuidados com as preciosas águas dos muitos rios da região ficaram muito aquém do que seria esperado – o rio das Velhas é um desses.

Continuamos no próximo post.

 

O COMPLEXO LAGUNAR GUAÍBA / LAGOA DOS PATOS

Junqueiro do bico reto

Quando olhamos a região das planícies úmidas onde está inserida a Lagoa do Patos e o Lago Guaíba a partir de uma certa altitude – imagine que você está usando um software como o Google Earth, percebemos claramente que a região inteira forma um grande mosaico de ecossistemas interdependentes, com rios, arroios, lagos, banhados, campos e dunas. Sob este ponto de vista, você irá verificar que os poluídos rios dos Sinos, Gravataí e Caí, além do importante rio Jacuí, são os grandes fornecedores de água do sistema. Uma enorme mancha urbana na porção Norte da área representará a Região Metropolitana de Porto Alegre. Observando com um pouco mais de atenção, você vai verificar que a área onde fica o município de Porto Alegre forma uma espécie de “ilha”, cercada pelas águas do Guaíba, Delta do Jacuí, rio Gravataí e áreas úmidas no trecho que segue em direção ao Oceano Atlântico – minha última postagem, quando falei da perda de biodiversidade no Lago Guaíba, se concentrou nesta área. Os problemas de perda de biodiversidade, infelizmente, são muito maiores e ocorrem em toda essa macrorregião lagunar. As alterações observadas nas populações de aves da região sintomatizam os problemas.

O Estado do Rio Grande do Sul possui um total de 661 espécies de aves catalogadas, sendo que, desse total, cerca de 130 estão ameaçadas de extinção. As causas do desaparecimento das espécies se devem, especialmente, à destruição dos habitats pelo desmatamento e avanço das fronteiras agrícolas, poluição das águas e impactos de todos os tipos em antigos refúgios naturais como as planícies úmidas entre o Lago Guaíba, a Lagoa dos Patos e os campos e dunas ao longo do litoral – nesta extensa região, há registros de mais de 250 espécies de aves.

Numa rápida consulta a Lista das Espécies da Fauna Ameaçadas de Extinção no Rio Grande do Sul, encontramos diversas espécies que tem habitat fixo ou temporário (no caso das espécies migratórias), na região das planícies úmidas: maçarico-acanelado (Calidris subruficollis) – migratória, Gaivota-de-rabo-preto (Larus atlanticus), curiango-do-banhado (Hydropsalis anômala), Junqueiro-de-bico-reto (Limnornis rectirostris), Boininha (Spartonoica maluroides), Estalador (Corythopis delalandi), noivinha-de-rabo-preto (Xolmis dominicanus), coleiro-do-brejo (Sporophila collaris), veste-amarela (Xanthopsar flavus), albatroz-de-tristão (Diomedea dabbenena), albatroz-errante (Diomedea exulans) – migratória, albatroz-de-nariz-amarelo (Thalassarche chlororhynchos) – migratória, Petrel-gigante-do-sul (Macronectes giganteus) – migratória, pardela-preta (Procellaria aequinoctialis), pardela-de-óculos (Procellaria conspicillata), gavião-cinza (Circus cinereus), entre outras.

Além dos problemas associados à poluição das águas, com todos os impactos na vida das criaturas aquáticas, tema que já tratamos em sucessivas postagens, as ameaças a avifauna tem outros componentes – a destruição e redução de habitats é uma das principais. Dois exemplos:

– O Mexilhão Dourado (Limnoperna fortunei), sobre o qual já falamos em postagens anteriores, é um molusco originário de rios do sudeste asiático e que chegou na América do Sul na década de 1990, muito provavelmente na água de lastro de cargueiros lançadas nas águas do rio da Prata. A espécie invasora rapidamente colonizou os rios Uruguai, Paraná, Paraguai, Grande e Parnaíba, além de invadir a Lagoa dos Patos e o Lago Guaíba – já existem registros do mexilhão dourado nas ilhas do Delta do Jacuí.

Uma característica do mexilhão dourado é a sua preferência pelas raízes das plantas aquáticas, onde se fixa e passa a se alimentar de plâncton e fitoplanton que filtra das águas. A presença do molusco nas raízes enfraquece as plantas, que sucumbem à força dos ventos e das ondas. Um exemplo são os juncos, encontrados em grande quantidade nas margens dos corpos d’água e áreas úmidas. Com a redução das áreas de juncos, várias espécies de aves perdem suas áreas de nidificação e alimentação – um exemplo é o Junqueiro-de-bico-reto (Limnornis rectirostris – vide foto).

– Um outro problema que vem causando forte impacto neste complexo ecossistema é a perda contínua de áreas para a agricultura. Vou citar como exemplo a Reserva Ecológica do Taim, localizada entre a Lagoa Mirim e o Oceano Atlântica. A área ocupada pela reserva é de 10.938 hectares – a área original do banhado já foi 10 vezes maior e sucumbiu diante do avanço dos cultivos de arroz.

O avanço do mexilhão dourado e a destruição dos juncais lembra um caso parecido – a caça indiscriminada da lontra marinha (Enhydra lutris), prima da nossa lontra (Lontra longicaudis), no Nordeste do Oceano Pacífico e a morte das florestas de kelps, uma espécie de alga gigante. A espessa pele da lontra marinha era muito cobiçada em épocas passadas e o animal foi caçado entre 1741 e 1911 até beirar a extinção. Com o desaparecimento das lontras, os ouriços-do-mar, um dos alimentos preferidos das lontras, começaram a se multiplicar sem controle – o animal passou a comer as raízes dos kelps, o que reduziu imensamente as suas florestas. Os kelps eram áreas de abrigo e reprodução de peixes e crustáceos, que simplesmente desapareceram da região, com fortíssimos impactos na pesca regional. Quando a caça à lontra foi proibida, a espécie se recuperou e voltou a manter os ouriços-do-mar sob controle – as florestas de kelps voltaram a se expandir, para a alegria de milhares de pescadores. Observem que houve uma verdadeira “reação em cadeia” de ida e volta. É exatamente isto que está acontecendo com diversas espécies de aves nas regiões lacustres do Rio do Grande do Sul com o avanço do mexilhão dourado e a destruição dos juncais, sem que tenhamos descoberto uma forma de controlar a expansão do molusco.

O controle das fontes de poluição das águas e impedimento do avanço da agricultura nas áreas úmidas representam uma parte importante para solução dos problemas da avifauna nas planícies úmidas do extremo Sul. Já o controle do avanço do mexilhão dourado ainda não é possível, justamente pela falta de um predador natural como as lontras marinhas comedoras dos ouriços.

Faço votos que, enquanto escrevo está postagem, em algum lugar nas margens do Guaíba, uma lontra gordinha e dentuça descubra um jeito de dar uma “coelhada” para quebrar a casca de um mexilhão dourado e que goste do petisco. Como não há, acredito eu, uma Universidade das Lontras, essa técnica de caça será passada apenas para os descentes desta lontra, que ao longo de muitas gerações poderá até formar uma nova espécie – a Lontra monicaes (estou, é claro, fazendo referência neste comentário à impagável Mônica do desenhista Maurício de Sousa). Quando algo parecido com isso acontecer, o descontrole das populações do mexilhão dourado estará com seus dias contados.

Já existem muitas iniciativas para a preservação da região: o Parque Estadual de Itapuã, no encontro das águas do Guaíba com a Lagoa dos Patos é uma delas. O Parque apresenta ambientes de morros, praias, dunas, lagoas e banhados dentro da Região Metropolitana de Porto Alegre. Entre as espécies protegidas estão o bugio-ruivo (Aloutatta guariba), ameaçado de extinção, a nossa lontra (Lontra longicaudis), o gato-maracajá (Leopardus wiedii), e também aves migratórias como o maçarico-acanelado (Tryngites subruficollis) e o suiriri (Tyrannus melancholicus). Outro exemplo é a Reserva Biológica do Lami. Localizada a cerca de 50km da área central Porto Alegre, a Reserva margeia o Guaíba e protege uma área de transição entre a Mata Atlântica e os Campos Sulinos. Entre algumas raridades destaca-se a Ephedra, uma planta que foi a motivação inicial para criação da reserva na década de 1970.

Que surjam muitas outras iniciativas como essas enquanto a nossa Lontra monicaes não desponta…

AINDA FALANDO DA PERDA DE BIODIVERSIDADE NO GUAÍBA

Lontra

Na nossa última postagem, começamos a falar da perda de biodiversidade nas águas do Lago Guaíba e falamos dos problemas enfrentados pelas espécies de peixes. Vamos prosseguir avaliando a situação de outras espécies animais e vegetais que vivem em ambientes semiaquáticos e terrestres ligados diretamente ao Lago Guaíba. Peço que vocês prestem atenção nesta verdadeira “colcha-de-retalhos” de inter-relações entre as espécies vivas, ambientes e as ações antrópicas. 

Entre as causas antrópicas que provocam a perda de biodiversidade destacam-se a expansão das áreas urbanas e as atividades produtivas como a agricultura, pecuária e mineração. O crescimento das cidades se dá pela transformação de áreas rurais e naturais em áreas chamadas urbanizadas – isto significa a derrubada de matas e sua substituição por edificações, aterramento e ocupação de áreas de banhado e de inundação, a impermeabilização de solos para a formação de quintais, pátios de estacionamentos, pavimentação de ruas e avenidas, entre outras. A cidade de Porto Alegre, a maior da região do Lago Guaíba, possui uma população de mais de 1,5 milhão de habitantes e ocupa uma área superior a 500 km², área urbana que foi tomada sistematicamente dos antigos refúgios e áreas naturais. Além de substituir ambientes naturais por edificações e ruas pavimentadas, as cidades funcionam como obstáculos para a migração e movimentação de espécies dentro do território, problema que trará dificuldades para a reprodução de espécies animais e para a dispersão de sementes de inúmeras plantas – espécies animais e vegetais restritas a um território reduzido têm menores chances de sobrevivência no longo prazo. A conurbação, processo de fusão de cidades resultante do crescimento contínuo das manchas urbanas, é um complicador maior da divisão e fragmentação de habitats aquáticos e terrestres na Região Metropolitana de Porto Alegre – uma extensa faixa que começa nas margens do Guaíba e segue até Campo Bom ao Norte e até Gravataí a Leste, é, praticamente, uma única cidade. Essa extensa mancha urbana interrompeu “caminhos” naturais que ligavam, por via terrestre e aquática, as margens do Lago Guaíba com as margens dos rios Gravataí, dos Sinos e Caí. Animais terrestres, que ocupam nichos ecológicos entre as áreas úmidas, campos e as matas da região como o bugio-ruivo (Aloutatta guariba), ameaçado de extinção, o gato-maracajá (Leopardus wiedii), gambá-de-orelha-branca (Didelphis Albiventris), ouriço-cacheiro (Sphiggurus villosus), gato-do-mato (Leopardus tigrinus), entre outros, sofrem imensamente com essa fragmentação, com isolamento de populações e falta de acesso a áreas de alimentação e de reprodução.

Dentro do nosso processo histórico de crescimento das cidades, cursos d’água foram transformados em coletores de esgotos e são muitas vezes os responsáveis pelos despejos de poluentes em rios e lagos de maior porte, criando toda uma série de problemas ambientais – nas regiões de entorno do Lago Guaíba foi isso que aconteceu. Na esteira dos esgotos, como todos sabemos, sempre vem o lixo e os resíduos. Populações necessitam de água e alimentos – fontes de água são represadas e sistemas de tratamento e de distribuição têm de ser construídos, aumentando ainda mais os desmatamentos e a impermeabilização de solos. Cidades normalmente são cercadas por áreas agrícolas conhecidas como “cinturão verde”, onde tradicionalmente são produzidos verduras e legumes frescos – a criação destas áreas agrícolas forçará ainda mais o avanço contra as área naturais remanescentes. Também há o problema dos resíduos, especialmente os chamados entulhos da construção civil que, por falta de conscientização das populações, são descartados em áreas ermas, na beira de corpos d’água ou em matas, e que acabam carreados para o canal dos arroios e rios. Além das populações de peixes, comentadas em nossa última postagem, espécies semiaquáticas como as capivaras (Hydrochoerus hidrochaeris), lontras (Lontra longicaudis – vide foto) e ratões-do-banhado (Myocastor coypus), além de répteis aquáticos como jacarés-do-papo-amarelo (Caiman latilostris), cágado-de-barbelas-cinzento (Phynops hilarii) e tigres d´água ou tartaruga-verde-amarela (Trachemys dorbigni), entre outros, sofrem imensamente com a contaminação dos ambientes aquáticos e também com a fragmentação dos seus habitats e a destruição da vegetação das margens, locais onde algumas espécies encontram parte da sua alimentação.

As áreas do cinturão verde, por preservarem algumas características que lembram as antigas áreas naturais, poderão atrair, em maior ou menor escala, algumas espécies de animais silvestres, que estarão sujeitas a contatos com agrotóxicos (fertilizantes, pesticidas e herbicidas), produtos químicos que, a partir de uma certa dosagem, podem ser fatais. Essa interface entre as áreas urbanas e as áreas naturais também podem colocar animais domésticos, especialmente cães, em contato com espécies selvagens – animais de pequeno porte como répteis, aves e pequenos mamíferos podem acabar mortos por ataques de cães ou transformados em “lanches” por gatos. Espécies classificadas como caça podem acabar abatidas “discretamente” por moradores e transformadas em pratos principais de almoços e jantares. Algumas espécies consideradas perigosas, nocivas ou que simplesmente causam pavor em algumas pessoas, são simplesmente exterminadas – citamos as cobras, aranhas, répteis e morcegos. Existe um caso que classifico como trágico: filhotes pequenos de ratões-do-banhado, uma espécie nativa do Guaíba e de outras áreas úmidas, são muito parecidos com as grandes ratazanas ou ratos-de-esgoto – se eventualmente entrarem em áreas urbanas, poderão ser mortos pela população devido a esta trágica semelhança.

Além dos animais domésticos tradicionais, populações humanas também trazem sob suas “carroças” uma série de animais domesticados involuntariamente – o maior exemplo é o rato ou ratazana (Rattus norvergicus), mamífero originário das estepes da Ásia Central, que se habituou ao convívio com agrupamentos humanos e suas sobras de comida: desde tempos pré-históricos, os ratos vem acompanhando as populações humanas em suas contínuas migrações ao redor do mundo. A lista destes animais também inclui o camundongo-doméstico (Mus musculus), o rato-negro (Rattus rattus), os pombos (Columba livia), o pardal (Passer domesticus), a lebre (Lepus europaeus), o porco-mateiro (Sus scrofa), a rã-touro (Rana catesbeiana), a lagartixa-de-parede (Hemidactylus mabouia), a carpa-cabeçuda (Anstichtys nobilis) e a tilápia-do-nilo (Sarotherodon niloticus), entre outras. Todas estas espécies domésticas e domesticadas costumam invadir e ocupar nichos ecológicos de espécies selvagens, competindo por espaço e alimentos, sob risco de levar as espécies nativas ao declínio populacional.

Quanto às atividades de produção – agricultura, pecuária e criação de animais, além da mineração, impactam diretamente as áreas naturais – matas, campos e banhados passam por alterações significativas de todos os tipos para permitir seu uso em atividade humanas: flora e fauna silvestres, simplesmente, perdem seus espaços e precisam migrar para sobreviver. As espécies vegetais têm grande desvantagem neste quesito e, caso não consigam dispersar sementes, frutos e brotos na direção de outras terras, estarão fadadas a desaparecer.

Manchas urbanas são consumidoras vorazes de energia e combustíveis, que são transformados em luz, calor, alimentos, produtos e transporte – a iluminação noturna das ruas e avenidas, citando um exemplo, podem confundir espécies de hábito diurno como os pássaros e alterar os seus ciclos de atividade. A queima de lenha em lareiras ou a fumaça liberada por carros, caminhões e ônibus provocam a poluição do ar, levando a fuga de diversas espécies das proximidades dos centros urbanos. Os ruídos excessivos nas cidades, estradas, ferrovias, portos e também os ruídos produzidos pelas embarcações, também espantam populações de animais e provocam alterações importantes nos habitats.

No próximo post falaremos das aves do Guaíba.

A BIODIVERSIDADE AMEAÇADA DO LAGO GUAÍBA, OU OS PESCADORES DO DOURADO “PERDIDO”

Dourado no Guaíba

O Oceano Pacífico, com uma área total de 180 milhões de km², é, disparado, o maior ecossistema do planeta Terra. A área do Oceano Pacífico cobre quase 1/3 da superfície terrestre e suas águas equivalem a quase metade do volume e da superfície de todos os oceanos do planeta. Em meio a tanta água, ilhas vulcânicas distantes de qualquer continente surgiram ao longo das eras – de massas estéreis de rocha ígnea, essas ilhas passaram a ser colonizadas inicialmente por líquens e, em sequência, por arbustos, coqueiros e árvores de grande porte. Aves, pequenos répteis, crustáceos e insetos foram chegando aos poucos. Os fortes ventos alísios e as correntes oceânicas que circundam os oceanos foram as responsáveis pelo transporte de sementes, larvas, cocos e vegetação flutuante – sistemas de transporte dos mais eficiente. 

O explorador e cartógrafo inglês James Cook (1728-1779), no comando do navio HMS Endeavour, realizou uma extensa expedição científica em toda a região do Oceano Pacífico a partir de 1768, sob patrocínio da Royal Society. No total, foram três viagens até a fatídica morte do Capitão Cook em uma luta com nativos nas ilhas do Havaí. Nestas viagens, os expedicionários descobriram e visitaram inúmeras ilhas oceânicas isoladas – os cientistas ficaram surpresos ao encontrar inúmeros animais domésticos conhecidos desde longa data pelos europeus como galinhas e porcos. Entre as espécies vegetais, uma das mais surpreendentes descobertas foi a batata-doce, uma espécie originária da América do Sul. Estudos realizados posteriormente revelaram que essas espécies animais e vegetais foram introduzidas nas ilhas a partir da colonização pelos povos polinésios, que iniciaram uma das maiores sagas migratórias da história da humanidade a partir de 1.200 a.C, inclusive visitando as Américas e tendo contatos com os indígenas locais. 

Usei esta breve citação do Oceano Pacífico para lembrar que não existe nenhum ecossistema isolado em nosso planeta, por mais distante que possa estar. Quando falamos do Lago Guaíba, temos de ter em mente que as relações ecológicas e físicas do corpo d’água vão muito além de suas margens. O Guaíba faz a ligação entre as ilhas do Delta do Jacuí e a Lagoa dos Patos, centro do maior e mais complexo sistema lagunar do Brasil. Por sua vez, esse complexo lacustre funciona como uma ligação natural entre o Oceano Atlântico e todo o sistema de rios e arroios que desaguam no Guaíba. Seguindo essa visão sistêmica, que enxerga todo esse complexo conjunto de corpos d’água como uma “entidade” única, quando um morador de São Francisco de Paula, no alto da Serra Gaúcha, dá descarga no banheiro da sua casa ou quando um curtume em Novo Hamburgo despeja algum efluente industrial num arroio, esses contaminantes podem afetar diretamente um pinguim de Magalhães, espécie que vive na Patagônia, no Sul do continente, mas que, em certas épocas do ano, passa meses nas águas oceânicas das costas da região Sul Brasil, se alimentando de peixes e crustáceos. A surpreendente ligação pode estar no linguado (Paralichthys orbignyanus) ou no dourado (Salminus brasiliensis – vide foto), espécies marinhas que frequentam (atualmente com uma frequência bem menor) a Lagoa dos Patos e o Guaíba – alevinos destes peixes, nascidos nos juncais dos lagos e que migram para as águas do Oceano Atlântico quando já estão crescidos, são um apetitoso petisco para os pinguins esfomeados: qualquer contaminante presente nas águas doces poderá acabar carregado para as águas salgadas pelos peixinhos. 

A região hidrográfica do Lago Guaíba compreende uma área total de 84.700 km², onde vive uma população de 7 milhões de habitantes, distribuídos em mais de 250 municípios, sendo que a população urbana corresponde a 83,5% e a população rural 16,5%. São 9 bacias hidrográficas e 30 microbacias (que correspondem aos arroios ou pequenos cursos d’água que desaguam diretamente no Lago Guaíba). A região responde por 86% do PIB – Produto Interno Bruto do Estado do Rio Grande do Sul. Vejam que são números altamente relevantes
 
Estima-se que, usando-se dados de um relatório do Pró-Guaíba do ano 2.000, 960 mil m³ de esgotos domésticos, 890 m³ de esgotos e resíduos industriais, 16.500 litros de agrotóxicos e 3.700 toneladas de lixo são despejados ou lançados nas águas da região hidrográfica do Guaíba diariamente. A conta também precisa incluir uma grande quantidade de sedimentos resultantes do carreamento de solos expostos por desmatamentos e queimadas, além dos danos biológicos provocados pela destruição de banhados e matas ciliares, que afetam diretamente toda a rica biodiversidade associada aos corpos d’água do sistema hidrográfico. Evidentemente, todo este “conjunto da obra” têm repercussões na biodiversidade específica do Lago Guaíba. 

Vamos começar falando dos peixes – as águas do Lago Guaíba são o habitat de cerca de 56 espécies de peixes residentes permanentes, sendo que 10 espécies são classificadas com valor econômico, ou seja, são as espécies mais buscadas pelos pescadores. A lista inclui: branca, peixe-cachorro ou tambicu (Oligosarcus jenynsii e Oligosarcus robustus), pintado (Pimelodus pintado), jundiá (Rhamdia quelen), grumatã (Prochilodus lineatus), piava (Leporinus obtusidens), traíra (Hoplias malabaricus) e voga (Schizodon jacuiensis). Também existem as espécies migratórias, que utilizam o Guaíba como um corredor de passagem para acesso ao Delta do Jacuí e cabeceiras dos rios formadores das diferentes bacias e microbacias. Um grande exemplo já citado é o dourado, uma espécie que já foi uma das mais apreciadas na culinária gaúcha, que hoje é raríssima nas águas do Lago Guaíba. 

A redução dos estoques pesqueiros e o desaparecimento de espécies, conforme já comentamos em postagem anterior, tem inviabilizado o trabalho de milhares de pescadores tradicionais, que a várias gerações tiravam o seu sustento das águas do Delta do Jacuí e do Lago Guaíba. Além dos níveis extremos de poluição e de lixo nas águas, que atingem diretamente os peixes, existem outros fatores que impactam diretamente a sobrevivência de inúmeras espécies: 

  • Nos sedimentos rasos de oceanos, lagos e rios, sobrevivem comunidades de algas, crustáceos, moluscos e vermes conhecidos como comunidades bênticas ou bentônicas. Essas criaturas e plantas, grande parte de dimensões microscópicas, formam a base da cadeia alimentar das águas. Para que todos tenham ideia do tamanho destas criaturas, algumas espécies tem uma densidade de 5 indivíduos por grão de areia. A sedimentação fora de controle, as cavas de areia e a poluição das águas são fatais para as comunidades bentônicas – sem o alimento proporcionado por estes sistemas, toda a cadeia alimentar do Guaíba fica prejudicada;
  • Outra fonte importante de problemas ambientais está ligada a invasão do mexilhão dourado nas águas do Guaíba e dos rios e arroios de toda a região hidrográfica. O mexilhão dourado é uma espécie exótica que chegou ao continente americano através da água de lastro de navios cargueiros que, para equilibrar a carga, bombeiam água do oceano e enchem tanques de lastro ao longo da embarcação – quando chegam ao porto de destino, esses cargueiros esvaziam os tanques e liberam junto com a água qualquer espécie marinha que foi aprisionada nestes tanques. O mexilhão dourado se fixa na raiz dos juncos e outras plantas aquáticas do Lago, reduzindo a resistência das plantas à força dos ventos e das ondas. As áreas de juncais e de outras espécies vegetais aquáticas são berçários naturais de peixes e crustáceos – sem estes ambientes, há um forte declínio populacional de espécies;
  • A pesca e a sobre pesca dão o golpe final, reduzindo ainda mais o número de indivíduos, levando espécies inteiras ao risco iminente de extinção; 
  • Esse conjunto de agressões pode levar ao isolamento de grupos de peixes de uma espécie em um determinado rio, o que ao longo do tempo pode levar a uma redução da diversidade genética e enfraquecimento reprodutivo dos indivíduos, o que pode levar o grupo à extinção. 

Continuamos na próxima postagem.