
As fortes chuvas que estão caindo na Região Metropolitana do Recife já causaram, ao menos, 91 mortes e 26 pessoas estão desparecidas. Cerca de 5 mil pessoas estão desabrigadas e seguem alojadas em escolas, creches e centros sociais. Esses são dados ainda preliminares divulgados pelo Governo do Estado. Desmoronamentos de encostas de morros provocaram a maioria dessas mortes.
Conforme comentamos em postagem publicada na última semana, toda a faixa Leste do Litoral Nordestino, especialmente entre o Rio Grande do Norte e Sergipe, está sofrendo com chuvas provocadas pelo Distúrbio Ondulatório de Leste. Esse fenômeno provoca uma perturbação nos ventos e na pressão que atuam na faixa tropical do globo terrestre que fica entre a África e o litoral do Brasil. Essa perturbação interfere no regime dos ventos alísios.
Os ventos alísios sopram no sentido Leste-Oeste, formando nuvens de chuvas, que atravessam o Oceano Atlântico e chegam ao litoral Leste do Brasil. O distúrbio está provocando chuvas nos Estados de Alagoas, Sergipe, Pernambuco, Paraíba e Rio Grande do Norte. As chuvas se concentram na faixa Leste destes Estados.
Como toda grande metrópole brasileira, a cidade do Recife não suporta chuva fortes. Assim como acontece em São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte, basta uma chuva mais forte para rios e córregos transbordarem, trechos de ruas e avenidas alagarem e áreas de risco entrarem em estado de alerta.
A situação é sempre agravada por causa da intensa ocupação de encostas de morros, um sintoma da falta de políticas para a construção de moradias populares. Esses morros tiveram a cobertura florestal suprimida e ainda sofreram grandes cortes no talude para a construção de moradias. Qualquer chuva mais intensa pode desestabilizar essas encostas e resultar provocar grande tragédia, justamente o que aconteceu nos últimos dias.
Grandes enchentes fazem parte das paisagens pernambucanas há muito tempo. O primeiro registro histórico de uma enchente no Capibaribe data do ano de 1632, pouco tempo depois da invasão holandesa e a consolidação da Suickerland, a terra do açúcar. Registros da época informam que as chuvas foram muito fortes, “causando perdas de muitas casas e vivandeiros estabelecidos às margens do Rio Capibaribe”.
Anos mais tarde, em 1638, o Conde Maurício de Nassau autoriza a construção da primeira barragem do Rio Capibaribe – o Dique dos Afogados, com o objetivo de proteger a cidade do Recife das constantes enchentes. Há registros históricos de uma infinidade de enchentes na cidade: 1824, 1842, 1854, 1862, 1869, 1914, 1920, 1960, 1966, 1970, 1977, 2004 e 2005 – a lista é muito maior e estou apenas citando alguns casos.
Entre os dias 17 e 18 de julho de 1975, a cidade do Recife viveu a maior catástrofe natural da sua história: o transbordamento do rio Capibaribe atingiu 31 bairros e alagou 80% da superfície da cidade (vide foto) – 350 mil pessoas foram desalojadas de suas casas e, tragicamente, 104 pessoas morreram. As fortes enchentes também atingiram outros 25 municípios da bacia hidrográfica do rio Capibaribe.
Grande parte da culpa por essa sucessão de enchentes se deve a escolha do local onde foi fundada a cidade do Recife. O litoral brasileiro, apesar de muito extenso, não dispõe de muitos locais abrigados e adequados para a construção de grandes portos. Há época do início da nossa colonização, quando ainda não existiam dragas para o rebaixamento do leito marinho, a situação era ainda mais complicada.
No litoral de Pernambuco, os antigos cartógrafos a serviço da Coroa de Portugal identificaram uma região que combinava duas características excepcionais para a fundação de uma grande cidade – uma área abrigada na foz de um grande rio e com grande capacidade para receber embarcações de alta tonelagem. Exatamente ao lado, um terreno elevado, que possibilitava o monitoramento de uma grande extensão de terras e mares.
No alto das ladeiras desse terreno elevado Duarte Coelho, o Donatário da Capitânia de Pernambuco, fundou a cidade de Olinda em 1535. Na carta dos direitos feudais – o foral, concedido por Duarte Coelho em 1537, havia uma referência a um certo “Arrecife dos Navios”, uma pequena vila de marinheiros e pescadores localizada na foz do rio Capibaribe junto ao porto, que se transformou no embrião da futura Cidade do Recife.
As margens do rio Capibaribe e seus afluentes eram planas e cercadas de extensos manguezais. Engenhos e grandes plantações de cana-de-açúcar foram ocupando os espaços vazios criados com a derrubada e queima da densa Mata Atlântica. Lembro aqui que o trecho pernambucano da floresta avançava até 80 km continente a dentro.
Como acontece em qualquer sistema natural, a Mata Atlântica se adaptou ao longo dos milênios aos ciclos periódicos de chuva. Canaletas naturais para o escoamento da chuva foram escavadas no solo e os diferentes tipos de vegetação se adaptaram para armazenar parte da água da chuva, com raízes adaptadas para forte fixação no solo e para evitar o arrastro com a enxurrada. Leitos de córregos e rios foram dotados de áreas de várzeas dimensionadas para absorver o excedente da água nos momentos de cheia.
Com a derrubada da floresta para o plantio da cana-de-açúcar, todos esses mecanismos naturais de controle de cheias foram perdidos e as calhas dos rios passaram a receber, de forma abrupta, a maior parte da água das chuvas. A cidade do Recife nasceu justamente no trecho final da bacia hidrográfica do rio Capibaribe e virou uma espécie de ”terra das enchentes”.
A cidade do Recife foi crescendo e avançando sobre os manguezais. que foram sendo aterrados e urbanizados. O resultado dessa urbanização foi uma cidade com grande parte de seus bairros com pouca declividade em suas ruas e sujeitas a alagamentos em dias de chuva mais forte. Em décadas mais recentes, a cidade começou a avançar e ocupar terrenos mais altos, onde se destacam as encostas de morros.
A situação, que já era crítica, foi piorando ao longo do tempo devido ao forte assoreamento dos canais dos rios. Sem a proteção da vegetação, grandes volumes de sedimentos passaram a ser carreados para o leito dos rios, que foram ficando cada vez mais rasos e sem espaço para absorver as águas excedentes dos períodos de chuva.
Somando-se a destruição da floresta, o assoreamento da calha dos rios, a ocupação desordenada de encostas de morros e o aterramento sistemático de manguezais, chegamos à fórmula perfeita para a ocorrência de grandes enchentes com todas as suas catástrofes associadas.
Essa, infelizmente, é a sina do Recife e seus arredores.