O SISTEMA CANTAREIRA VELHO, OU OS PROBLEMAS DE SANEAMENTO BÁSICO DE SEMPRE

Sistema Cantareira Velho

A partir da segunda metade do século XIX, os problemas de abastecimento de água na cidade de São Paulo passaram a ficar evidentes. Na década de 1870, a população da cidade alcançou a cifra de 30 mil habitantes, número insignificante se comparado aos 11 milhões que vivem na cidade atualmente, mas suficiente para levar as fontes de água ao colapso.

Essa pequena população se concentrava em uma área pequena da atual região central da cidade. Contando apenas com a água fornecida por fontes públicas instaladas em diferentes pontos da mancha urbana e sem contar com nenhum sistema de coleta dos esgotos e águas servidas dos domicílios, a alternativa encontrada pela população, que não mudou muito em nossos dias, foi a de se utilizar os corpos d’água mais próximos para o despejo dos efluentes, iniciando-se aí o tão conhecido processo de poluição e deterioração das fontes de água que vemos na cidade em nossos dias.

Pequenas quantidades de esgotos, especialmente os de origem doméstica, lançados em cursos d’água causam poucos problemas – a maior parte dos resíduos formadores dos esgotos são orgânicos e são rapidamente consumidos pelas bactérias encontradas no meio ambiente: grosso modo falando, ao se lançar pequenos volumes de esgotos em um corpo d’água, estaremos “lançando um lanchinho” para as bactérias.

A partir de um certo volume de despejos, quando as bactérias já não conseguem consumir a matéria orgânica, passamos a lidar com a poluição das águas por esgotos e os problemas começam a se acumular – o nível de oxigênio na água diminui, ocorre a proliferação de algas, peixes morrem entre outros problemas. Além da contaminação das águas, a população também sofria com a redução dos volumes nos períodos de seca.

A preocupação com o abastecimento e a qualidade das águas servidas à população levou a criação da Companhia Cantareira de Águas e Esgotos em 1877. Um dos primeiros trabalhos realizados pela empresa foi o de aumentar o volume de águas que chegavam a Represa do Engordador, principal manancial de abastecimento da cidade na época, através de adutoras instaladas a partir de fontes de águas na Serra da Cantareira (vide foto), permitindo a regularização do fornecimento de água nos chafarizes e bicas públicas ao longo de todo o ano.

Em 1893 foi criada pela Prefeitura a Repartição de Águas e Esgotos (RAE), que funcionava como órgão regulador dos serviços de abastecimento na cidade. O órgão iniciou um polêmico de trabalho de desativação e desmontagem de todas as fontes públicas de abastecimento, forçando a ligação dos imóveis ao novo sistema de águas canalizadas, mudança que só fez aumentar os protestos da população contra a Companhia Cantareira. Vejam esta matéria, publicado no jornal Correio Paulistano:

“Há coisa que a natureza dá de graça e de que ninguém tem o direito de se apoderar para vender ou alienar. São água, luz e ar. A Companhia Cantareira obteve o privilégio de encanar a água da Cantareira: mas ninguém podia dar a água, porque ela é de todos. Não entendeu, porém assim a privilegiada: entendeu que o privilégio lhe dava a posse da água também, e fazendo desta posse base das suas operações nos vai vendendo aos litros a água que é nossa. A Companhia adquiriu com o privilégio o aluguel do encanamento pelo preço que ela quiser: mas não a propriedade da água. Com que direito, pois ela anda vendendo água aos litros? E por que preço! ”

A reclamação, que nos parece muito atual, faz todo o sentido quando se verifica que a Companhia Cantareira, apesar de cobrar pelo fornecimento de água, não conseguia manter o fornecimento dentro da regularidade esperada, apesar de todas as adutoras construídas. Um sintoma do problema pode ser comprovado em um levantamento feito em 1899, o qual mostrava que apenas 48% dos imóveis da cidade estavam ligados a rede de esgotos (basicamente, só o afastamento dos esgotos e lançamento nos rios) – em 1894, o mesmo levantamento havia verificado que 66% dos imóveis estavam ligados à rede: isso demonstra que a cidade estava crescendo muito mais rápido do que o crescimento da infraestrutura de águas e esgotos implantada pela Companhia Cantareira.

Em 1900, a cidade de São Paulo já contava com 240 mil habitantes e iniciou um processo de crescimento populacional vertiginoso, o qual nunca conseguiu ser acompanhado pelo avanço da infraestrutura de saneamento básico. Na falta de redes de abastecimento de água, os novos moradores passaram a se valer da escavação dos poços semiartesianos, conhecidos em algumas regiões como poço caipira, cacimba e cacimbão (minha casa utilizou água de poço até a chegada da água encanada em meados da década de 1970), das fossas negras e sépticas para a eliminação dos esgotos ou valendo-se dos lançamentos de efluentes diretamente nos cursos d’água. Toda a extensa rede de córregos, riachos e rios do antigo Planalto de Piratininga acabou sendo transformada na “rede coletora de esgotos” daquela que se transformaria, em poucos anos, na maior cidade do Hemisfério Sul. O resto é história!

E foi assim que as centenas de fontes de águas cristalinas de outrora viraram apenas lembranças nostálgicas de um tempo que não voltará jamais…

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1711: SÃO PAULO É PROMOVIDA A CIDADE E O CRESCIMENTO DOS PROBLEMAS DE ABASTECIMENTO DE ÁGUA

Páteo do Colégio

A Vila de São Paulo de Piratininga teve como embrião uma cabana com aproximadamente 90 m², construída com a técnica de pau a pique e coberta com folhas de palmeira. A singela edificação, construída pelos padres jesuítas com a ajuda dos indígenas, foi consagrada numa missa e batizada como o Real Colégio de São Paulo de Piratininga. A data: 25 de janeiro de 1554. Nenhuma das pessoas presentes na cerimônia poderia imaginar o que o destino haveria de reservar para a rustica localidade. Atualmente, esse local fica bem no coração da área central de São Paulo e é conhecido como Pátio do Colégio  (vide foto).

Em 1711, a pequena Vila de São Paulo foi promovida a Cidade e passaria a contar com autonomia administrativa – seus minguados 1.200 habitantes poderiam decidir sozinhos quais os rumos que deveriam ser trilhados pela comunidade dali em diante. A Cidade carecia de tudo e, como é comum ainda hoje nos pequenos municípios, não tinha recursos suficientes para fazer quase nada – ou seja, nada mudou na rotina dos paulistanos. Uma prova dessa carência de recursos foi a demora para a inauguração do primeiro chafariz público da cidade, batizado como Tanque Municipal e inaugurado somente no ano de 1746. Alimentado a partir das águas represadas de um pequeno afluente do rio Anhangabaú, este tanque recebeu uma espécie de ampliação logo depois, surgindo assim um segundo tanque, batizado como Tanque Santa Tereza, construído a uma distância de 240 metros do Tanque Municipal.

Um dos maiores entraves para a construção de novas fontes públicas de água na Cidade eram os altos custos das tubulações metálicas, importadas da Europa e que necessitavam de uma mão de obra especializada para a sua instalação, luxo que ainda não se dispunha naquela época. A carência de técnicos, aliás, era marcante na cidade, especialmente aqueles especializados na construção de edifícios de boa qualidade e pontes – as fortes chuvas de Verão sempre destruíam ou arrastavam os precários pontilhões de madeira, deixando as populações isoladas em diversas áreas do território do município. O deslocamento da pequena população, especialmente das áreas rurais em direção ao núcleo central, que já era extremamente difícil através de picadas rudimentares abertas nas matas, ganhava um drama a mais sempre que se encontravam cursos d’água – na maioria das vezes, era necessário atravessar os riachos andando com água na altura do peito ou simplesmente a nado; nos rios maiores poderia se ter a sorte de encontrar algum barqueiro para ajudar na travessia.

A carência de obras de infraestrutura também era marcante na área de abastecimento de água, onde pouca coisa havia mudado desde a fundação da Vila de São Paulo. Numa espécie de “jeitinho paulistano”, foi iniciada a construção de valetas nas ruas, através das quais a água de alguns reservatórios, de qualidade sempre duvidosa, era distribuída para a população. Diante dessa dificuldade já histórica na época, surgiu a figura do aguadeiro, um profissional especializado no transporte de água desde as fontes de abastecimento até as residências. Os bons aguadeiros buscavam a água em riachos distantes do centro da cidade com carroças carregadas de cântaros – essas carroças possuíam suportes de madeira onde os cântaros eram fixados, conhecidos como cantareiras – esta palavra foi usada depois para nomear a famosa serra ao Norte da cidade. Esses aguadeiros ofereciam um “produto” de ótima qualidade para a população; existiam, é claro, os maus profissionais que não se davam a esse trabalho e retiravam a água de locais mais próximos, como o rio Tamanduateí, que já começava a apresentar problemas de qualidade devido ao crescimento, tanto do núcleo urbano quanto das granjas e pequenas propriedades rurais, já se observando um grande aumento nos resíduos e efluentes lançados nas águas.

Os registros públicos indicam que até o ano de 1855, foram construídas 4 bicas, 11 chafarizes públicos e 3 pequenos reservatórios de água na cidade de São Paulo, números insuficientes para o atendimento da população. Nessa mesma época, pelo menos metade da população utilizava regularmente as águas do rio Tamanduateí, já bastante degradadas, para o abastecimento. Os pequenos riachos utilizados nos primeiros séculos da história da Cidade, ou já haviam desaparecido sob o avanço da cidade ou se apresentavam completamente poluídos pelo lançamento dos esgotos dos imóveis. No inverno, quando as chuvas raramente caíam sobre os campos de Piratininga, a falta de água era constante nas fontes públicas, tanto pela redução dos volumes quanto pelos entupimentos das tubulações devido ao excesso de barro nas águas. A regularização do fluxo de água na cidade só será conquistada no final do século XIX, mais precisamente em 1898, a partir da inauguração do Sistema Cantareira Velho, que funcionou até o ano de 1970.

Continuaremos a contar esta história no próximo post.

A DURA VIDA NA ANTIGA VILA DE SÃO PAULO DE PIRATININGA

Lavadeiras de Roupa

Na minha última postagem falamos muito rapidamente do grau de deterioração das fontes de água na cidade de São Paulo, destruídas por causa do crescimento da cidade e, especialmente, pelo despejo diário de milhões de litros de esgotos – hoje, a cidade é fortemente dependente de fontes externas para suprir as suas necessidades de abastecimento.

Durante vários séculos da sua história, as fontes de abastecimento da população paulistana eram os inúmeros riachos e, depois, as fontes públicas instaladas em praças, a partir dos quais a água podia ser consumida despreocupadamente, sem necessitar de qualquer tipo de tratamento. Vamos tentar reconstruir um pouco desta história:

Além das tradicionais funções de prover água para o abastecimento da população, para as atividades agropecuárias, para a dispersão de esgotos e de detritos, e também para a navegação e transporte de cargas e de passageiros, os antigos riachos e rios paulistanos se destacavam em outros usos: fornecimento de areia e argila para a construção civil – destaque para a argila. As antigas construções da pequena cidade eram feitas em taipa de pilão e em pau a pique.

As atividades de lavagem de roupas (vide foto), dos curtumes e tecelagens, pesca e lazer (especialmente para as crianças); também eram a base de trabalho de muitas categorias profissionais que há muito não existem mais – os aguadeiros, operadores e zeladores de fontes e chafarizes, vigias de pontes, moleiros (isto é, trabalhadores dos moinhos de grãos impulsionados pela força da água), oleiros ou ceramistas, caçadores, entre outros.

Durante séculos, estas águas garantiram o trabalho e o sustento de parte significativa da população de Piratininga (só relembrando que este topônimo significa “lugar onde se encontra o peixe seco” em tupi-guarani, o que indica uma relação ancestral entre terras e águas).

Apesar da fama construída a partir das epopeias dos antigos bandeirantes, a cidade de São Paulo era, até o final do século XIX, irrelevante dentro do cenário nacional. Em 1589, época em que a cidade de Salvador já era a capital da Colônia, São Paulo de Piratininga tinha 150 residências e aproximadamente 750 habitantes (índios não eram contabilizados); quase duzentos anos depois em 1775, o censo encontrou 460 moradias e 1.894 habitantes, sendo “793 homens e 1.101 mulheres”.

Há um fato curioso que justifica esta diferença no número de habitantes por gênero – as bandeiras organizadas pelas tradicionais famílias dos “paulistas” eram um verdadeiro sorvedouro de homens, que morriam “aos montes” durante as expedições. Essa pequena população se concentrava na atual área ocupada pelo centro velho da cidade, ao redor a atual Praça da Sé, e em dois pequenos núcleos mais distantes nos atuais bairros do Pari e de Pinheiros.

Nos primeiros anos de existência, a Vila de São Paulo de Piratininga era simplesmente paupérrima. Pela simples falta de moedas metálicas ou qualquer outro ativo circulante como peças em ouro e prata, tanto a administração da Vila quanto os moradores utilizavam-se de diferentes artifícios para pagar suas dívidas – um registro da Câmara Municipal de 1592 mostra que um funcionário recebeu o  salário do mês em palha (material muito usado na construção dos telhados da época); trocas a base de toucinho, milho, algodão e marmelada eram usuais no comércio.

O grande historiador, professor  e intelectual catarinense Afonso d’Escragnolle Taunay (1876-1958), nos deixou alguns registros curiosos destes tempos difíceis em seu livro História da Cidade de São Paulo:

“uma casa no ponto central da Vila valia o mesmo que uma espada ou espingarda. Valia mais um vestido de fazenda europeia do que um prédio.”

Nestes primeiros tempos, as principais mananciais de água da cidade eram os rios Tietê e Tamanduateí, usados especialmente para o transporte de cargas e de passageiros, o rio Anhangabaú – usado para dispersar os detritos e o lixo dos habitantes, além de um conjunto de riachos que forneciam a água para o abastecimento: Yacuba, Saracura e Bexiga, afluentes do rio Anhangabaú; Cabuçu Pequeno, Cabuçu de Cima e Cabuçu de Baixo, afluentes do rio Tamanduateí.

Na margem oposta do Rio Anhangabaú se encontravam o Tanque do Arouche e o Córrego do Carvalho, que desaguavam no baixo Rio Tamanduateí, na região onde encontramos hoje o atual bairro do Bom Retiro. Durante mais de dois séculos, toda a vida dos habitantes da cidade dependia das águas deste pequeno grupo de corpos d’água, a maioria, imagino eu, desconhecidos por vocês.

As famílias mais abastadas da época contavam com grandes grupos de índios escravizados (escravos africanos eram extremamente valorizados e caros neste período e estavam concentrados nas atividades ligadas inicialmente à produção do açúcar e depois na mineração do ouro). Todos os trabalhos domésticos eram realizados por estes índios, inclusive o abastecimento contínuo de água das casas – alguns destes escravos passavam o dia inteiro buscando água em cântaros de barro num dos mananciais da Vila.

Um registro importante: até o final do século XVIII, os isolados paulistas falavam Nheengatu, a língua geral indígena, quando o Governo Colonial impôs, a força, o uso da língua portuguesa. A população mais pobre, formada por pessoas livres e sem quaisquer recursos como sempre, já morava na beira dos córregos, o que facilitava o transporte da água para o abastecimento das casas e os serviços de limpeza.

No próximo post vamos detalhar um pouco mais esta história e falar de uma verdadeira revolução na vida cotidiana dos paulistanos – a construção das primeiras fontes públicas e chafarizes de água.

SÃO PAULO: A CIDADE QUE DESTRUIU TODAS AS SUAS FONTES DE ÁGUA

Várzea do Rio Tietê

Quando os primeiros padres jesuítas chegaram ao Planalto de Piratininga no início da década de 1550, encontraram uma região com uma extensa rede hidrológica e que tinha como rio principal o Anhembi, nome depois mudado para Tietê. A região possuía uma enormidade de rios de porte médio como o Tamanduateí, Anhangabaú e Pinheiros, e também centenas de córregos e riachos. As áreas de várzeas destes cursos d’água eram formadas por campos alagáveis nas épocas de chuvas, especialmente a várzea do sinuoso Anhembi, e, por esse motivo, apresentavam solos altamente férteis, que já eram utilizados pelos indígenas no cultivo de suas culturas de subsistência. A fartura de águas, a fertilidade dos solos, o clima agradável e a boa receptividade dos indígenas liderados por um náufrago português – João Ramalho, foram fundamentais para a escolha do local para a instalação da futura Vila de São Paulo de Piratininga, fundada oficialmente em 25 de janeiro de 1554 pelo grupo liderado pelo padre José de Anchieta.

Quem visita ou vive na moderna cidade de São Paulo e vê os rios Tietê, Tamanduateí e Pinheiros com águas completamente poluídas e seus cursos totalmente retificados, não pode imaginar a importância que estes rios tiveram para o abastecimento de água, para a agricultura e para o transporte de cargas e passageiros até o início do século XX. Para citar um único exemplo das mudanças, a atual Rua 25 de Março, uma das ruas de comércio mais movimentadas e importantes da cidade, era um braço navegável do Rio Tamanduateí – barcos repletos de mercadorias chegavam e partiam de um porto fluvial localizado na atual Ladeira Porto Geral. O mesmo morador ou visitante também poderá ficar atordoado ao procurar pelas centenas de antigos riachos e córregos de águas cristalinas que rasgavam o Planalto de Piratininga por todos os lados – dependendo da fonte consultada, você encontrará relatos que falam de 300 a 2.000 corpos d’agua no município; nos dias atuais só encontramos algumas dezenas de cursos moribundos: a grande maioria desapareceu após obras de canalização.

Por mais incrível que possa parecer, essa terra de tantas águas cristalinas e puras de outrora, hoje depende das águas de rios com nascentes a mais de 150 km de distância no Sul do Estado de Minas Gerais, formadores do Sistema Cantareira, para o abastecimento de sua gigantesca população. Até mesmo as grandes represas Billings e Guarapiranga, construídas no início do século XX, concebidas inicialmente para funções ligadas à geração de energia elétrica e depois transformadas em mananciais de abastecimento, passaram a ter a qualidade de suas águas comprometidas. A destruição dos rios, córregos e represas tem um elemento em comum – altas concentrações de todos os tipos de esgotos em suas águas.

Como deve ser do conhecimento de muitos de vocês, a cidade de São Paulo até meados do século XIX era apenas mais uma entre muitas cidades pequenas e sem maiores atrativos do Planalto de Piratininga. O censo demográfico de 1872 encontrou parcos 30 mil habitantes espalhados em diversos vilarejos do município, vivendo basicamente da agricultura, da criação de animais e do comércio. Foi o crescimento da importância da cultura cafeeira nas últimas décadas do século XIX e a passagem das ferrovias que ligaram o Porto de Santos aos centros produtores no interior do Estado que colocaram, “acidentalmente”, a cidadezinha no mapa – em 1900 a cidade de São Paulo já tinha uma população de 240 mil habitantes.

Essa repentina “descoberta” da cidade de São Paulo foi seguida de um grande crescimento populacional, o que produziu uma fortíssima demanda por terrenos para a construção de casas, lojas e galpões. As antigas e bem localizadas áreas de várzea da região central da cidade (vide foto), que tinham na extração de areia para a construção civil uma das suas únicas atividades econômicas, passaram a ser cobiçadas para a especulação imobiliária – os grandes rios passaram a ter seus cursos retificados e começou um intenso processo de canalização de córregos e riachos, visando “criar” artificialmente uma série de grandes espaços para o avanço da urbanização e construção das chamadas avenidas de fundo de vale. Os terrenos das várzeas sempre tiveram uma grande importância no controle das cheias anuais dos rios nos períodos de chuvas, função que foi simplesmente desprezada: as enchentes que assistimos na Paulicéia “desvarzeada” (faço aqui trocadilho com Paulicéia Desvairada, célebre livro de poemas de Mário de Andrade) do presente é parte do preço que pagamos por todo este crescimento irracional do nosso passado.

Na esteira dos novos imóveis construídos, centenas de quilômetros de tubulações de esgotos foram enterradas por todos os cantos da cidade, buscando sempre os antigos cursos d’água para o despejo dos efluentes. O crescimento irracional e sem qualquer planejamento virou uma espécie de marca registrada da cidade e praticamente todos os cursos d’água que nascem ou que atravessam o município de São Paulo estão com suas águas altamente contaminadas por esgotos. 

E foi assim, com muito improviso, ganância e irresponsabilidade, que começou a ser criada a “Rede Coletora de Esgotos” da maior cidade brasileira.

O LONGO CAMINHO SEGUIDO PELOS ESGOTOS

Ocupações - Carrão

É quase certeza que você conhece ou pelo menos já ouviu falar do conto infantil da Chapeuzinho Vermelho e o Lobo Mau – a menina saiu de casa para visitar a sua avó que morava no meio da floresta e foi abordada pelo Lobo Mau, que ensinou um outro caminho, bem mais longo; enquanto a Chapeuzinho seguiu por este caminho longo, o Lobo correu na direção da casa da vovó pelo caminho curto para preparar uma emboscada para capturar a menina… Bem, encurtando o conto, no final apareceu o Caçador, que matou o Lobo e salvou todo mundo.

Pois bem – usei esta introdução para falar que, no caso dos esgotos sanitários, existem dois caminhos também: um caminho longo e difícil que leva os efluentes até uma Estação de Tratamento de Esgotos; e também existe um caminho fácil, onde os efluentes saem pelas tubulações dos imóveis e são despejados no curso natural de água mais próximo. E, como no conto da Chapeuzinho Vermelho e na vida real, o caminho mais rápido, fácil e curto está muito longe de ser o melhor.

No caminho difícil encontraremos todo um conjunto de obras civis caras, de difícil realização e que não costumam render muitos votos para os políticos: Redes Coletoras de Esgotos; Poços de Visita, Poços de Inspeção e Terminais de Limpeza (esta é a postagem mais visitada do blog); Coletores Tronco, Interceptores e Linhas de RecalqueEstações Elevatórias de Esgotos e, finalmente, as Estações de Tratamento de Esgotos. Através dos links, você poderá acessar todas as postagens no arquivo do blog e não precisamos perder tempo reescrevendo estes artigos. Vamos nos concentrar nas soluções fáceis que são usadas para a eliminação dos esgotos e que são fatais para a saúde da população e para o meio ambiente – o despejo dos esgotos in natura nos cursos de água de uma região. A foto que ilustra este post, uma imagem nada agradável, foi tirada em uma comunidade na Zona Leste da cidade de São Paulo. Observem que, além do despejo direto de esgotos no córrego, o que por si só já torna o lugar absolutamente insalubre para se viver, a imagem deixa claro que é uma área sujeita a enchentes (é possível ver marcas de umidade nos paredões) e há sinais de resíduos lançados nas águas. Eu conheço comunidades com todos estes problemas em outras grandes e médias cidades como Rio de Janeiro, Niterói, Belo Horizonte, Brasília, Porto Alegre, Manaus, Belém, Porto Velho, Recife, Maceió, Santos, Campinas, Marília entre outras – imagino que aí onde você mora também seja fácil de encontrar comunidades muito parecidas. Em muitos destes lugares, esta situação está muito mais para regra do que para a exceção.

Como relembramos em postagem recente, os córregos, riachos e rios de uma região geográfica qualquer são receptores naturais das águas pluviais, ou seja, são estes corpos d’água que recebem todo o volume de águas das chuvas e fazem a drenagem no menor tempo possível, evitando assim a formação de grandes empoçamentos ou enchentes. O relevo desta região passou por um longo processo de erosão, onde cada um dos cursos d’água escavou um canal devidamente dimensionado para comportar tanto as suas águas naturais quanto os volumes de água das chuvas, criando ambientes naturais equilibrados. Comentamos também que o crescimento desordenado das cidades e as ações antrópicas alteram esse equilíbrio e, como resultado, temos as famosas enchentes de Verão nas grandes e médias cidades, que se repetem ano após ano. Esse fabuloso sistema natural de canais de drenagem NÃO FOI “FEITO” PARA FUNCIONAR COMO REDE COLETORA DE ESGOTOS DE UMA CIDADE.

Corpos d’água contaminados por esgotos e sujeitos a transbordamentos em dias de chuva colocam a saúde da população em risco – águas contaminadas podem transmitir doenças como Febre Tifóide, Disenteria, Cólera, Diarreia, Hepatite, Leptospirose Giardíase, entre outras enfermidades. Também podem ser adicionados aos problemas o despejo de resíduos nas águas: lixo, entulho, restos de materiais de construção, animais mortos, resíduos de óleos e graxas entre outros. Como consequência destas agressões, as águas poluídas e empoçadas nestes corpos d’água passam a funcionar como “maternidade” de vetores como ratos, pernilongos, baratas, pulgas, percevejos, aranhas e companhia. Em resumo: destrói-se o sistema natural de canais de drenagem e cria-se um foco permanente de risco à saúde pública. Como se tudo isso já não fosse pouco, são essas águas dos cursos naturais as mesmas que serão utilizadas por populações a jusante (ou seja, correnteza abaixo) em sistemas de abastecimento de água que, com baixa qualidade e excesso de poluentes, necessitarão de grandes volumes de produtos químicos para o tratamento e potabilização. O caminho fácil para os esgotos acaba se tornando caro e trabalhoso para todos, sem aparecer nenhum Caçador para salvar a população.

Nas próximas postagens vamos começar a analisar os problemas criados pelo lançamento de esgotos e de resíduos nas fontes de água e os problemas de abastecimento criados para muitas cidades e regiões brasileiras.

GERAR ESGOTOS É FÁCIL. DIFÍCIL É SE LIVRAR DELES…

Esgoto a céu aberto

Algo entre 70 e 75% do corpo humano é composto por água. Descendentes que somos de criaturas que, nos primórdios tempos do início da vida no planeta, eram aquáticas e que depois evoluíram para viver em terra seca, nunca abandonamos completamente a água. Dependemos da água retida no interior de todas as nossas células e do sangue líquido que corre em nossas veias para nos mantermos vivos, da ingestão de boas quantidades de água pura e de alimentos com um bom percentual do líquido em sua composição. Nossos filhos são gerados dentro de uma “bolsa” cheia de líquido amniótico (essencialmente, água). O funcionamento normal de nosso organismo libera toxinas através da urina e os resíduos da nossa digestão, onde há muita água na sua composição. Usamos essa mesma água em nossa higiene pessoal e na limpeza de nossas habitações – praticamente todas as nossas atividades dependem do uso da água. E, quando usamos a água, geramos o chamado esgoto.

De acordo com recomendação da OMS – Organização Mundial da Saúde, todo ser humano tem direito a, no mínimo, 100 litros de água para o seu consumo diário. No Brasil, em média, cada habitante utiliza aproximadamente 150 litros de água todos os dias – água pura para o consumo, para preparação de alimentos, para limpeza e higiene, para as descargas no vaso sanitário, etc. E esse uso gera aproximadamente 150 litros de esgotos por habitante a cada dia. Como dito no título – gerar todo esse esgoto é muito fácil: basta que se use a água. Os problemas começam com a eliminação desse efluente.

Quem mora em cidades ou bairros com uma boa urbanização, dificilmente encontrará uma sarjeta com um fio de esgotos correndo a céu aberto, e, por isso mesmo, pode não perceber a gravidade do problema. Contando com uma infraestrutura de afastamento de esgotos adequada, seus lares são facilmente limpos e higienizados, ficando livres do mal cheiro e dos incômodos de esgotos correndo a céu aberto na sua porta de entrada. Agora, aqueles pobres indivíduos que habitam em comunidades carentes, naqueles imóveis classificados nos critérios dos Censos como “habitação subnormal”, sabem exatamente do que eu estou falando e das agruras que isso produz no dia a dia, particularmente nos dias quentes, quando a decomposição da matéria orgânica presente nos efluentes é mais acelerada.

Poucos dias atrás, após a divulgação de uma série de estatísticas sobre o crescimento do número de assassinatos em grandes cidades brasileiras, percebí um nítido desconforto dos meios de comunicação com essa situação, com editoriais exigindo providências das autoridades de todos os níveis de governo. Silenciosamente, sem contar com a indignação dos meios de comunicação, de políticos e da população, doenças provocadas por águas contaminadas por esgotos ou diretamente pelo contato com esgotos ceifam, silenciosamente, dezenas de milhares de vidas nas populações mais carentes, ano após ano, em números talvez superiores aos da violência urbana e rural. Um exemplo dramático dessa condição sub-humana de vida e moradia é a mortalidade de crianças vitimadas pela diarreia. A diarreia é a segunda causa de morte entre crianças com menos de 5 anos em todo o mundo. No Brasil, 80% dos casos são provocados pelo consumo de água contaminada, retirada de poços, cacimbas e riachos. Em 2011 o país registrou 1,6 milhão de ocorrências – dados oficiais indicam que a doença matou mais de 3.000 crianças com menos de 5 anos no Brasil naquele ano – provavelmente, o número real de mortes é bem maior que isso: em regiões rurais, os pais demoram a fazer o registro civil de nascimento das crianças – sem esse documento não é possível emitir as certidões de óbito. Uma das faces mais tristes dessa estatística mostra que crianças a partir de um ano de idade são as mais vulneráveis aos efeitos devastadores da diarreia. A causa é muito simples: é a partir dessa idade que as crianças começam a engatinhar pelo chão das casas e são expostas aos patógenos que foram trazidos para dentro das casas na sola dos sapatos dos moradores, solas estas impregnadas pelos esgotos que correm a céu aberto nas ruas e calçadas das chamadas “comunidades carentes”. Quem já viu uma criança engatinhando sabe que elas alternam as mãos entre o chão e a boca – havendo patógenos no piso, a contaminação será inevitável.

Apesar de receber algumas “críticas” de amigos que parecem não gostar das postagens onde eu trato dos problemas ligados aos esgotos, acho importante divulgar essas informações, alertando o maior número de pessoas sobre os perigos que uma inocente poça ou filete de esgotos correndo por uma rua de periferia nas ditas “comunidades” pode representar para as populações mais carentes – sempre elas. Como a geração diária de grandes volumes de esgotos e sem sistemas adequados para a coleta e o transporte dos efluentes, é inevitável que a população continue sendo obrigada a improvisar “soluções” para os despejos.

Todos saem perdendo. Os mais pobres, porém, são os que sempre perdem mais – algumas vezes com a perda da própria vida.

UM TAL DE RAMAL INTERNO DE ESGOTOS

Pia

Sistemas de esgotos sanitários são utilizados há milhares de anos –  a cidade de Nipur na Babilônia, famosa por aparecer na narrativa do rei-deus Gilgamesh, começou a construir coletores de esgotos a partir do ano 3.750 A.C. Nesta mesma época, surgiam em cidades da Índia as primeiras redes eficientes para a distribuição de água e captação de esgotos e detritos, usando tubulações feitas de argila e canais subterrâneos. Um dos mais famosos sistemas de esgotos do mundo antigo, a CLOACA MAXIMA de Roma, foi construída nos finais do século VI antes de Cristo. Na época, Roma tinha uma população de 200 mil habitantes; dois séculos mais tarde a cidade abrigaria uma população de 400 mil habitantes, maior do que a população atual de algumas capitais brasileiras. Essa população dispunha de um complexo sistema de abastecimento com onze aquedutos, garantindo o fornecimento de 750 milhões de litros de água potável por dia, e de uma rede subterrânea de esgotos em toda a cidade. Apesar de toda esta antiguidade, a tecnologia e a cultura da construção de sistemas de esgotos acabou se perdendo nas brumas do tempo e, infelizmente, a maior parte da população mundial em nossos dias não dispõe de redes adequadas para a dispersão dos inevitáveis esgotos domésticos.

A descrição simplificada de um Ramal Interno de Esgotos que se segue, deveria ser encontrada em qualquer imóvel de nosso país, garantindo o uso adequado da água de abastecimento e a correta eliminação das águas servidas nos imóveis. Infelizmente, por mais simples que possa parecer a instalação desse sistema de tubulações e dispositivos hidráulicos nos imóveis (entenda-se como torneiras, registros, ralos, pias, vaso sanitário e tanque, entre outros), não são todos os nossos conterrâneos que dispõe desta infraestrutura em suas casas.

O Ramal Interno de Esgotos é formado por toda a tubulação de esgotos do imóvel e do terreno, que recebe as águas servidas, nome dado a toda água usada nas pias, tanque de lavar, ralo do banheiro, cozinha, lavanderia etc., além do esgoto do vaso sanitário. Esse Ramal Interno recebe todas as águas servidas e encaminha até o ponto de saída de esgotos, onde é feito o despejo na Rede Coletora de Esgotos na via pública. Além das tubulações internas do imóvel, o Ramal Interno de Esgotos também possui as caixas de inspeção ou passagem (usadas na limpeza e manutenção da rede) e a caixa de gordura. É claro que, no caso de quem mora em apartamento, as tubulações de descida e de saída dos esgotos, as caixas de passagem e a caixa de gordura são estruturas comuns do condomínio, compartilhadas pelos esgotos individuais de todos os apartamentos; nesses casos, os cuidados pela limpeza e manutenção destes componentes fica a cargo da administração do condomínio.

Existem quatro pontos que merecem destaque:

A). Nos casos das habitações individuais (casas, sobrados, vilas etc.), o tanque de lavar deve ser instalado em local coberto, protegido da chuva. A água da chuva, conhecida tecnicamente como ÁGUA PLUVIAL, não pode ser lançada nas tubulações de esgotos (falamos das águas pluviais no último post). Caso o tanque seja instalado em local descoberto ele passará a funcionar como um coletor de água de chuva (uma espécie de funil) e lançará essas águas na rede de esgoto, sobrecarregando o sistema.

B). O tanque e as pias da residência devem utilizar um sifão. Esse dispositivo tem a função de reter materiais sólidos como botões, areia e terra, restos de alimentos, anéis, pequenos objetos plásticos como tampas de tubos de pasta de dente, evitando assim entupimento das tubulações. Os sifões também funcionam como fecho hídrico, evitando ou reduzindo o retorno de gases malcheirosos dos esgotos para dentro dos imóveis.

C). Na tubulação de saída da pia da cozinha, deve ser instalada uma caixa de gordura. Essa caixa tem a função de filtrar e reter os resíduos de gordura presentes na água de lavagem de pratos e panelas. Essa gordura quando presente nas tubulações da Rede de Esgotos cria dois problemas:

Primeiro – Durante o processo de tratamento do esgoto na ETE (Estação de Tratamento de Esgoto), a gordura pode provocar entupimentos nos filtros e tubulações, levando às paralisações frequentes da operação da ETE para limpeza, sendo necessário o uso de produtos químicos desengordurantes. Em algumas situações, segundo estudos de empresas de saneamento básico, a somatória de todos esses procedimentos pode encarecer o processo de tratamento do esgoto em até 50%; esse custo extra fatalmente será repassado para as contas de água dos clientes.

Segundo – Em contato com a água fria, a gordura solidifica e gruda nas paredes das tubulações, podendo provocar entupimentos da Rede Coletora; diversos estudos de empresas de saneamento básico mostram que mais da metade dos entupimentos de Redes de Esgotos estão ligados direta ou indiretamente a acúmulos de gordura nas Redes. Para ter-se uma ideia do volume dessa gordura, uma família média pode lançar de 1 a 2 kg (a depender dos seus hábitos alimentares) de gordura a cada mês na rede coletora de esgotos. Essa gordura também é um verdadeiro banquete para insetos como as baratas que, com a fartura de comida, se multiplicam sem controle e invadem as ruas e residências. As baratas, como você deve saber são vetores (propagadores) de diversas doenças e podem contaminar alimentos e utensílios domésticos. Alguns predadores naturais das baratas como os escorpiões, podem ter suas populações aumentadas graças à fartura de alimentos, o que poderá resultar em picadas e ataques acidentais.

D). Caixas de passagem ou de inspeção tem a função de interligar as diferentes tubulações que formam o ramal interno de esgoto. Além disso, essas caixas facilitam os trabalhos de limpeza e manutenção do ramal interno de esgoto, evitando a quebra do piso e as escavações. Quanto maior o número de caixas instaladas, mais fácil será a execução destes trabalhos.

Essas informações podem até parecer óbvias para muitos de vocês, mas, na prática, se encontram tantos improvisos e instalações mal feitas em residências (principalmente de pessoas de baixa renda) que, mesmo com a instalação de uma Rede Coletora de Esgotos na porta do imóvel, a família vai continuar correndo riscos de contaminação com os  diversos vazamentos de esgotos.

Continuaremos este tópico no próximo post.

REDE DE ÁGUAS PLUVIAIS E REDE COLETORA DE ESGOTOS – UMA ETERNA CONFUSÃO

Enchente em São Paulo

Dentro de umas poucas horas a partir do momento em que escrevo este post, estaremos entrando oficialmente no Inverno, época do ano que, na minha região, costuma apresentar um tempo seco e razoavelmente frio. Quando “eu era criança pequena lá em Santo Amaro”, roubando o bordão de um antigo comediante, Inverno era sinal de tempo seco e muito frio – lembro que, em dias de frio muito intenso, o gramado de casa amanhecia coberto com uma fina camada de gelo: há muito não se vê um Inverno assim aqui por estas bandas. Curiosamente, estes últimos dias tem sido extremamente chuvosos, o que não é muito comum para a estação – aliás, hoje no meio da tarde enfrentei chuva torrencial numa rodovia. Chuva forte em São Paulo e região, como deve ser do conhecimento geral, é sinal de preocupação com as enchentes.

Estou usando a lembrança destes fatos e memórias para falarmos de um tema bastante importante em hidrologia e que, infelizmente, vem sendo desprezado nas últimas décadas aqui na minha cidade e, imagino, na cidade de muitos de vocês: a Rede de Drenagem das Águas Pluviais. Essa Rede de Drenagem foi formada naturalmente ao longo de milhares (para não falarmos milhões) de anos, quando as águas dos cursos d’água e das chuvas escavaram canais no solo para permitir o escoamento natural dos caudais. Com a intensa urbanização e o crescimento desordenado das cidades, muitos destes canais naturais acabaram obstruídos por construções ou confinados em tubulações subterrâneas – basta uma chuva mais forte para as enchentes tomarem conta das ruas e avenidas. E pior – os cursos d’água passaram a receber os esgotos das casas e indústrias, passando a funcionar como uma “rede coletora de esgotos” a céu aberto. Essa é uma realidade na maioria das cidades brasileiras e na maior parte das cidades dos países pobres e em desenvolvimento.

Vou usar o exemplo da minha cidade: o município de São Paulo possui, ao menos, 186 sub-bacias hidrográficas catalogadas pela Prefeitura, o que representa mais de 200 cursos de água – algumas fontes chegam a falar de 300 cursos de água – outras falam em até 2.000 se considerados os pequenos afluentes: na verdade, ninguém sabe exatamente quantos são e onde estão esses córregos, riachos e nascentes que existem escondidos no subsolo da cidade. Desde a fundação da pequena Vila de São Paulo de Piratininga no século XVI pelos padres jesuítas, já se observa uma técnica de construção que virou a marca da cidade: a vila foi construída no alto de um morro ao lado do Rio Tamanduateí com um duplo objetivo – as águas do Rio seriam usadas para o abastecimento dos moradores e também como um veículo para dispersar os esgotos gerados nas casas. Ao longo de mais de quatro séculos, esse conceito de “urbanização” vem sendo mantido e essa imensa rede hidrográfica, que poderia estar garantindo parte do abastecimento da população, serve apenas para transportar esgotos. É por isso que explicar para uma pessoa comum a diferença entre Rede de Drenagem Pluvial e Rede Coletora de Esgotos é tão complicado – para um leigo, é tudo a mesma coisa. Vamos tentar:

Como já foi mostrado, a chamada Rede de Drenagem de Águas Pluviais utiliza toda a “infraestrutura natural” do relevo de uma região para escoar os excedentes de água que são precipitados nos dias de chuva – isso quer dizer que essa rede de canais precisa estar dimensionada para drenar toda a água dos cursos naturais da região e ainda possuir um espaço extra para absorver as águas das chuvas; quando esse equilíbrio natural é alterado por ações antrópicas, temos as famosas enchentes, matéria na qual nós paulistanos e muitos de vocês, já devem ter atingido o grau de doutorado (vide foto).

Para compensar as alterações provocadas no relevo pela construção das cidades, onde grande parte do solo é impermeabilizado por concreto e asfalto, a Rede de Drenagem de Águas Pluviais precisa receber adições artificiais de condutos para absorver e conduzir as águas: ruas com sarjetas ou meio fio, bueiros, grelhas, tubulações subterrâneas de grande porte, piscinões e áreas de detenção (para acumular rapidamente as águas e liberar aos poucos na rede de drenagem), entre outras obras. Nossas cidades cresceram rápido demais e muitas destas obras deixaram de ser feitas – todos nós arcamos com os custos das enchentes ano após ano.

Como se os problemas de drenagem já não fossem suficientes, grande parte dos cursos de água das cidades continuam sendo usados para o transporte e afastamento dos esgotos. Além de todos os riscos à saúde pública, seja pelo contato com águas poluídas, seja pela proliferação de vetores de todos os tipos e lançamento de lixo e resíduos nestas mesmas águas, existe um enorme agravante: uma Rede de Drenagem de Águas Pluviais não prevê a instalação de qualquer tipo de estação para o tratamento das águas – este tipo de instalação faz parte dos projetos das Redes Coletoras de Esgotos. A consequência óbvia do despejo destes esgotos é a contaminação das fontes usadas para a captação de água para o abastecimento público. No meu último post citei dois exemplos graves dessa contaminação: as Represas Billings e Guarapiranga aqui na Região Metropolitana de São Paulo – nós lançamos esgotos nas fontes de água que abastecem as nossas casas.

É fundamental que todos tenham em mente que são necessários o projeto, a construção e o uso de uma Rede de tubulações específicas para a coleta e o transporte dos esgotos da sua cidade e região – se esta Rede não existe, os governantes locais deverão sempre ser lembrados disto.

Vamos detalhar a Rede Coletora de Esgotos nos nossos próximos posts.

A REDE COLETORA DE ESGOTOS

Esgoto

O acesso a fontes de água com boa qualidade para o abastecimento de populações é hoje um dos maiores desafios da humanidade. Mudanças climáticas globais estão afetando o ciclo das chuvas e provocando grandes alterações em sua dinâmica: em algumas regiões do planeta as chuvas aumentaram em volume e intensidade; em outras regiões, aconteceu justamente o contrário – as chuvas se tornaram irregulares e em volumes menores que os tradicionais. Em regiões montanhosas do planeta, grandes geleiras estão derretendo e reduzindo os volumes de águas de derretimento, as responsáveis pela alimentação de importantes riachos e rios, fontes de água de inúmeras aglomerações humanas. Em muitos lugares é a contaminação de rios e lagos com esgotos domésticos e industriais a responsável pela dificuldade de abastecimento de inúmeras cidades (vide foto). Em São Paulo, a maior e mais rica cidade do país, as Represas Guarapiranga e Billings, duas importantes fontes para o abastecimento da população, recebem diariamente dezenas de milhões de litros de esgotos justamente pela falta de uma Rede Coletora adequada – nós poluímos a água que amanhã chegará em nossas torneiras para o abastecimento de nossas casas. Esse é um problema recorrente em todo o Brasil. Vamos tentar entender essa situação caótica:

A Rede Coletora de Esgotos é formada pelo conjunto de tubulações que tem a função de receber as águas servidas do imóvel (água suja proveniente das pias, tanques e ralos e o esgoto do vaso sanitário). Essa água é afastada dos imóveis e é encaminhada através das tubulações da Rede Coletora para as Estações de Tratamento de Esgoto (ETE), onde os efluentes são tratados antes de serem despejados em corpos de água. Além das tubulações, a Rede Coletora de Esgotos necessita de uma série de instalações complementares e tubulações especiais para o seu perfeito funcionamento: Estações Elevatórias de Esgoto (EEE), coletores tronco, interceptores, linhas de recalque, emissários entre outros.

As tubulações da Rede Coletora de Esgotos têm diâmetro entre 15 cm (mais de 80% de uma Rede típica utiliza esse diâmetro de tubulação) e 50 cm. A grande maioria dos tubos é fabricada em PVC (Poly Vinyl Chloride – Poli Cloreto de Vinila), resinas plásticas de alta qualidade e durabilidade e também em PEAD (Poli Etileno de Alta Densidade); em alguns trechos a tubulação utilizada pode ser de ferro fundido, concreto especial, cerâmica entre outros materiais construtivos. As tubulações desta Rede são instaladas, normalmente, em profundidades entre 1 e 4 metros. Profundidades maiores, sempre que possível, são evitadas, uma vez que se torna necessário o uso de escavadeiras de maior porte; valas profundas estão sujeitas a riscos maiores de desmoronamentos e necessitam de escoramentos reforçados nas paredes para a segurança dos trabalhadores.

Diferente das tubulações da Rede de Abastecimento de Água, que trabalham por pressão, as tubulações da Rede Coletora de Esgotos funcionam por força da gravidade – o esgoto corre de um ponto mais alto para um ponto mais baixo de um terreno, similar ao que acontece com a enxurrada de uma chuva, que corre na direção da sua drenagem natural que são os rios e córregos. Essa característica torna a construção das Redes de Esgotos um verdadeiro desafio técnico, que encarece muito a sua construção.

Uma rede de água pressurizada utiliza torneiras e registros nos pontos de saída, que são abertos e fechados conforme as necessidades de uso; já os pontos de saída de esgotos de um imóvel são abertos (possuem apenas o fecho hídrico). Se, eventualmente, alguém pressurizar um determinado trecho de uma Rede de Esgotos, todo o volume de esgotos presente nas tubulações vai retornar para o interior dos imóveis – imagine a imagem de vasos sanitários se transformando em pequenos vulcões e expelindo “lava” – seria um verdadeiro desastre.

Durante os trabalhos de escavação das valas e instalação das tubulações de esgotos, há um controle rigoroso da profundidade e da inclinação das tubulações, seguindo-se à risca as instruções do projeto técnico. Esse é o principal motivo para a diferença de velocidade na execução das Redes de Esgotos e de Abastecimento de Água Potável. Também é por esse motivo que, em alguns pontos dos bairros da cidade, a população vai se surpreender com o grande volume de terra escavada e com a profundidade na qual a tubulação vai ser assentada, podendo chegar à marca dos 4 metros. Sempre que as tubulações da Rede atingem essas profundidades, é necessária a construção de uma Estação Elevatória de Esgotos (EEE) – essas Estações Elevatórias recebem todos os esgotos de um bairro, por exemplo, e utilizando de um sistema de bombas elétricas os encaminham por força de pressão (nesses trechos são utilizadas tubulações de ferro fundido) para um ponto alto de outro bairro, de forma que os esgotos voltem a correr por força da gravidade. O bombeamento dos esgotos por Estações Elevatórias é repetido várias vezes, conforme o projeto da Rede de Esgotos, até que chegue finalmente na Estação de Tratamento de Esgotos.

Ao longo de uma série de posts vamos explicar cada uma das partes que formam uma Rede Coletora de Esgotos, com o objetivo de lhe dar uma noção básica do seu funcionamento e fornecer subsídios para que você possa cobrar providências das autoridades locais aí na sua cidade.

FALANDO DE ESGOTO SANITÁRIO, OU MEU TRABALHO É UMA GRANDE “MERDA”!

Esgoto a céu aberto

Essa foi uma das minhas primeiras postagens publicadas aqui no blog há quase um ano atrás (10/07/2016) e lida por talvez 6 pessoas – todo o meu grande universo de seguidores na época. Por se tratar da minha área de especialização em saneamento ambiental, eu preparei toda uma série de postagens sobre a temática esgotos sanitários, mantendo sempre a mesma audiência.

Curiosamente, ao longo dos meses, as publicações que tratavam deste assunto tão “asqueroso”, passaram a ser as mais procuradas e compartilhadas do meu arquivo – imagino que a falta de informações mais detalhadas sobre o tema tenha sido o motivo de tamanho “sucesso”. Motivado por essa popularidade tardia, resolvi fazer um up grade nestes antigos posts e republica-los agora para uma audiência um pouco maior. Vamos lá:

Esgoto sanitário é um tema que nem de longe pode ser definido como um dos mais populares em nossa sociedade. Trabalhei por vários anos nas áreas de relações comunitárias e de divulgação de obras para a implantação de redes coletoras de esgotos em cidades da região metropolitana de São Paulo e em diversas cidades litorâneas da chamada Baixada Santista; também integrei a equipe de profissionais que iniciou as obras de implantação da rede de esgotos da cidade de Porto Velho na região amazônica. Muito mais que o trocadilho da chamada (que não deixa de ser uma verdade), conheço muito bem a matéria e sei o quanto é difícil desenvolver esse tipo de trabalho. Em Porto Velho, só para citar um exemplo, trabalhamos um ano e meio para conseguir implantar apenas 32 km de rede coletora de esgotos de um projeto com previsão de mais de 700 km de rede – uma homérica guerra entre diferentes grupos políticos da cidade não permitiu que as obras prosseguissem, apesar da farta alocação de recursos financeiros disponibilizados pelo Governo Federal na época, além de um fabuloso arsenal de máquinas e equipamentos e de uma equipe técnica altamente capacitada.

Governos de todos os níveis ou fingem que o problema não é seu ou se esforçam ao máximo para fazer o mínimo possível – esgoto é obra invisível e não costuma render votos nas eleições. Diferentes das grandes obras visíveis como pontes, viadutos, escolas e hospitais, as dispendiosas redes de esgotos não permitem grandes cerimônias de inauguração, com prefeitos ou governadores cortando uma vistosa fita de seda; também é um tanto difícil imaginar uma dessas autoridades colocando o nome do seu digníssimo pai ou mãe numa estação de tratamento de esgotos – batizar uma escola ou hospital com o nome de um familiar é muito mais digno. Obras de abastecimento de água, muito mais baratas, rápidas para se executar e geradoras de expressivas votações eleitorais tem a preferência e simpatia da maioria dos políticos. Porém, não custa lembrar, que para cada um litro de água potável que entra em uma residência será gerada a saída de um litro de esgoto – simples assim. Na falta de uma rede coletora adequada, os improvisos para a destinação dos esgotos serão multiplicados, afetando diretamente a saúde de grandes contingentes populacionais e causando prejuízos imensos ao meio ambiente.

Qualquer que seja o improviso ou “mágica” que se faça, será muito difícil esconder os despejos de esgotos numa cidade: cada um dos habitantes produz diariamente a sua cota, em média entre 150 e 200 litros de esgoto por dia (no Rio de Janeiro, por exemplo, esse valor supera os 300 litros por dia). Esse número pode, a princípio, parecer exagerado mas considera o consumo total diário de água pessoal como aquela usada nas descargas para transportar os dejetos do vaso sanitário, a água dos banhos, da lavagem das roupas e das louças, escovação de dentes entre outros usos. Numa cidade com 500 mil habitantes encontraremos fácil uma produção diária de, pelo menos, 75 milhões de litros de esgotos por dia. Esses esgotos correrão pelas sarjetas do meio fio das ruas, poluirão córregos e rios, comprometendo inclusive os rios e reservatórios de captação de água para o abastecimento ao longo da bacia hidrográfica, entre outras tragédias ambientais.

Como se isso não bastasse, certamente encontraremos outros problemas no saneamento básico desta cidade: ineficiências na coleta do lixo e sua disposição inadequada em lixões, sistemas de águas pluviais problemáticos ou inexistentes, além da proliferação de vetores de doenças (mosquitos, baratas e ratos entre outros), resultando num ambiente insalubre e de péssima qualidade para a vida dos habitantes. Os recentes surtos de Dengue, de febre Chikungunya e de Zika vírus (esse último suspeito de estar associado ao surto de microcefalia em bebês), que tanto acompanhamos nos noticiários recentes, são os reflexos mais notórios da nossa falta de cuidado com o saneamento básico.

Em uma sociedade onde o consumismo vem crescendo nos últimos anos, é comum assistirmos comerciais de TV açucarados, onde a temática “qualidade de vida” está diretamente associada ao consumo do produto anunciado. Francamente, é difícil conciliar esse mundo da fantasia com a realidade que nos cerca. Por mais deliciosa que seja a margarina, a alta tecnologia do smartphone ou o conforto do carrão sofisticado, os felizes consumidores destes fantásticos produtos estarão cercados por um meio ambiente mais próximo da tragédia do que do mundo da fantasia.

Os governantes mais sérios, que infelizmente ainda são poucos, estão descobrindo que os investimentos em saneamento básico representarão no médio e no longo prazo uma ferramenta valiosa para a economia de recursos na área de saúde – em cidades com boa infraestrutura de saneamento básico, a incidência de doenças, notadamente as de veiculação hídrica, diminui substancialmente. Estudos internacionais indicam que para cada dólar investido em saneamento básico, gera-se uma economia de até cinco dólares em despesas de saúde pública. Em tempos de crise financeira como estes que estamos vivendo, investimentos públicos (e por que não privados) maciços em infraestrutura de saneamento básico são uma excelente alternativa para a geração de empregos e economia de recursos dos orçamentos nas áreas da saúde pública.

Infelizmente, o caminho que deve ser percorrido entre as boas ideias e os resultados práticos do saneamento básico é longo, caro e, em alguns casos, até traumático para a população. A execução de qualquer obra pública em regiões urbanas é problemática e apresenta uma série de dificuldades técnicas que vão desde dificuldades logísticas para o transporte e armazenamento de materiais até os problemas de relacionamento com as comunidades do entorno das obras, onde fatalmente surgirão complicações no trânsito local, barulho e poeira entre outros transtornos. Nos casos das obras de redes de esgoto, onde há necessidade de longos períodos de bloqueio em trechos de ruas e avenidas, além da escavação de valas na frente de acessos a residências, escolas e comércios, os problemas e as reclamações se multiplicam.

Obras similares nas redes de abastecimento de água, redes de águas pluviais, redes de gás, implantação de dutos subterrâneos para telefonia, TV a cabo e eletricidade que estão sendo realizadas simultaneamente pelos quatro cantos das cidades, aumentarão ainda mais a confusão. É fundamental que todos os envolvidos nos trabalhos tenham uma visão ampla do tema e um entendimento claro da importância das obras como forma de atender as demandas das populações afetadas e solucionar os problemas que surgirão.

Em pleno século XXI, com o Brasil ocupando uma posição de destaque entre as maiores economias do planeta, milhares de cidades em todas as regiões do país mal começaram a implantar redes coletoras de esgoto – estações de tratamento de esgoto então, nem pensar… Vivemos o paradoxo de ser um dos países líderes em números de usuários da internet e da telefonia móvel e, por outro lado, pertencer ao grupo de países com as mais precárias infraestruturas de saneamento básico do mundo – a era da informação e a pré-história disputando seu espaço em nossa sociedade.

Existe muito o que se fazer para mudar a cultura das “obras invisíveis” e transformar o saneamento básico numa realidade para todos. É um tema bastante extenso e muito interessante, que será trabalhado em diversos outros posts.

Enquanto isso, uma dica: você já deve ter percebido que saneamento básico é essencialmente uma questão de decisão política – a alocação de recursos financeiros e a contratação de empresas com expertise na área nunca será a garantia da efetiva realização e operação dos sistemas. Escolher bons representantes políticos, verdadeiramente comprometidos com essa causa, é o que será um bom começo para uma revolução no saneamento básico na sua cidade ou região.