Vínhamos numa sequência de postagens falando sobre serras e águas por todo o Brasil, quando fomos obrigados a dar uma parada para falar das enchentes na Região Metropolitana de São Paulo. Conforme comentamos em uma das postagens, entra ano e sai ano e as previsíveis enchentes continuam a atormentar a vida da população paulistana. E isso não acontece apenas em São Paulo – outras grandes cidades como Recife, Belo Horizonte, Rio de Janeiro e Florianópolis também passam seus maus momentos nas temporadas de chuvas.
Tomando como gancho esse grande problema, lembro que falamos que a principal bacia hidrográfica da Região Metropolitana de São Paulo é a do rio Tietê, que atravessa essa grande mancha urbana no sentido Leste-Oeste. O Tietê recebe contribuições de milhares de pequenos rios e córregos ao longo deste trecho – somente dentro do município de São Paulo, o número de tributários fica entre 200 e 300; como muitos destes corpos d’água foram canalizados, aterrados e esquecidos ao longo da história da cidade, ninguém sabe o número exato – algumas fontes antigas chegam a falar até de 2.000 corpos d’água dentro da área do município de São Paulo. As canalizações, aterros e retificações feitas nesses cursos d’água estão na raiz das enchentes da Região Metropolitana de São Paulo.
Mas o rio Tietê não reina tão soberano assim na área Metropolitana – no extremo Sul do município de São Paulo, já dentro dos domínios da Mata Atlântica, existem vários rios que correm na direção do Oceano Atlântico, seguindo por vales e quedas d’água na região da Serra do Mar. Isso acontece também em outros municípios da Região Metropolitana com porções na Serra do Mar. Um desses rios é o Capivari, que tem nascentes na região de Colônia, um dos bairros mais afastados da cidade de São Paulo.
Poderá até parecer conversa de ecologista para a maioria dos leitores, mas, por mais incrível que possa parecer, a maior e mais urbanizada cidade brasileira possui uma grande área florestal no extremo sul do seu município, onde se encontram rios com águas cristalinas, densas matas e muita vida animal, onde até algumas raras onças-pintadas podem ser encontradas. Essa região faz parte de uma Unidade de Conservação Ambiental, a Capivari-Monos, que por sua vez fica dentro do Parque Estadual da Serra do Mar.
A Serra do Mar é uma longa cadeia montanhosa que se estende por cerca de 1.500 km entre os Estados do Rio de Janeiro e Santa Catarina, acompanhando a faixa litorânea. A Serra do Mar é formada por uma sucessão contínua de morros e montanhas, onde se destacam grandes blocos rochosos de granitos e gnaisses, pertencendo ao chamado Complexo Cristalino Brasileiro. O trecho paulista da Serra do Mar se estende da divisa com o Estado do Rio de Janeiro até o litoral Sul de São Paulo. Esse trecho representa a maior porção contínua remanescente da Mata Atlântica no Brasil. A importância ambiental dessa área é tamanha que, desde 1977, ela passou à condição de área de preservação permanente com a Criação do Parque Estadual da Serra do Mar.
Ocupando uma área com mais de 332 mil hectares, o Parque Estadual da Serra do Mar se espalha por 25 municípios paulistas. De acordo com os levantamentos científicos já realizados, esse imenso corredor ecológico abriga cerca de 1.361 espécies animais e 1.200 tipos de plantas. De acordo com dados da Secretaria Estadual do Meio Ambiente de São Paulo, o Parque contribui para a conservação de 19% do total de espécies de vertebrados de todo o país e 46% de toda a Mata Atlântica, além de proteger 39% de anfíbios, 40% de mamíferos e 23% de répteis do bioma. Isso não é pouca coisa.
A Serra do Mar também se destaca por seus recursos hídricos. Dois dos mais importantes rios paulistas têm suas nascentes em seus morros – o Tietê e o Paraíba do Sul. Além desses, a Serra do Mar possui uma infinidade de pequenas nascentes e afloramentos d’água, que vão se juntando e formando riachos e rios maiores como o rio Capivari, que citei no começo deste post. A poucos quilômetros de sua nascente, já dentro da Serra do Mar, o rio Capivari apresenta fortes corredeiras e cachoeiras devido ao desnível do terreno – são cerca de 800 metros de altitude em relação ao nível do mar. Quando atinge uma altitude de uns 200 metros, o rio Capivari se encontra com o rio Branco de Cima e forma o rio Branco, um importante manancial de abastecimento da região da Baixada Santista. Quando eu era adolescente, acampei diversas vezes nessa região.
Vista do litoral, a Serra do Mar em São Paulo parece uma muralha verde, com altitudes entre 800 e 1.000 metros. Os cumes dos morros e montanhas sempre aparecem cobertos por nuvens – são grandes massas de umidade vindas do oceano e que são interceptadas pelo relevo, provocando chuvas constantes. Em alguns trechos da Serra do Mar chove mais do que na Floresta Amazônica. São essas chuvas que alimentam os lençóis freáticos e garantem o fluxo contínuo das águas e a vida na floresta.
Os terrenos íngremes e instáveis das encostas da Serra do Mar sempre foram um desafio para os chamados paulistas, que desde os primeiros tempos da colonização aprenderam a usar as muitas trilhas criadas pelos povos indígenas para superar o desnível entre o planalto e o mar. Esses caminhos indígenas, que existem por todo o país desde tempos imemoriais, são conhecidos como peabirus, palavra tupi guarani que significa algo como “grama amassada”. Naqueles tempos, se gastava de dois a três dias de caminhada pelas trilhas para ir de Santos até São Paulo, uma viagem de pouco mais de 70 km e que hoje pode ser feita em uma hora por rodovias.
Com o passar do tempo, algumas dessas trilhas foram melhoradas para permitir o uso de burros de carga. Uma dessas trilhas, a Calçada do Lorena, era totalmente revestida por pedras, permitindo assim as viagens na temporada das chuvas. Com a chegada das ferrovias, a partir de meados do século XIX, as coisas melhoraram bastante – as rodovias só foram construídas no século XX. Foi justamente por causa dessa grande declividade e dificuldade de acesso da Serra do Mar que a Mata Atlântica em São Paulo acabou preservada – era muito difícil cultivar essas terras íngremes e dava muito trabalho explorar as madeiras nessas encostas instáveis.
Para a sorte de todos, ficou valendo o velho ditado – há males que vem para o bem.
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