“FANTASMAS DO CAPIBARIBE”

Recife Antigo

Rios são muito maiores do que simples cursos d’água e seus limites costumam extrapolar a largura das margens. Muito além do uso da água para as mais diversas atividades, os rios se prestam para acompanhar o desenvolvimento da história, da cultura e do folclore das populações que habitam ao longo de seus domínios. Histórias reais do dia a dia costumam, ao longo de várias gerações de “contadores”, sofrer enormes distorções e passar para o campo do sobrenatural – surgem assim os fantasmas e os monstros que povoam as águas desconhecidas.

Fechando esta série de publicações sobre os rios pernambucanos, segue um conto de Roberto Beltrão, publicado num site especializado no assunto – O Recife Assombrado, que mostra um pouco deste lado folclórico e “assustador” do rio Capibaribe:

“Ele nasce como um riacho em Poção, no Agreste do estado. Torna-se caudaloso ao longo do seu curso de 248 quilômetros até chegar ao mar. Corta vários bairros do subúrbio do Recife, sempre atravessado por pontes de diversos tamanhos. No centro da cidade, o velho rio predomina na paisagem urbana: durante o dia, é como um límpido espelho que reflete a arquitetura dos prédios antigos. À noite torna-se misterioso quando reproduz o brilho das luzes artificiais ou da lua cheia. Apesar de sua beleza, o Capibaribe sempre provocou medo entre os recifenses – muitos garantem que ele é assombrado.

Reza a tradição popular que, naquelas águas, habitam fantasmas pecaminosos. Principalmente, almas penadas de suicidas – pessoas que usaram o rio como rota de fuga deste mundo cruel e permanecem no “limbo”, no purgatório entre o Céu e o Inferno. No breu das noites caladas, esses espectros de expressões angustiadas podem ser vistos por quem se aproxima das margens mais desertas. São como sutis vultos cinzentos sobre a superfície e provocam fortes arrepios em quem os testemunham.

E se hoje a poluição desencoraja qualquer um que pense em mergulhar no Capibaribe, até o começo do século XX o rio era atrativo para quem queria se refrescar ou mesmo procurava o alívio para males do corpo: por muito tempo a população acreditou que banhar-se no trecho do rio próximo ao bairro do Poço da Panela, na Zona Norte ajudaria na cura de doenças, algumas até mais graves como a cólera.

A verdade é que muitos desses banhistas desavisados pereceram porque não resistiram à força das correntezas. Os cadáveres eram encontrados metros adiante, inchados e roídos pelos peixes. Dizem que os fantasmas esbranquiçados dessas vítimas do Capibaribe ainda aparecem para pedir socorro aos viventes.

No rio atuou ainda um fantasma zombeteiro conhecido por Vira-roupas. Segundo registrou Gilberto Freyre no livro “Assombrações do Recife Velho”, ele atormentava as lavadeiras que ganhavam a vida às margens do rio. Era especialista em “roubar as trouxas das pobres mulheres, camisas finas de doutores, toalhas de casas lordes, lenços caros de iaiazinhas”. Do Vira-roupas, claro, não se tem ouvido relatos recentes, já que ninguém mais usa o rio para lavar nada. Mas a assombração talvez ainda esteja por lá, à espera de uma lavadeira desprevenida.

Na década de 70, o Capibaribe transformou-se num verdadeiro monstro aos olhos do povo da cidade. Durante os períodos de chuva, o rio transbordava trazendo destruição e, muitas vezes, morte. Em 1975, ocorreu a maior de todas as inundações. Quando as águas baixaram e os moradores começavam a voltar para suas casas, deu-se um dos episódios mais insólitos da história pernambucana. O boato de que a barragem de Tapacurá havia estourado levou a população a concluir que o Capibaribe viria com mais força e cobriria toda a cidade.

Acreditou-se que o Recife passaria de “Veneza Americana” para “Nova Atlântida”, submersa e esquecida tal e qual a lendária cidade antiga mencionada por Platão. Instaurou-se o pânico generalizado e as pessoas corriam em desespero pelas ruas: uma cena dantesca que parecia antecipar o fim-do-mundo ou imitar o cinema catástrofe americano que estava em voga na época. O boato foi desmentido e as enchentes foram contidas nos anos seguintes com a construção de barragens. E o rio-monstro permaneceu adormecido desde então.

Mas isso não quis dizer que o Capibaribe não tenha mais segredos a esconder. Na manhã chuvosa do dia 13 de julho de 2004, por exemplo, uma multidão se aglomerou nas mediações da ponte Maurício de Nassau, no centro do Recife – mais precisamente na esquina da rua Martins de Barros com a rua 1º de Março. Todos queriam ver o conteúdo macabro do saco de plástico preto encontrado por um gari numa das margens do rio: sete crânios humanos!

Segundo testemunhas, o gari ficou muito assustado ao fazer a descoberta. E logo policiais militares, peritos do Instituto de Criminalística e soldados do Corpo de Bombeiros recolheram o saco e iniciaram as investigações. Os restos mortais foram “resgatados” e levados para o Instituto de Medicina Legal. Ninguém soube explicar como as caveiras foram parar no local. Mas logo os populares começaram a especular: “magia negra”, “restos de um antigo crime”, “brincadeira de mau gosto”. A verdade sobre essa ocorrência macabra nunca foi revelada.”

 

O QUE FAZER PARA SE RECUPERAR OS RIOS IPOJUCA E CAPIBARIBE?

Heráclito de Éfeso

Heráclito de Éfeso (vide imagem) foi um filósofo pré-socrático que viveu meio milênio antes de Cristo (aproximadamente entre 535 e 475 A.C) – é chamado de “Pai da Dialética” e o pensador do “tudo flui”, sintetizando a ideia de um mundo em movimento perpétuo. Vou iniciar esta postagem usando uma de suas mais famosas frases, que ao final do texto você entenderá bem porque foi usada:

Ninguém pode entrar duas vezes no mesmo rio, pois quando nele se entra novamente, não se encontra as mesmas águas, e o próprio ser já se modificou. Assim, tudo é regido pela dialética, a tensão e o revezamento dos opostos. Portanto, o real é sempre fruto da mudança, ou seja, do combate entre os contrários.”

Ao longo de toda a pesquisa realizada para a produção dos textos desta sequência de postagens, encontramos, em uma quantidade bem acima da média, referências saudosistas aos rios Ipojuca e Capibaribe: pessoas que nadaram e brincaram em suas águas quando criança, lavadeiras que ganhavam o seu pão trabalhando nas suas margens, comentários de pescadores – tanto profissionais quanto de amadores, que enfrentavam as águas em jangadas improvisadas e construídas com troncos de bananeiras. Referências de antigos catadores de caranguejos, essas são inúmeras. Surgiram também muitas lendas de monstros e assombrações que vivem nestas águas, alguns inclusive “especializados” no roubo das roupas das antigas e pobres lavadeiras. Pessoas de todas as idades e lugares ao longo das margens destes rios demonstram muita saudade e tristeza pela perda de uma parte importante de suas vidas.

Diferente de alguns rios que conheço muito bem – o Tietê e o Tamanduateí, rios paulistanos que já estavam poluídos em muitos trechos ainda na metade do século XIX: a poluição só fez aumentar e acompanhou o crescimento das cidades, o Ipojuca e o Capibaribe eram, em grandes trechos, limpos até uma ou duas gerações atrás – são muitas as lavadeiras e os pescadores que frequentavam e usavam as águas dos rios até as décadas de 1980 e 1990, trechos que atualmente estão altamente degradados e poluídos. Acredito que estas memórias do convívio com as águas destes rios estejam tão vivas na memória de muita gente devido a esta brevidade de tempo.

Agora, o que é necessário (senão possível) fazer para recuperar a qualidade ambiental destes dois rios tão importantes?

Segue uma “pequena” lista de ações:

– Ampliação dos sistemas de produção e distribuição de água potável;

– Instalação e ampliação das redes coletoras de esgotos e demais sistemas voltados ao afastamento e tratamento dos efluentes. A universalização destes serviços, sozinha, pode resolver até 60% da poluição nas águas dos rios;

– Ampliação da infraestrutura de atendimento à saúde das populações, com destaque ao controle e tratamento da esquistossomose, doença que apresenta altíssimos níveis de contaminação nos vales dos dois rios;

– Fomentar programas de construção de moradias para as populações de baixa renda, liberando as áreas de margens e de várzeas para o cumprimento das suas funções naturais de absorção dos excedentes de água nos períodos de cheia;

– Criação de parques lineares nas áreas urbanas nas margens dos dois rios, com plantio de vegetação e pistas de caminhada, ciclovias e equipamentos de lazer, reaproximando a população dos rios. Essas instalações não devem interferir nos ciclos de cheia e transbordamentos naturais dos rios – ao contrário, devem auxiliar nestes eventos;

– Replantio e recomposição das matas ciliares, inclusive recompondo áreas de manguezais nas regiões dos estuários, fazendo-se respeitar as áreas de recuo das construções em relação as margens dos rios;

– Criação de programas de reflorestamento e recuperação das áreas de brejo, permitindo a recomposição dos pontos de recarga dos lençóis subterrâneos e nascentes de importantes fontes de água em áreas do Agreste;

– Implantação de programas eficientes de coleta de resíduos sólidos urbanos (resíduos domésticos, industriais, comerciais e hospitalares), com a criação de programas de reciclagem e disposição dos resíduos inservíveis em áreas de aterro controlado, que atendam a respectiva legislação (Lei dos Resíduos Sólidos);

– Desenvolvimento de programas para coleta, destinação e reutilização dos resíduos da construção civil, vulgarmente chamados de entulhos, criando áreas para o armazenamento temporário, atendendo as recomendações da Lei dos Resíduos Sólidos vigente;

– Adequação dos abatedouros públicos e particulares às normas sanitárias, com eficientes processos de controle e tratamento dos efluentes e resíduos gerados ao longo do processo de abate e processamento de proteína animal;

– Controle e supervisão dos serviços de aplicação de defensivos agrícolas, cumprindo adequadamente as normas referentes a lavagem das embalagens dos produtos e devolução aos fabricantes;

– Disseminar a Educação Ambiental e o respeito pelos recursos naturais entre todas as populações dos municípios que se encontram total ou parcialmente inseridos nas respectivas bacias hidrográficas.

Observem que esta lista de ações não apresenta nada de “outro planeta”, que seria absolutamente impossível de ser realizado por nós, pobres mortais. Deixando de jogar lixo, entulhos e efluentes de todo o tipo nos rios, as suas águas, naturalmente, irão se renovar e os próprios processos naturais das águas se encarregarão de recuperar a qualidade ambiental – com águas limpas e livres de poluentes, todas as formas de vida voltarão a ocupar as águas, várzeas e margens dos rios. É sempre importante salientar que o acesso a moradia e aos serviços de saneamento básico, problemas que estão na origem da degradação ambiental destes rios, é um direito de todo cidadão brasileiro, conforme disposto no artigo 23, inciso IX da Constituição Federal:

“Artigo 23 – É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios:

(…)

IX – Promover programas de moradia e a melhoria das condições habitacionais e de saneamento básico.”

Nas mesmas fontes de pesquisa que usei para levantar muitas das informações e dados usados na redação dos meus textos, também encontrei inúmeros projetos e planos de autoridades e Governos de todos os níveis, descrevendo programas de implantação de infraestruturas de saneamento básico, controle de fontes de poluição, programas de habitação popular, reflorestamento, implantação de parques lineares, entre muitos outros. Muitos destes programas e políticas “já estão em andamento”, inclusive com prazos de entrega bastante próximos. Recomendo aos moradores destas regiões uma marcação cerrada em cima das autoridades responsáveis por todos estes programas e uma fiscalização implacável das obras e programas anunciados.

Com cidadãos fazendo a sua parte e autoridades cumprindo aquilo que está previsto na Legislação, sem que se precise inventar nada de diferente, os rios Ipojuca e Capibaribe voltarão em poucos anos a apresentar águas limpas e cheias de vida.

E voltando ao pensamento de Heráclito de Éfeso, teremos pessoas de diferentes gerações entrando nas novas águas de rios recuperados e renovados.

E O PEIXE QUE REPRESENTA O RIO IPOJUCA É: A GOIABADA!

Goiabada

Ao longo dos últimos meses, tenho trabalhado em uma sequência de postagens sobre os dez rios mais poluídos do Brasil. Já falei dos rios Tietê e Cubatão em São Paulo – o primeiro, o mais poluído do Brasil; o segundo, um símbolo da recuperação ambiental regional. Na sequência, explorei as nuances do rio Paraíba do Sul, um curso d’água vital para a região Leste do Estado de São Paulo e faixa Leste de Minas Gerais e, especialmente importante para o Estado do Rio de Janeiro, onde é o rio mais importante apesar de ser o quinto mais poluído do Brasil. Passamos então para o sofrido Rio Doce, um rio de grande importância regional e que foi destruído pelo rompimento de uma barragem de rejeitos de mineração em 2015. Na região Sul encontramos o rio Iguaçu, o segundo rio mais poluído do Brasil. Em Pernambuco encontramos os famosos Ipojuca e Capibaribe, respectivamente, o terceiro e o sétimo da lista dos rios mais poluídos do Brasil.

Em cada um destes rios, sempre encontramos uma espécie de peixe símbolo: a piabinha do rio Paraíba do Sul; o surubim do Iguaçu e o surubim-do-doce, respectivamente dos Rio Iguaçu e Doce; pacus e jaús no rio Tietê. Pesquisando sobre as espécies de peixes que poderiam simbolizar os rios Capibaribe e Ipojuca, encontrei algo bastante curioso: o peixe que melhor pode simbolizar o rio Ipojuca era uma goiabada, a goiabada Peixe, produzida na cidade de Pesqueira no Agreste pernambucano e cuja história se mostrou ligada ao rio. Deixem-me explicar este “causo”:

Até as últimas décadas do século XIX, as comunicações e o transporte de pessoas e produtos entre as Regiões do Agreste e Sertão pernambucanos até o litoral eram muito precários e demorados.  O transporte de pessoas e produtos dependia da força animal de cavalos e burros ou de redes de navegação fluvial limitadas. Frutas e legumes, produzidos em abundância no interior de Pernambuco, se perdiam facilmente pela falta de um transporte rápido e confiável para as áreas populosas do Litoral. Para resolver estes gargalos logísticos e dinamizar a economia do Estado, o Governo Central (ainda no período do Império) iniciou a construção da Estrada de Ferro Central de Pernambuco (oficialmente, The Great Western of Brazil Railway Company Limited, chamada pelos populares de Greitueste) em 1881, com o objetivo de ligar a cidade do Recife a Caruaru, objetivo que só seria alcançado em 1896. Em 1907, a ferrovia foi estendida até a cidade de Pesqueira, com as obras avançando cada vez mais Sertão adentro.

A chegada do transporte ferroviário até a cidade de Pesqueira teve uma importância ímpar: desde 1898, funcionava na cidade a Indústria Alimentícia Carlos de Brito, que ganharia projeção nacional com a marca de produtos Peixe – doces a base de frutas e produtos de tomate em lata. Aliás, segundo alguns estudiosos, o complexo industrial criado em Pesqueira, em pleno Agreste pernambucano, foi o marco inicial da industrialização da Região Nordeste. Entre todos os produtos da Peixe, merece destaque a goiabada em lata – eu tenho lembranças desta goiabada ainda na minha primeira infância, quando ela disputava mercado com uma marca famosa aqui de São Paulo, a Cica – servida com queijo Minas, a goiabada pernambucana ficava deliciosa!

A iniciativa empreendedora da Carlos de Brito trouxe uma enorme prosperidade a toda a região de Pesqueira nas primeiras décadas do século XX, período em que a cidade chegou a ter cinco jornais semanais, jóquei clube, revendedoras de automóveis, aeroporto e uma forte classe de trabalhadores assalariados. Com o passar dos anos, outras empresas produtoras de doces se instalaram em Pesqueira – Rosas, Tigre e Touro, entre muitas. A partir da década de 1950, o grupo Carlos de Brito entrou num processo de estagnação, especialmente por problemas de escassez de água nas regiões produtoras de frutas e às sucessivas quebras de produção em períodos de forte estiagem. No final de 1998, a empresa acabou fechada e todos os funcionários demitidos.

E qual a relação destas indústrias produtoras de doces de fruta com o rio Ipojuca?

A Região do Agreste é uma zona de transição climática entre a Zona da Mata úmida e o Sertão seco. A vegetação predominante é a Caatinga, um bioma adaptado a baixa incidência de chuvas e às secas periódicas. Nesta extensa região são encontrados os brejos, tanto de altitude quanto os chamados de “pé-de-serra”, áreas úmidas com enclaves de matas densas. Nas regiões dos brejos nascem inúmeros cursos d’água, fundamentais para a sobrevivência das populações e formadores dos grandes rios com nascentes no Agreste como o Ipojuca, o Capibaribe e o Una. Foram nestas áreas úmidas e de grande fertilidade onde se instalaram as grandes plantações de árvores frutíferas e de tomates, fornecedoras de matérias primas para as indústrias de doces e conservas de Pesqueira. Na região de entorno da cidade de Pesqueira merecem destaque os Brejos de São José e Ororubá, na Serra de Ororubá, o de Poção, na serra do mesmo nome, e o Brejo da Serra do Bituri, entre os municípios de Sanharó, Belo Jardim e Brejo da Madre de Deus.

As matas destes brejos formavam importantes redutos da vida animal do Agreste, com espécies como veados, onças, raposas, gatos maracajás, caititus, coelhos, além de aves e répteis de diversas espécies. Elas também abrigavam uma infinidade de espécies de árvores. Vejam essa descrição feita por Sebastião de Vasconcellos Galvão em 1908:

“A aroeira (muito usada no cozimento do entre casca para dores de garganta), o bom nome (com o uso específico das moléstias das vias respiratórias), o jucá ou pau-ferro, o assafraz, guáiaco, cabeça de negro, gitó, parreira brava, japecanga (succedaneo da salsaparrilha), o ingazeiro, jaboticabeira, o imbuzeiro, a catinga de porco (de cujas folhas se faz travesseiros sobre os quais se deitando os doentes de dores de cabeça e tonteiras, dizem cessar o incômodo), o mulungu, o cardeiro (mandacaru), o marmeleiro, o velame, o barbatenão (ou barbatimão), etc.”

A derrubada sistemática das matas ao longo de várias décadas, para ceder espaço para a expansão contínua das plantações e fornecimento de lenha para alimentação dos tachos de cozimento das fábricas e das caldeiras das locomotivas a vapor, levou o sistema ao colapso: sem a proteção das matas, solos perdem rapidamente a fertilidade e passam a sofrer erosão contínua pelos ventos e pelas chuvas; sem as raízes profundas das árvores do Agreste, deixa de existir a recarga natural dos lençóis subterrâneos de água, o que ameaça a própria existência do brejo – a produção de água nas nascentes ou cessa ou fica muito reduzida. O fornecimento cada vez mais irregular de frutas e tomates pelos produtores, acabou por comprometer a produção da indústria, que não resistiu à produção regular dos concorrentes das Regiões Sul e Sudeste. Em meio a esse colapso, restou ao Ipojuca um gigantesco passivo de sedimentos carreados para a sua calha pelas chuvas de vários invernos, a redução da oferta de água de muitos dos seus tributários e muitos pequenos produtores, que trabalhavam em parceria com a indústria, terminarem arruinados e em busca de “asilo” nas margens e várzeas do rio nas muitas cidades ao longo do seu vale.

O sonho efêmero da industrialização desta parte do Agreste acabou em uma tragédia socioambiental, que atualmente chamamos de “insustentabilidade” – ficou uma espinha do (da) Peixe em muitas gargantas…

A nós, restou apenas um punhado de “doces” lembranças.

A PROBLEMÁTICA FOZ DO RIO IPOJUCA, OU O “TURISMO DE RISCO” EM PORTO DE GALINHAS

Porto de Galinhas

Uma bombástica reportagem publicada por um dos mais importantes jornais do Estado de Pernambuco na última semana de 2015, em pleno Verão, estampou a manchete “Turismo de risco em Porto de Galinhas”. A matéria fazia referência aos sérios problemas representados pela esquistossomose na famosa praia do litoral Sul pernambucano – a notícia irritou muita gente na região. O surto da doença foi detectado inicialmente no ano 2000, quando fortes enchentes atingiram toda a Região da Mata Sul , trazendo os caramujos de água doce, do gênero Biomphalaria contaminados com o parasita transmissor da doença – Schistosoma mansoni, para a região de Porto de Galinhas. Naquele ano, 622 pessoas foram contaminadas ao mesmo tempo com esquistossomose, o que foi considerado o maior surto agudo da doença já registrado no mundo. Porto de Galinhas, para quem não conhece, fica no município de Ipojuca, e a fonte dos caramujos contaminados foram as águas do poluído rio Ipojuca, que tem sua foz no Oceano Atlântico neste município, bem ao sul do Porto de Suape.

Considerada como um dos destinos turísticos mais famosos e importantes do Estado de Pernambuco, Porto de Galinhas fica a pouco mais de 70 km da cidade do Recife. Contando com praias de ondas fortes, perfeitas para os amantes do surf, e piscinas naturais com águas mornas e transparentes onde vivem grandes cardumes de peixes, a região agrada a todos os tipos de visitantes. A publicação da reportagem alertando para o grave problema da infestação dos caramujos transmissores da esquistossomose caiu como uma verdadeira bomba no município de Ipojuca, que tem no turismo uma importante fonte de arrecadação. Ipojuca, aliás, está entre os cinco municípios pernambucanos com a maior receita tributária, que além do forte turismo proporcionado pelas belezas naturais de sua costa, conta também com a arrecadação gerada pelo Complexo Industrial e Portuário de Suape.

Diferente das águas do rio Ipojuca, onde os caramujos vivem e tem contato direto com as populações que nadam, se banham, trabalham ou retiram água para os mais diversos usos, em Porto de Galinhas os caramujos são encontrados em terrenos, córregos e poças d’água – em casos de chuvas fortes, com a formação de enxurradas e alagamentos, os turistas podem facilmente entrar em contato com as larvas do Schistosoma mansoni. Conforme comentado em postagem anterior, as larvas abandonam o caramujo na presença do sol e nadam livres na água, podendo penetrar no organismo humano através da pele ou das mucosas.

Apesar da alta arrecadação de impostos, o município de Ipojuca apresenta indicadores sociais abaixo da média do Estado de Pernambuco – o Censo Demográfico de 2010 do IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, encontrou 62,83% dos moradores do município em situação de pobreza. O IDH – Índice de Desenvolvimento Humano, que indica as condições de renda, longevidade e educação da população, mostra que Ipojuca está atrás de mais de 40 municípios do Estado, com um índice de 0,619, considerado médio. Um outro dado alarmante foi o crescimento da mortalidade infantil que, entre os anos de 2009 e 2011 aumentou de 7,5% para 12,6%, contrariando a tendência geral de redução observada no Estado e apesar do investimento em saúde no município ter aumentado. Diante deste cenário social, não é de se estranhar que o município tenha uma infraestrutura de saneamento básico das mais precárias e venha a se somar a tantas outras cidades na mesma situação em toda a bacia hidrográfica do rio Ipojuca. Dados do TCE – Tribunal de Contas do Estado, mostram que, até o ano de 2011, a cobertura de abastecimento de água em Ipojuca era de 47,4% e a coleta de esgotos atingia apenas 14,7% da população. Não é à toa que, conforme comentado na última postagem, o município de Ipojuca está entre as cinco localidades de Pernambuco com a maior incidência de casos de esquistossomose.

Um outro problema importante observado no município foi o aumento do esgoto industrial lançado nas águas do Ipojuca, que vem se somar aos problemas ligados ao lançamento de esgotos domésticos, descarte de resíduos domésticos e lixo, despejos de vinhoto e outros resíduos das indústrias sucroalcooleiras (usinas, destilarias e canaviais), efluentes de matadouros, entre outras fontes de poluição observadas ao longo de todo o curso do rio. Com uma série de incentivos fiscais oferecidos pelo Governo do Estado, indústrias de todos os tipos se instalaram no município, muitas delas grandes usuárias de água em seus processos industriais. Sem uma fiscalização adequada, algumas industrias realizam despejos de esgotos e efluentes industriais sem tratamento nas águas do rio Ipojuca, contribuindo assim para uma deterioração ainda maior da qualidade ambiental das águas e perpetuação do rio na lista dos mais poluídos do país.

Outra grande fonte de problemas para o rio Ipojuca na região do seu estuário está associada com a construção do complexo portuário de Suape, obra que produziu diversas modificações nas características ecológicas da região e resultou em graves alterações para a vida marinha. Com vistas à criação de uma zona com grande potencial de crescimento e desenvolvimento econômico, as autoridades estaduais não se preocuparam em aprofundar os estudos sobre os impactos ambientais que seriam gerados após a construção do porto na região. Foram realizadas diversas obras de drenagem, represamentos e aterros para permitir a implantação do porto, onde extensas áreas de manguezais e de Mata Atlântica foram destruídas.

Trechos dos recifes foram retirados para permitir a comunicação entre o rio Ipojuca e o mar, obras que causaram tanto alterações no ciclo das marés quanto alterações no teor de salinidade da água e aumento na sedimentação. Esse conjunto de mudanças ambientais teve reflexos na vida de todas as comunidades aquáticas, dos manguezais e das matas na região do estuário do rio Ipojuca. Uma das alterações mais visíveis e dramáticas, resultante das mudanças nesta área estuarina, foi o aumento da presença de tubarões na Região Metropolitana do Recife. Os tubarões da espécie cabeça chata, que se reproduziam e se alimentavam na região dos manguezais do estuário do rio Ipojuca, passaram a acompanhar a corrente marítima rumo ao Norte, o que resultou em um grande aumento dos ataques a banhistas em praias como Boa Viagem.

Problemas ambientais têm esta “desagradável” característica de se espalhar e incomodar pessoas que, aparentemente, estão bem distantes das fontes de poluição e de degradação. Coisa muito chata!

Até o nosso próximo post.

O ABASTECIMENTO DE POPULAÇÕES COM AS ÁGUAS DO IPOJUCA, OU FALANDO DE ESQUISTOSSOMOSE

Caramujo

Enquanto pensava no que iria escrever hoje, reli o meu último texto, onde falei sobre as crescentes e cada vez mais violentas enchentes dos rios pernambucanos, incluindo-se aí o rio Ipojuca – na confortável distância de observador de um trabalho pronto, não tive como não lembrar de uma famosa frase do grande dramaturgo e contista alemão Bertold Brecht (1898-1956):

Do rio que tudo arrasta se diz que é violento. Mas ninguém diz violentas as margens que o comprimem.

Em uma região tão carente de recursos hídricos e com uma grande população, é estranho verificar o tratamento irracional e contraditório que é dado a um importante e vital curso d’água como o Ipojuca, transformado no terceiro rio mais poluído do Brasil e, de tão oprimido que é, contextualizando com a citação de Brecht, avaliar a reação violenta de suas águas nos períodos das enchentes.

Diferente das regiões das cidades de São Paulo e de Curitiba, onde encontramos os rios Tietê e Iguaçu, respectivamente primeiro e segundo colocados na lista dos rios mais poluídos do Brasil, a região onde encontramos o rio Ipojuca não tem a mesma abundância de fontes de abastecimento de água. Na região Metropolitana de São Paulo, os principais sistemas produtores de água estão localizados em outras bacias hidrográficas como o Sistema Cantareira, Guarapiranga e Rio Grande – as águas do rio Tietê são utilizadas para atender uma pequena parte da demanda, porém, são captadas a mais de 90 km quilômetros a montante (rio acima), muito antes do rio entrar na Região Metropolitana e num trecho próximo das nascentes, onde a água ainda apresenta uma ótima qualidade. No caso de Curitiba, parte da água consumida pela população é captada no rio Iguaçu – entretanto, a Região Metropolitana possui outras fontes de abastecimento como os rios Passaúna e Iraí. Estas duas Regiões Metropolitanas podem até sobreviver sem depender exclusivamente das águas dos seus rios poluídos – nas cidades e municípios atravessados pelo rio Ipojuca nem sempre pode-se ter este luxo.

De acordo com informações do Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio Ipojuca, existem 66 açudes em toda a sua área, sendo que 6 destas unidades possuem capacidade de armazenamento superior a 1 milhão de metros cúbicos de água. As cidades da Região utilizam a água destes açudes e também de diversos ribeirões para o abastecimento de suas populações. Entretanto, em épocas de forte estiagem, como a que se abateu sobre a Região do Agreste nos últimos anos, esses ribeirões secam e os açudes acabam entrando em colapso, forçando as cidades a entrar em um forte sistema de racionamento de água – em alguns casos, este racionamento pode significar 5 dias com água nas torneiras e mais de 20 dias com as torneiras secas. Em situações de extrema carência, as populações mais pobres acabam se voltando para o poluído Ipojuca para captação de água não potável para alguns usos (nos vasos sanitários, por exemplo). Aqui é importante lembrar que a poluição das águas do rio varia ao longo do curso – assim que as águas passam por um agrupamento urbano, como no poluído trecho do rio em Caruaru, há um grande aumento dos despejos de esgotos e outros efluentes; conforme as águas correm a jusante (rio abaixo), processos biológicos e dinâmicos do próprio rio conseguem depurar parte da poluição e melhorar a qualidade da água – nestes trechos serão vistas mulheres lavando roupas nas águas do rio, crianças nadando e pessoas tomando banho ou escovando os dentes, apesar dos graves riscos apresentados pela baixa qualidade das águas do rio.

Há um ponto de reflexão importante aqui, o qual, muitas vezes, acaba recebendo pouca atenção das populações: de acordo com informações do Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio Ipojuca e que valem para outras bacias hidrográficas, os principais usos das águas são, em ordem de prioridade: o consumo humano e o abastecimento público; a dessedentação de animais, a irrigação, usos industriais, limpeza, geração de energia elétrica, a navegação e a pesca, entre outros usos importantes. O “mau” uso das águas durante e após o consumo humano nas áreas urbanas, quando as águas servidas não recebem qualquer tipo de tratamento antes de serem devolvidas poluídas ao meio ambiente, desrespeita todos os usos seguintes, especialmente nas áreas rurais, onde as populações necessitam da água para seu próprio consumo e usos, incluindo-se aqui o abastecimento e consumo de água nas casas, a dessedentação das criações de animais, a irrigação de plantações, entre outros usos. Sem outras opções para a captação de água de melhor qualidade, parte desta população acaba se servindo das águas de qualidade duvidosa do rio Ipojuca e ficam exposta a riscos de saúde.

Um problema grave que podemos citar é o risco de se contrair esquistossomose (também conhecida como doença do caramujo, barriga d’água, xistose ou bilharzíase), uma doença parasitária grave e que pode trazer sérias consequências para estas populações. Pernambuco é o campeão nacional em mortes provocadas por esquistossomose e das cinco localidades do Estado com o maior número de infestações, duas se encontram às margens do rio Ipojuca: Escada e Ipojuca. No Estado existem duas espécies de caramujos transmissores da doença: o Biomphalaria glabrata e Biomphalaria straminea. Estes caramujos, que vivem nas águas de rios e de açudes, são hospedeiros das larvas do verme (cercarias), responsáveis pela doença. Na presença de luz, estas larvas abandonam o hospedeiro e passam a nadar livres nas águas, podendo penetrar através da pele e das mucosas de pessoas que estejam em contato com as águas. Uma vez instalado no corpo humano, o verme – Schistosoma mansoni, um platelminto tremátode, continua a produzir ovos (cerca de 300 ovos por dia ao longo de até 40 anos), sendo que muitos destes ovos são eliminados junto com as fezes do doente – sem o tratamento adequado dos esgotos, esses ovos caem nas águas e o ciclo da contaminação é repetido.

Em sua fase crônica, a esquistossomose pode provocar o aumento do fígado e a cirrose hepática, aumento do baço, hemorragias causadas pelo rompimento de veias no esôfago e a dilatação do abdômen (a conhecida “barriga d’água”), devido ao acúmulo do plasma que sai do sangue e vai parar nos tecidos. Diagnosticada adequadamente, a doença pode ser tratada através de medicamentos que neutralizam o parasita.

Quando não tratado adequadamente, o paciente pode ter sequelas permanentes, como paralisia, ou até mesmo morrer por diversas complicações. Conforme comentamos em postagem anterior, perto de 60% da poluição do rio Ipojuca tem origem no lançamento de esgotos domésticos in natura, um problema que tende a perpetuar o ciclo de contaminação de populações pelo verme e manter alto o grau de preocupação das autoridades de saúde em relação a esta doença. Políticas sérias e continuas de implantação de redes coletoras e de Estações de Tratamento de Esgotos (ETEs), entre outras medidas importantes, precisam estar entre as prioridades dos Governantes, de forma a garantir a recuperação e preservação da qualidade ambiental do rio Ipojuca, garantindo tanto o abastecimento de água quanto a saúde das populações que vivem ao longo de suas margens.

Observem como é amplo o espectro de preocupações ligadas à qualidade ambiental de um rio como o Ipojuca: começa com os problemas para o abastecimento de água das populações e pode ir até aos problemas de “barriga d’água” provocados pela contaminação das águas por esgotos e parasitas.

Continuamos no próximo post.

AS VIOLENTAS ENCHENTES DO IPOJUCA E DE OUTROS RIOS PERNAMBUCANOS

Enchente Rio Ipojuca

Os maiores e principais rios da faixa Leste do Estado de Pernambuco – rios Capibaribe, Ipojuca, Sirinhaém e Una, têm suas nascentes no Agreste, uma das Regiões brasileiras com os mais baixos índices pluviométricos. Uma característica comum a todos estes rios é o fato de serem cursos temporários nos trechos iniciais – somente no período das chuvas, conhecido como Inverno na Região Nordeste, é que costumam apresentar água corrente; ao longo da maior parte do ano, esses trechos se apresentam ou secos ou na forma de pequenos filetes de água. Conforme estes rios seguem seus cursos em direção à Zona da Mata, eles passam a receber contribuições de inúmeros afluentes e assim passam a ser cursos permanentes. Uma outra característica comum a todos esses rios é que, ao longo das últimas décadas, eles têm provocado enchentes e alagamentos cada vez mais violentos nas cidades que atravessam. Curiosamente, os volumes das chuvas têm se mantido dentro da faixa da normalidade histórica, ou seja, as quantidades de água que chegam aos rios são praticamente as mesmas. Então, como se explicam as enchentes e alagamentos cada vez mais frequentes nestes rios?

Desastres naturais ligados às chuvas representam a imensa maioria dos eventos catastróficos ocorridos no Brasil – nos últimos 50 anos, as inundações têm sido as responsáveis por inúmeras tragédias, especialmente nas áreas urbanas: elas representam 60% dos desastres naturais registrados no período. Na origem destes eventos encontramos alguns componentes que se repetem em todo o território nacional: a destruição de grandes áreas florestais para a implantação de grandes lavouras, o que produziu diversas mudanças no ciclo das águas, e também o crescimento desordenado e contínuo das cidades. Vamos entender melhor:

– Sem a cobertura florestal, que com suas raízes facilita a absorção de grandes volumes de águas das chuvas pelo solo, houve um grande aumento na velocidade dos fluxos de água (enxurradas) na direção dos corpos d’água receptores, que passaram a receber volumes de água cada vez maiores e em menor tempo;

– Os solos expostos e sem a proteção da vegetação passam a sofrer processos acelerados de erosão, onde grandes volumes de sedimentos, especialmente do precioso solo fértil, são arrastados para dentro da bacia dos cursos d’água e se acumulam no fundo dos canais. Essa sedimentação ou assoreamento vai reduzindo a área de armazenamento de água na calha dos rios – cada vez que chove e há um aumento no volume de águas nestes rios, essas águas excedentes avançam contra as áreas lindeiras das margens em busca de espaço: surgem assim as enchentes;

– O avanço cada vez maior das águas contra as margens produz a destruição dos barrancos dos rios e um aumento cada vez maior de sedimentos na calha do rio – aqui se incluem os barrancos artificiais criados nas áreas de extração de areia e que são varridos pelas águas durante os períodos de cheia dos rios;

– Além do assoreamento por sedimentos, as calhas dos rios acabaram transformadas em pontos de descarte de lixo e resíduos das cidades, indo desde garrafas e peças plásticas até carcaças de automóveis e eletrodomésticos, lançados nas suas águas sem qualquer constrangimento pelas populações;

– Dentro dos perímetros urbanos das cidades, as áreas de várzea e as margens dos rios foram transformadas em áreas de ocupação por populações de baixíssima renda. Sem outras alternativas, essas populações, em grande parte formada por migrantes que foram forçados a abandonar as áreas rurais, ocuparam inadvertidamente estas áreas, onde construíram casas precárias e realizaram mudanças como aterros, muros de arrimo ou construções que estrangularam o curso do rio. Nos períodos de chuvas, estas obstruções no canal do rio têm reflexos em toda a cidade, que passou a sofrer com inundações e alagamentos generalizados. Aqui vale lembrar que as margens e áreas de várzeas formam uma “reserva” de espaço para absorver os excedentes de águas nos períodos de cheias – uma vez que estes espaços foram invadidos por construções e “roubaram” as áreas de reserva dos rios, estes não têm outra alternativa senão avançar contra outros espaços livres dentro dos limites das cidades. A impermeabilização dos solos das cidades com construções, cimento e asfalto também reduz a absorção de água pelos solos e produz um aumento das enxurradas superficiais: a soma destes problemas cria as enchentes e os alagamentos nas ruas, avenidas e casas que assistimos ano após ano nos períodos das chuvas.

Aos problemas das enchentes deve-se somar a poluição das águas provocada pelo aumento dos lançamentos de esgotos domésticos, industriais e de resíduos de origem agrícola como os fertilizantes e agrotóxicos – além de todos os transtornos e problemas causados pelas enchentes nos logradouros públicos e nas residências dos moradores, a presença dos mais diferentes tipos de poluentes nas águas aumenta os riscos de contaminação dos moradores com doenças de veiculação hídrica como a diarreia, leptospirose, hepatite e esquistossomose.

Na bacia hidrográfica do rio Ipojuca, e em outras bacias da faixa Leste do Estado de Pernambuco, são estas as causas que têm provocado um aumento sistemático das enchentes nas cidades, muitas delas com grande poder de destruição. A derrubada de grandes extensões de matas, especialmente do trecho da Mata Atlântica de Pernambuco durante o ciclo da cana-de-açúcar, e de matas na Região do Agreste, expôs os solos a um processo contínuo de erosão, que levou ao assoreamento e entulhamento de grandes extensões das calhas dos rios. A falta da cobertura vegetal também produziu efeitos na redução da absorção de água pelos solos e aumento do volume de águas de chuvas que chegam aos riachos e rios em grande velocidade. Além dos problemas de enchentes, a não absorção dessa água das chuvas pelos solos do Agreste terá como uma de suas consequências uma baixa recarga dos lençóis subterrâneos e aquíferos da região, comprometendo a captação de água nas cacimbas escavadas pelas populações sertanejas, além de prejuízos para as nascentes de muitos cursos de água intermitentes dos sertões.

As diversas crises vividas pela indústria canavieira em Pernambuco nas últimas décadas e também as muitas catástrofes geradas por fortes secas, produziu um forte fluxo migratório de populações rurais na direção das cidades do Estado.  Um exemplo que podemos citar é o município de Escada – dados do Censo Estatístico de 2010 do IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, mostram que houve uma alteração importante no perfil da população: 85% da população do município está concentrada atualmente na área urbana de Escada e somente 15% da população continua vivendo na área rural. Esse mesmo padrão de “inchaço” urbano pode ser verificado em outras cidades da bacia hidrográfica do rio Ipojuca e de outros importantes rios pernambucanos. Sem um planejamento urbano adequado e políticas de construção de moradias populares, essas populações buscam as áreas marginais e de várzeas de rios como o Ipojuca para construir suas moradias, criando todos os tipos de alterações na calha do rio e prejudicando o fluxo natural das águas. O resultado final – enchentes cada vez mais fortes e crescentes nas cidades cruzadas por estes rios.

Como foi possível apresentar resumidamente em diversas postagens anteriores, todos os esforços das populações humanas não se limitaram apenas em transformar o rio Ipojuca no terceiro rio mais poluído do Brasil – esses esforços também ajudaram a transformar um rio tranquilo e serviçal em um rio violento e com enchentes de alto poder de destruição nos períodos das chuvas (a foto mostra uma forte enchente em Caruaru em maio de 2017).

Cabe uma pergunta: são estes rios poluídos e destrutivos, como outros tantos por todo o Brasil, que vamos deixar como herança para as nossas futuras gerações?

A CAPITAL DO AGRESTE E O RIO IPOJUCA

Enchente em Caruaru

A famosa cidade de Caruaru, conhecida pela sua Feira e chamada de Capital do Agreste, é a maior cidade do interior e quarta maior do estado de Pernambuco. De acordo com dados do IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, a população da cidade em 2017 apresenta um total de 356.128 habitantes, número que confirma sua posição de cidade mais populosa do interior pernambucano e a coloca na terceira posição entre as cidades mais populosas do interior nordestino. No ano 2000, a população da cidade estava na casa dos 250 mil habitantes, o que nos dá uma ideia muito clara da taxa acelerada de crescimento da cidade.

A posição de destaque que a cidade de Caruaru ocupa no Agreste pernambucano têm raízes históricas – a cultura da cana e a indústria colonial do açúcar, nas Regiões do Litoral e da Zona da Mata nos primeiros séculos do povoamento, acabou por expulsar as boiadas para o interior do país. Esse movimento de gentes e bichos na direção do Agreste e da Caatinga, ao qual chamo de Diáspora Bovina, foi ao mesmo tempo fundamental para o processo de povoamento do interior do Brasil e também um marco inicial da eterna tragédia dos sertanejos em sua luta diária pela vida – o Agreste e a Caatinga Nordestina formam a área de semiárido mais habitada do mundo, com populações humanas e de animais domésticos em números muito superiores à capacidade de suporte do meio ambiente. Em uma série de postagens anteriores, onde falei do Rio São Francisco, tratei longamente sobre esta temática. Essa superpopulação de gentes e bichos entra em colapso a qualquer estiagem mais prolongada – e já foram dezenas de grandes secas vividas na região desde os tempos coloniais. A posição estratégica de Caruaru, no entroncamento de diversas estradas boiadeiras usadas para levar o gado dos sertões na direção dos centros consumidores no Litoral, transformou naturalmente a cidade num grande polo comercial e cultural do Agreste.

O forte crescimento de Caruaru e os problemas encontrados no trecho do rio Ipojuca, que atravessa a cidade, permite que façamos um recorte local para o entendimento dos problemas socioambientais de toda a bacia hidrográfica, que ocupa uma área equivalente a 3,5% da superfície total do Estado de Pernambuco, com uma área de 3,4 mil km². Esta bacia possui importantes polos regionais que, além de Caruaru, incluem Belo Jardim, Gravatá e Ipojuca.

Desde o início da industrialização, em meados do século XVIII, as antigas populações rurais vêm abandonando, sistematicamente, o trabalho nos campos e tem migrado para as cidades em busca de melhores condições de vida e de trabalho. Por seu atraso em relação às nações mais desenvolvidas, no Brasil este processo pode ser observado com maior clareza a partir da II Guerra Mundial. Em Pernambuco, a migração de trabalhadores rurais para as cidades tem ligação com as diversas crises enfrentadas pela indústria canavieira, onde encontramos problemas ligados à concentração da propriedade da terra, esgotamento dos solos por erosão e destruição das fontes de água, desemprego e subemprego, problemas climáticos como a seca que, muitas vezes, tornou a subsistência de muitas famílias insustentável. Fugindo desta vida rural ligada a terra, milhares de famílias migraram para as médias e grandes cidades de todo o Brasil.

Caruaru, um polo econômico extremamente dinâmico na Região do Agreste pernambucano, atraiu grandes contingentes de migrantes. Sem encontrar programas de habitação popular ou condições de acesso a moradias baratas, essas populações, como é de praxe nas médias e grandes cidades, sempre procuram as áreas mais desvalorizadas dos perímetros urbanos: morros, áreas de várzeas de rios e córregos urbanos e ainda vilas e cidades dormitórios nas cercanias de um centro urbano com economia dinâmica. Em Caruaru, as áreas ocupadas por essas populações foram, em grande parte, as margens e várzeas do rio Ipojuca. Na construção de suas moradias, essas populações realizaram aterros e nivelamentos de trechos das várzeas, construção de muros de arrimo, despejos de entulhos e restos de materiais na calha do rio, entre outras modificações no solo, que alteraram a dinâmica natural do curso das águas do rio Ipojuca. Somem-se a estes problemas tipicamente urbanos outros eventos periféricos como a retirada de areia e pedras de áreas de várzeas para uso na construção civil, a derrubada de matas ciliares para a expansão do cinturão verde da cidade e fornecimento de lenha e carvão, aumento do abate de animais em matadouros, com vistas ao abastecimento da população crescente, sem maiores cuidados com os efluentes despejados nos rios, entre outros problemas.

Este crescimento urbano, que não respeitou alguns dos mais básicos princípios do planejamento urbano e das leis que regulam as obras – por exemplo: respeitar um recuo mínimo em relação aos cursos d’água, foi agravado pela falta ou deficiência das infraestruturas de serviços da cidade: redes de água e esgotos, drenagem de águas pluviais, coleta de lixo, iluminação pública, calçamento de ruas e avenidas, presença de escolas e unidades de atendimento à saúde, entre outras. Sem oferecer esses serviços públicos e sem fiscalização, o rio Ipojuca virou “terra” de ninguém – o lançamento de esgotos in natura em suas águas aumentou; lixo e resíduos sólidos passaram a ser descartados diretamente em suas margens e águas, resultando em grande assoreamento e entulhamento da calha; os diversos dispositivos de drenagem de águas pluviais (sarjetas, bocas de lobo, canais e valetas, grelhas, etc) sofreram modificações devido à expansão desordenada da mancha urbana e passaram a ocorrer fortes alagamentos em diversas áreas da cidade em dias de chuva mais forte, entre outros problemas. Some-se a tudo isso o crescimento das atividades industriais, comerciais e de serviços na cidade, que aumentaram a geração de lixo e de resíduos sólidos, de esgotos e efluentes dos mais diferentes tipos (por exemplo, efluentes de lavanderias), aumento do consumo de energia elétrica e de água, entre outros impactos.

Esse crescimento desordenado e contínuo da cidade de Caruaru, que também pode ser observado em outras cidades da bacia hidrográfica do Ipojuca, trouxe uma série de problemas para o rio como o crescimento da poluição das águas e as enchentes – se você observar os dados relativos aos índices pluviométricos de todo o vale do rio Ipojuca, vai observar que não houve aumentos expressivos nos volumes de chuvas, porém a frequência e a intensidade das enchentes nas cidades atravessadas pelo rio (vide foto) não param de crescer.

Continuamos no próximo post.

IPOJUCA: “ÁGUA DAS RAÍZES PODRES”, OU O 3° RIO MAIS POLUÍDO DO BRASIL

Rio Ipojuca

Ainda em terras pernambucanas, vamos desviar a atenção das nossas postagens do rio Capibaribe e passar a acompanhar os problemas de outro importante rio: o Ipojuca.

O rio Ipojuca tem aproximadamente 320 km de extensão, com nascentes na Serra das Porteiras no município de Arcoverde, no Agreste de Pernambuco, e foz no Oceano Atlântico, no município de Ipojuca. O nome Ipojuca tem origem na antiga língua Tupi, sendo formado a partir da junção das palavras ‘y (água), apó (raiz) e îuka (podre), significando “água das raízes podres”. Algumas fontes afirmam que o significado é um pouco diferente, significando água turva ou barrenta. Os antigos indígenas tiveram suas próprias razões para dar esse nome ao rio – tragicamente, a história só fez por confirmar o acerto na escolha do nome: o Ipojuca é hoje o terceiro rio mais poluído do Brasil, apresentando águas muito turvas e, literalmente, podres em alguns trechos.

Como muitos outros rios com nascentes na região do Agreste, o trecho inicial do Ipojuca tem águas temporárias ou intermitentes, apresentando grandes volumes no período das chuvas, conhecido como inverno no Nordeste, e leitos secos ou com um fio d’água na maior parte do ano. Na região de Caruaru, após receber a contribuição de diversos pequenos afluentes, chamados de “pés-de-galinha” pelos sertanejos, o Ipojuca passa a ser um rio perene. A bacia hidrográfica do Ipojuca compreende 25 municípios e ao longo do seu curso, o rio atravessa 12 cidades com destaque para: Caruaru, Pesqueira, Belo Jardim, Tacaimbó, São Caetano, Bezerros e Gravatá, cidades do Agreste pernambucano e Chã Grande, Escada e Ipojuca na região da Zona da Mata. A maior parte das cidades atravessadas pelo rio Ipojuca tem como característica marcante o baixo Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), inclusive abaixo da média do Índice do Estado de Pernambuco – o Índice de Mortalidade Infantil, para citar um único exemplo, é quase o dobro da média deste Estado. A infraestrutura de saneamento básico, como não poderia deixar de ser, é precária e o rio Ipojuca é o grande receptor de despejos de esgotos domésticos e industriais, além de resíduos de defensivos agrícolas e de fertilizantes carreados pelas águas das chuvas. O rio também é a destinação final de lixo e de entulhos: são aproximadamente 537 toneladas, equivalente a 43 caminhões, despejadas a cada dia em suas águas (vide foto). Estudos do Governo de Pernambuco indicam que 80% da poluição do rio Ipojuca é gerada em apenas cinco municípios: Belo Jardim, Caruaru, Gravatá, Bezerros e Escada. A cidade de Caruaru, que apresenta um dos trechos mais poluídos do rio Ipojuca, responde sozinha por 40% de toda a poluição do rio na região do Agreste – 67% desta poluição tem origem nos esgotos domésticos lançados in natura no rio.

Para entendermos melhor a triste sina do rio Ipojuca, é preciso voltar no tempo e relembrar um pouco da história da cultura da cana-de-açúcar no litoral de Pernambuco. Conforme já apresentamos em diversas postagens anteriores, todo o esforço da administração Colonial no Brasil nos primeiros três séculos de nossa história foi concentrado na produção e exportação do açúcar para os mercados externos. Essa verdadeira obstinação por produzir cada vez mais açúcar não poupou esforços em consumir todo o trecho da Mata Atlântica e a remover quaisquer obstáculos que pudessem prejudicar as plantações de cana. Por mais incrível que possa parecer em nossos dias, as boiadas criadas nas cercanias dos grandes canaviais passaram a ser vistas como um grande risco pelos senhores das casas-grandes: os suculentos e adocicados brotos de cana despertavam a gula dos inocentes bois e vacas que, desrespeitando os limites estabelecidos, invadiam as plantações e, como bandos de gafanhotos, dizimavam os brotos das canas. A ira dos senhores dos engenhos contra os criadores de gado levou a edição de uma Carta Régia que proibia a criação de gado a menos de 15 léguas do litoral (aproximadamente 60 km). Eu chamo este período de Diáspora Bovina – a palavra “diáspora” é de origem hebraica e significa dispersão – pesquise.

Sem espaço no litoral, boiadeiros e boiadas seguiram rumo ao sertão, acompanhando o curso dos grandes rios como o Capibaribe, o Ipojuca, o Sirinhaém, o Una e o São Francisco – foi assim que surgiram as primeiras fazendas de criação de bois no sertão, as estradas boiadeiras e, enfim, as cidades. Nesta extensa rede de estradas que cortavam o sertão surgiram alguns cruzamentos importantes, onde nasceram algumas cidades diferenciadas com suas “feiras”. Gentes de todos os cantos dos sertões passaram a frequentar estas “feiras” para comprar, vender ou trocar produtos ou, simplesmente, para passear e respirar outros ares. Foi assim que importantes cidades interioranas foram surgindo, entre elas Feira de Santana na Bahia, Campina Grande na Paraíba e Caruaru em Pernambuco.

A cidade de Caruaru tem sua origem numa antiga fazenda as margens do rio Ipojuca, que funcionava como ponto de pernoite para os boiadeiros, tropeiros e mascates que viajavam pelo agreste pernambucano. A presença de um curso de água perene, o rio Ipojuca, era fundamental para a dessedentação das grandes boiadas, o que tornava a localidade um ponto de parada obrigatória. No local surgiu um pequeno comércio de produtos e serviços ligados à lida com o gado, transformado com o passar do tempo na famosa Feira de Caruaru – a cidade foi surgindo aos poucos ao redor da feira. Em 1781 foi construída uma capela dedicada à Nossa Senhora da Conceição e a fama da cidade de Caruaru e de sua “feira” não parou mais de crescer.

Com a construção da Linha do Centro da Rede de Ferrovias do Nordeste, ligando a cidade do Recife a Afogados da Ingazeira e com uma estação em Caruaru, a cidade ganhou uma maior visibilidade e acessibilidade, se transformando num importante polo comercial regional. Essa importância aumentou ainda mais com a construção de diversas rodovias estaduais e federais na região. Infelizmente, todo esse crescimento econômico e populacional de Caruaru não foi acompanhado de uma infraestrutura de saneamento básico – o importante rio Ipojuca, que foi uma das razões para o nascimento da cidade, acabou segregado da população e foi transformado em uma grande valeta de esgotos a céu aberto. Esse mesmo descaso se repetiu em todas as cidades ao longo do rio Ipojuca. Análise laboratorial recente, realizada por universidades do Estado de Pernambuco, mostram um índice de 5 milhões de coliformes fecais por mililitro nas águas do rio Ipojuca na região central de Caruaru – um índice altíssimo, que demonstra o tratamento dado ao velho Ipojuca e justifica o título de 3° rio mais poluído do Brasil.

Continuamos no próximo post.

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A RESILIÊNCIA DA VIDA NAS ÁGUAS DO RIO CAPIBARIBE

Jacaré-do-papo-amarelo

O rio Tietê, como deve ser do conhecimento de todos, é o rio mais poluído do Brasil a muitos e muitos anos. Todos nós, paulistanos de nascimento ou por adoção, ouvíamos ecologistas e especialistas falando dos problemas causados pela poluição das águas, que em águas tão poluídas não poderia existir vida e que o futuro da Região Metropolitana de São Paulo seria catastrófico pela falta de fontes limpas para a captação de água para o abastecimento da população.

Certo dia, no mês de agosto de 1990, um grupo de moradores da Zona Norte de São Paulo começou a observar um movimento diferente nas águas do rio Tietê: foi avistado um animal nadando nas águas do rio entre as pontes da Vila Mariana e da Vila Guilherme. O corpo de Bombeiros foi acionado e rapidamente verificaram que se tratava de um jacaré-de-papo-amarelo, uma espécie que já tinha sido abundante no rio Tietê e que há décadas não era vista nestas águas. A operação de captura do animal durou horas, com o jacaré dando um verdadeiro “baile” nos bombeiros – a Marginal Tietê literalmente parou, com centenas e mais centenas de pessoas tentando ver o Jacaré Teimoso, apelido dado pelos populares da plateia. Foram necessários dois meses de trabalho par que se conseguisse capturar o Teimoso, que foi levado para uma área de preservação ambiental em um parque.

A saga do Jacaré Teimoso foi marco na história moderna do rio Tietê, que nos primeiros séculos da existência da cidade e do próprio Brasil teve importância ímpar, mas que acabou transformando em uma gigantesca latrina a céu aberto. A teimosia do jacaré em sobreviver num corpo d’água, onde os especialistas afirmavam ser impossível a existência de vida, causou uma comoção coletiva e uma mudança de paradigma na relação da população com o Tietê, resultando numa enorme pressão sobre as autoridades estaduais pela recuperação da qualidade ambiental do rio. Apesar de continuar liderando a lista dos rios mais poluídos do país, muitos esforços já foram feitos e o grau de poluição do Tietê já diminuiu muito – a mancha de poluição que era percebida a quase 300 km de distância da Região Metropolitana a 30 anos atrás, agora está reduzida a pouco mais de 100 km. Grandes bandos de capivaras passaram a ser vistos nadando nas águas dos rios Tietê e Pinheiros, garças e outras aves passaram a viver e se alimentar nas margens e até uma espécie de bagre foi encontrada na região do Parque Anhembi, um dos trechos mais poluídos do rio. A força da vida é muito maior do que todos nós podemos imaginar.

O maltratado e poluído rio Capibaribe, que recebe em suas águas o despejo de esgotos domésticos de milhões de pernambucanos, resíduos de fertilizantes e de defensivos agrícolas de imensos canaviais, as águas coloridas de um sem números de lavanderias, muito lixo descartado pelas populações e resíduos de inúmeras indústrias, também apresenta, surpreendentemente, uma quantidade admirável de vida em suas águas. Estudo realizado nos últimos anos num trecho de 15 km da área central da cidade do Recife encontrou, ao menos, 7 espécies de répteis, 9 de mamíferos, 10 de crustáceos-moluscos, 25 de peixes e 40 espécies de aves. Essa impressionante fauna, vivendo em um rio considerado morto por grande parte da população, é tão surpreendente quanto a sobrevivência do Jacaré Teimoso nas águas do rio Tietê.

A lista dos animais encontrados no rio Capibaribe começa com o jacaré-de-papo-amarelo (Caiman latirostris), réptil ameaçado de extinção e, não acaso, da mesma família do Teimoso. Os jacarés mais jovens se alimentam de insetos, caramujos, sapos, rãs e crustáceos; quando adultos caçam presas maiores como tartarugas, peixes, aves. A presença dos jacarés no rio Capibaribe, por si só, já é um indicador positivo – como se trata de um predador que se encontra no topo da cadeia alimentar, ele sinaliza que existem animais menores vivendo nas águas do Capibaribe. Também merecem destaque as capivaras (Hydrochoerus hydrochaeris), o maior roedor do mundo e que dá nome ao Capibaribe – o “rio das capivaras” em língua tupi. Muito numerosas em tempos passados, as capivaras se alimentam com a grama que cresce nas margens e têm sido vistas com frequência cada vez menor. Uma outra espécie encontrada é uma verdadeira raridade: a garça-azul (Egretta caerulea), foi encontrada no centro da cidade, atrás do Palácio do Governo. Essa espécie de garça é muito comum em regiões do Sul do Brasil, mas raramente é avistada em regiões de mangue do Nordeste.

Outras espécies encontradas no rio Capibaribe e que merecem destaque são a lontra (Lutra longicaudis) e a minúscula andorinha-do-rio (Tachycineta albiventer). Em alguns pontos das margens foram encontrados ninhais, grande concentração de ninhos de aves, no meio da vegetação. Nas águas poluídas do rio, em meio ao esgoto e aos baixíssimos níveis de oxigênio, foram encontrados peixes como o camurim (Centropomus spp.) e carapeba (Eugerres brasilianus) – estudos mais amplos, realizados ao longo de 15 anos, já identificaram um total de 38 espécies de peixes vivendo em toda a bacia hidrográfica do Capibaribe. Entre as espécies de crustáceos-moluscos encontrados nas águas e manguezais do Capibaribe encontramos os mariscos, ostras, caranguejos e sururus, espécies que ainda hoje garantem a sobrevivência de inúmeras famílias de baixa renda – homens, mulheres e crianças entram em contato diário com as águas poluídas do rio na captura destes animais e assim conseguem garantir o seu sustento. É impossível não relacionar a vida destas pessoas com o romance Homens e Caranguejos, publicado em 1967 e escrito pelo médico e cientista Josué de Castro, onde é mostrado o dia a dia de uma comunidade imprensada no manguezal, entre o rio e a grande cidade.

Um estudo paralelo sobre a flora do Rio Capibaribe no mesmo trecho já identificou 74 espécies de plantas arbóreas, arbustivas e aquáticas, sendo 45 espécies de plantas nativas do Brasil e 29 espécies exóticas, originárias de diferentes países. Todas essas descobertas demonstram a força e a resiliência da vida nas águas poluídas do rio e nos dá uma demonstração clara de tudo o que já foi perdido e destruído ao longo de quase cinco séculos de ocupação das margens do rio Capibaribe por gente que se considera “civilizada”.

Que a vida continue “teimando” em viver e sobreviver nas águas e margens do rio Capibaribe.

A DESTRUIÇÃO DO TRECHO PERNAMBUCANO DA MATA ATLÂNTICA

Engenho de Cana

Vou começar a postagem de hoje propondo uma viagem de ficção científica:

Imagine embarcar em um avião ou numa nave espacial que consiga viajar tanto no espaço quanto no tempo e que transporte você, sem que você saiba, até um ponto qualquer do litoral do Estado de Pernambuco na época do descobrimento do Brasil. Você, muito provavelmente, teria um imenso choque ao encontrar uma mata densa e poderosa, que tocava as praias do oceano Atlântico ao Leste e o agreste sertão ao Oeste. Esta paisagem seria tão inusitada e diferente da atualmente existente no litoral pernambucano que, dificilmente, essa opção passaria pela sua cabeça – até arrisco dizer que a primeira ideia que viria a sua cabeça seria de uma praia na Região da Floresta Amazônica.

Diferente da paisagem polinésia que encontramos hoje em toda a Região Nordeste, com domínio de intermináveis coqueirais (o coco é de origem asiática e foi introduzido no Brasil a partir de embarcações que traziam as especiarias do Oriente com escalas na região Nordeste), essas praias tinham uma aparência igual a trechos dos litorais das Regiões Sul e Sudeste onde a Mata Atlântica resistiu.

Exemplos disto são a Floresta da Juréia, no litoral Sul do Estado de São Paulo, a Ilha Grande, no litoral do Rio de Janeiro e o Parque Nacional do Superagui, no litoral do Paraná. Recomendo a você, curioso leitor, que nunca esteve em qualquer uma destas maravilhosas praias, que faça uma pesquisa – tenho certeza que ao ver imagens destes locais você vai ficar chocado com as mudanças ocorridas na vegetação do litoral Nordestino.

A Mata Atlântica era um riquíssimo bioma composto por diferentes sistemas florestais, que cobria uma área equivalente a 1,3 milhão de km² ou 15% do território brasileiro, acompanhando a costa desde o Norte do Rio Grande do Sul até o Sul do Estado do Ceará, com alguns trechos entrando continente adentro e atingindo áreas da Argentina e do Paraguai. A referência à floresta foi feita com o verbo em tempo passado (era) porque restam apenas 7% da cobertura da mata original.

Quase dois terços da atual população brasileira vivem em áreas que eram, originalmente, cobertas pela Mata Atlântica – o crescimento das cidades, a mineração, o extrativismo, a agricultura e a pecuária foram os responsáveis pela destruição gradativa desta floresta. Essa destruição sistemática ainda está acontecendo, porém sem maiores repercussões em nossa sociedade. Há poucas semanas atrás, vocês devem lembrar bem, o Governo Federal publicou um atrapalhado decreto que extinguia a RENCA – Reserva Nacional do Cobre e Associados, uma gigantesca área da Floresta Amazônica entre os Estados do Amapá e do Pará.

Preocupados com os riscos de destruição da floresta pela mineração, surgiram vozes contrárias por todos os lados, dentro e fora do Brasil; acuado, o Governo Federal resolveu cancelar o decreto. Trechos fragmentados da Mata Atlântica são derrubados, queimados ou destruídos todos os dias e, infelizmente, poucas vozes se levantam para protestar.

O trecho da Mata Atlântica destruído com maior voracidade e velocidade foi justamente o trecho da costa da Região Nordeste, entre a Bahia e o Rio Grande do Norte – essa destruição, feita a ferro e a fogo, se deu justamente para a implantação dos grandes canaviais do período Colonial. No Estado de Pernambuco, que já no século XVII era considerado um dos maiores produtores mundiais de açúcar, a velocidade desta destruição foi incomparável.

Um relatório do ano de 1620 das Autoridades Coloniais informava que “nas três Capitanias (Pernambuco, Itamaracá e Paraíba), havia uma produção de 500 mil arrobas de açúcar (equivalente a 7,5 milhões de toneladas), que bastaria para carregar todos os anos 130 a 140 naus.” O relatório prossegue informando a área ocupada com o cultivo da cana-de-açúcar: “50 ou 60 léguas de costas ocupadas (entre 300 e 360 km), e dentro de 10 léguas para o sertão (60 km).” Feitos os devidos cálculos, chegamos a uma área total entre 18 e 21,6 mil km² – para efeito de comparação, a área do Estado de Sergipe corresponde a 22 mil km². E olhem que as primeiras notícias sobre canaviais na Região Nordeste datam do ano de 1535.

Nos séculos XVI e XVII, o açúcar era um dos produtos mais valorizados do mercado mundial – podemos até comparar, grosso modo, com a produção e a venda do petróleo nos dias atuais – um grupo pequeno de países controla a produção e a venda da commodity, num esforço contínuo de manter os preços nos patamares mais altos possíveis. O projeto Colonial de Portugal para a sua grande Colônia em terras brasileiras tinha na produção e exportação do açúcar a sua razão de existência. A destruição de extensos trechos da riquíssima Mata Atlântica, o massacre de milhões de indígenas que viviam nestas áreas e a importação de milhares de escravos negros africanos para o exaustivo trabalho nos campos e engenhos produtores, fazia todo o sentido dentro da lógica da indústria colonial açucareira, tanto em terras brasileiras quanto em outras regiões das Américas.

Tomando como ponto de partida as grandes clareiras deixadas na floresta pela exploração do valioso pau brasil nas primeiras décadas da exploração da costa do Brasil, os empreendedores da indústria do açúcar ateavam fogo na Mata Atlântica, numa técnica agrícola aprendida com os índios – a coivara. Depois, o solo calcinado era preparado para receber as mudas da cana-de-açúcar. A partir desta plantação embrionária, a área cultivável era sistematicamente ampliada radialmente a partir de novas queimadas e pela derrubada da mata – a produção de lenha para uso nos processos de produção do açúcar era indispensável: cada quilo de açúcar produzido era o resultado da queima de 20 quilogramas de lenha. Nas palavras do grande historiador Capistrano de Abreu:

Os engenhos estavam todos na mata, o que se explica pela maior fertilidade dos terrenos bem vestidos, e pela abundância de lenha, necessária às fornalhas em um labor que às vezes durava, dia e noite, oito e nove meses.”

Os férteis solos de massapê, uma grossa camada de húmus formada ao longo de milhares de anos a partir da decomposição de matéria viva no chão da floresta, se perderam rapidamente após a contínua derrubada da cobertura vegetal protetora: as chuvas sistematicamente arrastavam grandes quantidades de solo na direção dos muitos rios da região, destruindo ao mesmo tempo a fertilidade das plantações e os canais dos rios, muitos dos quais praticamente desapareceram em meio ao intenso assoreamento sofrido.

Inúmeras espécies de animais como veados, antas, capivaras, cotias, gambás, macacos e incontáveis espécies de aves e pássaros desapareceram, empobrecendo de forma irreversível a biodiversidade das matas e destruindo a fonte de proteína consumida pelas populações mais pobres e pelos escravos, que caçavam vários destes animais para comer. Também desapareceram inúmeras espécies de vegetais, entre essas inúmeras variedades de frutas altamente nutritivas, além de muitas espécies de peixes dos rios. A fome de açúcar do mundo foi saciada a partir da fome dos trabalhadores locais dos engenhos e canaviais nordestinos.

Muitos pensadores chamam este processo de autofagia: “a cana devorando tudo em torno de si, engolindo terras e mais terras, consumindo o húmus do solo, aniquilando as pequenas culturas indefesas e o próprio capital humano, do qual sua cultura tira toda a vida.” As grandes enchentes do rio Capibaribe, sobre as quais comentamos em nossa última postagem, e de outros rios da Região são, em grande parte, explicadas pela aniquilação praticamente completa da Mata Atlântica no Estado de Pernambuco.