
Nobiliarquia é estudo das origens e da história das famílias nobres, seus nomes de família, escudos, armas e brasões, além dos registros ou tratados sobre esse assunto. Essa palavra foi usada no título da postagem por que o assunto de hoje são as inúmeras famílias “nobres” que surgiram na esteira da cafeicultura em terras fluminenses ao longo do século XIX.
O “nascimento” da cafeicultura no Rio de Janeiro ocorreu cerca de um quarto de século antes da chegada da Família Real e de toda a Corte de Portugal ao Brasil. A primeira exportação de café a partir do Rio de Janeiro se deu em 1779 e se limitou a apenas 79 arrobas (cerca de 1,2 tonelada) – às vésperas da chegada da Família Real, essas exportações já superavam as 80 mil arrobas anuais.
Como todos devem recordar das aulas de história nos tempos do ensino fundamental, as tropas de Napoleão Bonaparte invadiram o território de Portugal em 1807, o que obrigou o Rei Dom João VI a buscar exílio no Rio de Janeiro, onde desembarcou em 8 de março de 1808, depois de uma rápida escala em Salvador.
Além da Família Real, toda a Corte e as classes mais abastadas de Portugal também vieram buscar refúgio aqui em nossas terras. As estimativas falam que, no total, esse grupo de refugiados era da ordem de 10 mil pessoas e chegaram em 19 navios das esquadras portuguesa e inglesa. O seleto grupo incluía comerciantes, advogados, médicos, engenheiros, artistas, arquitetos, religiosos, militares, professores, entre muitos outros.
Toda essa nova população, que representava a “nata dos Lusitanos”, provocou enormes impactos, principalmente psicológicos, na então elite econômica da Colônia que vivia no Rio de Janeiro, formada essencialmente por “jecas” e semianalfabetos brasileiros. Muitas dessas pessoas, que enriqueceram com atividades como a produção do açúcar, mineração do ouro e o tráfico de escravos, descobriram que não bastava ser rico – era fundamental ser nobre!
A produção e exportação do café naqueles tempos, que crescia a olhos vistos, passou a gerar grandes fortunas entre famílias fluminenses. Conforme comentamos em postagem anterior, as exportações de café em 1820 representavam 18% das vendas externas do Brasil e não parariam de crescer até as primeiras décadas do século XX, quando representavam mais de 50% das nossas exportações.
Os verdadeiros “rios de dinheiro” que alguns produtores de café começaram a ganhar, produziram uma onda de consumo de produtos de alto luxo e extravagâncias de toda a ordem jamais vistas em terras brasileiras. Uma das mais interessantes foi o surgimento de um mercado para a venda de títulos nobiliárquicos ou de nobreza por parte da Família Real. Qualquer pessoa com a bolsa recheada de dinheiro poderia virar um nobre da noite para o dia.
Quem se dispusesse a pagar o equivalente a 750 mil réis em meados do século XIX, levaria para casa o título de Barão. Por pouco mais de 1 milhão de réis, podia se comprar o título de Visconde – já um título de Conde custava cerca de 1,5 milhão de réis. Para os super ricos, as melhores opções eram o título de Marquês, que podia ser comprado por pouco mais de 2 milhões de réis, ou um de Duque, que não saía por menos de 2,45 milhões de réis. Por todas as cidades das regiões produtoras de café, especialmente ao longo do médio Vale do rio Paraíba do Sul, no Estado do Rio de Janeiro, se multiplicavam as famílias “nobres”.
A partir da década de 1820, o fluxo de riquezas gerados pela cafeicultura produziu gigantescas mudanças nos hábitos de consumo e de vida de muitas famílias de grandes centros produtores como Vassouras, Valença, Piraí, Barra do Piraí, Barra Mansa e Cantagalo, entre outras comunidades. A mais vistosa dessas mudanças se deu na arquitetura – os grandes fazendeiros não poupavam dinheiro para a construção de verdadeiros palácios nas sedes de suas fazendas (vide foto) e nos solares que mantinham nas cidades.
As vias de acesso a essas propriedades eram, invariavelmente, cercadas por fileiras de palmeiras imperiais. Além de um sem fim número de dormitórios, essas propriedades possuíam salões de festas, sala de bilhar, sala de armas, sala de música, além de escadarias feitas com o mais fino mármore e granito que o dinheiro podia comprar.
As dependências internas eram finamente decoradas com obras de arte, espelhos de cristal, móveis finos entalhados em madeiras nobres como o jacarandá e o mogno, tapeçarias orientais, entre outros requintes. Os luxuosos aparadores e cristaleiras guardavam as mais finas baixelas e talheres lavrados em pura prata de lei.
As refeições servidas às mesas eram regadas com o melhor vinho importado, presuntos de Nova York, compotas e conservas francesas, peixes nórdicos e as melhores caixas de frutas secas do Mediterrâneo. Chefes de cozinha europeus, com todo um batalhão de ajudantes e serviçais, eram encarregados do preparo e dos serviços as mesas nas refeições.
Qualquer casa de cafeicultor de respeito possuía um grande piano de cauda, onde seus filhos e, principalmente, as filhas recebiam aulas de música com os melhores professores que existiam na Colônia. Essas casas também contavam com um verdadeiro séquito de profissionais altamente especializados: costureiras e alfaiates, sapateiros, boticários, dentistas, enfermeiros, mecânicos, serralheiros, carpinteiros, jardineiros, pedreiros, cabeleireiros e barbeiros, entre outros. Tudo precisava funcionar perfeitamente e nenhum serviço podia faltar para o fazendeiro e seus familiares.
Além das suntuosas casas-palacetes, as fazendas também contavam com diversas estruturas que garantiam uma grande autossuficiência. As fazendas tinham uma capela para realização de todos os serviços religiosos, desde os batizados até as cerimônias fúnebres. Contavam ainda com casas para os trabalhadores livres, senzalas para os escravos (há registros de fazendas que tinham mais de mil escravos), enfermarias especializadas para homens, mulheres e crianças; oficinas como ferraria, carpintaria e serralheria.
Outras estruturas indispensáveis eram os paióis, canis, chiqueiros, estábulos e cocheiras para trato dos animais de carga, entre outras. Aqui é importante lembrar que as sacas de café eram transportadas inicialmente por tropas de mulas e burros, indo desde as fazendas produtoras até o Cais do Porto no Rio de Janeiro – o transporte ferroviário de cargas só estaria disponível a partir da segunda metade do século XIX. Muitas fazendas também possuíam vendas e boticas para atender seu grande número de moradores.
A cultura da exuberância dos fazendeiros atraiu para as cidades interioranas um grande número de arquitetos, principalmente europeus, que se esmeravam em realizar os projetos de construção mais extravagantes. Para dar suporte às construções, surgiram as mais diversas oficinas especializadas: carpintaria, cantaria, fundições, serralheria, marcenarias, cerâmicas, olarias, hidráulica e gás – o primeiro sistema de iluminação a gás do Brasil foi instalado em uma fazenda da cidade de Valença.
As cidades também prosperavam – surgiram inúmeros ateliês de artistas, fotógrafos e modistas. Construíam-se teatros, bibliotecas e grandes prédios públicos. Hotéis e hospedarias surgiram por todos os cantos e estavam sempre cheios. O comércio nessas cidades também se tornou bastante sofisticado, principalmente com a venda de artigos de alto luxo importados como rendas inglesas, chales orientais, sedas de Lion e leques de madrepérola. Joalherias e relojoarias das mais sofisticadas também não poderiam faltar. Professores de línguas, principalmente do francês, também eram bastante procurados e se estabeleciam nessas cidades.
A educação e a cultura para essa elite econômica não poderiam ficar de fora – criaram-se colégios de excelência, com muitos professores vindos do “estrangeiro”. Essas escolas atraíam, inclusive, os filhos de muitas famílias abastadas da cidade do Rio de Janeiro. Grupos teatrais, muitos vindos diretamente dos palcos da Europa, orquestras de câmara e musicistas renomados, além das mais importantes companhias de ópera, frequentavam os teatros das cidades fluminenses. Se a nobreza “rural” entendia as peças e músicas em francês, inglês e italiano, isso era um mero detalhe…
A chegada da linha férrea e dos seus vagões luxuosos a partir de meados do século XIX tornou as viagens entre a Capital e as cidades do interior muito confortáveis e rápidas, além de garantir um melhor escoamento das incontáveis sacas de café rumo ao porto.
Essa vida de luxo e nobreza dos cafeicultores fluminenses foi efêmera – o mal uso e o esgotamento da fertilidade dos solos nos cafezais rapidamente comprometeram a produção do grão no Rio de Janeiro, que entrou em forte decadência em poucas décadas e levou a imensa maioria dos “nossos” Barões e Condes do café à bancarrota. Falaremos disso na próxima postagem.
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[…] paulistas. Os escravos disponíveis no “mercado” acabavam sendo absorvidos pelas imensas fazendas de café da Província do Rio de Janeiro, região que estava vivendo o auge da prosperidade graças à sua grande produção […]
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[…] região estavam cheias de grandes casas e palacetes vazios, que outrora haviam sido residências da nobreza do café e que agora estavam abandonadas. Fazendas decadentes eram loteadas e vendidas a baixos preços para […]
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