
Na sequência de postagens que estamos publicando temos mostrado a situação dramática dos rios localizados dentro dos domínios do bioma Mata Atlântica. Essa extensa floresta tropical, que cobria toda a faixa litorânea do país desde o Rio Grande do Sul até o Rio Grande do Norte e com trechos que entravam pelo interior do território, principalmente nas Regiões Sul e Sudeste, foi sendo sistematicamente retalhada e derrubada ao longo de nossa história.
A cana de açúcar e o café, nossos primeiros produtos agrícolas de exportação em larga escala, deram início a um processo de devastação que seguiu o percurso da Região Nordeste em direção à Região Sul. Depois vieram a exploração de madeiras, a criação de animais, a produção de soja e outros grãos. Da área original de 1,2 milhão de km² dos primeiros tempos de nossa colonização, a Mata Atlântica está reduzida a valores entre 100 mil e 200 mil km² conforme a fonte pesquisada. Essa diferença se deve à enorme quantidade de pequenos fragmentos florestais remanescentes e às dificuldades para uma medição precisa.
A enorme rede de rios e demais corpos d’água que dependiam da floresta para se manter em boas condições ambientais sofreu muito com a devastação da Mata Atlântica ao longo dos séculos. Os problemas vão desde a redução dos caudais ao assoreamento da calha dos rios, além dos gravíssimos problemas de poluição das águas gerados pela agricultura, pelas cidades e pelas indústrias.
Existe, felizmente, uma exceção a essa dramática regra – um rio discreto e bem preservado, localizado entre o extremo Sul do Estado de São Paulo e o Leste do Paraná. Falo aqui do rio Ribeira de Iguape.
O rio nasce a pouco mais de 100 km da cidade de Curitiba, dentro do Parque Nacional dos Campos Gerais. Desde suas nascentes, o rio Ribeira de Iguape atravessará regiões de relevo bastante acidentado e, por causa disso, cobertas por densa vegetação de matas nativas e de onde brotam as águas de um sem números de rios bem conservados.
Ao longo do seu curso de 470 km, o rio Ribeira de Iguape vai atravessar uma sucessão de áreas de preservação ambiental: a Área de Proteção da Serra do Mar, os Parques Estaduais paulistas do Alto Ribeira e Jacupiranga, além das Áreas de Proteção Ambiental de Cananéia-Iguape-Peruíbe, da Ilha Comprida e a Estação Ecológica da Juréia.
O relevo acidentado e as dificuldades de acesso foram fundamentais para a manter essa região isolada do grande avanço dos cafezais a partir de meados do século XIX. Foi graças a isso que extensas áreas florestais do chamado Vale do Ribeira acabaram sendo poupadas da devastação, o que resultou em boas condições para a preservação ambiental do rio Ribeira de Iguape.
O Vale do Ribeira apresenta a porção mais bem preservada do bioma Mata Atlântica no Estado de São Paulo, uma característica que levou ao desenvolvimento de uma pujante “indústria” do turismo de aventura. Além disso, a região possui a maior concentração de cavernas do Brasil. Somente na área do PETAR – Parque Estadual Turístico do Alto Ribeira, localizado entre os municípios de Iporanga e Apiaí, existem mais de 200 cavernas catalogadas – a mais famosa e visitada é a Caverna do Diabo.
A existência de tantas cavernas está diretamente relacionada aos solos de rochas calcárias da região. Esses solos são facilmente erodidos pela ação das águas, um processo que resulta na formação de extensas cavernas. Esses solos também levam à formação de bacias hidrográficas cársticas, onde as águas dos rios desaparecem dentro de fissuras nos solos e só voltam a reaparecer a longas distâncias.
A bacia hidrográfica do rio Ribeira de Iguape ocupa uma área total de 25 mil km² – cerca de 2/3 dessa área fica dentro do território paulista e o restante dentro do território paranaense. Nessa região vive uma população de aproximadamente 360 mil pessoas, a maior parte vivendo em áreas urbanas de cidades como Registro, Cajati, Iguape e Apiaí. A base da economia regional é a agricultura, especialmente a produção de bananas, chá e arroz; mineração e extrativismo vegetal, principalmente o palmito.
A agricultura, aliás, é uma das únicas fontes de problemas ambientais para o rio Ribeira de Iguape. Resíduos de fertilizantes e herbicidas usados nas plantações, especialmente de bananas, são carreados para as calhas dos rios da bacia hidrográfica, especialmente na temporada das chuvas. Estudos realizados nas águas da região encontraram resíduos desses produtos em 35% das amostras coletadas. As concentrações desses poluentes eram extremamente baixas e não comprometem a qualidade das águas para o consumo humano. Porém, é importante ligar o “sinal de alerta” e cuidar para que esses problemas não aumentem.
O Vale do Ribeira é a região mais pobre do Estado de São Paulo e é justamente aqui onde estão os grandes riscos para a manutenção da boa qualidade ambiental da região. Sem maiores oportunidades de trabalho e renda, populações podem se sentir tentadas a devastar as áreas florestais remanescentes para aumentar os campos de produção agrícola e também a produção de lenha e madeira. A exploração do palmito nativo da espécie jussara, que já é grande na região, pode fugir ao controle e aumentar ainda mais. Em muitas regiões do Estado de São Paulo, a superexploração já levou essa palmeira a uma situação de iminente risco de extinção.
Uma outra característica marcante do Vale do Ribeira é a grande concentração de pequenas comunidades indígenas e quilombolas. O isolamento dessas populações manteve vivo todo um conjunto de lendas e um folclore diferenciado do restante do Estado de São Paulo. Esse folclore é rico em criaturas míticas aquáticas e está muito próximo de elementos de outras regiões do país como o Vale do rio São Francisco e a Bacia Amazônica.
Os primeiros registros de criaturas míticas encontradas nos rios brasileiros datam de meados do século XVI e se devem a cronistas como o padre José de Anchieta, Pero de Magalhães Gândavo e Gabriel Soares de Sousa. Uma dessas criaturas é a ipupiara, um tipo de monstro marinho que vivia nas águas dos rios e que costumava matar indígenas. Esses elementos míticos locais se fundiram aos mitos de origem africana trazidos pelos escravos como o Olokum, o deus do mar, e Oloxá, a deusa dos lagos. Do sincretismo surgiram lendas como a Iara ou Uiara, o Caboclo ou Nego D’água, a Cobra Grande, entre outros.
Com o forte avanço da colonização do Estado de São Paulo a partir de meados do século XIX, grandes contingentes de imigrantes, especialmente estrangeiros, passaram a ocupar o território paulista e boa parte desses elementos folclóricos desapareceu. No Vale do Ribeira, muito dessa cultura tradicional sobreviveu.
A preservação de importantes áreas florestais no extremo Sul do Estado de São Paulo e no Leste do Paraná resultou no bom estado de conservação ambiental do importante rio Ribeira de Iguape. E essa preservação ambiental também resultou na conservação de importantes elementos folclóricos das populações tradicionais da região.
Isso nos leva a uma interessante conclusão – preservação ambiental também é cultura.
[…] O DISCRETO E BEM CON… em O CAFÉ, OS SOLOS DE TERRA ROXA… […]
CurtirCurtir