As altas autoridades da Rússia Comunista sabiam desde longa data que a retirada de expressivas quantidades de água dos dois rios tributários do Mar de Aral, o Amu Daria e o Syr Daria, levaria o grande lago a um verdadeiro colapso. Aliás, para sermos mais exatos, essa possibilidade começou a ser levantada ainda no século XIX após o Império Russo anexar a então chamada Região Transcaspiana – cientistas da corte imperial czarista já levantavam a hipótese de aproveitar as águas dos grandes rios em projetos de irrigação das estepes da região ao invés de vê-las escorrerem para o Mar de Aral e serem evaporadas pelo calor do sol. Um relatório geográfico da região finalizado em 1882 havia constatado que, a exemplo do que acorre com o Mar Morto no atual Estado de Israel, as águas que escorrem para o Mar de Aral se perdiam por evaporação a uma taxa de 10% ao ano. Um trecho do relatório dizia:
“A presença do Mar de Aral é uma prova do nosso subdesenvolvimento, da nossa falta de capacidade de explorar grandes quantidades de água. ”
Com o advento da Revolução Russa em 1917 e a chegada da “classe trabalhadora” ao poder, ficou muito claro que nada nem ninguém poderia se opor ao avanço social e econômico dos povos da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS). Grandes fábricas, ferrovias, represas e hidroelétricas, minas, rodovias e demais obras de infraestrutura teriam de ser feitas pelos povos soviéticos e em prol dos povos soviéticos a qualquer custo – e estes custos foram muito altos em vidas e em danos ambientais. O Livro Negro do Comunismo: Crimes, Terror, Repressão, publicado por professores universitários europeus em 1997, por ocasião dos 80 anos da Revolução Russa, fala em 20 milhões de mortos por oposição ao regime comunista nas Repúblicas Socialistas. Foram mortes por execuções, fomes intencionalmente provocadas, mortes resultantes de deportações, prisões e trabalhos forçados – ninguém em sã consciência podia se opor a decisões tomadas pela alta cúpula do Partido Comunista sem arcar com as consequências; no caso do Mar de Aral: se foi decidido que “ele” teria de dar sua “vida” em prol do povo soviético, que se cumpra. A gigantesca e ineficiente burocracia estatal dos diversos níveis de governo da União Soviética se encarregaria de pôr em prática essa decisão.
Ao longo da década de 1960, quando foram concluídos gigantescos projetos de irrigação em toda a região da Ásia Central, a produção de algodão saltou de 2,2 para 9,1 milhões de toneladas ao ano. A indústria de processamento de pescados do Mar de Aral, que empregava 50 mil pessoas em dezenas de fábricas, também respondia pela cota de produção estipulada pela máquina burocrática estatal e produzia 40 mil toneladas de pescados por ano. No final da década de 1960, quando o Mar de Aral começou a secar e a indústria pesqueira começou a sentir a redução no volume de pescados produzidos, a máquina burocrática soviética deu o seu “jeitinho”: passou a importar peixe congelado de regiões do Mar Báltico e do Oceano Pacífico para que se complementasse as cotas de produção das fábricas da região do Aral – em meados da década de 1970 essa solução se mostraria inviável e poucos anos depois a atividade pesqueira no Mar de Aral foi encerrada em definitivo.
No final da década de 1980, quando o regime socialista avançou com a Política da Glasnost (abertura) e a imprensa mundial passou a ter acesso a informações e notícias das Repúblicas Socialistas com menor censura, a situação do Mar de Aral ganhou forte repercussão mundial, mobilizando governos, organizações ambientais, acadêmicos e leigos de todo o mundo. A catástrofe foi batizada pela imprensa mundial como a “Chernobil Calada”, numa referência ao acidente ocorrido na usina nuclear da Ucrânia em 1986, mantido em segredo pelas autoridades da União Soviética enquanto foi possível. Àquela altura, o Mar de Aral tinha apenas um terço do seu tamanho original e muito pouco poderia ser feito para reverter o seu “quadro terminal”.
“- Eu pertenço aquele grupo de cientistas que acredita que secar o Mar de Aral representa uma vantagem muito maior que preservá-lo. Com o cultivo do algodão irá se cobrir as perdas da pesca e da indústria presente hoje no Mar de Aral. ”
A fala, retirada de um discurso feito no final da década de 1950, é de autoria do então Presidente da Academia de Ciências do Turcomenistão. Uma vez consumada morte do Aral, restaria mandar a conta do sepultamento para estas pessoas – já o corpo do Mar, há muito cheira mal!