MATAR O MAR DE ARAL ATÉ QUE FOI FÁCIL. AGORA, O QUÊ FAZER COM O CORPO?

Aral em Luto

As altas autoridades da Rússia Comunista sabiam desde longa data que a retirada de expressivas quantidades de água dos dois rios tributários do Mar de Aral, o Amu Daria e o Syr Daria, levaria o grande lago a um verdadeiro colapso. Aliás, para sermos mais exatos, essa possibilidade começou a ser levantada ainda no século XIX após o Império Russo anexar a então chamada Região Transcaspiana – cientistas da corte imperial czarista já levantavam a hipótese de aproveitar as águas dos grandes rios em projetos de irrigação das estepes da região ao invés de vê-las escorrerem para o Mar de Aral e serem evaporadas pelo calor do sol. Um relatório geográfico da região finalizado em 1882 havia constatado que, a exemplo do que acorre com o Mar Morto no atual Estado de Israel, as águas que escorrem para o Mar de Aral se perdiam por evaporação a uma taxa de 10% ao ano. Um trecho do relatório dizia:

“A presença do Mar de Aral é uma prova do nosso subdesenvolvimento, da nossa falta de capacidade de explorar grandes quantidades de água. ”

Com o advento da Revolução Russa em 1917 e a chegada da “classe trabalhadora” ao poder, ficou muito claro que nada nem ninguém poderia se opor ao avanço social e econômico dos povos da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS). Grandes fábricas, ferrovias, represas e hidroelétricas, minas, rodovias e demais obras de infraestrutura teriam de ser feitas pelos povos soviéticos e em prol dos povos soviéticos a qualquer custo – e estes custos foram muito altos em vidas e em danos ambientais. O Livro Negro do Comunismo: Crimes, Terror, Repressão, publicado por professores universitários europeus em 1997, por ocasião dos 80 anos da Revolução Russa, fala em 20 milhões de mortos por oposição ao regime comunista nas Repúblicas Socialistas. Foram mortes por execuções, fomes intencionalmente provocadas, mortes resultantes de deportações, prisões e trabalhos forçados – ninguém em sã consciência podia se opor a decisões tomadas pela alta cúpula do Partido Comunista sem arcar com as consequências; no caso do Mar de Aral: se foi decidido que “ele” teria de dar sua “vida” em prol do povo soviético, que se cumpra. A gigantesca e ineficiente burocracia estatal dos diversos níveis de governo da União Soviética se encarregaria de pôr em prática essa decisão.

Ao longo da década de 1960, quando foram concluídos gigantescos projetos de irrigação em toda a região da Ásia Central, a produção de algodão saltou de 2,2 para 9,1 milhões de toneladas ao ano. A indústria de processamento de pescados do Mar de Aral, que empregava 50 mil pessoas em dezenas de fábricas, também respondia pela cota de produção estipulada pela máquina burocrática estatal e produzia 40 mil toneladas de pescados por ano. No final da década de 1960, quando o Mar de Aral começou a secar e a indústria pesqueira começou a sentir a redução no volume de pescados produzidos, a máquina burocrática soviética deu o seu “jeitinho”: passou a importar peixe congelado de regiões do Mar Báltico e do Oceano Pacífico para que se complementasse as cotas de produção das fábricas da região do Aral – em meados da década de 1970 essa solução se mostraria inviável e poucos anos depois a atividade pesqueira no Mar de Aral foi encerrada em definitivo.

No final da década de 1980, quando o regime socialista avançou com a Política da Glasnost (abertura) e a imprensa mundial passou a ter acesso a informações e notícias das Repúblicas Socialistas com menor censura, a situação do Mar de Aral ganhou forte repercussão mundial, mobilizando governos, organizações ambientais, acadêmicos e leigos de todo o mundo. A catástrofe foi batizada pela imprensa mundial como a “Chernobil Calada”, numa referência ao acidente ocorrido na usina nuclear da Ucrânia em 1986, mantido em segredo pelas autoridades da União Soviética enquanto foi possível. Àquela altura, o Mar de Aral tinha apenas um terço do seu tamanho original e muito pouco poderia ser feito para reverter o seu “quadro terminal”.

“- Eu pertenço aquele grupo de cientistas que acredita que secar o Mar de Aral representa uma vantagem muito maior que preservá-lo. Com o cultivo do algodão irá se cobrir as perdas da pesca e da indústria presente hoje no Mar de Aral. ”

A fala, retirada de um discurso feito no final da década de 1950, é de autoria do então Presidente da Academia de Ciências do Turcomenistão. Uma vez consumada morte do Aral, restaria mandar a conta do sepultamento para estas pessoas – já o corpo do Mar, há muito cheira mal!

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A MORTE ANUNCIADA DO MAR DE ARAL

A morte do Mar de Aral 2

Quando se consulta qualquer antigo mapa da Ásia Central tem-se a nítida certeza que o Mar de Aral era uma ilha de vida cercada por grandes desertos por todos os lados. Vejamos: entre o Mar de Aral e o Mar Cáspio encontramos o deserto de Karakum, que em uzbeque significa “Deserto das Areias Negras”, com cerca de 350 mil km² (o Estado de São Paulo tem 248 mil km²); entre os rios Amu Daria e Syr Daria fica o Kyzyl Kum, “Deserto das Areias Vermelhas”, cobrindo uma área de 298 mil km²; além do rio Syr Daria fica o Betpak-Dala ou “Planalto da Fome” com área de 75 mil km², que segue até atingir o deserto das areias de Muyunkum, “Deserto Pescoço de Camelo” (em razão do formato), com uma área de 78 mil km².

No grande oásis do Mar de Aral se encontravam extensos deltas cobertos de frondosas florestas de juncos e canas, onde viviam grandes populações de saikas, uma espécie local de antílope, javalis selvagens, bois almiscarados, lobos, raposas, perus, gansos, patos e outros animais. Nas áreas alagadiças eram produzidas diversas culturas de víveres, que atendiam parte das necessidades dos povos locais. As águas do lago eram ricas em peixes, com destaque para o famoso esturjão de Aral (Acipenser nudiventris), que podia atingir até 70 kg. A bem-sucedida indústria pesqueira local chegou a produzir volumes de pescados superiores a 40 mil toneladas anuais em meados do século XX, respondendo por 1/6 do consumo das Repúblicas Soviéticas.

Com a expansão do Império Russo na Ásia Central a partir de meados do século XIX, surgiram as primeiras preocupações em fixar as populações nômades ao redor do Mar de Aral – a exploração do potencial pesqueiro do lago dependia da presença de mão de obra no local – à época, a rarefeita população da região se concentrava ao redor de algumas áreas nas margens dos corpos d’água, onde eram possíveis a agricultura e a criação de animais. No final do século XIX, o governo imperial russo iniciou a construção dos primeiros canais de irrigação, permitindo a chegada da cultura do algodão na região. Com a derrubada do regime czarista e a chegada dos “sovietes” (operários) ao poder em 1917, tanto a indústria da pesca no Mar de Aral quanto a produção agrícola através da intensa irrigação de terras nas Repúblicas da Ásia Central seriam estimuladas, até se atingir um ponto de colapso: não haveria água suficiente para manter simultaneamente os dois sistemas.

As estepes da Ásia Central são extremamente pobres em nutrientes e excessivamente arenosas. Sem húmus no solo, as culturas só poderiam se desenvolver usando-se os nutrientes carreados pela água retirada dos grandes rios. Assim, os grandes volumes de água usados para alagar e nutrir as plantações acabavam absorvidos pelo solo ou, simplesmente, evaporavam, e um volume cada vez menor de água chegava ao Mar de Aral. Especialistas calculam que os níveis de perdas de água nestes sistemas de irrigação superavam os 90%; as chuvas na região são irregulares e fracas, mal atingindo o índice de 200 mm ao ano, o que seria insuficiente para ajudar a compensar estas perdas.

O líder russo Nikita Khrushchev, assumidamente um entusiasta dos resultados econômicos obtidos com a irrigação das estepes em larga escala, em visita a região no final da década de 1950 para vistoriar as obras dos novos canais, disse: “- Não vamos perder tempo com discussões – usem quanta água for necessária! ”; os fiéis burocratas comunistas da região seguiram à risca suas ordens e se avançou furiosamente abrindo novos canais pelas estepes. Dez anos depois, o Mar de Aral deu sua primeira resposta: o nível das suas águas baixou 2 metros e a área do espelho d’água foi reduzida em 6.000 km²; cinco anos depois, o nível baixou mais 3 metros e o espelho d’água diminuiu outros 5.000 km²; passados dez anos, o nível das águas baixou mais 14 metros e o Mar de Aral ficou reduzido a um terço da sua área original, com um grande aumento da salinidade das suas águas e intensa mortandade de peixes. O porto de Aralsk, onde o lago tinha uma profundidade média de 13 metros, agora está distante 70 km da margem das águas remanescentes – o colapso do Mar de Aral estava consolidado e a vida de 50 milhões de pessoas teria um futuro incerto.

Um pequeno trecho do lago ao norte, batizado de Pequeno Aral, conseguiu manter parte de suas águas graças a uma pequena contribuição mantida pelo rio Syr Daria. Com financiamento do Banco Mundial, o Governo do Cazaquistão construiu uma barragem com extensão de 13 km, permitindo a estabilização da profundidade deste trecho remanescente do lago em 4 metros. Os moradores desta região têm observado uma gradual recolonização das águas com peixes, porém os volumes da pesca são irrelevantes se comparado ao histórico do antigo Mar de Aral. Uma faixa de água a oeste, chamada de Grande Aral, continua a secar ano após ano.

Consta que, na década de 1940, um alto funcionário do Ministério da Água, respondendo aos questionamentos de um grupo de cientistas preocupados com as consequências dos programas de irrigação na Ásia Central, respondeu:

“- O Mar de Aral precisa morrer como um soldado na Guerra! ”

Demorou, mas enfim a morte chegou…

O OURO BRANCO DA ÁSIA CENTRAL

Vendedores de túnicas do Turquestão

O algodão é uma fibra sedosa que cresce em volta das sementes de algumas espécies de plantas do gênero Gossypium, família Malvaceae, encontradas em diversas áreas tropicais da África, da Ásia e das Américas. Estudos científicos demonstraram que a fibra natural é utilizada pela humanidade para os mais diversos fins desde o final da última era glacial há 12 mil anos atrás. O desenvolvimento das grandes civilizações levou ao contínuo aperfeiçoamento do uso das fibras de algodão para a produção de tecidos, tendas e tapetes – os antigos egípcios alçaram o ápice nas técnicas de tecelagem graças ao seu famoso algodão do delta do Rio Nilo.

Na Ásia Central, o algodão sempre foi uma mercadoria preciosa, sendo produzido em algumas regiões de clima adequado à cultura e distribuído por caravanas de mercadores desde tempos imemoriais. O produto era transportado por tropas de camelos por extensas e antigas rotas comerciais através de estepes, montanhas e desertos – a região do Mar de Aral era o centro de algumas dessas rotas ancestrais. Artesãos dos mais diferentes povos transformavam a fibra em fios usados na produção de tecidos e vestimentas, tapetes, utensílios domésticos e tendas – o Yaktakh, uma tradicional túnica de algodão leve com detalhes em seda, é um exemplo do gosto popular pela fibra na Ásia Central. A foto que ilustra esse post mostra comerciantes desta túnica no Turquestão na década de 1860.

Após a Revolução Bolchevique de 1917 e a criação da URSS – União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, os planejadores estatais começaram a dividir o seu extenso território em função das suas potencialidades econômicas. As planícies desérticas e semidesérticas das Repúblicas da Ásia Central passaram a ser vistas como potenciais produtoras de alimentos e de algodão via sistemas de agricultura irrigada – as fontes de água seriam os caudalosos rios Amu Daria e Syr Daria.

A partir da década de 1920, a área de agricultura irrigada na República do Turquestão foi extensivamente ampliada a fim de atender a uma proclamação de Vladimir Lenin (1870-1924) solicitando o aumento da produção do algodão. Na década de 1930, já sob o comando de Joseph Stálin (1878-1953), o Ministério da Água iniciou a implantação de gigantescos projetos de construção de canais de irrigação no Uzbequistão, Cazaquistão e Turcomenistão, com o objetivo de transformar suas estepes nos celeiros da União Soviética, alcançando a autossuficiência na produção de trigo, cevada, arroz, milho e algodão. O primeiro grande canal de irrigação foi concluído em 1939 no Vale de Ferghana no Uzbequistão; no final da década de 1940 foram concluídos canais em Kizil-Orda no Cazaquistão e na região de Taskent no Uzbequistão.

Após a morte de Stálin em 1953, os novos dirigentes da União Soviética – Nikita Khrushchev (1894-1971) e Leonid Brezhnev (1906-1982), mantiveram a política de produção agrícola nas Repúblicas da Ásia Central, expandindo ainda mais a construção dos grandes canais de irrigação e convertendo ainda mais áreas de estepes para a produção de algodão. Foram construídos o Qara-Qum, um canal com 800 km de extensão entre o rio Amu Daria e Ashkhadab, o sistema de irrigação de Mirzachol Sahra, o canal Chu no Quirguistão e o Reservatório de Bahr-i Tajik no Tadjiquistão. A partir do final da década de 1950, Moscou decidiu que toda a região irrigada da Ásia Central passaria a se ocupar exclusivamente com a monocultura do algodão – “quando o branco da neve cobre Moscou, o ouro branco do algodão cobre as Repúblicas Soviéticas da Ásia Central”: essa frase passou a ser uma espécie de mantra no Kremlin.

Os planos dos burocratas de Moscou lograram espantosos êxitos, com recordes de produção quebrados sucessivamente ano após ano, porém, com terríveis custos sociais e ambientais: a sangria de recursos hídricos dos rios Amu Daria e Syr Daria para uso em sistemas de irrigação fez cair em 90% o volume de água que chegava ao Mar de Aral; a monocultura do algodão destruiu as tradições culturais dos povos nômades da Ásia Central, sobretudo os cazaques, um povo sem qualquer tradição em agricultura e que não aceitou o programa de propriedade coletiva dos soviéticos – calcula-se que mais de um milhão de pessoas morreram ou abandonaram a região, migrando para outros países.

No próximo post vamos avaliar os impactos diretos da política de produção agrícola da Ásia Central no Mar de Aral.

MAR DE ARAL: UM OÁSIS NO MEIO DO DESERTO DA ÁSIA CENTRAL

Mar de Aral

O Planeta dos Macacos foi um filme de ficção científica de enorme sucesso no final da década de 1960, gerando diversas sequências e adaptações. Na história, um grupo de astronautas pousa num planeta dominado por símios de diversas espécies – orangotangos, gorilas e chimpanzés, altamente desenvolvidos e belicosos; os seres humanos são escravizados pelos símios e considerados criaturas inferiores com um baixo nível de inteligência – inclusive não possuem linguagem. Depois de intensas lutas pela sobrevivência, um único astronauta remanescente descobre que sua astronave havia pousado no planeta Terra, mas num futuro distante – ele encontrou a Estátua da Liberdade, símbolo da Cidade de Nova York, quase que completamente enterrada na areia de uma praia. Uma guerra nuclear destruiu o planeta e a maior parte da humanidade – os macacos evoluíram e dominaram a Terra. A foto que ilustra esta postagem foi escolhida por lembrar esse filme de ficção científica – um grande navio encalhado nas areias de um deserto; infelizmente o que ela mostra é real: as dunas de areia são o antigo fundo do Mar de Aral na Ásia Central, um mar que, literalmente, evaporou…

Localizado entre o Cazaquistão e o Uzbequistão, o Mar de Aral era até o início do século XX o quarto maior lago do mundo, com uma área total de 68 mil km² – isto corresponde a soma de três vezes o tamanho do Estado de Sergipe com uma área equivalente a duas vezes o tamanho do Distrito Federal; também é equivalente a 165 vezes a área da Baía da Guanabara. Nada mal para um lago no meio de um grande deserto.

O Mar de Aral surgiu graças a existência uma grande depressão no terreno, onde se formou uma bacia hidrográfica endorreica, ou seja, uma bacia fechada, sem drenagem para outras bacias hidrográficas ou para o oceano, sendo alimentada pelas águas das chuvas, do degelo e, especialmente pela drenagem das águas dos rios Amu Daria e Syr Daria. Estes caudalosos rios nascem na Cordilheira do Himalaia, distante 2.000 quilômetros do lago. O grande volume de água despejado no lago compensava a evaporação de aproximadamente 10% ao ano, mantendo o nível do Aral estável por um longo período geológico e com uma profundidade máxima de 31 metros. Aral, nas línguas uzbeque e cazaque, significa “ilha” – haviam mais de 1.100 naquele mar.

A antiga Rota da Seda, uma das ligações comerciais mais importantes da história da humanidade, cruzava as praias e deltas do Mar de Aral, situado no meio do caminho entre a Europa e a China. As margens do Aral abrigavam diferentes grupos étnicos como tadjiques, uzbeques e cazaques, que sobreviviam como agricultores, pescadores, pastores, mercadores e artesãos numa região rica em água, plantas e vida animal.

Em meados do século XIX, a expansão militar do Império Russo levou à conquista da região do Mar de Aral. Navios militares e pesqueiros da Rússia foram transportados desmontados em caravanas de camelos e montados nas águas do Aral. Após a conquista, foi iniciada uma nova etapa da sua história – o Mar de Aral foi transformado numa fonte de pescados para toda a Rússia, chegando a fornecer, em meados do século XX, 1/6 do volume total dos peixes consumidos pelos soviéticos.

O ar puro, o clima quente e úmido e as paisagens pitorescas ao redor das praias de água salobra criaram um verdadeiro contraponto ao inóspito clima russo, transformando a região num dos maiores destinos turísticos de verão dos eslavos – o Mar de Aral virou uma espécie de “Copacabana” da Ásia Central, recebendo milhões de turistas de todas as Repúblicas Soviéticas. As estradas de ferro, construídas originalmente para escoar os pescados da região, passaram a transportar um número cada vez maior de pessoas, dinamizando ainda mais a economia regional. Hotéis, acampamentos de verão e colônias de férias, marinas, restaurantes e lojas surgiram ao lado dos grandes complexos industriais de processamento de pescados. A população cresceu acompanhando o progresso regional – passou de 8 para 50 milhões de habitantes entre os anos de 1900 e 1960.

Após a Revolução Bolchevique de 1917, o Governo Central da recém criada União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) iniciou um conjunto de grandes obras em todo o seu vasto território com vistas à criação, expansão e modernização da infraestrutura e ao fortalecimento nacional. Na Ásia Central foram construídas imensas redes de irrigação a partir de canais de drenagem derivados das bacias hidrográficas dos rios Amu Daria e Syr Daria. O desvio das águas destes rios para a irrigação serão o decreto de morte para o Mar de Aral.

Antigo oásis no meio do Deserto da Ásia Central, o Mar de Aral foi reduzido em poucas décadas a uma irreconhecível miragem desbotada.

Continuamos no próximo post.

A SUPEREXPLORAÇÃO DAS FONTES DE ÁGUA

Canal do Rio São Francisco

Na última semana, dia 22 de março, foi comemorado o Dia da Água, data criada pela ONU – Organização das Nações Unidas após a Conferência do Rio de Janeiro em 1992, quando as discussões sobre o tema qualidade dos recursos hídricos entrou em definitivo na pauta das autoridades mundiais. Também, há cerca de duas semanas, foi inaugurado no sertão da Paraíba o Ramal Leste do Projeto de Transposição do Rio São Francisco: esta inauguração oficial contou com a presença do Presidente da República – alguns dias depois, a obra foi inaugurada extraoficialmente (chamaram de “inauguração popular”) por dois ex-presidentes da República, atitude que mostra como o tema ainda é tratado com populismo aqui no Brasil.

Os recursos hídricos ocupam parcela importante das publicações deste blog e, alternadamente, tratamos do tema ao lado de discussões sobre os problemas dos resíduos, infraestrutura urbana e saneamento básico. Pela junção de todos os fatos citados, vamos discutir ao longo de várias publicações um dos problemas mais urgentes da atualidade: a superexploração preocupante dos recursos hídricos.

Vamos começar falando do tema jornalístico da moda: a chegada das águas do Rio São Francisco na sofrida região do semiárido da Paraíba – são imagens maravilhosas de crianças mergulhando na água dos canais, idosos falando da “riqueza” de se possuir uma fonte de água permanente ao lado de casa e trabalhadores rurais fazendo planos de plantio irrigado em seus sítios. Para quem conhece de perto o drama dos sertanejos ou que já leu clássicos de nossa literatura como Vidas Secas de Graciliano Ramos ou o Quinze de Rachel de Queiroz sabe do que estou falando. Porém, a euforia inicial precisa ser vista com reservas pelas autoridades responsáveis – estamos falando de água, um recurso cada vez mais raro (a situação do semiárido nordestino que o diga) e é preciso desde já criar mecanismos realistas para a gestão racional deste recurso: o perigoso populismo precisa ser deixado de lado. Vamos entender onde estão os riscos:

Dados oficiais do Governo Federal estimam o atendimento de 12 milhões de habitantes nos Estados de Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte e Ceará com as águas do Rio São Francisco quando todo o sistema estiver em operação plena. Considerando-se a recomendação da OMS – Organização Mundial da Saúde, serão 100 litros de água ao dia para cada habitante. Numa conta rápida chegaremos a um volume diário de água de 1,2 milhão de metros cúbicos para que se atenda a esta demanda.

É aqui que começam os problemas: estudos técnicos indicam que o consumo de água exclusivamente humano no Brasil corresponde a apenas 6% do consumo total – a indústria consome 22% e a agropecuária 72%. Admitindo que esse índice de consumo se consolide no semiárido nordestino ao longo dos anos, a demanda por água ao longo do Sistema de Transposição do Rio São Francisco vai saltar para 20 milhões de metros cúbicos por dia. Minhas perguntas: a já estressada e maltratada Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco vai dar conta dessa sangria de recursos hídricos? Aberta a “caixa d’água de Pandora”, resistirão os gestores do Sistema à pressão de políticos populistas do sertão por volumes cada vez maiores de água para a “dessedentação dos seus currais eleitorais”? Estão em andamento projetos de recuperação dos afluentes do Velho Chico (replantio de matas ciliares, coleta e tratamento de esgotos das cidades, controle de barragens de rejeitos de mineração etc), de forma a, pelo menos, estabilizar a já reduzida vazão atual?

Para muitos de vocês posso até parecer insensível com a questão, mas é justamente o contrário: a história mostra que, em situações semelhantes, a má gestão dos recursos hídricos resultou em falta de água generalizada para todos. O desperdício de água, só para citar um exemplo, é um indício do que poderá acontecer: atividades de irrigação na agricultura chegam a desperdiçar 90% da água; nas cidades, entre perdas por vazamentos e desperdício nas casas, as perdas ultrapassam os 50%.

Na sequência das publicações vamos apresentar a história do Mar de Aral na Ásia Central, que em oitenta anos passou da posição de quarto maior lago do planeta a deserto salgado graças a superexploração das suas águas para irrigação de plantações em antigas Repúblicas da antiga União Soviética – um alerta doloroso do que poderá acontecer por aqui.

Para saber mais:

A SUPEREXPLORAÇÃO DAS FONTES DE ÁGUA

DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS DA ÁGUA

Dia da Água

No último dia 22 de março foi comemorado o Dia da Água. Essa data foi instituída pela ONU – Organização das Nações Unidas, após a Conferência do Rio de Janeiro (RIO 92 ou ECO 92), que reuniu 180 chefes de estado, centenas de representantes de órgãos governamentais e milhares de organizações não governamentais, quando o tema qualidade dos recursos hídricos entrou definitivamente na pauta política internacional.  Na ocasião foi lançada a Declaração Universal dos Direitos da Água e esse dia ficou conhecido internacionalmente como o Dia da Água.

Como a ONU não é uma instituição nacional, não pode impor leis e normas dentro dos países. A instituição geralmente divulga em suas resoluções uma série de recomendações a serem adotadas pelos países membros. Em relação à água, as recomendações foram as seguintes:

Artigo 1º – A água faz parte do patrimônio do planeta. Cada continente, cada povo, cada nação, cada região, cada cidade, cada cidadão é plenamente responsável aos olhos de todos;

Artigo 2ºA água é a seiva do nosso planeta. Ela é a condição essencial de vida de todo ser vegetal, animal ou humano. Sem ela, não poderíamos conceber como são a atmosfera, o clima, a vegetação, a cultura ou a agricultura. O direito à água é um dos direitos fundamentais do ser humano: o direito à vida, tal qual é estipulado no Artigo 3 º da Declaração dos Direitos do Homem;

Artigo 3º – Os recursos naturais de transformação da água em água potável são lentos, frágeis e muito limitados. Assim sendo, a água deve ser manipulada com racionalidade, precaução e parcimônia;

Artigo 4ºO equilíbrio e o futuro do nosso planeta dependem da preservação da água e de seus ciclos. Esses devem permanecer intactos e funcionando normalmente para garantir a continuidade da vida sobre a Terra. Esse equilíbrio depende, em particular, da preservação dos mares e oceanos, por onde os ciclos começam;

Artigo 5ºA água não é somente uma herança dos nossos predecessores; ela é, sobretudo, um empréstimo aos nossos sucessores. Sua proteção constitui uma necessidade vital, assim como uma obrigação moral do homem para com as gerações presentes e futuras;

Artigo 6º A água não é uma doação gratuita da natureza; ela tem um valor econômico: precisa-se saber que ela é, algumas vezes, rara e dispendiosa e que pode muito bem escassear em qualquer região do mundo;

Artigo 7ºA água não deve ser desperdiçada, nem poluída, nem envenenada. De maneira geral, sua utilização deve ser feita com consciência e discernimento para que não se chegue a uma situação de esgotamento ou de deterioração da qualidade das reservas atualmente disponíveis;

Artigo 8ºA utilização da água implica no respeito à lei. Sua proteção constitui uma obrigação jurídica para todo homem ou grupo social que a utiliza. Essa questão não deve ser ignorada nem pelo homem nem pelo Estado;

Artigo 9ºA gestão da água impõe um equilíbrio entre os imperativos de sua proteção e as necessidades de ordem econômica, sanitária e social;

Artigo 10º – O planejamento da gestão da água deve levar em conta a solidariedade e o consenso em razão de sua distribuição desigual sobre a Terra.

É fundamental que todos conheçam e coloquem em prática a Declaração Universal dos Direitos da Água.

Fica aqui o nosso recado a todos!

A REUTILIZAÇÃO DE ÁREAS DE ANTIGOS ATERROS SANITÁRIOS E LIXÕES

USP-LESTE

No final do ano de 2013, a USP-Leste – Universidade de São Paulo – Campus da Zona Leste (foto), foi interditada após a confirmação da presença de altas concentrações de gás metano. Os alunos ficaram sem acesso às salas de aula por longos sete meses, sendo transferidos para outros prédios da região até que uma empresa contratada instalasse equipamentos especiais para a captação e retirada do gás metano das instalações da Universidade. Estudos foram realizados para que se determinasse a origem do gás – ficou comprovado que durante as obras de construção do Campus foi usada terra irregular e contaminada com substâncias tóxicas em obras de aterro e nivelamento do solo, transformando a área num verdadeiro aterro irregular. Calcula-se que o volume de terra despejado no terreno corresponda a 18 mil caminhões basculantes – cerca de 7 mil alunos ficaram expostos às emissões de gases por cerca de 2 anos. Sindicâncias internas e do Governo Estadual buscam identificar os responsáveis por essa verdadeira “tragédia” ambiental.

O caso da USP-Leste é extremo, uma vez que a área escolhida para a instalação do novo Campus não era um aterro desativado, mas é didática para mostrar os perigos de se construir nestas áreas. Os resíduos sólidos enterrados em valas normalmente contêm grandes quantidades de matéria orgânica, que ao entrar em decomposição através da ação de bactérias (inicialmente aeróbias e depois anaeróbias) liberam diversos gases, com destaque para o metano, o dióxido de carbono e o sulfeto de hidrogênio. Com a devida técnica e monitoramento, aterros desativados podem ser liberados para uma série de usos como a instalação de parques, áreas verdes, quadras e campos de futebol, campos de golfe (muito populares em diversos países), espaços de educação ambiental, viveiro de mudas entre outros usos.

Porém, antes dos administradores públicos procederem à liberação do uso de antigas áreas de aterro para qualquer um destes fins, é necessário que se realizem alguns monitoramentos:

Monitoramento ambiental: consiste em verificar e medir o volume de gases emitidos pelos resíduos que além do mal cheiro característico e incômodo, também pode causar, em casos de concentrações extremas, explosões. Estudos realizados em aterros sanitários saturados (quando se atinge o limite máximo de resíduos depositados) indicaram uma produção intensa de gases durante os primeiros 10 anos, sofrendo a seguir uma redução e estabilização a partir de 16 anos – a depender do volume de resíduos sólidos e da matéria orgânica depositados, a liberação de gases poderá se estender por até 40 anos. Esse monitoramento também avalia a qualidade do solo e dos recursos hídricos.

Monitoramento geotécnico: visa acompanhar e monitorar o processo de deformação e compactação do solo, avaliando a capacidade de suporte de cargas.

Uma vez liberadas, essas áreas precisam passar por alguns serviços de conservação e manutenção como recomposição de aterros e taludes danificados por processos erosivos, correção de aparecimento de chorume, implantação e conservação de cobertura vegetal, desobstrução e limpeza de dispositivos de drenagem etc. Esse conjunto de serviços evita que os problemas aumentem e exijam maiores intervenções.

Dificilmente uma área de aterro evoluirá até o ponto de readquirir as características mecânicas de resistência para o suporte de uma edificação de grande porte. O terreno poderá apresentar recalques e deformações horizontais e verticais, além de gerar líquidos percolados e gases. Com o devido processo de licenciamento ambiental, onde serão necessários estudos de diversos especialistas, a área poderá ser liberada para uso em qualquer uma das atividades descritas e voltará a ter uma função social e uso relevante para o município e para as comunidades. Um bom exemplo citado em postagem anterior é o Parque Ecológico do Tietê, na Zona Leste da Cidade de São Paulo, que no passado abrigou um lixão, mas há 35 anos vem prestando ótimos serviços ambientais e de lazer para uma das regiões mais carentes da cidade, recebendo 330 mil visitantes a cada mês.

Com responsabilidade, técnica e monitoramentos adequados, o pesadelo dos antigos aterros sanitários e lixões pode ser transformado em excelentes áreas de lazer, de educação ambiental ou, simplesmente, a criação de aprazíveis áreas verdes para as comunidades, especialmente as mais carentes e que normalmente moram nas vizinhanças.

O ATERRO DE SEROPÉDICA E O AQUÍFERO PIRANEMA

Aterro Seropédica

Ainda era um adolescente quando vi uma placa com o nome Seropédica pela primeira vez. Achei que se tratava do nome de uma fábrica ou quem sabe de algum tipo de hospital (a palavra lembra muito ortopédica). Passaram-se muitos anos até descobrir se tratar de um município da Região Metropolitana do Rio de Janeiro; somente há uns poucos meses atrás descobri que a palavra está associada a produção de seda – Seropédica é a junção da palavra latina “sericeo” ou “serico”, que significa seda, com a palavra grega “paideía”, que significa nutrição, criação ou cultivo: a palavra final significa “local onde se cultiva a seda”.

Até as primeiras décadas do século passado, o então distrito de Seropédica era conhecido por produzir a melhor seda do mundo. Hoje em dia a economia local não lembra em nada o glamour dos velhos tempos e o atual município acabou por se transformar no maior fornecedor de areia e brita para a construção civil da Região Metropolitana do Rio de Janeiro, onde responde por quase 90% destes insumos. Os problemas ambientais provocados pela retirada destes materiais são marcantes e preocupantes, uma vez que o município integra a bacia hidrográfica do Rio Guandu, maior e mais importante manancial de abastecimento da Região Metropolitana.

Um novo e grande problema ambiental vem colocando Seropédica nas manchetes dos noticiários – foi instalado no município um grande aterro sanitário que passou a receber os resíduos sólidos que antes eram descartados no famoso “lixão” do Jardim Gramacho. O aterro foi construído em um terreno com área total de 2 milhões de metros quadrados e está em operação desde abril de 2011. De acordo com informações da empresa responsável pela instalação e operação, as valas do aterro receberam tripla impermeabilização de base reforçada, utilizando argila e dupla camada de mantas de polietileno de alta densidade e utilização de sensores eletrônicos que podem detectar qualquer tipo de anomalia no sistema de impermeabilização. Atualmente o aterro sanitário recebe 10 milhões de toneladas diárias de resíduos sólidos gerados pelas cidades de Seropédica, Itaguaí e Rio de Janeiro.

Até aqui, nenhum problema – um gigantesco “lixão” foi fechado e um volume considerável de resíduos sólidos passou a ser despejado em um aterro sanitário construído e operado dentro das normas técnicas e de acordo com a legislação ambiental. Porém, existe um pequeno detalhe: grande parte do aterro sanitário foi construída sobre o aquífero Piranema, uma reserva estratégica de água que poderá ser fundamental para o abastecimento da Região Metropolitana.

O aquífero Piranema ocupa uma área de aproximadamente 180 km² entre os municípios de Itaguaí, Queimados, Japeri e Seropédica. De acordo com estudos geológicos, o aquífero tem potencial para atender o abastecimento de água de toda a Região Metropolitana do Rio de Janeiro por um mês. Isso pode parecer pouco, mas é importante lembrar que o Rio Guandu, considerado um dos mais poluídos e degradados rios do Estado, responde por 80% do abastecimento da cidade do Rio de Janeiro e de parte de municípios da Baixada Fluminense – não existem outras fontes alternativas. O aquífero Piranema seria uma espécie de “coringa na manga” para um abastecimento emergencial.

Diferente de aquíferos como o Guarani, que possui uma grossa camada de rochas e sedimentos impermeáveis como cobertura, o Piranema tem areia e sedimentos permeáveis cobrindo suas águas, que podem ser facilmente poluídas no caso da infiltração de chorume e outros contaminantes. De acordo com moradores de Seropédica, especialistas da UFRJ – Universidade Federal do Rio de Janeiro, e ambientalistas da região, a escolha do terreno em Seropédica foi a mais inadequada possível. O questionamento e os protestos são gerais – como foram possíveis a aprovação e o licenciamento ambiental do empreendimento sobre o aquífero?

Apesar de todos os cuidados na impermeabilização reforçada do fundo das valas, existem denúncias que dão conta do transbordamento de 50 mil litros de chorume do reservatório do aterro após uma forte chuva. Em uma outra denúncia, ambientalistas informaram as autoridades que foram encontradas tubulações despejando chorume em um rio a centenas de metros do aterro sanitário – este rio deságua diretamente na Baia de Sepetiba.

Há vários posts estamos falando da importância ambiental representada pelo fechamento dos lixões e o despejo dos resíduos sólidos em aterros controlados. Agora, construir um aterro sanitário sobre um aquífero estratégico para o abastecimento de água de pelo menos 10 milhões de pessoas não faz muito sentido, ao menos na minha opinião e na de muita gente que está a protestar contra o empreendimento.

“LIXÃO” DO JARDIM GRAMACHO: JÁ VAI TARDE?

Aterro Gramacho

O licenciamento e a implantação de áreas destinadas ao despejo sanitário de resíduos sólidos residenciais e industriais (nesse caso as restrições e dificuldades são ainda maiores) não é tarefa das mais fáceis – numa sequência de posts foram mostradas as diversas dificuldades para a aquisição de uma área e alguns problemas criados pela operação de um aterro. Encerrar o despejo irregular de resíduos sólidos em um lixão também não é tarefa das mais fáceis. Vamos acompanhar um resumo da história do “lixão” do Jardim Gramacho, no município de Duque de Caxias – Região Metropolitana do Rio de Janeiro.

O Jardim Gramacho abrigou entre os anos de 1978 e 2012 aquele que foi considerado o maior “lixão” da América Latina. O terreno, onde se formaram inicialmente as áreas residencial e a de descarte de resíduos, é o chamado “Terreno de Marinha”, uma faixa de terra de uso restrito com 33 metros contados a partir do mar em direção ao continente ou ao interior das ilhas costeiras com sede de Município que pertence à União, ou seja, houve uma invasão de área pública. Os Terrenos de Marinha só podem ser ocupados após autorização de órgão federal competente e com a contrapartida de pagamento de uma taxa de uso. Com o crescimento do volume de resíduos sólidos despejados nessa faixa de terra, a área ocupada avançou tanto na direção da terra quanto na direção do mar, quando os resíduos e líquidos percolados se consolidaram como um dos grandes poluidores da sofrida Baia da Guanabara.

Lixões e aterros controlados, como é do conhecimento de todos, atraem todos os tipos de criaturas, que buscam encontrar ali comida e moradia – em se tratando de seres humanos, a atração se dá pela farta disponibilidade de resíduos recicláveis, que são garimpados em duras jornadas de trabalho e trocados por valores irrisórios junto aos intermediários nos chamados ferros velhos. Há época do fechamento do Gramacho, haviam 1.700 catadores de recicláveis trabalhando na área de despejo, muitos com mais de 30 anos de atividade no local, e perto de 20 mil moradores nas áreas de entorno, vivendo de atividades ligadas direta ou indiretamente à reciclagem de materiais.

Quando o Gramacho foi oficialmente fechado em 2012, a área recebia aproximadamente 11 mil toneladas diárias de resíduos sólidos, sendo que 75% do volume despejado era gerado pelo município do Rio de Janeiro e o restante gerado por municípios da Baixada Fluminense. Com o fim dos despejos oficiais (despejos irregulares continuaram acontecendo, porém com volumes muito menores), os catadores de recicláveis rapidamente viram seus minguados rendimentos caírem a valores irrisórios – sem materiais recicláveis para garimpar não há renda para suprir as necessidades mais básicas do ser humano, especialmente a alimentação. Os resíduos sólidos das cidades passaram a ser encaminhados para o novo e polêmico aterro sanitário de Seropédica (vamos falar dele no próximo post), que não permite a entrada de catadores de recicláveis, barrando uma eventual migração dos catadores “desempregados” do Jardim Gramacho.

O fechamento do “lixão” do Jardim Gramacho deixou um gigantesco passivo ambiental e social. Uma série de promessas e compromissos dos Governos Estadual e Federal feitos juntos aos catadores de recicláveis e moradores do Jardim Gramacho não foram cumpridos: regeneração das áreas de mangue, revitalização e infraestrutura do bairro e implantação de programas de qualificação profissional para os milhares de catadores de recicláveis, entre outras promessas. Um único compromisso assumido foi cumprido: cada um dos 1.700 catadores cadastrados recebeu, na época, uma indenização de R$ 14 mil e nada mais.

Uma reportagem do jornal O Dia, do Rio de Janeiro, fez uma radiografia da pobreza das residências da população local: 91% das casas são construídas com restos de madeira e papelão; 63% tem piso de chão batido; 93% tem ligações elétricas irregulares (os famosos “gatos”); 74% das casas não tem água encanada e 26% não tem “banheiro”. E como se não bastasse tudo isso, as famílias perderam a sua fonte de renda e foram, literalmente, abandonadas à própria sorte.

O fechamento dos lixões e aterros irregulares é fundamental – porém é urgente que se encontrem alternativas de trabalho e renda para as 400 mil pessoas que vivem do lixo em todo o Brasil (considerando-se os dependentes, esse número vai a 1,2 milhão de pessoas). Você, muito provavelmente, quer distância do lixo – essas pessoas dependem dele para sobreviver…

Veja também:

O ATERRO DE SEROPÉDICA E O AQUÍFERO PIRANEMA

A RESPONSABILIDADE SOCIOAMBIENTAL E AS EMISSÕES DE GASES NOS ATERROS SANITÁRIOS

Parque Ecológico do Tietê

As palavras enterro e aterro tem a mesma origem, mas os significados são diferentes. Ambas expressam ações de escavar e revolver a terra, porém em escalas diferentes. Enterro significar escavar um pedaço de solo para enterrar um morto ou para esconder um objeto – um tesouro, por exemplo; já aterro significa o acúmulo de terras removidas para nivelar ou altear um terreno, indo desde operação de nivelar um pedaço de um terreno até uma obra monumental como a construção do Aterro do Flamengo, na cidade do Rio de Janeiro.

Comecei este texto fazendo a diferenciação porquê, algumas vezes, pode até parecer óbvia uma analogia entre cemitérios e aterros sanitários – a quietude e tranquilidade de um cemitério em nada poderá lembrar a dinâmica diária de um aterro sanitário, com máquinas escavando e movimentando o solo, caminhões descarregando resíduos, toneladas e mais toneladas de matéria orgânica em decomposição e milhares de metros cúbicos de gases em geração e liberação a partir do solo.

Existem algumas diferenças que impõem uma reflexão – a possibilidade de mudar um cemitério de lugar é uma delas. Isto pode parecer estranho a você, mas historicamente é um fato até corriqueiro, apesar de todas as resistências políticas e religiosas feitas por alguns grupos. Um exemplo é a região da Liberdade, bairro bem próximo da região central da cidade de São Paulo, conhecido em todo o Brasil pela forte presença de orientais, especialmente japoneses. Em 1779 foi construído um cemitério no local, destinado aos pobres, indigentes e executados – o atual Largo da Liberdade era conhecido naquela época como o Largo da Forca e ficava ao lado deste cemitério, sendo o local onde eram executados os criminosos do período colonial. Com o crescimento da cidade e com a abertura do Cemitério da Consolação em 1858, este cemitério foi fechado e as ossadas foram transferidas para a nova necrópole – a Liberdade, pouco a pouco, passou a ser ocupada por ruas comerciais. Se você pesquisar na internet, na literatura e até no cinema, encontrará dezenas de casos de transferência de cemitérios em grandes cidades mundo afora.

Imaginemos agora uma provável mudança de lugar de um aterro sanitário – vamos usar como exemplo o já desativado Aterro Bandeirantes, na região oeste da Cidade de São Paulo. Entre os anos de 1979 e 2007, este aterro recebeu 40 milhões de toneladas de resíduos sólidos, despejados caprichosamente em uma área de 140 hectares, formando camadas sucessivas de resíduos sólidos e terra que atingiram alturas de até 100 metros. Uma hipotética mudança desses resíduos para um outro local implicaria em milhões de viagens de caminhões basculantes e dezenas de milhares de horas de trabalho de máquinas operatrizes escavando o solo e transportando os resíduos para embarque nos caminhões – uma operação de tal magnitude teria custos, literalmente, astronômicos.

Este pequeno exercício foi realizado para mostrar a responsabilidade social e ambiental implícita na escolha de uma área destinada ao uso como aterro sanitário, que ultrapassa o custo de aquisição da terra e a tecnologia necessária para a implantação e operação de um aterro sanitário. As consequências desta escolha serão sentidas por várias décadas, indo desde os anos de operação efetiva do aterro até as fases mais distantes no tempo, quando a área continuará emitindo os gases resultantes da decomposição da matéria orgânica. Voltando ao exemplo do Aterro Bandeirantes – apesar de desativado em 2007, o aterro continua emitindo uma grande quantidade de gases, o que poderá continuar acontecendo até o ano de 2050. Isso ocorre porquê, segundo estudos realizados, 1 tonelada de resíduos sólidos tem potencial de gerar até 250 m³ de gases ao longo de até 40 anos. Em termos mais gerais isso significa que, considerando-se a vida útil de um aterro sanitário mais o período total de emissão de gases resultantes da decomposição, a área poderá ficar comprometida de 50 a 60 anos até que possa ser utilizada para outros fins, ainda que usos sejam limitados. Isso só faz aumentar a responsabilidade pela decisão da escolha.

Uma opção de uso de antigas áreas de aterros sanitários são os parques públicos – o Parque Ecológico do Tietê na Zona Leste da Cidade de São Paulo (vide foto) é um bom exemplo: inaugurado em 1982, o parque foi construído em uma área usada pela Prefeitura de São Paulo como lixão durante 25 anos.

Dos males, o menor.