AS IMPRESSIONANTES “TERRAS PRETAS DE ÍNDIO” DA AMAZÔNIA

Terra Preta de Índio

A imprensa internacional tem dedicado grandes espaços nos seus noticiários para falar das queimadas na Amazônia e na transformação da maior floresta equatorial do mundo numa pilha de cinzas. De acordo com muitas dessas publicações, a derrubada e a queima da floresta têm como objetivos garantir a expansão das frentes agrícolas e pecuárias do país. Essa aritmética mágica – quanto mais terra disponíveis maior será a produção agropecuária, não “fecha” quando se fala em solos amazônicos. Os solos locais não são os melhores do mundo para práticas agrícolas e pecuárias.

Os solos naturais da Amazônia são dos tipos arenosos e argilosos, muito pobres em nutrientes – a imponência da vegetação da grande floresta pode até passar uma impressão diferente. O segredo da Amazônia está na grossa camada de húmus formado pelo acúmulo de folhas e árvores caídas, e também pela decomposição dos corpos de animais mortos – ou seja, é a própria floresta que gera os nutrientes que sustentam a floresta, numa espécie de “moto perpétuo”. Se uma grande área da floresta for derrubada para a criação de pastagens ou campos agrícolas, em poucos anos essa camada superficial de nutrientes se esgota e a terra se torna improdutiva. 

Além da necessidade de solos férteis para a prática de uma agricultura sustentável na Amazônia no longo prazo, essa produção depende também de disponibilidade de água e de luz solar incidindo diretamente sobre os solos. Água na Amazônia não costuma ser problema – a região possui a maior rede hidrográfica do mundo e também conta com uma das maiores precipitações anuais do planeta. Já a insolação dos solos, isso é um grande problema – a densa cobertura vegetal, com árvores de grande porte, retém a maior parte da luz solar e só uma pequena parte dessa radiação atinge os solos da Floresta Amazônica. Uma das poucas formas de se resolver esse problema e garantir a adequada insolação dos solos para a prática de uma agricultura de alta produtividade, que garanta o abastecimento de grandes populações, só é possível com a derrubada e queima de grandes extensões da mata, liberando assim a irradiação solar direta.

Para muita gente, a Amazônia, a maior floresta equatorial do mundo, é um dos últimos lugares intocados do planeta e sua preservação é fundamental para o futuro da humanidade. A Floresta Amazônica é sim fundamental para o controle do clima e das chuvas em grande parte do continente americano, uma função que tem grande repercussão no clima global. Porém, para a decepção de muita gente, ela não é uma floresta intocada: há cerca de 4 mil anos atrás, grande parte da floresta estava sendo queimada para a formação de grandes campos agrícolas, que eram necessários para sustentar grandes populações indígenas. E as evidências desse processo de ocupação humana estão por todos os lados, nas chamadas terras pretas de índios

Na década de 1870, exploradores e naturalistas que viajavam por diferentes partes da Amazônia passaram a observar extensas manchas de solo escuro e profundo, de excepcional fertilidade. Com o passar dos anos e com desenvolvimento de novos estudos sobre esses solos escuros, descobriu-se que os teores de carbono nessas áreas eram muito mais altos que os valores médios de outros solos – cerca de 150 gramas de carbono para cada kg de solo, enquanto a média era de 20 a 30 gramas. Esses solos também se destacavam pelos altos teores de fósforo, cálcio, zinco, nitrogênio e manganês, além grandes quantidades de carvão, restos de cerâmica e resíduos de ossos. Esses solos não eram naturais, mas sim criados artificialmente por seres humanos e passaram a ser conhecidos como terras pretas de índios

Nos últimos anos, esses solos escuros da Amazônia têm despertado um interesse cada vez maior da comunidade científica e as mais importantes revistas da área no mundo como a Nature e a Science têm publicado diversos artigos sobre esse assunto. Em 2006, citando um exemplo, a Associação Americana para o Avanço da Ciência (AAAS, na sigla em inglês), dedicou um simpósio a esse assunto: Amazonian Dark Earths: New Discoveries (Terras Pretas da Amazônia: Novas Descobertas). Os cientistas querem entender a origem e quais foram os processos usados para a criação de solos de tamanha fertilidade, usados até hoje por comunidades da região para a produção de alimentos. 

Até onde os pesquisadores já conseguiram entender, o carbono foi fixado nos solos através da queima de materiais orgânicos na presença de pouco oxigênio. O carbono em alta concentrações melhora a absorção da água, o que facilita a penetração das raízes no solo e gera plantas mais resistentes. As características do carvão encontrado nas terras pretas permitem uma longa retenção do carbono no solo, exatamente o contrário do que deveria acontecer na região Amazônica – essa retenção pode durar centenas ou milhares de anos. Conseguir recriar os mecanismos de criação da terra preta de índio poderá ser uma excepcional alternativa econômica para regiões de solos pobres em todo o mundo, onde as populações locais se esforçam muito para obter poucos frutos da terra.

Para que vocês percebam a importância do tema, os pesquisadores calculam que as terras pretas ocupem entre 1% e 10% de toda a área da Floresta Amazônica, o que significa que, pelo menos, uma quantidade equivalente de floresta foi queimada no passado para a liberação dessas áreas para a formação desses solos e a prática da agricultura. Essas terras foram formadas por índios pré-colombianos, ou pré-cabralinos como eu prefiro chamar, que começaram a desenvolver esse trabalho na mesma época em que os primeiros núcleos maias estavam sendo formados na América Central – talvez até haja uma ligação entre esses grupos. Da mesma forma que há mistérios na origem desses índios, também não se sabe o que aconteceu com eles. 

Conforme essas manchas de terra preta foram sendo abandonadas, talvez por causa da migração das populações para outras regiões, a Floresta voltou a crescer e escondeu essas manchas de terra por vários séculos. A Floresta Amazônica possui uma alta capacidade de regeneração, uma característica que passou a ser chamada de autopoiese, a capacidade de seres vivos e ecossistemas de produzirem a si próprios. Isso significa que a Floresta Amazônica pode ter uma parte destruída por alguma força ou evento externo e, mesmo assim, em poucos anos ela consegue recuperar sozinha áreas completamente desmatadas e degradadas.

Existe um senão nessa grande capacidade de regeneração da Floresta: qualquer vestígio arqueológico dessas antigas tribos acabou encoberto pela vegetação, pelas camadas de húmus e por sedimentos carreados pelas chuvas e enchentes nos meses de verão. Não é incomum que pesquisadores encontrem fragmentos de cerâmica e outros vestígios de antigas ocupações humanas a profundidades de 10 metros. Considerando-se que a Amazônia tem mais de 5 milhões de km² de superfície, podemos supor que existe muita coisa a ser descoberta nos próximos anos.

As populações ribeirinhas dos rios da Amazônia herdaram esse grande patrimônio dos povos antigos e são as que mais se beneficiam dessas terras pretas, que são utilizadas para produção das suas culturas de subsistência e também de excedentes de produção para a venda. As margens dos rios concentram as maiores quantidades de manchas de terra preta na Amazônia, onde a grande fertilidade dos solos e a pouca necessidade de preparo para o plantio sempre funcionaram com um atrativo para a fixação dessas populações. 

A Amazônia é realmente fascinante e ainda nos reserva inúmeras surpresas. 

Para saber mais:

A NOSSA AMAZÔNIA

OS INDÍGENAS “QUEIMADORES” DE FLORESTAS

Coivara

Há algumas semanas atrás, uma notícia correu o mundo e se transformou no embrião de toda essa crise sobre as queimadas na Amazônia – a morte do cacique Waiãpi no Amapá. Segundo essa “notícia”, um grupo de garimpeiros invadiu a reserva dos indígenas e matou o cacique com requintes de crueldade. Essa notícia passou a ser divulgada primeiro por políticos locais e depois por políticos a nível federal. Não tardou, essa notícia passou a circular por todo o mundo e chegou a ser comentada por autoridades da ONU – Organização das Nações Unidas, onde o Brasil foi acusado de genocídio contra as populações indígenas. Passada a histeria inicial, investigações feitas pela Polícia Federal, inclusive com a exumação e exames periciais no cadáver, comprovaram que o cacique morreu afogado e, ao que tudo indica, não passou de uma grande “fake news“.

A questão das populações indígenas, não só aqui no Brasil, mas em todo o mundo, é bastante delicada e, frequentemente, está associada a problemas de devastação de áreas naturais e invasão de terras indígenas. No imaginário popular, o indígena é um exemplo da vida em harmonia com a natureza e de respeito ao meio ambiente. Essa imagem vem em grande parte da literatura, como é o caso do indigenismo brasileiro do século XIX, de textos de filósofos europeus como no mito do “bom selvagem” de Rousseau, e também da famosa Carta do Chefe Seattle.

Para tristeza de muita gente, lamento informar que essa imagem idealizada nem sempre condiz com a realidade histórica – aqui nas Américas há registros históricos e geológicos de grandes queimadas realizadas por povos indígenas – do Alasca, ao Norte, até a Terra do Fogo, ao Sul do continente. Essas queimadas eram sistemáticas e tinham como objetivo a abertura de campos agrícolas e criação de áreas para caça de animais silvestres.

As primeiras notícias sobre o encontro de europeus com populações indígenas nas Américas remontam ao ano 1000, quando a expedição viking de Leif Eriksson chegou as costas da Terra Nova, no Leste do Canadá. Os nórdicos fundaram uma colônia – Vinland, na região conhecida hoje como L’Anse-aux-Medows. Essa colônia sobreviveu até o ano de 1012, quando foi destruída por ataques de indígenas. As ruinas de Vinland foram encontradas por arqueólogos canadenses em 1962 e hoje fazem parte de um parque nacional.

As sucessivas expedições europeias que passaram a vasculhar as terras do Novo Mundo a partir dos últimos anos do século XV, se surpreendiam cada vez mais com a grande quantidade de indígenas que encontravam por todo o continente. Existem diversas fontes históricas que citam números entre 90 e 112,5 milhões de indígenas vivendo em todo o continente americano aos tempos dos descobrimentos. Tzevedan Todorov, um famoso linguista e filósofo búlgaro, trabalha com uma cifra de 70 milhões de habitantes.

Aqui no Brasil, o antropólogo Darcy Ribeiro falava de uma população indígena na casa de 1 milhão de índios – outros historiadores trabalham com números entre 2 e 4,8 milhões de habitantes, vivendo em aldeias que chegavam a abrigar dezenas de milhares de índios. Sustentar populações tão grandes pescando com flechas nos rios ou plantando pequenos roçados de milho e mandioca é algo que beira a utopia. Por questões óbvias de sobrevivência, essas nações indígenas eram obrigadas a se valer das tecnologias disponíveis para aumentar as áreas de produção agrícola e dos campos de caça. Muitos autores chamam isso de “Ecologia do Fogo”, o que nada mais é que a realização de grandes queimadas nas matas.

Ainda não existe um consenso científico sobre a origem das populações indígenas das Américas. As teses mais aceitas falam de grandes ondas migratórias terrestres vindas da Ásia a partir do Estreito de Bering, entre 15 e 20 mil anos atrás. Ondas de imigrantes vindos por mar também podem ter chegado às nossas terras a partir de ilhas do Oceano Pacífico e da África. Existem muitas especulações e poucos dados concretos.

Entre os indígenas, existem várias lendas sobre as suas origens. Uma das mais simpáticas é a dos Hopi, indígenas do Sudoeste dos Estados Unidos – por ordem dos deuses, o texugo e o coelho estenderam uma pele de búfalo sobre o chão e colocaram duas espigas de milho no meio. Esse couro foi enrolado de forma a permitir que o vento circulasse pelo seu interior – o homem e a mulher surgiram dessas espigas de milho. Nas Américas do Norte e Central, o milho foi o alimento mais tradicional das populações indígenas, o que justifica essa simpática lenda da criação dessas populações. Um dos grandes exemplos da  importância da agricultura nativa e da produção do milho é encontrada nos primórdios da colonização americana.

A colonização efetiva dos Estados Unidos começou em 1620, quando desembarcaram os  primeiros colonos que chegaram ao país no lendário navio Mayflower. Sem suprimentos para sobreviver ao inverno, esses primeiros colonos protestantes foram socorridos pelos indígenas locais, que forneceram alimentos – principalmente milho e carne de caça. Esse gesto de boa vontade levou à criação em 1621 do dia de Ação de Graças, Thanksgiving em inglês, o mais importante feriado dos norte-;americanos. Esses colonos observaram que os indígenas tinham enormes plantações em clareiras abertas na mata a partir de grandes queimadas. Conforme a fertilidades dos solos diminuía, os índios se mudavam para outras regiões, onde a mata era incendiada e novos campos agrícolas eram abertos.

Em áreas do interior do continente, os relatos históricos falam de grandes queimadas para a abertura de campos de caça. Nessas áreas, onde surgiam grandes pastagens, gigantescos rebanhos de búfalos ou bisões-americanos (Bison bison) se reproduziam e eram caçados com maior facilidade pelos indígenas de diversas tribos. De acordo com estudos científicos feitos na região das Pradarias, um extenso ecossistema formado por campos limpos na região Central dos Estados Unidos, que lembra muito os Pampas Sul-Americanos, essas áreas foram expandidas artificialmente pelas queimadas dos indígenas ao longo da história.

Na América Central, região que abrigou as grandiosas civilizações Maia, Asteca e Tolteca, grandes trechos da floresta tropical foram queimados para a construção de grandes cidades – algumas delas chegaram a abrigar populações na casa de 1 milhão de habitantes como Tenochtitlan e Copán, e para a formação de campos agrícolas. Quando os primeiros exploradores espanhóis desembarcaram no continente nas primeiras décadas do século XVI, muitas dessas cidades já estavam em ruínas. Uma das hipóteses  científicas para o desparecimento dessas populações foram grandes secas que se abateram sobre a região por causa da degradação ambiental.

Na América do Sul, é claro, essa mesma técnica foi largamente utilizada, tanto por povos de grande desenvolvimento cultural como os Incas das regiões Andinas, quanto por populações nativas de florestas como a Amazônica. Um exemplo dessa herança deixada pelos indígenas brasileiros na agricultura é a coivara (vide foto), o uso do fogo para a preparação dos solos para o plantio de culturas de subsistência. Desde as primeiras décadas da colonização do Brasil, essa técnica foi adotada por todas as populações, de origem europeia, africana e mestiças, e passou a fazer parte dos usos e costumes da população brasileira.

A coivara consiste na derrubada inicial da vegetação arbustiva e arbórea, que é deixada para secar ao sol por algum tempo. Depois de seca, essa vegetação é queimada, onde se faz ao mesmo tempo a limpeza do terreno e uma adubação elementar a partir das cinzas  das madeiras queimadas. Grande parte das queimadas que ocorrem hoje na Amazônia tem origem no uso inadequado da coivara em áreas com vegetação seca por causa do verão amazônico. A coivara foi intensamente utilizada na época do Ciclo do Açúcar, especialmente na Região Nordeste, e contribuiu muito para a devastação de extensas faixas da Mata Atlântica.

Mas foi justamente na região da Floresta Amazônica o local onde grandes queimadas foram feitas pelos indígenas em tempos Pré-Colombianos ou Pré-Cabralinos, com o objetivo de criar grandes campos para o cultivo de alimentos. Os registros “fósseis” dessas grandes queimadas estão por todos os lugares da Amazônia e se apresentam na forma das chamadas “terras pretas de índio“.

Vamos falar disso na nossa próxima postagem.

Para saber mais:

A NOSSA AMAZÔNIA

UM BREVE RESUMO DA HISTÓRIA DA AMAZÔNIA

Amazônia

Nesses últimos dias, a Floresta Amazônica ganhou uma notoriedade jamais vista na história da humanidade. Fotos e vídeos de focos de incêndio na Floresta começaram a se espalhar pela internet e pelas redes de televisão, surgindo imediatamente clamores como “nossa Amazônia está pegando fogo e tudo vai virar cinzas”, “a maior floresta do mundo está em chamas”, ou ainda “o pulmão do mundo está sendo destruído”. Como bom ambientalista e pessoa extremamente preocupada com o futuro do planeta, acho que todos e quaisquer esforços para preservar o meio ambiente e garantir o futuro das novas gerações são bem vindos. Fora isso, o que tenho visto é muita histeria e falta de informações. 

A maior floresta do planeta, para começo de conversa, não é a Floresta Amazônica – muitos poderão ficar decepcionados com essa informação. Essa posição é ocupada pela Taiga, também chamada de Floresta Boreal ou Floresta de Coníferas. Esse bioma circunda toda uma faixa de terras do planeta no Hemisfério Norte, englobando a Noruega, Suécia, Finlândia, Rússia e Norte do Japão. A taiga prossegue do outro lado do Estreito de Bering no Alasca, região que pertence aos Estados Unidos, no Canadá e chega até na Groenlândia, ilha autônoma que pertence à Dinamarca. Somando-se toda a extensão do bioma, chega-se a uma área total de 15 milhões de km² ou três vezes o tamanho da Floresta Amazônica. Se a Floresta Amazônica, como muitos estão dizendo por aí, é o pulmão do mundo e gera 20% do oxigênio do planeta, a Taiga, matematicamente falando, gera outros 60% – quem precisa das algas dos oceanos e dos demais sistemas florestais do mundo para fazer isso

Diferente também do que muita gente por esse mundo afora pode estar pensando, a Amazônia não surgiu do nada nesses últimos poucos dias. A Bacia Amazônica e a Floresta Amazônica são o resultado de um longo processo geológico iniciado há mais de 160 milhões de anos. Estou falando da fragmentação do antigo supercontinente de Gondwana.  

Sem entrarmos em maiores detalhes, a América do Sul, a África, a Índia, a ilha de Madagascar, a Austrália, a Antártida, a Nova Zelândia, a Nova Guiné e a Nova Caledônia, entre outras ilhas menores, formavam, em um passado distante, um único supercontinente conhecido como Gondwana. Há cerca de 160 milhões, o movimento das placas tectônicas, também conhecido como Tectônica Global, começou um processo de fragmentação e movimentação das partes deste supercontinente, formando a configuração atual dos continentes do nosso Planeta Terra. 

O nosso continente, a América do Sul, é formado por uma grande placa tectônica conhecida como Placa Sul-Americana. Para que você entenda o que é uma placa tectônica, peço que imagine uma grande jangada flutuando sobre a água – uma placa tectônica tem um comportamento similar a esta jangada, porém, trata-se de um gigantesco bloco de rocha flutuando sobre o magma, uma camada de rochas derretidas, com temperaturas acima de 1.500 °C, que envolve o núcleo do Planeta. Toda a superfície do Planeta é formada por placas tectônicas – são 15 placas principais e 40 sub-placas menores (as famosas Ilhas Malvinas estão sobre uma sub-placa). Quando teve início o processo de fragmentação e separação de Gondwana, a Placa Sul-Americana começou a se separar lentamente da Placa Africana – a velocidade desta separação é de, aproximadamente, 3 cm a cada ano.  

O avanço da Placa Sul-Americana rumo ao Leste não aconteceu livremente – conforme a América do Sul foi sendo empurrada pelas forças geológicas que a separavam da África, o grande bloco continental foi de encontro às placas tectônicas que estão do outro lado – a Placa de Nazca e a Placa do Pacífico. O choque desses blocos de rochas originou a Cordilheira dos Andes. A Placa Sul-Americana avançou sobre as bordas das Placas de Nazca e do Pacífico, o que provocou a elevação dos terrenos e a formação das montanhas dos Andes. Estudos geológicos indicam que esse evento teve início há cerca de 40 milhões de anos e o soerguimento dos terrenos foi concluído em “apenas” 4 milhões de anos.  

A Cordilheira dos Andes é uma das mais extensas cadeias montanhosas do mundo, se estendendo por quase 8 mil km desde a Terra do Fogo, no extremo Sul do continente, até o Norte da Colômbia, acompanhando toda a costa ocidental da América do Sul. A altitude média das montanhas é de 3.500 metros acima do nível do mar, com alguns picos chegando próximo dos 7 mil metros, como no caso do Aconcágua, na Argentina, que tem uma altitude de 6.962 metros. A largura média da Cordilheira é de 240 km, com alguns pontos na Bolívia e no Peru com largura de 600 km. 

E o que tudo isso tem a ver com os rios da Bacia Amazônica ou com a Floresta Amazônica?  

Antes do “nascimento” da Cordilheira dos Andes, toda a região Norte da América do Sul era uma extensa planície alagável. Em alguns trechos, as águas do Oceano Atlântico (que era bem menor do que nos dias atuais) invadiam as terras e avançavam pelo continente. Os rios que haviam se formado até então corriam no sentido Leste. Conforme os terrenos da região onde encontramos atualmente a Cordilheira dos Andes começaram a ser soerguidos, ou seja, foram sendo elevados pelo choque entre as Placas tectônicas, houve primeiro uma interrupção no fluxo das águas para o Leste e um lento e gradual refluxo no sentido Oeste.  

Alguns dos principais rios formadores da bacia Amazônica com nascentes nos Andes, surgiram junto com a formação da grande cadeia montanhosa. Muitas das nascentes desses rios têm origem no degelo das neves e geleiras que se formam nas grandes altitudes. Estima-se que o rio Amazonas, ou o curso original daquele que viria a ser este rio, se formou há aproximadamente 16 milhões de anos. Esse rio corria na direção Oeste, desaguando nas águas de um grande lago, que se formou numa depressão no centro da região onde encontramos a Floresta Amazônica hoje. Foram necessários 6 milhões de anos para que as águas desse lago lentamente começassem a fluir no sentido Oeste, quando a grande calha do rio Amazonas foi se consolidando e se transformando no ponto central de drenagem de toda a bacia hidrográfica. Entre 6 e 10 milhões de anos atrás, a formação geológica da Cordilheira dos Andes se estabilizou e, desde então, vem mantendo as mesmas características.  

Todas essas longas e intensas modificações geológicas dos solos de toda essa extensa região foram acompanhadas de mudanças climáticas regionais e mundiais. Grandes massas de nuvens carregadas com grandes volumes de água passaram a se concentrar numa faixa ao longo da linha do Equador e transformaram essa região numa das mais chuvosas do mundo. Plantas das mais diferentes espécies passaram a colonizar os solos da região e a se adaptar a um ciclo de vida que se alterna entre um período de muita chuva e a outro de seca. Uma grande diversidade de animais da antiga fauna de Gondwana também passou a viver na região, com muitas espécies evoluindo e se adaptando para uma vida nesse novo ambiente que estava surgindo. 

Por volta de 3 milhões de anos atrás, foi formado o Istmo do Panamá, uma ponte de terra que uniu as Américas do Sul e do Norte (existem diversos estudos diferentes que datam essa formação entre 6 e 20 milhões de anos). Esse caminho permitiu a migração de uma infinidade de espécies animais e vegetais (lembrando aqui que várias espécies de animais são dispersoras de frutos e sementes) do Hemisfério Norte em direção ao Sul.  

Bem mais recentemente, há cerca de 15 mil anos atrás, grupos humanos fizeram esse mesmo caminho e passaram a colonizar a América do Sul, especialmente a região da Amazônia. Esses povos passaram a basear seu estilo de vida, de alimentação, de colheita extrativista e produção agrícola, religioso e familiar no ciclo das águas e nos ritmos da Floresta Amazônica. Outros povos, que se instalaram nas regiões das montanhas e nos altiplanos andinos, desenvolveram culturas e modos de vidas completamente diferentes.   

Com o processo de colonização das Américas, quando povos da Europa e da África passaram a migrar para nossas terras, aqueles que se dirigiram para a região Amazônica acabaram por absorver os costumes e as tradições dos indígenas da Floresta. Mesmo divididos pelas fronteiras artificiais entre os diferentes países, todos os habitantes da Bacia Amazônica têm estilos de vida e hábitos muito próximos.   

A Amazônia é o resultado de toda uma somatória de processos físicos, geológicos, biológicos, meteorológicos e humanos, entre muitos outros, o que levou à formação da maior floresta equatorial do mundo, que ocupa uma área com mais de 5,5 milhões de km². Esse impressionante ecossistema abriga dezenas de milhares de espécies animais, vegetais, bactérias, fungos, etc, grande parte ainda não descrita pela ciência. A rede hidrográfica local, a Bacia Amazônica, é a maior do mundo e concentra cerca de 20% de toda a água doce do planeta. Somente no trecho brasileiro da Floresta Amazônica vive uma população de mais de 20 milhões de pessoas.  

A complexidade da Amazônia é gigantesca e, nem de longe, poderia ser mostrada em postagens nas redes sociais onde se mostram apenas alguns focos de queimadas. 

Para saber mais:

A NOSSA AMAZÔNIA

A “NOSSA” AMAZÔNIA

Floresta Amazônica

Há muitos anos atrás, quando eu ainda trabalhava no setor eletroeletrônico, era muito comum ser destacado para acompanhar executivos estrangeiros em reuniões por várias cidades do Brasil. Uma coisa que sempre me chamava a atenção em estrangeiros que chegavam no Aeroporto Internacional de Cumbica pela primeira vez era um certo espanto com o tamanho das instalações, talvez um tanto grande para um “aeroporto de selva”.

Outra coisa que saltava aos olhos desses “gringos” era o tamanho da cidade de São Paulo – de Cumbica até a sede da empresa na Vila Olímpia, rodávamos mais de 30 km, em grandes avenidas cercadas por arranha-céus. Eu sempre fiquei com a impressão que estes estrangeiros estavam esperando encontrar aqui um aeroporto com pista de terra e um punhado de cabanas com teto de palha, com onças e animais selvagens correndo soltos pelas ruas.

Certa vez, enquanto fazia esse trajeto com um escocês, fui surpreendido como uma pergunta:

– Aquela mata ali é a Floresta Amazônica? – perguntou em inglês apontando para a Serra da Cantareira, uma grande formação vegetal de Mata Atlântica que domina a paisagem da Zona Norte da cidade de São Paulo.

Um dos casos mais interessantes sobre o desconhecimento desses estrangeiros em relação aos nossos ecossistemas se deu com uma executiva mexicana, que eu teria de acompanhar em reuniões em Belo Horizonte e depois no Rio de Janeiro. O espanto da mulher começou ainda no Aeroporto de Congonhas, quando embarcamos num jato fabricado pela Embraer – a mexicana ficou espantada ao saber que os “indígenas brasileiros”, ou seja – nós todos, tínhamos capacidade tecnológica e intelectual para fabricar um avião de passageiros com aquele nível de sofisticação.

Logo após a decolagem, a mexicana viu um grande corpo d’água e olhando para mim perguntou se “aquele era o rio Amazonas”. Para quem não conhece, o Aeroporto de Congonhas fica na Zona Sul da cidade de São Paulo – conforme o sentido da decolagem, o avião vai sobrevoar em poucos minutos a Represa Billings, o maior corpo d’água da Região Metropolitana de São Paulo. Em resposta à “gringa”, expliquei que aquela era apenas uma represa do sistema de abastecimento da cidade e que o rio Amazonas ficava a mais de 4 mil km de distância. Tive de me segurar para não falar que a Floresta Amazônica estava mais perto do México do que de São Paulo.

Essa rápida passagem por lembranças antigas ilustra bem a situação que estamos vivendo nesses últimos dias – de um dia para o outro surgiram ambientalistas e especialistas em Floresta Amazônica por todos os cantos do mundo, cada um falando mais besteira que o outro sobre as queimadas que, tragicamente, cresceram muito do ano passado para cá, e que estão “transformando a Floresta Amazônica em cinzas”. Vamos usar as próximas postagens para contar um pouco sobre o que é essa tão falada Floresta e tentar mostrar o que realmente está acontecendo por lá.

A Bacia Amazônica ocupa uma área com mais de 7 milhões de km², onde se encontram mais 1.000 afluentes – alguns destes afluentes, como o Negro e o Madeira, entram na lista dos 10 maiores rios do mundo. O maior desses rios, o Amazonas, é o segundo maior rio do mundo em extensão (algumas fontes afirmam que é o maior), com quase 7 mil km das nascentes até a foz, e é, de longe, o rio com maior fluxo de água do Planeta – calcula-se que um volume entre 12% e 20% de toda a água doce do mundo flua através dos rios e ares (os chamados “rios voadores”) da Bacia Amazônica e, mais cedo ou mais tarde, essa água irá atingir a calha do rio Amazonas.

 A área ocupada pela Floresta Amazônica é de aproximadamente 5,4 milhões de km², ocupando terras na Bolívia, Peru, Equador, Colômbia, Venezuela, Suriname, Guiana e Guiana Francesa – mais de 60% da Floresta se encontra no Brasil. A área total da Floresta Amazônica equivale à mais da metade de todo o território europeu. Calcula-se que mais de 1/3 de todas as espécies do mundo vivam na Amazônia – somente em espécies de peixes, já se conhecem mais de 2.100 espécies diferentes e, a cada dia, se descobrem novas espécies. 

Diferente do que muita gente imagina, essa floresta não é um mar sem fim de árvores de grande porte – a Floresta Amazônica é formada por um mosaico de sistemas florestais, onde se encontram florestas densas, áreas de várzea que se alternam entre a seca e as enchentes, campos amazônicos, manguezais, vegetação de restinga, entre muitos outros. Uma outra característica da Amazônia que muita gente desconhece é o número total de estações do ano – são apenas duas: inverno, a época em que o clima é quente e chuvoso, e o verão, quando o tempo é quente e seco. Esse é um ponto importante, que ajuda a explicar a grande quantidade de incêndios florestais dessas últimas semanas.

Nos meses de inverno, as chuvas passam a dominar as paisagens e as águas determinam o ritmo da vida em toda a Floresta. Rios começam a receber grandes volumes de água das chuvas através de toda uma infinidade de pequenos igarapés e os caudais começam a transbordar e a invadir extensas regiões até então secas. Essas águas também se infiltram nos solos e elevam dramaticamente o nível do lençol freático, que praticamente chega à superfície. Na região de Porto Velho, em Rondônia, lembro que o nível do lençol freático chegava a cerca de 10 cm da superfície no pico do inverno. Em um dos cemitérios da cidade, citando um exemplo, os sepultamentos feitos nessa época resultavam em, literalmente, mergulhar os caixões dentro da água.

Quando chega a época da seca, o verão, as águas baixam rapidamente. Na mesma cidade de Porto Velho, isto era facilmente observado no rebaixamento do lençol freático. Apesar de estar localizada dentro da maior bacia hidrográfica do mundo, a população da cidade sofre imensamente com a falta de água no inverno. Pelo menos metade da população depende da água de poços para seu abastecimento, que secam rapidamente ao longo do verão. Eu visitei várias casas onde poços com mais de 20 metros de profundidade estavam secos. Igarapés antes caudalosos se transformam em filetes de água e o grande rio Madeira chega a baixar 18 ou 20 metros em questão de semanas.

Em meio a toda essa seca, basta uma pequena fagulha para iniciar uma grande queimada em uma mata ou num campo agrícola, o que é justamente o que está acontecendo hoje por toda a Amazônia – queimadas estão ocorrendo por todos os lados, o que acabou provocando uma verdadeira histeria em todo o mundo. Queimadas – acidentais ou provocadas intencionalmente, acontecem todos os anos na Amazônia. É claro que, neste período da seca, muita gente se aproveita do clima para fazer queimadas para a abertura de clareiras na mata, onde iniciarão a formação de pastagens para a criação de gado ou formação de campos agrícolas. A grande maioria dessas queimadas é ilegal e, muitas vezes, ocorrem em áreas públicas, terras indígenas ou em reservas ambientais – aqui, o que falta é fiscalização por parte dos poderes públicos: Municipal, Estadual e Federal.

Porém, muito longe do que muitos tem dito, a maior parte da Floresta Amazônica vai muito bem , obrigado, e está verdejante como sempre esteve. Afirmar, como muitos tem afirmado, que a Floresta está virando cinzas, é o mais completo exagero. O que está faltando mesmo é muita fiscalização e punição dos infratores por parte do lado brasileiro e ajuda séria e responsável de todos aqueles países que realmente estão preocupados em proteger e preservar a Amazônia.

Agora, o que eu acho inaceitável é a conversa de muito estrangeiro falando da “nossa” Amazônia e tentando propor a criação de uma área internacional na região com o objetivo de “proteger a floresta”, algo que atinge em cheio a soberania de todos os países Amazônicos. Nós brasileiros e vizinhos sul americanos temos maturidade suficiente para cuidar de nosso “quintal”, sem depender das boas intenções de antigas metrópoles coloniais, que expropriaram povos e países por todo o mundo.

Para saber mais:

A NOSSA AMAZÔNIA

A INSUSTENTÁVEL CRIAÇÃO DE SALMÕES EM CATIVEIRO NA PATAGÔNIA CHILENA

Salmoneras no Chile

Nos últimos dias, as questões ligadas às queimadas e à destruição da Floresta Amazônica ganharam, um tanto que artificialmente, uma visibilidade nunca vista antes. A questão é bastante séria e, frequentemente, tratamos desses temas aqui neste blog. A recente assinatura de um Protocolo de intenções para uma futura associação entre o Mercosul e a União Europeia, algo que assusta produtores agrícolas europeus altamente subsidiados, e problemas políticos internos em países como a França, ajudaram a acentuar as cores dessa tragédia. A partir da próxima postagem, vamos falar disso. 

Antes, gostaria de encerrar essa sequência de postagens, onde tratamos dos diversos impactos ambientais criados pela poluição, construção de barragens, introdução de espécies exóticas, entre outros problemas, e que tem afetado negativamente as espécies da fauna aquática em diversos corpos d’água por todo o mundo. Na última postagem, falamos de um desses casos – a invasão de rios da Patagônia argentina por trutas e salmões exóticos, algo que está destruindo a fauna aquática nativa. Do outro lado da Cordilheira dos Andes, na Patagônia chilena, é a criação de salmões em cativeiro a grande causadora de impactos ambientais. Como esses dois casos têm ligações, vamos falar um pouco sobre isso. 

O Chile é o segundo maior produtor mundial de salmões em cativeiro, atendendo cerca de 1/3 da demanda mundial dessa proteína. A cada ano, cerca de 100 milhões de salmões são exportados pelo país, atendendo principalmente os mercados do Brasil, dos Estados Unidos e do Japão. Essa produção gera receitas da ordem de US$ 5 bilhões, que só ficam atrás das vendas de metais como o cobre e de frutas. A atividade emprega atualmente cerca de 30 mil pessoas no país, mas já chegou a empregar 50 mil pessoas anos atrás.  

A Noruega é a maior produtora mundial de salmões em cativeiro e empresas desse país dominam essa produção no Chile. A indústria “salmonera” (termo em espanhol usado no Chile) se concentra no litoral Sul do país, região que guarda muitas semelhanças físicas e climáticas com a Noruega. Graças a tamanhas similaridades, seria de se esperar grandes semelhanças entre os métodos de criação dos peixes nos dois países, algo que infelizmente não acontece. Enquanto essa produção é considerada sustentável na Noruega, no Chile ela vem sendo um verdadeiro desastre ambiental.

O processo começa com a reprodução dos alevinos em cativeiro. As ovas fertilizadas dos peixes são colocadas em tanques de água doce em depósitos climatizados. Após a eclosão das ovas, os alevinos são transferidos para tanques maiores com água corrente, onde os animais passarão os primeiros meses de suas vidas vivendo numa espécie de primavera artificial, onde a temperatura e a iluminação são rigorosamente controladas, simulando as condições ambientais dos rios onde a espécie se reproduz. No Chile, os problemas começam aqui – depois de usada, a água desses tanques recebe um “tratamento” a base de grandes quantidades de cloro, sendo despejada diretamente no oceano, o que prejudica uma infinidade de espécies da fauna aquática marinha. 

Quando os pequenos salmões atingem a “adolescência”, eles são transferidos para jaulas flutuantes instaladas em fiordes, grandes gargantas estreitas entre montanhas, onde as águas do oceano se espremem como num rio. Na Noruega, essas jaulas atingem uma profundidade de até 30 metros e tem capacidade para abrigar até 100 mil salmões. Atendendo à legislação ambiental norueguesa, essas jaulas são bastante espaçadas e há um limite para o número máximo de salmões criados em um único fiorde. 

No Chile, onde as regras ambientais são bem mais flexíveis do que na Noruega, as jaulas flutuantes podem atingir uma profundidade de até 60 metros, onde chegam a viver mais de 200 mil salmões. Também são comuns as salmoneras onde são criados mais de 1 milhão de peixes em um único trecho de um fiorde. Essas características particulares da produção, associadas aos baixos salários pagos à mão-de-obra local, tornam os custos de produção muito mais baixos no Chile e os lucros para as empresas muito maiores. Os impactos ao meio ambiente, é claro, são gigantescos. 

A fuga de grandes quantidades de salmões desses tanques é um desses problemas. Grandes tempestades que se formam ao longo do litoral, uso de materiais de baixa qualidade para a construção das jaulas e até os ataques de lobos marinhos contra as telas para capturar os salmões, estão entre as principais causas destas fugas. Dados oficias indicam que mais de 3,2 milhões de salmões fugiram desde 2010 e passaram a viver soltos no meio ambiente, competindo com as espécies locais.  

Aqui há um detalhe interessante – um pescador local que capturar qualquer um desses salmões pode ir preso por roubo, uma vez que os peixes são propriedade das salmoneras. Os lobos marinhos que atacam as jaulas também sofrem as consequências – esses animais, que são protegidos pelas leis ambientais do Chile, podem ser abatidos a tiros pelos funcionários das empresas ao atacarem as jaulas. 

Os salmões selvagens, que passam a maior parte de suas vidas nos oceanos, são peixes onívoros que se alimentam de uma enorme gama de peixes, crustáceos e moluscos. Essa dieta incluiu algumas espécies marinhas ricas em betacaroteno, um corante natural que dá a cor rosada na carne dos salmões. Na criação em cativeiro, os salmões recebem uma ração feita a partir da carne e do óleo de peixes, onde é agregada uma tintura artificial, e não muito saudável, que simula o betacaroteno e tinge a carne desses peixes.  

Cerca de 90% de toda a produção pesqueira do Chile é usada para a produção de ração para os salmões criados em cativeiro, numa proporção de 5 kg de peixes para cada 1 kg de salmão produzido. Os mercados do país, que antes apresentavam inúmeras espécies de peixes para a venda à população, agora estão abarrotados de salmões. 

As fezes de toda essa grande quantidade de salmões criados nas jaulas, contaminadas por esses produtos químicos, se amontoam sobre o fundo oceânico e sufocam toda a fauna bentônica, a fonte primária de alimentos das espécies nativas. Uma outra fonte de problemas ambientais são as enormes quantidades de antibióticos que são aplicados nos salmões para combater a bactéria Piscirickettsia salmonis, causadora de doenças nos peixes do Chile e que não é encontrada em outros países produtores. Em 2010 foram utilizadas cerca de 350 toneladas de antibióticos pelas salmoneras, um volume 1.500 vezes maior do que o utilizado na produção de salmões na Noruega

Mesmo com o uso dessas grandes quantidades de antibióticos ainda existem casos de grandes mortandades de peixes por causa dessa doença. De acordo com a legislação ambiental do Chile, os peixes mortos devem ser recolhidos e descartados de forma segura. No documentário Salmonopoly, produzido em 2016 e que trata dos impactos ambientais da produção de salmão em cativeiro no Chile, há uma sequência onde os cinegrafistas seguiram um caminhão carregado com esses peixes mortos e descobriram que o destino final era uma fábrica de rações para os salmões. Questionados, os responsáveis pela fábrica alegaram que o calor usado no processo de produção mata toda e qualquer bactéria.

A criação de salmões em cativeiro no Chile teve início na década de 1980 e, de lá para cá, os pescadores tradicionais do Sul do país assistiram ao desaparecimento de inúmeras espécies marinhas típicas da região. Além dessa visível redução na variedade de espécies, também houve uma grande redução nos estoques pesqueiros. Até mesmo a coleta de mariscos, uma atividade ancestral entre as populações indígenas das ilhas da região, está desaparecendo. As condições de trabalho para quem foi obrigado a abandonar a pesca e ir trabalhar nas salmoneras também não são as melhores: baixos salários, equipamento de segurança de baixa qualidade e a falta de assistência médica em caso de acidentes lideram as reclamações. Mais de 100 mergulhadores, que realizam a manutenção das jaulas, já morreram em acidentes de trabalho nos últimos anos.

Para finalizr – a maior indústria desse segmento no Chile é a norueguesa Marine Harvest, que também é a maior empresa do setor no mundo. Essa empresa, que usa métodos de produção completamente diferentes na Noruega e no Chile, é parceira do WWF – World Wide Fund for Nature, uma das maiores ONGs – Organizações Não Governamentais, ambientais do mundo, num programa de produção sustentável de salmões em cativeiro. A ONG recebe doações de cerca de US$ 100 mil por ano da empresa, que, em troca, tem o direito de usar o logotipo com o panda da WWF nas embalagens dos salmões que comercializa, onde ostenta orgulhosamente a marca de “produto sustentável”. 

AS PAISAGENS GLACIAIS DA PATAGÔNIA ARGENTINA E AS AMEAÇAS PROVOCADAS PELAS TRUTAS E SALMÕES INVASORES

Urso

Na nossa última postagem, interrompemos uma sequência de temas ligados aos impactos da degradação ambiental dos recursos hídricos sobre a biodiversidade aquática e falamos da trágica “morte” de uma geleira na Islândia. Vou usar essa tragédia ambiental como gancho para uma outra, que está acontecendo aqui deste nosso lado do mundo, mas que guarda algumas similaridades importantes – a introdução de peixes Boreais em águas de terras Austrais.

As paisagens da Islândia apresentam vales verdejantes onde correm cursos com água fria, montanhas com geleiras nos cumes e, graças à localização particular do país no ponto exato do encontro de duas grandes placas tectônicas, vulcões. Esse cenário, a exceção dos vulcões, é comum em terras de alta latitude no Hemisfério Norte e poderá ser visto no Canadá e no Alasca (que pertence aos Estados Unidos), na Europa – principalmente na Escandinávia, e na Ásia. As características físicas e climáticas dessas regiões culminaram na evolução e adaptação das espécies a um meio ambiente bastante específico.

Trutas e salmões são espécies de peixes que pertencem a uma mesma grande família e são comuns nessas regiões. Uma característica comum nessas espécies são as impressionantes migrações que realizam rumo às cabeceiras dos rios na época da reprodução, onde são obrigados a lutar contra as fortes correntezas e quedas d’água. Animais como ursos, lobos, aves e também seres humanos, adaptaram seus ciclos de vida às migrações desses peixes, que representam um período de fartura de alimentos e de acúmulo de reservas de energia para os difíceis tempos do inverno (vide foto). A prática da pesca esportiva dessas espécies surgiu como uma consequência dessa convivência entre presas e predadores.

No Hemisfério Sul não existem tantos territórios nessas mesmas latitudes – se você consultar um mapa mundi, verá que as águas dos oceanos predominam por aqui. Mas existem alguns territórios no Sul da América do Sul, na Austrália e na Nova Zelândia, que apresentam exatamente essas mesmas paisagens do Norte do Hemisfério Norte. A semelhança é tão grande que até mesmo a famosa Aurora Boreal, um fenômeno de luzes atmosféricas criadas pelo magnetismo terrestre em regiões próximas do Círculo Polar Ártico, tem sua equivalente no Hemisfério Sul – a Aurora Austral.

Com a existência de paisagens tão parecidas com as do distante Norte, muita gente nesses territórios aqui do Sul acabou não resistindo à tentação e tudo fizeram para introduzir espécies de peixes como as trutas e salmões nas águas frias de rios e lagos Austrais. O raciocínio era simples – pescadores do Hemisfério Norte ganhariam uma opção de pesca no Hemisfério Sul: os mesmos cenários, o mesmo clima e os mesmos peixes. Em tese, nada poderia dar errado. Infelizmente, muita coisa deu errado.

A Patagônia argentina é um desses territórios Austrais alterados artificialmente e onde os problemas ambientais decorrentes da introdução dessas espécies exóticas crescem sem parar. Trutas e salmões capturados em rios de países do Hemisfério Norte passaram a ser introduzidos em rios e lagos das províncias de Rio Negro, Neuquén, Chubut, Santa Cruz e Terra do Fogo, todas na região Sul da Argentina, ainda no início do século XX. Seguindo o raciocínio que citei, as autoridades dessas Províncias imaginavam estar criando um cenário perfeito para o desenvolvimento da pesca esportiva e assim poderiam atrair milhares de pescadores de países do Hemisfério Norte.

Como todos devem lembrar, as estações do ano são invertidas nos dois Hemisférios – quando é inverno no Norte, vivemos o verão aqui no Sul. Esse seria um apelo irresistível a todos os endinheirados amantes da pesca esportiva, que passariam a contar com duas temporadas de pesca a cada ano. Regiões do Sul da Austrália e Nova Zelândia seguiram essa mesma linha de raciocínio e fizeram exatamente a mesma coisa.

De acordo com estudos realizados por órgão ambientais da Argentina, as trutas e os salmões se adaptaram perfeitamente aos corpos d’água locais e passaram a representar uma grande ameaça a toda uma série de espécies autóctones. Os estudos indicam que houve redução nas populações de rãs e comunidades betônicas (algas, vermes e pequenos crustáceos que colonizam o fundo dos rios e lagos), assim como de espécies de crustáceos e peixes. A truta-crioula (Percichthys trucha) e o peixe-rei-patagônico (Odontesthes microlepidotus) são as espécies de peixes locais mais ameaçadas.

Existe aqui um detalhe importante e que merece um comentário: a convergência evolutiva ou evolução convergente. Esse é um interessante conceito da biologia que explica que espécies diferentes de seres vivos evoluem de forma semelhante em ambientes iguais. A truta-arco-íris (Oncorhynchus mykiss), citando um exemplo, evoluiu em rios turbulentos de águas frias da América do Norte. Vivendo em rios da Patagônia com essas mesmas característica, a truta-crioula, que não tem relações familiares com as trutas-arco-íris, desenvolveram exatamente o mesmo comportamento e ocupam o mesmo nicho ecológico.

Um pescador norte-americano ou canadense se sentiria em casa pescando uma esperta e brigadora truta-crioula – talvez ele nem percebesse que está bem longe do seu país durante uma pescaria. Com os salmões acontece a mesma coisa – existem espécies locais praticamente iguais e cito como exemplo o dourado (Salminus brasiliensis), um dos peixes mais amados pelos praticantes de pesca esportiva aqui na América do Sul. Graças a existência desses peixes autóctones, a introdução de espécies exóticas seria absolutamente desnecessária para o desenvolvimento da pesca esportiva por aqui. Infelizmente, depois que a “Caixa de Pandora” foi aberta e os males (ou peixes) foram liberados, não há muito mais o que se fazer.

De acordo com a UICN – União Internacional para a Conservação da Natureza, as trutas são uma das espécies de peixes invasores mais impactantes de todo o mundo. Extremamente fortes e adaptáveis, as trutas ocupam nichos ecológicos de espécies autóctones, passando a competir com vantagem nas disputas por espaços e alimentos. Só que as trutas invasoras vão além – elas também podem predar ovos e filhotes de pássaros, algo que as trutas-crioulas nunca fizeram. Na Patagônia argentina, o macá tobiano (Podiceps gallardoi), uma espécie ave endêmica que só foi descrita pela ciência em 1979, está em estado crítico por causa das trutas-arco-íris.

De acordo com informações de organizações argentinas que trabalham para a preservação de aves, existem entre 3 e 5 mil exemplares de macás distribuídas em 130 lagoas da estepe patagônica na Província de Santa Cruz. Os macás constroem instintivamente seus ninhos em moitas de vegetação rasteira ao lado de lagos – essas aves não possuem uma “programação” em seu DNA que lhes alertem do comportamento predatório de trutas na sua vizinhança. As trutas-arco-íris sentem o cheiro dos ovos e dos filhotes e dão saltos para fora d’água, investindo diretamente contra os ninhos e assim conseguem um apetitoso lanche. É esse comportamento das trutas que está levando os macás à beira da extinção.

Para as pessoas que tiveram um grande trabalho para importar e introduzir essas espécies de peixes exóticos em rios e lagos da Patagônia há mais de um século, essa atitude representaria no futuro uma grande fonte de receitas externas para seu país e suas Províncias. O tempo provou que, na verdade, elas estavam ligando uma bomba relógio, que causaria terríveis impactos ao meio ambiente – uma grande lição ecológica a ser aprendida por muita gente nos dias atuais.

A “MORTE” DA GELEIRA OKJÖKULL NA ISLÂNDIA

Reykjavik

Na postagem de hoje, gostaria de tecer alguns comentários sobre uma notícia que foi veiculada discretamente pela imprensa, informação essa que sem uma devida contextualização perde muito da sua real importância. Trata-se do lamentável derretimento de uma geleira na Islândia, um evento que terá profundas repercussões ao longo das próximas décadas.

Neste último dia 18 de agosto, foi descerrada uma placa em homenagem ao desaparecimento da Geleira Okjökull, na Islândia, considerada a primeira geleira batizada do país a derreter em função do aquecimento global. Em 1901, essa geleira apresentava uma massa de gelo que ocupava uma área de 38 km² – em 1° de agosto desse ano, a massa de gelo era inferior a 1 km². A Islândia, nome que significa literalmente “Terra do gelo”, tem cerca de 400 geleiras e, segundo as projeções científicas, dentro de 200 anos todas elas terão desaparecido por causa do aquecimento da temperatura do planeta.

O texto dessa placa traz um importante alerta para toda a humanidade:

“Okjökull é a primeira geleira islandesa a perder seu status de geleira. ‘Nos próximos 200 anos todas as nossas geleiras devem seguir o mesmo caminho. Esse monumento atesta que nós sabemos o que está acontecendo e o que deve ser feito. Só vocês sabem se fizemos o que deveria ter sido feito”. 

Esse não foi um caso isolado – uma outra grande geleira do país que está apresentando um derretimento acelerado e preocupante é Vatnajökull, a maior massa de gelo de toda a Europa. O grande volume de água resultante do derretimento está carregando grandes quantidades de sedimentos na direção de fiordes do Sul do país, o que tem prejudicado o deslocamento de navios pesqueiros entre os portos e as águas do Oceano Atlântico. A exportação de peixes, principalmente da espécie capelim, representa quase 40% das receitas externas do país – uma crise nesse setor pode levar a Islândia rapidamente para uma recessão.

O capelim ou caplin (Mallotus villosus) é um peixe encontrado no Norte dos Oceanos Pacífico e Atlântico, além das águas do Círculo Polar Ártico, onde a espécie se alimenta de krill, um camarão microscópico. O capelim é muito valorizado por causa de suas ovas – o masago, que são usadas, principalmente no Japão, como coberturas de sushis e sashimis. Essa espécie de peixe era abundante nas águas frias ao redor da Islândia. O aumento da temperatura das correntes marinhas que chegam até o país, que muito provavelmente está acontecendo por causa do aquecimento global, tem levado a uma migração dos cardumes de capelim para águas mais ao Norte, o que tem encarecido as operações de pesca dos barcos islandeses. Outras espécies de peixes importantes para a Islândia são o bacalhau e o arenque.

A Islândia é um país insular localizado no Norte do Oceano Atlântico, que ocupa uma superfície de apenas 102 mil km² (equivalente ao Estado de Santa Catarina) e que possui uma população de pouco mais de 300 mil habitantes. Diferente de outros países europeus, a Islândia não possui cidades monumentais com construções imponentes ou uma culinária maravilhosa – a comida do país, aliás, é considerada péssima pela maioria dos visitantes. O charme da Islândia sempre esteve associado à sua natureza gelada e aos seus vulcões ativos. Cerca de 10% da superfície do país é ocupada por geleiras, que formam as paisagens de “cartão-postal” e determinam a dinâmica das águas da Islândia. O país está localizado exatamente no encontro de duas grandes placas tectônicas – a Norte Americana e a Euro-asiática, o que resulta em uma intensa atividade vulcânica.

Em 2010, um dos maiores vulcões da Islândia, o Eyjafjallajökull entrou em uma fase de intensa atividade, lançando grandes quantidades de cinzas na atmosfera. Isso forçou a paralisação do tráfego aéreo de toda a Europa por várias semanas e mostrou toda a força da natureza no pequeno país do “gelo e do fogo”. Naquela ocasião, eu fiquei preso num aeroporto da Espanha por quase dois dias esperando a chegada de um voo de conexão. Centenas de milhares de pessoas em aeroportos de toda a Europa e de vários países ao redor do mundo enfrentaram uma situação de completo caos, onde ninguém conseguia respostas ou qualquer atitude concreta das companhias aéreas.

Uma das mais importantes fontes de divisas da Islândia é o turismo, atividade que poderá ser muito prejudicada em função das mudanças climáticas. O país recebe mais de 2 milhões de visitantes a cada ano, que buscam as paisagens glaciais das suas geleiras, as piscinas naturais com suas águas termais e os vulcões. A capital do país, Reykjavik (vide foto), vem apresentando temperaturas cada vez mais altas ao longo dos verões nos últimos anos, algo que faz os banhos nas águas termais “perderem a graça” para muitos turistas. Já o derretimento acelerado de algumas geleiras, que além de comprometer a tradicional beleza das paisagens, tem reduzido os caudais de muitos rios e prejudicado atividades como canoagem, rafting e a pesca esportiva.

As mudanças climáticas também poderão desencadear uma grande crise energética na Islândia. A energia elétrica do país vem, predominantemente, de usinas hidrelétricas e centrais de energia geotérmica, onde a lava dos vulcões é usada para criar grandes quantidades de vapor e movimentam turbinas de geração de energia. Nesses dois casos, há necessidade de grandes volumes de água, que na Islândia tem como fontes as geleiras, que derretem lentamente e formam os caudais dos rios. Com o aumento gradual das temperaturas do planeta, os invernos no país estão ficando menos rigorosos e com precipitações menores de neve a cada ano – as geleiras perdem massa no verão e não as recuperam no inverno, ficando menores a cada ano que passa.

O derretimento de geleiras por causa do aquecimento global é atualmente um problema mundial e bilhões de pessoas correm o risco de perder suas principais fontes de água dentro de poucas décadas. Na Ásia, o derretimento de geleiras das Montanhas Himalaias poderá comprometer as nascentes de rios importantes como o Indo, GangesBramaputra, Irauádi, Amu Daria e Syr Daria, Yang-Tsé (Rio Azul), Huang-Ho (Rio Amarelo) e o Mekong. Cerca de 2 bilhões de pessoas na Ásia dependem da água desses rios.

Aqui na América do Sul, geleiras dos Andes estão desparecendo a uma velocidade impressionante – das 10 geleiras que existiam na Venezuela em 1952, só restam 5; na Colômbia, 8 geleiras desapareceram restando apenas 6. No Equador, as geleiras dos vulcões Antizana, Cotopaxi e Chimborazo perderam entre 42 e 60% de suas massas. Na Cordillera Blanca no Peru, a cadeia de montanhas em área tropical com a maior concentração de geleiras do mundo, as 722 geleiras existentes sofreram uma redução de 22,4% desde 1970; na Bolívia, as geleiras de Charquini perderam entre 65 e 78% das suas áreas nas últimas décadas.

Na distante Islândia, a velocidade dessas mudanças climáticas é muito maior e seus efeitos mais devastadores. A “morte” da Geleira Okjökull é só um indício do que virá…

 

AS QUEIMADAS NA AMAZÔNIA, OS VENTOS E A “CHUVA NEGRA” NA CIDADE DE SÃO PAULO

Chuva Negra em São Paulo

Na tarde de ontem, dia 19/08/2019, saí para fazer um “programa” que tenho feito com frequência cada vez menor – caminhar pelas ruas da vizinhança. Entre as diversas opções de “caminho da roça”, tenho roteiros entre 3 e 8 km. A tarde de ontem estava muito fria e um pouco úmida, ideal para uma caminhada um pouco mais forte. Saí de casa por volta das 15:00 horas e cerca de meia hora depois já tinha retornado – nesse curto espaço de tempo, o céu ficou totalmente escuro (vide foto) e uma atípica tempestade de fim de tarde, comuns na época do nosso verão chuvoso, ameaçava desabar a qualquer momento sobre a Pauliceia.

Por volta das 16:00 horas começou a chover, mas com uma intensidade muito menor do que se poderia imaginar. Em muitas regiões da cidade, a água da chuva que caiu tinha uma cor escura, que lembrava um chá mate ou um café, e com um cheiro de fumaça. Entre todas as “loucuras” climáticas que assolam a cidade de São Paulo, onde um único dia pode apresentar características das quatro estações do ano, essa foi uma das maiores que já presenciei.

No início da noite, as informações meteorológicas dos telejornais começaram a explicar o estranho fenômeno: uma frente fria que chegou pelo Oceano Atlântico trouxe fortes ventos com umidade para a região do Planalto de Piratininga. Esses ventos úmidos se encontraram com fortes correntes de vento seco vindas do Sudoeste da Amazônia, da Bolívia e do Paraguai, regiões que estão ardendo com grandes focos de queimadas. Foi a fuligem e as cinzas dessas queimadas que se precipitou junto com as águas das chuvas sobre a cidade, criando essa verdadeira “chuva negra” paulistana.

Num cenário de profundos embates entre as autoridades do Governo Federal, capitaneados pelo Presidente Jair Bolsonaro, e dirigentes de países europeus como França, Alemanha e Noruega, sobre o aumento dos desmatamentos na Floresta Amazônica, o Brasil está vivendo, coincidência ou não, a maior onda de queimadas dos últimos cinco anos. Segundo dados do INPE – Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais, dados esses que vêm sendo questionados pelas “otoridades”, já foram registrados mais de 71 mil focos de incêndios no período entre 1° de janeiro e 18 de agosto deste ano. Esse volume de queimadas é 82% maior do que foi registrado no mesmo período de 2018, quando foram detectados 39.194 focos de incêndio. A última vez que um volume semelhante havia sido registrado foi em 2016, quando ocorreram 66.622 queimadas.

Um exemplo visível da intensidade das queimadas nessa temporada pode ser visto na cidade de Porto Velho, capital do Estado de Rondônia, uma das regiões mais afetadas pela onda de incêndios. Uma grossa camada de fumaça tem encoberto a cidade nas últimas semanas, o que, inclusive, já levou ao cancelamento de diversos voos programados para o aeroporto local, por absoluta falta de visibilidade. Na primeira vez que desembarquei em Porto Velho, cidade onde trabalhei entre 2009 e 2010, lembro de ter sentido o forte cheiro dessas queimadas anuais assim que o avião abriu a porta. Logo depois, conversando com moradores locais, fiquei sabendo que isso era comum na época da seca, quando extensas áreas eram queimadas propositalmente para a abertura de novos campos agrícolas e também por incêndios que surgiam naturalmente nas terras com vegetação seca dos Campos Amazônicos.

Além de Rondônia, essa onda de incêndios também atinge as regiões amazônicas do Norte de Mato Grosso, do Acre e também da Bolívia, país que, talvez para surpresa de muitos “gringos”, também tem grande parte de seu território coberto pela Floresta Amazônica, onde também ocorrem grandes desmatamentos. Essa grande onda de queimadas também está atingindo extensas áreas dos domínios do Cerrado por toda a Região Centro-Oeste, além do Pantanal Mato-grossense e de trechos do Chaco na Bolívia e no Paraguai.

Nos últimos dias, os sistemas de ventos que circulam nas camadas mais altas da atmosfera (entre 1.000 e 5.000 metros) mudaram de direção e passaram a empurrar toda a fumaça produzida por essas queimadas na direção dos Estados de Mato Grosso do Sul, Paraná e São Paulo, onde já existe uma grande Região Metropolitana especialista na produção de muita fumaça e poluição. Foi justamente a somatória de todas essas “fumaças” a principal causadora da “chuva negra” da tarde de ontem, que pelo andar da carruagem e da devastação ambiental da Amazônia, poderá entrar definitivamente para o calendário de eventos climáticos da cidade.

Ao longo dos nossos primeiros 350 anos de história, ora como Colônia de Portugal e depois como reino e república independente, a Região Amazônica esteve relativamente isolada do resto do país. A principal razão disso era o sistema de ventos do Oceano Atlântico, que tornava praticamente impossível a navegação a vela direta entre as regiões mais povoadas do país no litoral do Nordeste e do Sudeste e a Região Amazônica.

Um grande navio movido a vela que saísse de Salvador com destino à cidade de Belém do Pará, por exemplo, praticamente teria de fazer uma viagem até Portugal, para só depois retornar na direção da Amazônia. Esse quadro de isolamento só mudou por volta do ano de 1850, quando a navegação com barcos a vapor foi introduzida na Bacia Amazônica por causa da exploração do látex, a matéria prima da borracha. Foi assim que teve início um contínuo ciclo de exploração, que em décadas mais recentes assumiu uma face de destruição da Floresta Amazônica.

Diferentemente do Ciclo da Borracha que, apesar da exploração massiva da mão-de-obra dos seringueiros nordestinos, deixou a Floresta praticamente intocada, o avanço recente da “civilização” contra a Amazônia tem criado verdadeiros “desertos” equatoriais. O garimpo, a mineração e, particularmente, a derrubada da mata para a expansão das frentes agrícolas e de criação de gado, estão repetindo os mesmos processos que levaram à destruição da Mata Atlântica e de partes bastante significativas da Caatinga e do Cerrado. Essa destruição está baseada num antigo paradigma da humanidade, que surgiu após a invenção da agricultura há cerca de 12 mil anos – é preciso sobrepujar o meio natural para a criação da “civilização”. A marcha contínua da “civilização”, desde então, vem destruindo ecossistemas em todo o mundo – a Amazônia é a “bola” da vez.

Os constantes embates midiáticos que estamos assistindo nesses últimos tempos entre nacionalistas brasileiros, preocupados em defender a soberania e as “nossas” riquezas naturais, e dirigentes hipócritas de muitos países desenvolvidos, que destruíram grande parte dos seus recursos naturais para chegar ao tão propalado desenvolvimento, não vai levar a lugar nenhum. O Brasil e os demais países da Região Amazônica precisam encontrar mecanismos e tecnologias que permitam uma exploração racional e sustentável da maior floresta equatorial do mundo. Os países do chamado Mundo Desenvolvido, se quiserem ajudar de verdade, precisam criar sistemas eficientes que inibam a compra de madeiras, minerais e demais produtos extraídos e/ou produzidos de forma insustentável na Amazônia.

Enquanto esse equilíbrio entre os dois lados do problema não for encontrado, vamos continuar nessa troca de insultos, palavras vazias e até afirmações ignorantes, especialmente aqui do nosso lado. O sol tem de nascer e brilhar para todos! Mas, parafraseando um velho ditado: tem gente que está tentando cobrir o sol com uma peneira. E se não conseguem fazê-lo dessa maneira, tentam com a grossa camada de fumaça das queimadas.

Para saber mais:

A NOSSA AMAZÔNIA

OS SAPOS-CURURU INVADEM A AUSTRÁLIA

Sapo-cururu

O sapo-cururu (Rhinella marina), conhecido em muitas regiões como sapo-boi, sapo-jururu ou simplesmente cururu, é uma espécie de sapo encontrada em extensas áreas das Américas Central e do Sul, sendo muito comum em muitos lugares do Brasil. É uma espécie robusta, que se adapta aos mais diferentes climas, ecossistemas e recursos alimentares. Em média, os sapos-cururu têm um tamanho entre 10 e 15 cm, mas já foram encontrados exemplares com 38 cm de comprimento. É uma espécie icônica, que está presente no folclore de muitas regiões brasileiras. Vejam como exemplo essa poesia escrita por Manuel Bandeira, um poeta que gostava muito de sapos: 

Sapo-cururu 
Da beira do rio. 
Oh que sapo gordo! 
Oh que sapo feio! 
 
Sapo-cururu 
Da beira do rio. 
Quando o sapo coaxa, 
Povoléu tem frio. 
 
Que sapo mais danado, 
Ó maninha, ó maninha! 
Sapo-cururu é o bicho 
Pra comer de sobreposse. 
Sapo-cururu 
Da barriga inchada. 
Vôte! Brinca com ele… 
Sapo-cururu é senador da República. 

Entre os segredos do sucesso da distribuição ambiental dos sapos-cururu estão a alta fertilidade das fêmeas, que produzem grandes quantidades de ovos, e as grandes glândulas de veneno que o animal possui sob a mandíbula, o que o torna uma presa altamente tóxica para a maioria dos predadores. Jacarés-do-papo-amarelo e algumas espécies de cobras e aves estão entre os poucos predadores que conseguem tolerar o veneno dos sapos dessa espécie. 

A fama de robustez e de alta capacidade de adaptação a novos ecossistemas levaram à introdução dos sapos-cururus em algumas ilhas oceânicas pelo mundo afora, especialmente para o combate de pragas em plantações de cana-de-açúcar. A espécie é chamada em espanhol de sapo de caña e em inglês de cane toad, nomes que podem ser traduzidos nos dois casos como “sapo-da-cana” e que demonstram a aplicação da espécie nessa função. Porém, como não é muito difícil de se imaginar, os impactos ambientais criados pela introdução dessa espécie invasora em novos ambientes, onde não existem predadores naturais, e que resultaram em grandes desastres ecológicos. 

Um dos casos mais impressionantes de invasão de ecossistemas pelos sapos-cururu é a Austrália, onde esses animais são considerados uma verdadeira praga. Cálculos feitos por entidades ambientais do país calculam que já existem mais de 200 milhões de sapos-cururu na Austrália e a espécie não para de invadir ecossistemas em todas as regiões australianas. De acordo com estudos feitos através do monitoramento de sapos que receberam pequenos radiotransmissores, esses animais conseguem percorrer até 2 km por dia em suas migrações pelo interior do país. 

Os problemas não param por aí. Estudando a rápida propagação da espécie por todo o Continente Australiano, os cientistas descobriram que os sapos-cururu passaram por adaptações físicas e aumentaram a sua velocidade de propagação em cinco vezes ao longo dos últimos 60 anos. Estudos anatômicos comparativos com espécimes preservados em museus demonstraram que as patas traseiras dos sapos-cururu tiveram um aumento de 25% em seu comprimento, aumentando proporcionalmente a força muscular e a velocidade dos animais – os sapos se transformaram em “pequenos cangurus” e passaram a usar essa vantagem “evolutiva” na sua conquista do Outback australiano. 

Os sapos-cururu foram introduzidos na Austrália em 1933, com a missão de combater uma praga de besouros-da-cana (Dermolepida albohirtum) que infestava os canaviais de algumas regiões do país. Um lote de cento e dois animais foi trazido das Ilhas do Havaí, onde a espécie havia sido introduzida décadas antes para realizar o controle biológico de insetos que atacavam os canaviais locais. Como o território havaiano é muito pequeno, os impactos ambientais que a espécie invasora provocava não eram tão evidentes e os “serviços” de controle biológico pareciam ser bastante satisfatórios. Naquele momento, fazia sentido introduzir a espécie nos canaviais da Austrália. 

Infelizmente, os sapos-cururus não foram felizes em sua missão na Austrália. Diferentemente dos insetos rasteiros que infestavam os canaviais das Ilhas do Havaí, os besouros-da-cana da Austrália ficavam alojados nos caules das plantas acima do solo, numa altura que os sapos não conseguiam atingir com seus pulos. Sem conseguir se alimentar desses besouros, os sapos-cururu passaram a buscar outros alimentos e assim passaram a se dispersar pelas matas costeiras do país e a criar problemas para inúmeras espécies nativas. Os predadores dos sapos nativos da Austrália, onde se incluem cobras, lagartos, aves de rapina e marsupiais, passaram a se intoxicar com o veneno dos sapos-cururu e a morrer em grandes quantidades, alterando completamente o equilíbrio ecológico de várias regiões. 

Dentro de nossa área de interesse, que são os recursos hídricos, os sapos-cururu passaram a representar uma grande ameaça aos crocodilos-de-água-doce-da-Austrália (Crocodylus johnstoni), também chamados de crocodilo de Johnston e crocodilo-anão. Esses crocodilos habitam as áreas alagadas e os manguezais do Norte da Austrália e têm menos da metade do comprimento de seus temidos primos que vivem nas águas salgadas da região e que podem atingir até 6 metros de comprimento. Esses crocodilos se alimentam de peixes, aves e anfíbios, o que os expõe frequentemente ao contato com o sapos-cururu e ao envenenamento

Estudos científicos realizados em quatro localidades do Norte australiano indicaram que houve uma redução média de 45% nas populações dos crocodilos de Johnston após a introdução dos sapos-cururu no país. Num dos locais pesquisados, a Lagoa Longreach, foi observada uma redução de pouco mais de 15% nas populações dos répteis. Em outro local estudado, no encontro dos rios Victoria Wickham, a redução da população dos crocodilos atingiu a impressionante marca de 77%.  

Conforme já comentamos em outras postagens, onde falamos das ameaças a espécies brasileiras, jacarés e crocodilos são grandes predadores de peixes, répteis, mamíferos, anfíbios e aves, ajudando a controlar as populações de várias espécies e garantindo, assim, o equilíbrio ecológico. Na falta desses predadores, outras espécies têm suas populações aumentadas sem controle, criando assim uma infinidade de problemas ambientais. Citando um exemplo aqui do Brasil, a caça indiscriminada de jacarés-do-Pantanal nas décadas de 1970 e 1980 levou a um crescimento descontrolado das piranhas nos rios e lagos da região. 

Após diversas tentativas frustradas para o controle das populações de sapos-cururu, as autoridades ambientais da Austrália estão partindo para uma solução radical – centros científicos do país estão trabalhando no desenvolvimento de sapos machos, geneticamente modificados para serem estéreis. Criados em cativeiro até atingirem a fase adulta, esses sapos serão introduzidos em ambientes infestados com sapos-cururu, onde lutarão com os outros machos na disputa pelas fêmeas, porém sem conseguir sucesso na reprodução. Em tese, esse mecanismo resultará numa redução progressiva das populações de sapos invasores. 

Entre as várias questões que surgem, duas se destacam: qual será a eventual taxa de sucesso dessa solução no controle dos sapos-cururu e se haverá tempo hábil para salvar os crocodilos de Johnston da extinção? 

Como diz um velho ditado – quem viver, verá.

OS SALMÕES DO RIO TÂMISA E OS “TRAÍRAS” DO RIO TIETÊ

Londres aéreo

Eu tinha uns 10 ou 11 anos de idade quando vi uma reportagem na TV falando dos problemas de poluição no rio Tietê, que naqueles tempos cresciam a olhos vistos. A certa altura, o repórter começou a conversar com Shigeaki Ueki, um importante Ministro do ciclo dos Governos Militares. Perguntado sobre essa questão, o Ministro afirmou que o Governo planejava todo um conjunto de obras de saneamento básico e que, entre 10 e 15 anos, o rio estaria completamente limpo. 

Se essa promessa do Governo Federal e do seu “governo fantoche” no Estado de São Paulo há época tivesse sido cumprida, o rio Tietê estaria limpo no início da década de 1990 e todos nós poderíamos estar pescando, navegando e nadando nas suas águas. Eu sinceramente desconheço qual era a fauna aquática original do antigo rio Tietê, mas posso afirmar que nela se encontravam as traíras, uma espécie de peixe comum em todas as bacias hidrográficas do Brasil. Infelizmente, por causa de promessas de outros “traíras”, que na gíria aqui de São Paulo e de outras regiões do país significa traidor, as promessas não foram cumpridas e o Tietê está no topo da lista de rios mais poluídos do Brasil. 

Vamos falar hoje de um outro rio, que já foi muito mais poluído que o Tietê, e que graças ao esforço monumental de sucessivos Governos, voltou a ser um rio limpo e cheio de ida. Falamos do rio Tâmisa, o mais importante rio da Inglaterra. 

Como a maioria de vocês deve lembrar dos tempos de escola, a Revolução Industrial começou na Inglaterra em meados do século XVIII. O aperfeiçoamento da máquina a vapor pelo matemático e engenheiro escocês James Watt deu um verdadeiro impulso aos sistemas de produção da época e a Inglaterra passou a produzir produtos em série, numa escala que, guardadas as devidas proporções, lembra a China atual. A Inglaterra se tornou uma grande potência econômica e militar, pagando um alto preço ambiental e social para isso, com altíssimos níveis de poluição do ar e da água, montanhas de resíduos de todos os tipos, além de uma grande massa de trabalhadores explorados até os limites da dignidade. 

Uma das maiores vítimas de toda essa poluição foi o rio Tâmisa, que corta a cidade de Londres no sentido Leste-Oeste, e que recebia grandes cargas de todos os tipos de efluentes, que iam dos esgotos domésticos de sua gigantesca população até resíduos de produtos químicos de todos os tipos. Um marco da poluição do rio se deu no verão do ano de 1858, quando algumas sessões do Parlamento Britânico, que fica numa das margens do Tâmisa, tiveram de ser suspensas – ninguém aguentava o mal cheiro que as águas exalavam. Depois de dois meses de náuseas e muito incômodo, os Parlamentares aprovaram um projeto que já estava pronto há cinco anos – o início das obras do sistema de esgotos de Londres. Lentamente, a história do rio Tâmisa começaria a mudar. 

A cidade de Londres foi fundada pelos romanos há mais de 2 mil anos e recebeu o nome de Londinium, palavra que, segundo algumas fontes, significa algo como “seguindo o rio”. A localização estratégica da cidade, com farta disponibilidade de água e cercada por terras aptas para agricultura, além de fácil acesso ao oceano, só fez por aumentar a importância e a boa reputação da cidade, que passou de sede de província romana a corte do Reino da Inglaterra, e depois a capital do Império Britânico. 

O rio Tâmisa nasce no condado de Gloucestershire e suas águas percorrem cerca de 346 km até encontrarem as águas do Mar do Norte. Ao longo do seu curso, o rio atravessa algumas importantes cidades da Inglaterra: Oxford, Eton, Wallingford, Reading, Windsor e Londres. A navegação fluvial é, desde os primeiros anos da ocupação romana, uma importante via para o transporte de passageiros e cargas entre essas cidades. Aos tempos da Revolução Industrial, diversos canais de navegação com eclusas foram construídos, aumentando ainda mais os volumes de cargas transportadas. O rio Tâmisa era o “coração e as veias do Reino”. 

Existem relatos já do ano de 1610 falando da baixa qualidade das águas do rio Tâmisa para consumo humano, problemas que não chegam nem perto daqueles criados pela intensa poluição que surgiu na esteira da forte industrialização do país. A partir da década de 1860, com a implantação dos sistemas de esgotos de Londres, a situação do rio Tâmisa começou a melhorar, mas a solução não foi definitiva. O sistema de esgotos que foi implantado não tratava os esgotos – as tubulações da rede captavam os esgotos e simplesmente os redirecionavam para despejo no rio Tâmisa abaixo da cidade. Em 1950, o decadente rio Tâmisa foi considerado biologicamente morto. Foi a partir dessa época que começaram os investimentos para a construção de estações de tratamento de esgotos em toda a calha do rio Tâmisa. 

Em meados da década de 1970, depois de cerca de 25 anos de investimentos no tratamento dos esgotos das cidades, um salmão nadando nas águas do rio foi visto por moradores. O salmão é uma espécie de peixe que passa a maior parte da sua vida nas águas dos oceanos, mas que há época da reprodução entra nos rios e sobe a correnteza em busca de águas calmas para acasalar e desovar. A espécie é bastante exigente no quesito qualidade das águas – se esse salmão estava nadando no rio Tâmisa, era um sinal de que as coisas estavam indo muito bem, obrigado. 

Atualmente, já são encontradas cerca de 121 espécies de peixes no rio, numa lista que inclui, além do salmão, linguados, percas, arenques e lampreias. Também são encontradas cerca de 400 espécies de invertebrados aquáticos, além de uma infinidade de aves e anfíbios. Eventualmente, até golfinhos e focas têm subido as águas do rio Tâmisa para dar um “alô” aos londrinos, que se aglomeram aos milhares nas margens urbanizadas para se maravilhar com essas aparições. 

O rio Tâmisa é considerado hoje o mais limpo de todos os rios que cruzam as grandes cidades do mundo e é, de longe, uma das grandes atrações turísticas da cidade. A cada ano, centenas de milhares de turistas de todos os cantos do mundo percorrem as suas águas em uma verdadeira frota de barcos de turismo, ávidos por admirar as suas muitas pontes, castelos e construções históricas como o Parlamento Britânico. 

Enquanto o Tâmisa pulsa de vida, nosso bom e velho rio Tietê continua tão morto como antes. Nas duas últimas décadas foram feitos pesados investimentos em obras para o rebaixamento da sua calha com o objetivo de reduzir as enchentes que, historicamente, sempre assolaram a cidade de São Paulo. Também foram feitos investimentos na construção de redes de coleta e em estações de tratamento de esgotos em muitas cidades da Região Metropolitana. Infelizmente, em algumas cidades como Guarulhos, a segunda maior cidade do Estado de São Paulo, praticamente todo o esgoto gerado por uma população de cerca de 1,5 milhão de habitantes é jogado diretamente nas águas do Tietê. 

Graças a essa falta de planejamento na execução de obras em todas as cidades da bacia hidrográfica na Região Metropolitana de São Paulo, o Tietê continua poluído e morto. E, diferente de Londres, o nosso parlamento – a Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo, fica bem longe das margens do rio. Quem sabe, se nossas “otoridades” fossem obrigadas a sentir o mal cheiro do rio em suas “raras” sessões parlamentares, quem sabe alguma coisa mais efetiva estaria sendo feita em prol do rio. 

Muitos são os paulistanos que, como eu, ainda sonham em assistir uma grande piracema nas águas do nosso rio Tietê. Se os londrinos conseguem ver hoje os salmões subindo novamente o Tâmisa, por que nós não podemos sonhar?