O BREVE “REINADO” DA NOBILIARQUIA CAFEEIRA FLUMINENSE

Nobiliarquia é estudo das origens e da história das famílias nobres, seus nomes de família, escudos, armas e brasões, além dos registros ou tratados sobre esse assunto. Essa palavra foi usada no título da postagem por que o assunto de hoje são as inúmeras famílias “nobres” que surgiram na esteira da cafeicultura em terras fluminenses ao longo do século XIX. 

O “nascimento” da cafeicultura no Rio de Janeiro ocorreu cerca de um quarto de século antes da chegada da Família Real e de toda a Corte de Portugal ao Brasil. A primeira exportação de café a partir do Rio de Janeiro se deu em 1779 e se limitou a apenas 79 arrobas (cerca de 1,2 tonelada) – às vésperas da chegada da Família Real, essas exportações já superavam as 80 mil arrobas anuais.

Como todos devem recordar das aulas de história nos tempos do ensino fundamental, as tropas de Napoleão Bonaparte invadiram o território de Portugal em 1807, o que obrigou o Rei Dom João VI a buscar exílio no Rio de Janeiro, onde desembarcou em 8 de março de 1808, depois de uma rápida escala em Salvador.  

Além da Família Real, toda a Corte e as classes mais abastadas de Portugal também vieram buscar refúgio aqui em nossas terras. As estimativas falam que, no total, esse grupo de refugiados era da ordem de 10 mil pessoas e chegaram em 19 navios das esquadras portuguesa e inglesa. O seleto grupo incluía comerciantes, advogados, médicos, engenheiros, artistas, arquitetos, religiosos, militares, professores, entre muitos outros.  

Toda essa nova população, que representava a “nata dos Lusitanos”, provocou enormes impactos, principalmente psicológicos, na então elite econômica da Colônia que vivia no Rio de Janeiro, formada essencialmente por “jecas” e semianalfabetos brasileiros. Muitas dessas pessoas, que enriqueceram com atividades como a produção do açúcar, mineração do ouro e o tráfico de escravos, descobriram que não bastava ser rico – era fundamental ser nobre! 

A produção e exportação do café naqueles tempos, que crescia a olhos vistos, passou a gerar grandes fortunas entre famílias fluminenses. Conforme comentamos em postagem anterior, as exportações de café em 1820 representavam 18% das vendas externas do Brasil e não parariam de crescer até as primeiras décadas do século XX, quando representavam mais de 50% das nossas exportações. 

Os verdadeiros “rios de dinheiro” que alguns produtores de café começaram a ganhar, produziram uma onda de consumo de produtos de alto luxo e extravagâncias de toda a ordem jamais vistas em terras brasileiras. Uma das mais interessantes foi o surgimento de um mercado para a venda de títulos nobiliárquicos ou de nobreza por parte da Família Real.  Qualquer pessoa com a bolsa recheada de dinheiro poderia virar um nobre da noite para o dia.

Quem se dispusesse a pagar o equivalente a 750 mil réis em meados do século XIX, levaria para casa o título de Barão. Por pouco mais de 1 milhão de réis, podia se comprar o título de Visconde – já um título de Conde custava cerca de 1,5 milhão de réis. Para os super ricos, as melhores opções eram o título de Marquês, que podia ser comprado por pouco mais de 2 milhões de réis, ou um de Duque, que não saía por menos de 2,45 milhões de réis. Por todas as cidades das regiões produtoras de café, especialmente ao longo do médio Vale do rio Paraíba do Sul, no Estado do Rio de Janeiro, se multiplicavam as famílias “nobres”. 

A partir da década de 1820, o fluxo de riquezas gerados pela cafeicultura produziu gigantescas mudanças nos hábitos de consumo e de vida de muitas famílias de grandes centros produtores como Vassouras, Valença, Piraí, Barra do Piraí, Barra Mansa e Cantagalo, entre outras comunidades. A mais vistosa dessas mudanças se deu na arquitetura – os grandes fazendeiros não poupavam dinheiro para a construção de verdadeiros palácios nas sedes de suas fazendas (vide foto) e nos solares que mantinham nas cidades. 

As vias de acesso a essas propriedades eram, invariavelmente, cercadas por fileiras de palmeiras imperiais. Além de um sem fim número de dormitórios, essas propriedades possuíam salões de festas, sala de bilhar, sala de armas, sala de música, além de escadarias feitas com o mais fino mármore e granito que o dinheiro podia comprar.

As dependências internas eram finamente decoradas com obras de arte, espelhos de cristal, móveis finos entalhados em madeiras nobres como o jacarandá e o mogno, tapeçarias orientais, entre outros requintes. Os luxuosos aparadores e cristaleiras guardavam as mais finas baixelas e talheres lavrados em pura prata de lei

As refeições servidas às mesas eram regadas com o melhor vinho importado, presuntos de Nova York, compotas e conservas francesas, peixes nórdicos e as melhores caixas de frutas secas do Mediterrâneo. Chefes de cozinha europeus, com todo um batalhão de ajudantes e serviçais, eram encarregados do preparo e dos serviços as mesas nas refeições. 

Qualquer casa de cafeicultor de respeito possuía um grande piano de cauda, onde seus filhos e, principalmente, as filhas recebiam aulas de música com os melhores professores que existiam na Colônia. Essas casas também contavam com um verdadeiro séquito de profissionais altamente especializados: costureiras e alfaiates, sapateiros, boticários, dentistas, enfermeiros, mecânicos, serralheiros, carpinteiros, jardineiros, pedreiros, cabeleireiros e barbeiros, entre outros. Tudo precisava funcionar perfeitamente e nenhum serviço podia faltar para o fazendeiro e seus familiares. 

Além das suntuosas casas-palacetes, as fazendas também contavam com diversas estruturas que garantiam uma grande autossuficiência. As fazendas tinham uma capela para realização de todos os serviços religiosos, desde os batizados até as cerimônias fúnebres. Contavam ainda com casas para os trabalhadores livres, senzalas para os escravos (há registros de fazendas que tinham mais de mil escravos), enfermarias especializadas para homens, mulheres e crianças; oficinas como ferraria, carpintaria e serralheria.

Outras estruturas indispensáveis eram os paióis, canis, chiqueiros, estábulos e cocheiras para trato dos animais de carga, entre outras. Aqui é importante lembrar que as sacas de café eram transportadas inicialmente por tropas de mulas e burros, indo desde as fazendas produtoras até o Cais do Porto no Rio de Janeiro – o transporte ferroviário de cargas só estaria disponível a partir da segunda metade do século XIX. Muitas fazendas também possuíam vendas e boticas para atender seu grande número de moradores. 

A cultura da exuberância dos fazendeiros atraiu para as cidades interioranas um grande número de arquitetos, principalmente europeus, que se esmeravam em realizar os projetos de construção mais extravagantes. Para dar suporte às construções, surgiram as mais diversas oficinas especializadas: carpintaria, cantaria, fundições, serralheria, marcenarias, cerâmicas, olarias, hidráulica e gás – o primeiro sistema de iluminação a gás do Brasil foi instalado em uma fazenda da cidade de Valença. 

As cidades também prosperavam – surgiram inúmeros ateliês de artistas, fotógrafos e modistas. Construíam-se teatros, bibliotecas e grandes prédios públicos. Hotéis e hospedarias surgiram por todos os cantos e estavam sempre cheios. O comércio nessas cidades também se tornou bastante sofisticado, principalmente com a venda de artigos de alto luxo importados como rendas inglesas, chales orientais, sedas de Lion e leques de madrepérola. Joalherias e relojoarias das mais sofisticadas também não poderiam faltar. Professores de línguas, principalmente do francês, também eram bastante procurados e se estabeleciam nessas cidades.

A educação e a cultura para essa elite econômica não poderiam ficar de fora – criaram-se colégios de excelência, com muitos professores vindos do “estrangeiro”. Essas escolas atraíam, inclusive, os filhos de muitas famílias abastadas da cidade do Rio de Janeiro. Grupos teatrais, muitos vindos diretamente dos palcos da Europa, orquestras de câmara e musicistas renomados, além das mais importantes companhias de ópera, frequentavam os teatros das cidades fluminenses. Se a nobreza “rural” entendia as peças e músicas em francês, inglês e italiano, isso era um mero detalhe…

A chegada da linha férrea e dos seus vagões luxuosos a partir de meados do século XIX tornou as viagens entre a Capital e as cidades do interior muito confortáveis e rápidas, além de garantir um melhor escoamento das incontáveis sacas de café rumo ao porto. 

Essa vida de luxo e nobreza dos cafeicultores fluminenses foi efêmera – o mal uso e o esgotamento da fertilidade dos solos nos cafezais rapidamente comprometeram a produção do grão no Rio de Janeiro, que entrou em forte decadência em poucas décadas e levou a imensa maioria dos “nossos” Barões e Condes do café à bancarrota. Falaremos disso na próxima postagem. 

A CHEGADA DOS CAFEZAIS AO RIO DE JANEIRO

Entre meados do século XIX e o fatídico ano de 1929, o café foi o mais importante produto da pauta de exportações do Brasil. O primeiro grande centro produtor e exportador do grão foi o Estado do Rio de Janeiro. As primeiras sementes de café teriam chegado na cidade do Rio de Janeiro por volta de 1774 pelas mãos do desembargador João Alberto Castelo Branco. Essas sementes teriam sido entregues aos Frades Barbadianos, que teriam sido os responsáveis pela produção das primeiras mudas. Algumas fontes afirmam que Castelo Branco trouxe mudas de café de Belém do Pará e que ele mesmo teria feito o plantio. 

O Rio de Janeiro teve um começo de história bastante tumultuado. O Donatário da então Capitania de São Vicente – 2° Quinhão, que englobava toda a faixa Sul fluminense e o Vale do Paraíba em São Paulo, era Martin Afonso de Sousa. Por falta de recursos, tanto humanos quanto financeiros, Sousa iniciou seu empreendimento de colonização no litoral de São Paulo em 1532, de onde pretendia expandir em direção ao Norte. Ele dividia o seu projeto colonial com seu irmão – Pero Lopes de Sousa, Donatário da Capitania de Santo Amaro, uma estreita faixa de terra entre os domínios dos dois trechos da Capitania de São Vicente. 

Aproveitando-se desse vazio da colonização, aventureiros franceses invadiram a Baía da Guanabara e ali fundaram a chamada França Antártica, um empreendimento que estendeu entre os anos de 1555 e 1570 e contava com o apoio dos índios Tamoios. Essa “colônia” foi comandada por Nicolas Dante de Villegagnon, que pretendia instalar ali uma base naval e militar, permitindo assim que o Reino da França controlasse o tráfego de embarcações em todo o Oceano Atlântico Sul e, consequentemente, todo o comércio marítimo com as Índias.  

Tropas portuguesas comandadas por Estácio de Sá só conseguiram expulsar todos os franceses da região em 1570. Durante essa fase tumultuada, a cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro foi fundada em 1565. Nas proximidades do Morro do Pão de Açúcar, os portugueses fundaram o Forte de São João, embrião da cidade do Rio de Janeiro. Seriam necessárias várias décadas até que os portugueses conseguissem “pacificar” os belicosos índios Tamoios. 

A Baía da Guanabara apresentava um dos melhores portos naturais da costa brasileira, tendo como vantagem extra uma entrada estreita, ideal para a defesa contra embarcações invasoras. A partir do início do século XVII, canaviais começaram a surgir nas áreas de entorno da Baía e, especialmente, na região conhecida como Baixada Fluminense. A partir das primeiras décadas do século XVIII, os canaviais se expandiriam na direção de Cabo Frio. 

Há registros históricos que confirmam que, por volta de 1630, o Rio de Janeiro abrigava perto de 100 engenhos de cana, a maioria de pequeno e médio porte e com uma produção muito aquém dos grandes engenhos do Nordeste. Muitos eram na verdade engenhocas, pequenas unidades para moagem das canas com o objetivo de se produzir aguardente. Crescendo discretamente, tanto em termos econômicos quanto populacionais, o Rio de Janeiro atingiu a marca de 30 mil habitantes na segunda metade do século XVII, assumindo o posto de cidade mais populosa da Colônia. 

Com o início do Ciclo do Ouro, a importância do Rio de Janeiro aumentou muito – a região passou a centralizar o escoamento dos carregamentos de ouro para Portugal e a cidade ganhou grande peso econômico e importância como porto. Em 1763, por decisão do Marquês de Pombal, secretário geral de El-Rei, a capitania da Colônia foi transferida de Salvador para o Rio de Janeiro. Em 1808, essa importância aumentaria ainda mais com a transferência do Rei de Portugal – Dom João VI, e toda a sua corte para a cidade, fugindo assim das tropas invasoras de Napoleão Bonaparte. 

Esse rápido resumo dá uma ideia geral da importância econômica e social que a cidade do Rio de Janeiro estava ganhando dentro da Colônia e do grande número de empreendedores que estavam buscando alternativas para fazer fortuna. Foi dentro desse ambiente efervescente que a cultura do café encontraria as condições ideais para se desenvolver. 

Os primeiros cafezais surgiram ao redor da cidade do Rio de Janeiro nas últimas décadas do século XVIII. Incluem-se na lista os atuais bairros de Jacarepaguá, Campo Grande, Guaratiba e Santa Cruz. Uma região muito conhecida da cidade atualmente – a Floresta da Tijuca, já foi ocupada por grandes fazendas com plantações de café. Outra região próxima que já foi tomada por cafezais é a Baixada Fluminense, onde os pés de café paulatinamente foram substituindo os antigos canaviais. 

O baixo preços das terras em regiões interioranas do Estado do Rio de Janeiro, principalmente ao longo da antiga estrada Rio-São Paulo, rapidamente começou a atrair a atenção dos empreendedores. A cultura cafeeira começou a se irradiar na direção de São João Marcos e Resende, chegando a cidades como Vassouras, Valença, Paraíba do Sul e, mais tarde, Cantagalo. O Vale médio do rio Paraíba do Sul, ou simplesmente Vale para os fluminenses, apresentava um clima e altitudes perfeitas para a produção do café.  

Os terrenos virgens, cobertos pela densa vegetação de Mata Atlântica possuíam uma fertilidade invejável. Seguindo as águas do rio Paraíba do Sul, os cafezais também se espalhariam por terras do Leste de Minas Gerais e chegariam ao Sul do Espírito Santo. Uma outra frente de expansão dos cafezais surgiria a Leste da Baía da Guanabara, desde São Gonçalo até Itaboraí e Maricá. 

Ao longo das primeiras décadas do século XIX, a cidade de Vassouras se transformou na capital brasileira do café, uma posição que trouxe muita riqueza e prosperidade para a região. O Porto do Rio de Janeiro se transformaria no mais importante do Brasil e a riqueza gerada pela cafeicultura na cidade do Rio de Janeiro se manifestaria até o ano de 1910. 

Os principais mercados para o café produzido no Brasil há época eram os Estados unidos, a Inglaterra e a França. Na década de 1820, a produção de café no Brasil, principalmente em terras fluminenses já representava 18% da produção mundial. Na década seguinte, esse volume alcançaria a marca de 36% e, em 1850, bateria nos 48% da produção mundial, o que colocou o Brasil como o maior produtor mundial de café. Há época, o Estado do Rio de Janeiro respondia por 79% da produção nacional de café

Além de solos férteis e clima adequado, a produção cafeeira dependia de muita mão de obra. Naquele momento, a grande massa de trabalhadores era formada por mão de obra escrava (vide foto). O aumento exponencial que se observou na agricultura fluminense há época transformou o Estado do Rio de Janeiro no grande mercado para a venda de escravos “novos e usados”. Nas primeiras décadas do século XIX, o comércio internacional de escravos ainda era permitido e grandes “lotes de negros” chegavam com frequência ao cais do Rio de Janeiro.  

Um outro mercado que surgiu com força foi a venda de escravos entre Estados. Os grandes engenhos do Nordeste Açucareiro agonizavam naquele momento e a venda de escravos “de segunda mão” para as grandes fazendas de café da Região Sudeste acabaram por se transformar em uma fonte de renda para engenhos falimentares. A Bahia foi uma das principais fornecedoras dessa mão de obra para o Rio de Janeiro. As antigas e decadentes regiões de mineração das Geraes também dispunhas de bons estoques de “negros” subutilizados, que também passaram a ser deslocados para o Vale do rio Paraíba e arredores. 

Os grandes fazendeiros fluminenses fizeram verdadeiras fortunas com a produção e venda do café, transformando algumas cidades da região em verdadeiras “ilhas” de prosperidade. Falaremos sobre isso na próxima postagem. 

O CAFÉ NOSSO DE CADA DIA: UMA BREVE HISTÓRIA

Entre meados do século XIX e o fatídico ano de 1929, quando a Bolsa de Valores de Nova York quebrou e teve início a Grande Depressão, o café foi o mais valioso produto de exportação do Brasil, respondendo por mais da metade das vendas do país. A forte demanda internacional pelo produto surgiu num momento complicado de nossa economia colonial, quando a produção do açúcar, do algodão e do ouro perderam relevância. Podemos dizer que o café foi uma espécie de “salvador da pátria” há época, ao mesmo tempo em que se transformou no novo vilão da devastação da Mata Atlântica. 

O interesse internacional pela bebida não surgiu de uma hora para outra – foi uma trajetória de centenas de anos entre as montanhas da Etiópia, no Nordeste da África, até chegar aos sofisticados cafés vienenses e Botteghe del Caffè de Veneza. Vamos conhecer um pouca dessa fantástica jornada: 

Conforme comentamos na postagem anterior, o café é originário da região de Cafa, na Etiópia. De acordo com a tradição oral da população, um jovem pastor de cabras observou que os seus animais gostavam de comer os frutos vermelhos e as folhas de alguns arbustos, ficando muito ativos depois disso. Conta-se ainda que foi a partir daí que os habitantes locais passaram a preparar chás a partir das folhas e frutos da planta. 

Com a popularização do consumo do café, sementes da planta foram levadas para o Iêmen, no Sul da Península Arábica, onde passou a ser conhecido como kahwaf ou cahue, palavras que em árabe significam “força”. Manuscritos locais do século VI de nossa era já falavam do cultivo da planta em terras árabes – inclusive, o nome científico da planta, Coffea arabica, dado pelo cientista Lineu, veio daí. Graças ao intenso tráfego de caravanas de mercadores e de tribos beduínas, o consumo e o gosto pela bebida foram disseminados por todo o Oriente Médio ao longo do tempo. 

A partir do século XIV, a produção de café do Iêmen ganhou escala comercial e o principal porto exportador do país ficava na região de Moka, um nome que passou a estar associado aos melhores cafés do mundo. Em 1475, foi inaugurada a primeira cafeteria do mundo na famosa cidade de Constantinopla (atual Istanbul) na Turquia – o Kiva Han. O estilo social de consumo de café criado pelos turcos se popularizou por todo o Oriente Médio, principalmente no Egito. No final do século XVII já existiam perto de 650 Bayt Gahwa, as famosas cafeterias do Cairo, locais que eram o ponto de encontro de artistas e intelectuais. 

Os egípcios criaram vários tipos de café, que depois acabaram se popularizando em países de língua árabe. O arriha é um café levemente adocicado. O mazboot é meio doce e o ziyada é muito doce. O cliente precisava escolher o tipo de café desejado antes da preparação, uma vez que o açúcar era dissolvido na água usada no preparo da bebida. Um outro tipo de café, o sada, era amargo e servido apenas em ocasiões tristes como nas cerimônias fúnebres. 

Constantinopla também serviu como caminho para a chegada do café na Europa. A primeira cafeteria italiana ou Bottheghe del Caffè conhecida foi fundada em Veneza em 1615. Sendo um dos polos comerciais mais importantes da Europa há época, Veneza acabou por popularizar o café por todo o continente. 

Surgiram muitas histórias e estórias associadas ao café na Europa. Uma delas foi a forte oposição ao consumo do café por religiosos católicos, que associavam a bebida de origem árabe aos muçulmanos e ao Islã. Quem consumia café era considerado herege por muitos padres. O papa Clemente VIII (1536-1605) precisou intervir e até propôs o batismo do café como forma de tornar a bebida cristã. 

Outro “causo” interessante tenta explicar a origem dos famosos cafés de Viena. Consta que após o fracasso da conquista da cidade pelos turcos em 1687, grandes quantidades de sacas de café foram deixadas para trás pelos exércitos que batiam em retirada. Os austríacos teriam considerado esse café como uma espécie de despojo de guerra e passaram a consumir a bebida com um prêmio pela vitória. 

É bastante folclórica também a origem dos famosos capuccinnos italianos. Conta-se que os monges franciscanos da ordem dos Capuchina não gostavam muito do sabor forte do café, que há época era consumido sem açúcar. Os monges então passaram a adicionar leite e mel a bebida. Com o passar do tempo, a receita foi incrementada com a adição de chocolate e chantily, e o nome da bebida passou a ser uma homenagem aos religiosos que a criaram. 

Na Inglaterra, a primeira cafeteria conhecida foi aberta em 1652. Em 1672, foi inaugurada a primeira dessas lojas na cidade de Paris. Foi na França, durante o reinado de Luís XIV, que se criou o hábito de tomar café com açúcar. Com a popularização do café entre ingleses e franceses, surgiu a necessidade de expandir a produção para atender o forte aumento no consumo. Consta que foi um oficial francês, Gabriel Mathien de Clieu, o responsável pela introdução das primeiras mudas de café na Guiana e Ilha Martinica, territórios da França nas Américas. Rapidamente a cultura se espalhou pelas ilhas do Mar do Caribe e países da América Central. 

O café chegou ao Brasil em 1727, pelas mãos do sargento-mor Francisco de Melo Palheta (ou Palhete, segundo algumas fontes), um militar a serviço do Governo de Portugal e que realizou trabalhos de demarcação de limites entre a Colônia portuguesa e a Guiana Francesa. Consta que Palheta ganhou uma muda de café da esposa do Governador da Guiana e trouxe a planta para a cidade de Belém, capital do Grão-Pará, a grande província da Região Norte há época. A partir de Belém, o café começou a se espalhar por pequenas cidades e fazendas dos sertões, onde a produção era destinada apenas ao consumo doméstico. 

Com o aumento da demanda pelo produto no mercado internacional, foram feitas as primeiras tentativas de plantio em escala comercial no Maranhão e na Bahia, tentativas essas que foram frustradas devido ao clima excessivamente quente dessas regiões. A planta encontraria as condições ideais para o seu cultivo nas regiões serranas e de clima ameno da região Sudeste do Brasil. As primeiras sementes de café chegariam na cidade do Rio de Janeiro por volta de 1774, onde foram semeadas no Convento dos Frades Barbadianos. 

As primeiras mudas de café foram plantadas nos arredores da cidade do Rio de Janeiro e, pouco a pouco, passaram a conquistar espaço ao longo do Vale do rio Paraíba do Sul, interior do Estado do Rio de janeiro e primeiro grande centro produtor de café do Brasil. A cultura mudaria radicalmente toda a região, faria a fortuna de muitos barões e baronesas fluminenses, e destruiria grande parte da Mata Atlântica da região. 

Contaremos essa história na próxima postagem. 

O CAFÉ E A MATA ATLÂNTICA: UMA HISTÓRIA DE OPULÊNCIA E DE DESTRUIÇÃO

O século XVIII foi, talvez, um dos mais alucinantes da história do Brasil. 

Conforme comentamos em postagens anteriores, esse século começou sob a influência da “febre do ouro”. Tudo começou nos últimos anos do século anterior, quando bandeirantes paulistas encontraram o tão sonhado ouro numa localidade lendária conhecida pelos indígenas como Serra do Sabarabuçu, no coração das Geraes. Essa notícia correu rapidamente por todos os cantos da Colônia e centenas de milhares de pessoas largaram tudo o que tinham (e o que não tinham) nas regiões do litoral açucareiro e se embrenharam nos sertões para garimpar o “vil metal”. 

A população brasileira em meados do século XVIII era estimada em 500 mil habitantes – 2/3 desse contingente se dirigiu para as áreas de mineração, o que nos dá uma boa ideia da crise desencadeada na indústria do açúcar. Sem os braços e pernas dos trabalhadores, a produção despencou. A crise, que já era grande, ficou imensa devido à concorrência de outras nações e colônias.  

Engenhos e canaviais haviam ocupado a maior parte das ilhas do Mar do Caribe e terras vizinhas, desde a Geórgia, no Sul dos Estados Unidos, até a Guiana Francesa, na América do Sul. A cultura também havia se espalhado pelas costas da África, principalmente nas colônias portuguesas. Um produto antes raro e caro, o açúcar se tornara barato e popular. 

Produzir grandes volumes de açúcar era muito custoso – entre o plantio das mudas de cana de açúcar e a chegada do produto aos mercados consumidores na Europa havia um hiato de quase dois anos. Além disso, entre esses dois extremos haviam os riscos do transporte pelos mares, momento em que parte importante das cargas podia se perder. Enquanto as margens de lucro eram altamente compensadoras, não faltavam banqueiros e grandes comerciantes com grandes somas de dinheiro para financiar as operações com segurança. Com a brutal queda de preços que se seguiu, esse dinheiro desapareceu. 

A loucura “dourada” nas Geraes também não durou muito tempo – por volta de 1770, os principais veios auríferos já davam sinais claros de esgotamento. Sem a produção do açúcar que, ao longo de mais de dois séculos, foi o principal (quiçá único) pilar econômico local e agora, com o iminente fim da mineração do ouro, a Colônia parecia caminhar para uma espécie de limbo. 

Nas últimas duas décadas desse século houve um breve surto salvador – com o início da Revolução Industrial na Inglaterra e suas maravilhosas máquinas a vapor, houve uma verdadeira explosão no consumo de algodão pela indústria têxtil. O então distante Maranhão, com seu clima quente e seco, se mostrou ideal para a produção dessa fibra. Foi assim que, ao longo de pouco mais de vinte anos, o Maranhão se tornou um dos maiores produtores mundiais de algodão e, por pouco tempo, foi a província mais rica do Brasil.  

A aventura foi breve – regiões do Sul dos Estados Unidos rapidamente tomaram a dianteira nessa produção e, por suas ligações culturais e econômicas com a Inglaterra, se consolidaram com seu principal fornecedor da commodity. O Maranhão acabou caindo novamente no esquecimento. Foi então que, chegando discretamente às nossas terras, uma planta africana mudaria os rumos da nossa nação – o café. 

Segundo a tradição oral, o café é originário da região de Cafa, na Etiópia, país do Nordeste da África. Segundo as lendas dessa região, um jovem pastor de cabras observou que os seus animais ficavam muito ativos após comerem as folhas e as frutas vermelhas de alguns arbustos. Esse fato chamou a atenção dos moradores locais, que passaram a preparar chás a partir das folhas e frutos da planta – foi a partir desse uso que se desenvolveu o preparo do café que conhecemos hoje em dia.  

Consta que o café foi introduzido no Brasil por Francisco Palheta (ou Palhete) no Estado do Pará em 1727.  A planta foi sendo disseminada por todo o Brasil Colônia, onde era cultivada para uso exclusivamente doméstico nas fazendas e casas das vilas e cidades. Comercialmente, o valor do café era quase nulo. Foi somente no decorrer do século XVIII que o café adquiriu status nos mercados internacionais, passando a ser considerado um artigo de luxo nos grandes centros urbanos da Europa e dos Estados Unidos.  

As primeiras sementes de café chegaram ao Rio de Janeiro por volta de 1774, onde foram semeadas no Convento dos Frades Barbadianos. A partir do início do século XIX foram iniciadas as primeiras plantações comerciais de café em sítios e fazendas, especialmente na região Oeste do Estado do Rio de Janeiro, próximas ao rio Paraíba do Sul. Sem maiores possibilidades de expansão nessa região, a cultura cafeeira passou a se expandir na direção do Vale do Paraíba, já no Estado de São Paulo, por volta de 1850.  

Diferentemente de outros produtos agrícolas, o café é uma planta que apresenta uma série de restrições físicas para o seu cultivo, bastante diferente da cana de açúcar ou do algodão, produtos de grande destaque na época. Os limites de temperatura ideais para o cultivo da planta oscilam entre 5 e 33º C. É uma planta muito sensível tanto a geadas quanto ao excesso de calor e insolação. Requer ainda chuvas regulares e bem distribuídas e é muito exigente em relação à qualidade do solo.  

É uma planta de cultivo permanente, cujo início da produção exige um período entre 4 e 5 anos a partir do plantio das mudas. Os solos ao redor dos cafeeiros precisam ser limpos com frequência e a planta requer adubação constante para se garantir uma boa produção. Ou seja – tratava-se de uma cultura agrícola sofisticada e bastante difente da rústica cana de açúcar, que nada mais é do que um capim superdesenvolvido.

A maior parte do território brasileiro não se adequava à produção do café. Também existiam as dificuldades no cultivo e trato das plantas, problemas que se mostrariam fatais para o rápido esgotamento dos solos. Foi no Estado do Rio de Janeiro e, sobretudo, nas regiões serranas vizinhas dos Estados de São Paulo, Minas Gerais e Sul do Espírito Santo, que a cultura cafeeira, propriamente dita, foi iniciada no Brasil.  

Rapidamente, os grandes cafezais com suas folhas verdes monocromáticas passaram a ocupar grandes áreas antes polvilhadas com os mais diferentes tons de verde da Mata Atlântica. Pequenas vilas perdidas no meio do nada foram transformadas em cidades elegantes. Surgiram grandes fazendas com sedes imponentes, onde barões e baronesas passaram a residir. Depois dos gigantescos estragos que a indústria canavieira fez ao trecho nordestino do bioma, que foi praticamente dizimado, chegava agora a vez da destruição da Mata Atlântica na Região Sudeste. 

O Vale do Paraíba, a ligação natural entre São Paulo e Rio de Janeiro, foi a porta de entrada do café no Estado de São Paulo, transformando-se em poucos anos no primeiro grande cenário da cultura cafeeira no Brasil. As condições naturais da região eram esplendidas: altitudes entre 300 e 900 metros, com temperaturas dentro dos limites ideais para o café e ciclo de chuvas regulares.  

O relevo acidentado da região proporcionava encostas bem protegidas contra o vento, um fator importante para uma planta arbustiva como o café. O Vale do Paraíba, em meados do século XIX, tornou-se um grande centro condensador de população e riqueza do Brasil. A importância do café se mostrou tamanha que, já em 1822, um ramo de café foi incorporado no Brasão Imperial. 

Serão muitas histórias e estragos ambientais para se contar. 

AINDA FALANDO DA SIDERURGIA E DA DESTRUIÇÃO DAS MATAS MINEIRAS

A primeira metade do século XX foi bastante tumultuada para a economia do Brasil. Nossa jovem República entrou no século passado apresentando um forte perfil agrário, onde a cultura do café e os seus poderosos “barões” davam as cartas no país. Há época, o Brasil era o maior produtor e exportador de café do mundo, uma commodity que gerava metade das receitas em moeda forte do país. Outro importante produto era o látex, matéria prima estratégica há época e que era usada na produção da borracha. Até 1912, o Brasil era o maior produtor de látex do mundo e suas exportações representavam 40% de nossas receitas externas. 

O primeiro grande baque econômico do século começou ainda nos primeiros anos da década de 1910, quando os seringais ingleses plantados no Sudeste Asiático iniciaram a produção de látex. Conforme já tratamos em postagens anteriores, a seringueira (Hevea brasiliensis) é uma árvore nativa da Floresta Amazônica, o que garantiu, por muitas décadas, o monopólio do látex na mão na mão de produtores de países da região.  

Entretanto, em 1876, o inglês Henry Wickhan realizou a façanha de contrabandear milhares de sementes da seringueira para a Inglaterra, onde botânicos conseguiram produzir mudas da árvore. Essas mudas foram levadas para as Colônias Inglesas do Sudeste Asiático, onde o clima era muito similar ao da Amazônia. Plantadas organizadamente, essas seringueiras passaram a produzir látex em grande escala, superando a produção da Amazônia em volume e em custos. 

A dramática situação da economia só não foi pior por causa do início da I Guerra Mundial em 1914. Com o aumento da demanda mundial por borracha, os produtores da Amazônia conseguiram ganhar uma sobrevida. A deflagração da Grande Guerra também passou a inibir a importação de uma grande gama de produtos industrializados e forçou a produção local. Conforme comentamos na postagem anterior, esse quadro estimulou o aumento da produção de ferro e aço no Brasil, principalmente em Minas Gerais – a necessidade de grandes volumes de carvão vegetal levou ao desmatamento de grandes trechos da Mata Atlântica nesse Estado

Pouco mais de dez anos após o final da I Guerra Mundial, quando a economia brasileira ainda estava em recuperação, nosso país sofreu um novo abalo – a grande crise econômica mundial deflagrada com a quebra da Bolsa de Valores de Nova York em 1929. Dessa vez, a crise atingiu em cheio as exportações brasileiras de café, o nosso mais importante produto de exportação. Passados outros dez anos, tem início a II Guerra Mundial e mais uma vez entramos em uma fase de restrições à importação de produtos industrializados

Essa sucessão de crises “decenais” teve profundos reflexos na economia brasileira, que foi forçada a mudar profundamente, deixando de depender da agricultura e viu a participação das indústrias crescer muito. Esse forte crescimento do setor industrial, é claro, estimulou o crescimento da produção de ferro e aço, produtos básicos para as indústrias. 

Um outro setor que passou a apresentar um grande crescimento ao longo desse período foi a construção civil. A mudança do perfil econômico do país levou a uma intensa migração de populações de áreas rurais para as áreas urbanas. As famosas “barras de ferro” são elementos fundamentais para a construção de casas e edifícios com estrutura de concreto armado.

Por todo o país surgiram pequenas empresas especializadas na produção dessas barras – essas empresas compravam as barras de ferro e aço padronizadas produzidas pelas siderúrgicas mineiras e, usando equipamentos de trefilação a frio, produziam as barras nas medidas e padrões usados pela construção civil. 

Abrindo um rápido parêntese aqui – os materiais cerâmicos usados pela construção civil – tijolos, telhas, manilhas, lajotas e azulejos, entre outros, também contribuíram, e muito, com a devastação de matas em todo o Brasil. Esses produtos precisam passar por um processo de queima, o que normalmente era feito em fornos a lenha

Conforme comentamos na postagem anterior, em 1921 foi fundada a Companhia Belgo-Mineira, a maior empresa do setor do Brasil há época e que mudaria os rumos da siderúrgica no país. Essa empresa geraria um grande desenvolvimento regional. Entre outros importantes avanços, o início das operações da Belgo-Mineira levou à retomada das obras da Estrada de Ferro Vitória a Minas, obra que vinha se arrastando desde 1904 e que era essencial para o escoamento de produtos e o transporte de carvão mineral importado. 

A demanda por produtos siderúrgicos no Brasil não parava de crescer – a produção total em 1931, incluindo ferro gusa, aço, laminados trefilados e peças fundidas, atingiu a marca de 71 mil toneladas. No final da década de 1930, a Belgo-Mineira construiu uma segunda usina na cidade de João Monlevade e novas empresas começaram a operar em Minas Gerais. Em 1945 foi criada a Acesita – Aços Especiais Itabira, e em 1956 a Usiminas – Usinas Siderúrgicas de Minas Gerais. 

Em 1942, o Governo Federal fundou a Companhia Vale do Rio Doce, que ao longo do tempo se transformaria numa das maiores produtoras e exportadoras de minério de ferro e ferro gusa do mundo. Já em 1946, foi inaugurada a CSN – Companhia Siderúrgica de Volta Redonda, no interior do Estado do Rio de Janeiro. 

A partir de meados da década de 1950, a demanda por ferro e aço sofreu um forte incremento no país, porém, ao menos dessa vez, a causa foi interna – indústrias do setor automobilístico passaram a operar no Brasil. O Governo do Presidente Juscelino Kubitschek (1956-1961), criou uma política de estímulo à fabricação de veículos em território brasileiro 

Apesar do aumento da importação e do uso do carvão mineral nos altos fornos das empresas siderúrgicas brasileiras, principalmente nas de Minas Gerais, o uso de carvão de origem vegetal continuava em alta. A razão para isso era muito simples – o baixo custo do “produto nacional”. A grande maioria dos produtores de carvão eram pequenos agricultores, que retiravam as madeiras ilegalmente de florestas públicas, sem gastar praticamente nada.

Na produção do carvão nos fornos rudimentares em suas propriedades, esses carvoeiros se valiam da “mão de obra familiar”, ou seja, mulher, filhos (o famoso “trabaho infantil“) e outros parentes. Graças a tudo isso, o carvão vegetal se mostrava altamente competitivo quando comparado ao produto importado, que além de caro, ficava sujeito ás fortes oscilações do valor do dólar. 

Graças a toda essa conjuntura, a devastação florestal continuou avançando e atingiu níveis altíssimos, o que, a grosso modo, acabaria se transformando numa grande ameaça às próprias indústrias. A fim de garantir o suprimento de carvão vegetal para suas unidades de produção, as grandes empresas siderurgicas passaram a adquirir grandes áreas cobertas por florestas. Esse foi o caso da Companhia Belgo-Mineira, que comprou grandes áreas em Várzea da Palma, no Norte de Minas Gerais, e no Vale do Rio Doce. 

A partir de 1948, a Belgo-Mineira se tornaria pioneira no plantio de florestas de eucalipto, visando garantir a produção de madeira e de carvão para uso futuro. O eucalipto australiano já vinha sendo produzido com sucesso no Estado de São Paulo há vários anos, onde tinha a missão de fornecer madeira para a construção de dormentes ferroviários e de lenha para locomotivas.

As árvores apresentavam um crescimento rápido e podiam sofrer o primeiro corte sete anos após o plantio. Outras empresas perceberam rapidamente a estratégia da Belgo-Mineira e também passaram a investir no plantio de florestas artificiais. A partir da década de 1960, as autoridades florestais da época tornaram obrigatória a autoprodução de madeiras para a produção de carvão. 

Apesar de todos esses cuidados ambientais, que tinham como meta a preservação dos remanescentes florestais em Minas Gerais, os dados do setor continuavam desanimadores. De acordo com dados estatísticos de 1976, ano em que as informações passaram a ser registradas com maior grau de fidelidade, cerca de 90% do carvão vegetal produzido no Brasil há época, o que correspondia a 15,5 milhões m³, era produzido com madeira retirada de matas nativas. A Mata Atlântica e o Cerrado em Minas Gerais, por causa da forte demanda por carvão nas siderúrgicas do Estado, foram os biomas mais devastados

Apesar dos grandes esforços das empresas para evitar o uso de carvão de origem “suspeita”, ainda hoje há muito carvão sendo produzido com madeira retirada das matas nativas. A razão para isso é relativamente simples – segundo a AMS – Associação Mineira de Silvicultura, 40% do carvão vegetal produzido no Estado em 2015 veio de pequenos produtores rurais – muitos desses produtores continuam derrubando matas nativas para obtenção de madeira e lenha

Infelizmente, o Estado de Minas Gerais continua liderando a devastação do pouco que restou da Mata Atlântica no Brasil.

Uma observação final: Somando-se as perdas de Mata Atlântica ao longo da faixa do Nordeste Açucareiro, que segundo minhas estimativas oscilam entre os 90 e 120 mil km², com as perdas para a siderurgia em Minas Gerais, que superam a casa dos 230 mil km², chegamos a uma perda entre 320 e 350 mil km² de matas nativas somente nessas duas regiões.

A INDUSTRIALIZAÇÃO DO BRASIL, A SIDERURGIA E A DEVASTAÇÃO DAS MATAS EM MINAS GERAIS, OU AS FLORESTAS QUE VIRARAM CARVÃO

Aos tempos da chegada da expedição descobridora de Pedro Álvares Cabral em 1500, o território onde se encontra hoje o Estado de Minas Gerais tinha perto de 47% de sua superfície coberta com vegetação de Mata Atlântica, o equivale a mais de 282 mil km² de matas do bioma. Em pouco mais de três séculos e depois de vários ciclos econômicos, a Mata Atlântica hoje está restrita a 10,2% da superfície do território mineiro, ocupando pouco mais de 50 mil km²

A primeira pergunta que surge é: que fim teria levado mais de 230 mil km² de Mata Atlântica no Estado? 

E a resposta lamentável é: a maior parte virou carvão! 

Em postagens anteriores apresentamos rapidamente o chamado Ciclo do Ouro, que teve início nos últimos anos do século XVII. Notícias sobre as descobertas de ouro na Serra do Sabarabuçu, uma localidade lendária no centro do Estado de Minas Gerais, correram pelos “quatro cantos” da Colônia e atraíram centenas de milhares de aventureiros para o garimpo. Em poucas décadas, os sertões das Geraes abrigavam perto de 2/3 da população brasileira há época. 

Esses tempos “dourados” se estenderam por todo o século XVIII, quando então as minas de ouro se esgotaram e toda essa grande população precisou se dedicar a outras ocupações para sobreviver. Uma parte importante dos trabalhadores que lidavam com a mineração e fundição do ouro acabou por se manter no ramo da metalurgia, passando a trabalhar com um outro metal abundante na região – o ferro.  

Surgiram por todos os cantos pequenas forjarias, onde se produziam panelas, ferramentas agrícolas, ferraduras, pregos e outros produtos para o uso cotidiano. Vale lembrar aqui que toda essa atividade era ilegal – empresas e comerciantes portugueses tinham o total monopólio para a produção e venda desses produtos. Com o passar do tempo, essas atividades foram crescendo e se consolidando como uma das mais importantes da economia de Minas Gerais. 

Apesar da grande abundância de minério de ferro, faltava nas Geraes o combustível mais usado para alimentar as forjas e os fornos de fundição em todo o mundo: o carvão mineral. Na falta do combustível fóssil, os mineiros passaram a se valer do carvão de origem vegetal, obtido a partir do desmatamento de grandes áreas florestais. O carvão vegetal passou a ser usado intensamente em vários processos nessas industrias, especialmente na produção do ferro gusa. E foi assim que a Mata Atlântica (e grande parte do Cerrado mineiro) foi transformada em carvão. Vamos entender melhor essa história. 

Essa incipiente indústria metalúrgica artesanal de Minas Gerais se consolidaria ao longo de várias décadas, até que, em 1827, ela daria um verdadeiro salto tecnológico. Foi nesse ano que o engenheiro francês e metalurgista Jean-Antoine-Félix Dissandes de Monlevade, mais conhecido pelos locais como João Monlevade, inaugurou uma usina dotada de uma forja catalã para a produção de ferro em Caeté. A existência de depósitos minerais e, principalmente, a abundância de matas na região, foram os principais fatores que trouxeram o francês para essa localidade. 

A revolucionária usina construída por João Monlevade conseguia produzir cerca de 30 arrobas de ferro por dia, o que equivalia a 450 kg, uma escala de produção nunca vista antes em terras mineiras. Até 1872, ano da morte de João Monlevade, essa usina foi a grande referência em metalurgia nas Geraes. Entre as décadas de 1820 e 1860, houve um grande avanço, tanto técnico quanto quantitativo, na metalurgia do Estado. 

Um outro grande salto qualitativo se daria em 1876, quando foi criada a Escola de Minas de Ouro Preto. Essa escola colocaria os setores metalúrgico e siderúrgico de Minas Gerais em um novo patamar tecnológico, modernizando os processos de produção do ferro gusa em altos fornos com carvão vegetal, além de possibilitar um grande aprimoramento nos processos de laminação, trefilagem e fundição de peças de ferro e de aço. 

Em um censo industrial realizado pelo Governo Imperial em 1881, as indústrias metalúrgicas respondiam por apenas 3% do total de estabelecimentos industriais do país. Há época, nosso parque industrial tinha cerca de 600 indústrias em funcionamento em todo o Brasil e era dominado por indústrias têxteis (60%) e de produtos alimentícios (15%). As indústrias do segmento químico, que há época se limitavam a embalar produtos processados no exterior, respondiam por 10% do total de estabelecimentos industriais. A lista se completava com as indústrias do segmento de madeiras, com 4% de participação, e as de vestuário e produtos de cuidado pessoal, com 3,5%, entre outras menores. 

Mudanças profundas no setor teriam início em 1888, quando o primeiro alto forno de uma indústria siderúrgica foi aceso na Usina Esperança, em Itabirito. Essa foi a primeira indústria siderúrgica independente do Brasil e sua produção diária era de 6 toneladas de ferro gusa, o primeiro estágio da produção do aço. Seu alto forno consumia cerca de 21 m³ de carvão vegetal por dia.

Para que todos tenham uma ideia do consumo de madeira que isso implicava, a produção de cada m³ de carvão vegetal requer entre 1,8 e 2,5 m³ de lenha/madeira. Em 1915, o volume de produção dessa usina atingiria a marca de 3.259 toneladas de ferro gusa, o que representou um consumo de mais de 10 mil m³ de carvão vegetal

Com o desenrolar da I Guerra Mundial, que se estendeu entre 1914 e 1918, o Brasil passou a enfrentar uma série de dificuldades para a importação de produtos manufaturados de todos os tipos.  O Governo Federal adotou uma série de políticas para o estímulo da produção industrial local em substituição às importações – os setores metalúrgicos e siderúrgicos cresceram muito nesse período.

A Usina Esperança, citando como exemplo, já apresentaria um volume de produção da ordem de 15 mil toneladas em 1921, o que implicava na necessidade de uma grande produção de carvão vegetal e na devastação de mais áreas florestais em Minas Gerais há época

A essa altura da história, o Estado de Minas Gerais já era responsável por cerca de 90% da produção brasileira de ferro gusa. Em 1921 seria fundada a Companhia Belgo-Mineira, a primeira siderúrgica de grande porte do Brasil. Formada por capitais da França, da Bélgica e de Luxemburgo, essa empresa representou uma mudança nos paradigmas dos investimentos estrangeiros no setor, que até então se limitavam na aquisição dos direitos de exploração de reservas de minérios por grupos estrangeiros. 

Baseadas no antigo conceito de “reservas infinitas de matérias primas”, as empresas mineiras continuariam derrubando as matas nativas para a obtenção da madeira necessária para a produção do carvão vegetal, pratica que se estenderia até meados do século XX.

Grandes áreas florestais que circundavam cidades e áreas industriais desapareceram, sendo transformadas em extensas áreas de campos e pastagens. Os grandes volumes de carvão vegetal, cada vez mais necessários para alimentar os insaciáveis altos fornos, passaram a ser trazidos de regiões cada vez mais distantes. 

A escala da destruição das florestas continuaria a crescer ao longo das décadas seguintes. Continuaremos a falar sobre isso na próxima postagem. 

O DRAMÁTICO CICLO DA EXPLORAÇÃO DO OURO NAS MINAS GERAES

Na última postagem apresentamos um breve resumo de como foram os tempos da “febre do ouro” ao longo de todo o século XVIII e das suas graves consequências ao meio ambiente. O chamado “Ciclo do Ouro” marcou o início da decadência da indústria açucareira e teve como uma das suas mais dramáticas consequências uma migração maciça de habitantes da faixa litorânea na direção dos sertões. 

Uma das principais características das regiões de mineração nas Geraes era a mais completa falta de infraestrutura. Eram áreas desertas que não dispunham de vilas ou propriedades rurais que vendessem ou produzissem alimentos e itens básicos como sal, ferramentas, roupas, calçados e pólvora, entre outros. Obcecados com as riquezas minerais, a grande maioria desses aventureiros não tinha tempo a perder com a abertura de clareiras na mata para a criação de roçados e produção de alimentos básicos. A região passou a depender da “importação” de alimentos e de todos os tipos de produtos. 

Os altos custos para aquisição de alimentos, o gênero da mais prioritária necessidade para o ser humano, e nenhum interesse para a produção local, levou a uma consequência óbvia: a fome. Vejam esse comentário de Josué de Castro, autor do antológico livro Geografia da Fome

“Morria-se de inanição ao lado de montes de ouro pelo abandono da cultura e da criação”. 

Os chamados “paulistas”, que viram a indústria açucareira fracassar nas Capitanias de São Vicente e de Santo Amaro, enxergaram na situação caótica das populações que estavam vivendo nas áreas de mineração uma ótima oportunidade para “fazer negócios”. Os paulistas acabaram por se especializar na produção e “exportação” de alimentos e outros produtos para as populações das Geraes, cobrando altos preços por esses serviços.  

Alguns exemplos das margens de lucro obtidas com a venda de alimentos: um alqueire de farinha de mandioca (cerca de 13 litros), que em São Paulo custava 600 réis, era vendido nas minas por módicos 43 mil réis. A libra de açúcar saltava dos 120 para 1,2 mil réis. Uma arroba de carne salgada, que custava 200 réis, era revendida por mais de 6 mil réis. Uma caixa da “famosa” marmelada paulista, que em Piratininga podia ser comprada por 240 réis, nas Geraes não saía por menos de 3,6 mil réis.  

A mineração de ouro na região nas Geraes também provocou um processo de super valorização da mão de obra africana, essencial para os pesados trabalhos nas cavas e nas demais atividades ligadas à mineração. Vejam essa citação de Afonso D’Escrangnolle de Taunay em sua obra História da Cidade de São Paulo

“Um negro que conhecia o ofício da mineração chegava a valer 250$000 réis; pretinhos de 10 meses 8$000 réis; aos 2 anos 30$000 réis; uma negra ladina cozinheira 500$000 réis e uma mulata ‘de partes’ 900$000 réis.” 

Uma segunda importante frente de fornecimento de alimentos para a região das Geraes eram os sertões do Semiárido Nordestino, que há muito passaram a abrigar as boiadas expulsas do litoral açucareiro. Acompanhando o curso do rio São Francisco, os criadores de gado conduziam suas boiadas na direção dos sertões das Minas Geares e as vendiam com grandes margens de lucro. Um boi de corte que podia ser comprado por 2 mil réis nas cidades do litoral do Nordeste chegava a ser vendido por 120 mil réis nas Geraes

Além dos altíssimos gastos com a compra de alimentos e outros produtos, os mineradores eram obrigados a pagar um imposto – o “quinto” ou 20% do ouro extraído, aos cofres da Coroa de Portugal. O Governo Colonial montou uma grande estrutura burocrática na Região das Geraes para fiscalizar e acompanhar todas as operações de lavra e fundição do ouro. O Governo de Portugal estabelecia um volume de ouro que precisava ser arrecadado a cada ano – em 1750, citando um exemplo, o Marquês de Pombal – Sebastião José de Carvalho e Melo, secretário de Estado do Reino de Portugal durante o reinado de Dom José I, estabeleceu a quota mínima anual de 150 arrobas ou 1.500 kg de ouro

Quando essa cota não era atingida, as Autoridades realizavam a “derrama” – um cobrança compulsória de impostos extras para se atingir a cota de arrecadação anual. Essas “derramas” eram uma fonte contínua de protestos entre os mineradores. O Governo Colonial também cobrava impostos sobre alimentos e produtos, na compra e venda de escravos, além de taxas sobre a prestação de serviços por mão de obra livre, entre outras – nada muito diferente da pesadíssima carga tributária atual do Brasil

A “carestia dos alimentos” e os pesados impostos daqueles tempos se abateu sobre a imensa maioria dos aventureiros que se arriscou nas atividades mineradoras. Essa gente trabalhou e sofreu muito para obter algum ouro, mas não conseguiu juntar praticamente nenhum patrimônio – muitos, inclusive, morreram na mais completa miséria. Foram muito poucos os que conseguiram fazer fortuna. 

Para a Coroa de Portugal, os constantes fluxos de cargas de ouro vindos de sua grande Colônia Sul-americana garantiram um longo período de prosperidade econômica. Outra nação que se beneficiou muito do ouro brasileiro foi a Inglaterra, que recebeu grandes volumes do metal a partir de suas transações comerciais com Portugal. Segundo alguns historiadores, foram essas reservas de ouro que ajudaram a financiar as empresas e indústrias na Revolução Industrial inglesa que teve início em meados do século XVIII

A exploração do ouro também marcará o início da decadência da indústria açucareira, que entrou em queda livre em meados do século XVIII, tanto pela fuga de capitais e homens em direção aos sertões do Brasil na busca do ouro quanto pela concorrência dos engenhos de açúcar holandeses, franceses e ingleses na região do Caribe. O golpe final nesta indústria virá com a transferência da capital da Colônia da cidade de Salvador para o Rio de Janeiro em 1763 – os caminhos para a produção e o escoamento do ouro eram mais fáceis a partir das terras fluminenses. 

É interessante como a história repete de tempos em tempos os mesmos eventos: na década de 1980 houve uma corrida do ouro dos tempos modernos em Serra Pelada, no estado do Pará, que rapidamente se transformou no maior garimpo a céu aberto do mundo. Oficialmente, foram retiradas 30 toneladas de ouro, num trabalho que chegou a mobilizar 30.000 garimpeiros.

A grande quantidade de ouro encontrado no local transformou o metal em moeda corrente: tudo era pago em ouro, a preços escorchantes – da cachaça ao almoço, da moradia às prostitutas. Assim como aconteceu no passado, foram muito poucos os que conseguiram ficar milionários com o ouro de Serra Pelada. 

Segundo as estimativas oficiais, as minas de ouro das Geraes produziram perto de mil toneladas de ouro ao longo de todo o século XVIII. Esses volumes, entretanto, podem ter sido bem maiores – foram muitos os descaminhos e os desvios de ouro a fim de fugir do pagamento dos pesados impostos ao Fisco da Coroa. Um dos exemplos mais conhecidos foram os “santos do pau oco”, imagens de santos com compartimentos secretos para o transporte de ouro em pó. Nunca saberemos ao certo o volume total de ouro que foi extraído da região. 

Ao final do século XVIII, as inúmeras cidades que surgiram por toda a região das Minas Geraes entraram em um franco processo de decadência. Sem as riquezas geradas pela mineração do ouro, a agricultura e a pecuária, atividades até então desprezadas, passaram a ganhar importância. A mão de obra especializada na mineração e forja do ouro, gradativamente, passaria a se dedicar a outro metal abundante na região – o ferro, matéria prima do aço, o mais importante metal usado pela humanidade.  

Há aqui um detalhe importante – atividades ligadas à siderúrgia precisam de grandes volumes de carvão para alimentar os altos fornos. Sem contar com reservas de carvão mineral, os mineiros se voltariam contra as suas florestas para obter carvão de origem vegetal. E a Mata Atlântica acabou se transformando na maior fornecedora de madeira para as carvoarias… 

Falaremos disso na próxima postagem.

A INTERIORIZAÇÃO DA DESTRUIÇÃO DA MATA ATLÂNTICA NO PERÍODO COLONIAL

Muito se fala da destruição da Floresta Amazônica, chamada por muitos de “a maior floresta e o pulmão do mundo”. 

Essa temática, que vem sendo repetida à exaustão nos últimos tempos, contém, pelo menos, dois grandes erros: em primeiro lugar, a Amazônia não é a maior floresta do mundo – esse título, conforme já apresentamos em postagem anterior, pertence a Taiga, a Floresta Boreal ou das Coníferas. A Taiga ocupa uma superfície total de 15 milhões de km², o que é quase três vezes o tamanho da Floresta Amazônica

A Floresta Amazônica também não é o pulmão do mundo – 54% do oxigênio do planeta é produzido pelas algas e fitoplanctons dos oceanos; os outros 46% são produzidos por diversos sistemas florestais ao redor do planeta, onde está incluída a Floresta Amazônica

Para chatear um pouco mais esse pessoal – cerca de 85% do bioma Amazônico (não confundir com Amazônia Legal ou outras definições que são usadas) ainda está preservado. Se a conta incluir a superfície dos rios da Bacia Amazônica, que são muitos e bem caudalosos, essa porcentagem de área preservada da Floresta Amazônica chega próximo dos 87%. Ao ritmo em que andam as pressões internacionais em prol da conservação da Amazônia, esse grau de conservação vai se manter por muito tempo ainda. Amém! 

Já a Mata Atlântica, bioma que raramente é lembrado nacionalmente e é praticamente desconhecido a nível internacional, essa é uma das florestas tropicais mais devastadas e ameaçadas do mundo. Segundo as estimativas mais recentes, algo entre 90% e 93% da Mata Atlântica já desapareceu por causa de ações humanas

Nas últimas postagens falamos bastante da indústria canavieira em nosso país aos tempos do Período Colonial, quando praticamente todo o trecho nordestino da Mata Atlântica sucumbiu diante do avanço implacável dos canaviais. Há época da chegada da esquadra de Pedro Álvares Cabral em 1500, só para relembrar, a Mata Atlântica cobria cerca de 1,2 milhão de km² ou 15% do território brasileiro. A floresta se estendia do Rio Grande do Sul ao Rio Grande do Norte, com alguns trechos da mata avançando pelo interior do país e chegando até o Leste do Paraguai e Nordeste da Argentina. 

Ao longo dos primeiros séculos da nossa colonização, a indústria açucareira ocupou uma extensa faixa de costa entre o Sul do Estado da Bahia e o Rio Grande do Norte, com cerca de 1.500 km de extensão. De acordo com as informações históricas, a largura da Mata Atlântica na região variava entre 60 e 80 km. Fazendo os devidos cálculos, chegaremos a uma área total ocupada pela cultura entre 90 mil e 120 mil km². Essa área correspondia a aproximadamente 10% da antiga área da Mata Atlântica no país

Sem conseguir maiores êxitos, engenhos também foram erguidos no Sul do Estado da Bahia, no Espírito Santo e na Capitania de São Tomé (que ocupava o Sul capixaba e o Norte fluminense, porém sucumbiram diante da fúria dos indígenas. No litoral paulista, onde foram criadas as capitanias de São Vicente e de Santo Amaro, foram os constantes ataques de piratas e corsários os responsáveis pelo fracasso da indústria açucareira. Esses fracassos ajudaram esses trechos da Mata Atlântica a ganhar uma sobrevida. Já na Capitania do Rio de Janeiro, principalmente ao redor da Baía da Guanabara, houve um sucesso relativo.

Uma segunda frente de ataque a Mata Atlântica teve início com as descobertas de ouro nas Minas Geraes, ciclo iniciado em 1693 com as primeiras notícias das descobertas. Originalmente, a Mata Atlântica ocupava toda a faixa Leste de Minas Gerais, cobrindo cerca de 47% da superfície do Estado, a chamada Zona da Mata. Bandeirantes paulistas liderados por Manuel Borba Gato, dando continuidade às explorações iniciadas por seu genro – Fernão Dias Paes, encontraram minas de ouro na Serra do Sabarabuçu. 

Uma verdadeira febre do ouro tomou a Colônia após a divulgação das primeiras notícias desses achados auríferos nas Geraes e provocou uma corrida sem precedentes para os sertões. Até meados do século XVIII, perto de 2/3 da escassa população brasileira, estimada há época em 500 mil habitantes, abandonaria a cultura da cana de açúcar no litoral, especialmente na região Nordeste, e seguiria rumo aos sertões das Geraes para se aventurar como garimpeiros.  

O vale do Rio São Francisco, já densamente povoado e ocupado pelas fazendas de gado, foi o caminho seguido pela maior parte dessa corrente migratória, que se espalhou ao longo dos rios de toda a sua bacia hidrográfica e regiões lindeiras nas Geraes. Na busca alucinada pelo valioso ouro, cada pedra do leito e das margens dos rios foi revirada e cada barranco escavado, começando-se assim um intenso e contínuo processo de devastação ambiental. Nas palavras de Afonso d’Escragnolle Taunay

“Intensa foi em todo o Brasil a crise determinada pela formidável perturbação aurífera, sob os pontos de vista social, econômico, sobretudo psicológico.” 

Os garimpeiros e aventureiros começavam os seus trabalhos de prospecção revirando os cascalhos do leito e das margens dos rios procurando as pedras “pretas”, indicativo da presença do chamado ouro de aluvião. Um sobrenome muito comum em Minas Gerais – Catapreta, é uma lembrança desses tempos aventureiros. Esgotadas as possibilidades de sucesso nos rios, os barrancos próximos começavam a ser escavados. 

A vegetação marginal, conhecida como mata ciliar, era completamente devastada numa faixa que podia superar a marca de muitas centenas de metros e os solos passavam a ser escavados em busca de sinais da presença de outo ou pedras preciosas. Esse tipo de vegetação, onde se incluem as famosas veredas dos contos de Guimarães Rosa, as matas de galeria, brejos e vegetação das lagoas marginais, entre outras, são fundamentais para proteger as margens dos processos erosivos e também formam refúgios para a vida animal. 

Além dos impactos ligados diretamente às atividades mineradoras, essa grande população precisava também de madeira para a construção de casas e de infraestrutura para as minas, lenha para cozinhar, de campos para o plantio de roçados rudimentares de milho e mandioca para proporcionar uma alimentação básica. Conforme os volumes de ouro passaram a ser significativos, passou a ser necessária a construção das casas de fundição – tanto as oficiais da Coroa de Portugal, quando as clandestinas, onde o ouro era derretido, purificado e transformado em barras para o transporte até o litoral. 

Ao longo de todo o século XVIII, cidades importantes como São João del Rei, Congonhas do Campo, Diamantina, Sabará e Ouro Preto (vide foto), entre muitas outras, foram surgindo e se consolidando por toda as regiões de mineração. As populações dessas cidades precisavam de alimentos, lenha, água, vias de transporte e outros recursos. Começaram a surgir fazendas, sítios, granjas e outros estabelecimentos para a criação de animais, estradas foram abertas e novos contingentes de migrantes não paravam de chegar. Minas Gerais se transformou no coração e alma da Colônia e cada vez mais matas eram derrubadas. 

Diferentemente do que ocorreu com o trecho nordestino da Mata Atlântica, onde grandes trechos contínuos de vegetação foram destruídos pela força do fogo para a abertura de grandes campos de cana de açúcar, na Região das Geraes essa destruição foi feita numa espécie de “trabalho de formigas”. Dezenas de milhares de clareiras foram surgindo na matas por todos os lados – essas clareiras foram se encontrando paulatinamente com o passar do tempo e longos trechos de mata foram desaparecendo. 

Foi uma época “dourada” – calcula-se que cerca de mil toneladas de ouro saiu das Geraes ao longo de todo o século XVIII e teve como destino os cofres da Coroa em Portugal. Já os custos ambientais dessa epopeia, esses ficaram para nós brasileiros. 

A FRACASSADA CAPITANIA DE SÃO TOMÉ E OS “SETE CAPITÃES”

Na última postagem falamos dos problemas de povoamento e de produção agrícola na então Capitania do Espírito Santo. Grande parte do território da Capitania era ocupado por nações indígenas hostis como os botocudos e os goitacás. Apesar de algumas fontes históricas afirmarem que a região “produzia o melhor açúcar do Brasil”, a indústria açucareira não prosperou no Espírito Santo, o que beneficiou, e muito, a Mata Atlântica local. 

Naquela época, o trecho Sul do atual Estado do Espírito Santo, a partir do rio Itapemirim, e a faixa Norte do atual Estado do Rio de Janeiro, a partir da cidade de Macaé, formavam a Capitania de São Tomé, também conhecida como Capitania do Paraíba do Sul ou ainda como Capitania dos Campos dos Goytacazes. Fundada em 1539 e abandonada em 1548, essa Capitania foi uma das mais efêmeras tentativas de colonização do litoral brasileiro. 

O Donatário da Capitania de São Tomé foi o fidalgo português Pedro de Góis que, segundo muitas fontes históricas, veio para o Brasil na expedição exploratória dos irmãos Martin Afonso de Sousa e Pero Lopes de Sousa. As terras dessa Capitania se estendiam por uma faixa de 30 léguas entre a Capitania do Espírito Santo, do donatário Vasco Fernandes Coutinho, e o Segundo Quinhão da Capitania de São Vicente de Martim Afonso de Sousa, que englobava terras da região do Vale do Paraíba, no atual Estado de São Paulo, e a faixa Sul do atual Estado do Rio de Janeiro. 

Segundo o relato de Gabriel Soares de Souza em seu Tratado Descriptivo do Brazil, obra publicada em 1587, Pedro de Góis voltou para Portugal por volta de 1536, quando enviou um pedido ao Rei Dom João III solicitando a doação de um quinhão de terras na Colônia. Em seu pedido, Góis afirmava que, tendo vivendo no Brasil na companhia dos irmãos Sousa, “acabou por se afeiçoar à terra”. El-Rei atendeu à solicitação de Pedro de Góis, que recebeu o foral ou o título de posse das terras em 1537. O fidalgo retornou ao Brasil em 1538 e em 1539 fundou a Vila da Rainha, atual São Francisco de Itabapoana, na região do Baixo Paraíba do Sul. 

De acordo com o relato de Gabriel Soares de Souza, os primeiros dois anos da ocupação da Capitania de São Tomé foram bastante produtivos, inclusive com uma convivência pacífica com os índios goitacás. Os portugueses construíram a infraestrutura básica da vila e iniciaram a plantação dos campos de cana de açúcar. Foi então que começou um período de “cinco ou seis anos” de conflito com os indígenas das tribos goitacás e puris.  

Pedro de Góis, que teria voltado para Portugal para angariar mais recursos para investir na Capitania, encontrou a vila completamente destruída quando voltou. Os colonizadores foram então remanejados para a Capitania do Espírito Santo. Pedro de Góis resolveu abandonar o empreendimento em 1548 e voltou para Lisboa. 

Pouco mais de cinquenta anos depois, já no início do século XVII, Gil de Góis da Silveira, herdeiro de Pedro de Góis (existem divergências entre as fontes – algumas afirmam que ele era filho de Pedro de Góis e outras informam que era neto), reclamou o direito de posse das terras junto à Coroa e retomou o projeto da Capitania com a fundação da Vila de Santa Catarina de Mós (a localização exata dessa vila é incerta). 

Segundo as informações históricas disponíveis, Gil de Góis também conseguiu estabelecer uma convivência pacífica com os indígenas. Consta que, para agradar os “silvícolas”, Góis e sua esposa adotaram uma menina indígena de nome Catarina. Anos mais tarde, quando Catarina já tinha por volta de treze anos de idade, Dona Francisca Del Aguiar Manique, esposa de Gil de Góis, descobriu que o marido estava tendo um “caso” com a filha adotiva e ficou enfurecida. Aproveitando-se de uma viagem de Gil de Góis, Dona Francisca açoitou a garota com um chicote – a garota conseguiu fugir e foi buscar refúgio em sua antiga tribo. 

Esse incidente “doméstico” revoltou os índios, que atacaram e destruíram completamente a Vila de Santa Catarina de Mós. Gil de Góis conseguiu sobreviver ao ataque e, em 1619, renunciou a Capitania em favor da Coroa de Portugal. A região foi abandonada e os indígenas retomaram todos os seus antigos territórios. 

A história da região mudaria de rumos em 1627, quando o Governador do Rio de Janeiro, Martim Corrêa de Sá, recebeu ordens da Coroa Portuguesa para dividir o território em sesmarias e distribuir as terras entre diversos solicitantes, os chamados “Sete Capitães”. Esses homens eram veteranos de lutas contra as nações indígenas dos tupinambás e dos tamoios e, “por suas lutas em prol da Coroa” solicitaram as terras “ao Norte do rio Macaé“. Em um trecho da carta de solicitação de terras escreveram: 

“Nós, portugueses, fomos vencedores. Não pela coragem superior a nossos adversários, porém pela vantagem das armas de fogo e disciplina, que nos asseguravam sobre homens nus, que não podiam opor-nos mais que a sua intrepidez; fizemos neles uma grande mortandade, ficando abandonadas as suas povoações: os tamoios ficaram de todo aniquilados, e o resto dos tupinambás abandonaram as montanhas vizinhas e seguiram para o norte” 

A solicitação dos “Sete Capitães” foi atendida em 27 de agosto de 1627 e eles receberam uma extensa faixa de terras entre o rio Macaé e o Cabo de São Tomé, terras que seriam incorporadas ao território do Rio de Janeiro. Eram esses Capitães: Miguel Arias Maldonado, Gonçalo Correia, Duarte Correia, Antônio Pinto, João de Castilho, Manoel Correia e Miguel Riscado. 

Os belicosos índios goitacás de outrora já não eram tão temidos. Desde os tempos dos Góis, a nação havia sofrido com diversas epidemias, especialmente de varíola, e o número de índios na região diminuiu muito. Relatos dessa época afirmam que as mortandades de índios durante essas epidemias chegavam à casa dos 80%. Escritos deixados por alguns dos Capitães afirmam que sete homens brancos, entre náufragos e degredados, foram encontrados vivendo com os goitacás. Um outro relato afirma que um homem negro, provavelmente um escravo fugitivo, também foi encontrado vivendo com os índios. 

A partir de 1633, as terras concedidas passaram a ser demarcadas e foram criadas diversas fazendas para alguns dos Capitães e seus herdeiros. Diferentemente da proposta inicial da Capitania de São Tomé, que pretendia transformar a região num imenso canavial, os novos proprietários resolveram se aproveitar dos grandes campos naturais e da fartura de águas na região para se dedicar à criação de gado.  

A região de entorno da Baía da Guanabara já concentrava uma grande população naqueles tempos e havia uma grande demanda por carne e outros alimentos, além da necessidade de bois para os trabalhos nos engenhos de açúcar. Há registros históricos que confirmam que o Rio de Janeiro abrigava perto de 100 engenhos de cana há época, a maioria de pequeno e médio porte e com uma produção muito aquém dos grandes engenhos do Nordeste

O primeiro engenho de açúcar da região do Norte fluminenses só seria construído em 1650 e a indústria açucareira só se desenvolveria na região ao longo do século XVIII, ganhando grande importância apenas no século XIX. É interessante observar que os engenhos do Norte fluminenses prosperaram em um momento de lenta decadência da indústria açucareira na Região Nordeste, que passou a perder mão de obra para as minas de ouro da Região das Geraes e a sofrer forte concorrência com os engenhos de açúcar da região do Mar do Caribe, isso sem citar os graves problemas de esgotamento dos solos.

Falando novamente da Região das Geraes, é preciso lembrar que o Ciclo do Ouro marcou o início de fortes impactos ambientais na Mata Atlântica em Minas Gerais, numa extensa região que ficou conhecido como a Zona da Mata

A partir da próxima postagem, vamos abandonar temporariamente a faixa da Mata Atlântica ao longo do litoral do Brasil e seus problemas, deixando de falar inclusive sobre os importantes engenhos do Rio de Janeiro, e acompanharemos o início dos desmatamentos no interior das Minas Geraes a partir da descoberta das minas de ouro. 

A CAPITANIA DO ESPÍRITO SANTO E O “MELHOR AÇÚCAR” DO BRASIL COLONIAL

Enquanto a indústria do açúcar prosperava fortemente ao longo de uma extensa faixa da Região Nordeste do Brasil Colonial e consumia a “ferro e a fogo” a densa floresta tropical – a Mata Atlântica, alguns trechos do litoral brasileiro conseguiram resistir ao iminente avanço dos canaviais e as matas nativas nessas regiões tiveram uma sobrevida importante. Um desses casos foi o Espírito Santo, onde um grande trecho da Mata Atlântica sobreviveu até meados do século XX.  

Da mesma forma como ocorreu com as matas do Sul do Estado da Bahia, onde floresceria a indústria cacaueira no século XIX, as matas capixabas ficariam a salvo por muito tempo graças a presença de populações indígenas extremamente hostis como a dos botocudos (vide imagem) e dos goitacás. Vamos entender essa história. 

Pero de Magalhães Gandavo foi um historiador e cronista português que publicou em 1576 um dos primeiros relatos sobre o Brasil – A História da Província de Santa Cruz, a que vulgarmente chamamos Brasil. Nesse livro, Gandavo apresenta um censo com o número total de engenhos de cana de açúcar em operação no Brasil há época. Um detalhe interessante dessa descrição é sua referência ao Espírito Santo, Capitania que possuía “um engenho, tira-se dele o melhor açúcar que há em todo o Brasil“. 

Uma outra referência interessante em relação à nascente indústria açucareira do Espírito Santo foi feita pelo Professor Hélio Viana (1908-1972), jornalista, historiador e autor de diversos livros sobre a história do Brasil. Viana nos informa que “o primeiro açúcar brasileiro de que se tem certeza, saiu do Espírito Santo em 1545”. Essa afirmação do emérito professor não citou a fonte ou o documento que comprove essa informação, algo que cria muita controvérsia sobre a veracidade desse fato entre os especialistas. 

Sem entrarmos em maiores detalhes, o fato é que a indústria açucareira na Capitania do Espírito Santo teve um destino muito semelhante aquele das suas congêneres nas Capitanias de São Vicente e de Santo Amaro – uma vida curta e tumultuada. Além de ter sofrido ataques de corsários como o do inglês Thomas Cavendish, o mesmo que atacou e incendiou as vilas de Santos e São Vicente em 1591, os engenhos capixabas sofreram muito ao longo dos anos com os inúmeros ataques de tribos indígenas hostis. 

O Donatário da Capitania do Espírito Santo foi o fidalgo e militar português Vasco Fernandes Coutinho, que se destacou em inúmeras conquistas militares de Portugal na Ásia e na África. Fernandes Coutinho recebeu o foral, o título de posse das terras, em 1534 e no ano seguinte, já no Brasil, fundou a Vila do Espírito Santo (atual Vila Velha), após “desterrar e dizimar” as tribos indígenas que habitavam essa região. O território da sua Capitania compreendia “50 léguas de costa, entre os rios Mucuri e Itapemirim”. 

Os indígenas expulsos pelos portugueses passaram a viver nas matas ao redor da Vila do Espírito Santo e, constantemente, organizavam ataques e tocaias contra os colonos. A Capitania também viria a sofrer com constantes ataques de corsários franceses e holandeses, que tinham como objetivo conquistar seu próprio quinhão de terras no litoral do Brasil. Lembro aqui que os franceses fundariam a França Antártica no Rio de Janeiro, em 1555, e a França Equinocial no Maranhão, em 1612, ambas tentativas fracassadas. Já os holandeses, esses conquistariam e ocupariam uma grande faixa de terras na região Nordeste entre 1630 e 1654. 

Depois de vários anos sob ataque dos indígenas, os portugueses decidiram se transferir para a Ilha de Santo Antônio, na Baía de Vitória, em 1551. Essa ilha era chamada de Guanaani pelos indígenas e possibilitava melhores condições para a segurança e defesa da população. Os portugueses fundaram na ilha a Vila Nova do Espírito Santo, que mais tarde seria conhecida com o nome de Vitória – a antiga ocupação no continente passaria a ser conhecida como Vila Velha. 

Existem inúmeros relatos, principalmente de religiosos, descrevendo os ataques dos índios botocudos e goitacás a vilas e engenhos, onde matavam a maioria dos colonizadores e destruíam todas as construções. Incapazes de conter a fúria dos indígenas, as Autoridades Coloniais optariam por deixar um grande “vazio” no mapa do litoral entre a região de Ilhéus, na Bahia, e a Vila do Espírito Santo. Pero de Magalhães Gandavo deixou a seguinte impressão sobre os índios botocudos: 

“Chamam-se Aymorés, a língua deles é diferente dos outros índios, ninguém os entende, são eles tão altos e tão largos de corpo que quase parecem gigantes; são muito altos, não parecem com outros índios da Terra.” 

Além de enfrentar todos os problemas criados pelas tribos indígenas, Vasco Fernandes Coutinho também se viu envolvido por disputas políticas entre diferentes grupos de colonos portugueses que viviam nas terras na Capitania. A concessão da Capitania, que a princípio parecia ser um prêmio pelas grandes conquistas militares de Fernandes Coutinho, pouco a pouco foi se transformando em um verdadeiro pesadelo. O desencanto levou o Donatário a desistir do empreendimento e a transferir, ainda em vida, o foral para seus herdeiros, que nunca atingiriam um grande sucesso administrativo e econômico. 

Ao longo de todo o século XVII, a já complicada situação da Capitania do Espírito Santo se agravaria ainda mais devido as notícias das descobertas de ouro na região das Geraes. Muitos colonos desistiriam dos trabalhos na agricultura e partiriam para os sertões para se aventurar no garimpo. Muitos grupos de capixabas chegariam a organizar suas próprias “bandeiras” (há registros históricos de pelo menos 14 dessas expedições) e, a exemplo dos bandeirantes paulistas, se embrenhariam nas matas ao longo da bacia hidrográfica do rio Doce em busca de ouro e pedras preciosas. 

Preocupada com as repercussões das descobertas auríferas, a Coroa Portuguesa criaria a política de “Areas Phroibidas” no Espírito Santo, onde o principal objetivo era dificultar o acesso de aventureiros, principalmente estrangeiros, ao território das Minas Geraes. Foi publicado um Decreto Real que limitava o povoamento, as construções e as expedições a uma faixa de 3 léguas (15 km) do litoral capixaba, especialmente nas proximidades da região da foz do rio Doce.  

A incipiente indústria açucareira na Capitania e o ““melhor açúcar produzido no Brasil” não resistiriam a toda essa somatória de problemas – a agricultura e o povoamento no Espírito Santo só voltariam a ganhar fôlego em meados do século XIX com a chegada do café ao Estado. Para se ter uma ideia da situação, em 1880 apenas 15% do território capixaba era habitado

A história tumultuada do Espírito Santo foi bastante benéfica para o meio ambiente – grande parte da cobertura florestal de Mata Atlântica no Estado resistiria até meados do século XX, quando então passou a sucumbir devido a uma forte demanda por madeiras para uso na construção de Brasília, a nova capital do Brasil que seria inaugurada em 1960. Trataremos desse tema em uma futura postagem. 

Para encerrar – existe uma informação bastante didática sobre a cobertura florestal no território capixaba daqueles tempos antigos – de acordo com o Atlas dos Ecossistemas do Espírito Santo, edição de 2008, quando a Vila do Espírito Santo foi fundada em 1535, cerca de 87% do território capixaba era coberto por florestas de Mata Atlântica. Atualmente, resta menos de 8% da cobertura original do bioma no Estado.