O PAU-BRASIL, AS ONÇAS E OS PAPAGAIOS FALANTES DA MATA ATLÂNTICA

Descoberta do Brasil

Todos aprendemos ainda nos primeiros anos do ensino fundamental que a descoberta do Brasil se deu em 22 de abril de 1500. Depois de uns poucos dias em terra, a esquadra portuguesa comandada por Pedo Álvares Cabral retomou sua viagem para a Índia. Uma das naus retornou para Portugal, levando a famosa carta escrita por Pero Vaz de Caminha a El-Rei. Nessa carta, Caminha relatou as suas primeiras impressões sobre a exuberância dos solos, das matas, das águas e das gentes dessa nova terra, em um novo mundo. 

A exceção de algumas expedições exploratórias oficias que fizeram um mapeamento da costa nos anos seguintes, Portugal não demonstrou maiores interesses pelo país, se limitando a conceder a alguns empreendedores particulares o direito de exploração de recursos como o pau-brasil, uma madeira que produzia uma tinta valiosa há época. Sem uma presença física maior dos “donos” na terra (Portugal mantinha navios de patrulha em operações ao longo da costa), mercadores, exploradores e contrabandistas de diversas nações faziam a festa nas costas brasileiras. 

Um exemplo dessa falta de cuidado com a terra pode ser visto no caso da nau francesa La Pèlerine, que atracou na ilha de Itamaracá, atual Estado de Pernambuco, em março de 1532. Além dos marinheiros, essa nau trazia um destacamento com 120 soldados, que rapidamente tomaram uma pequena feitoria com portugueses. Os franceses construíram uma fortificação provisória, dotada inclusive de canhões. Uma guarnição com 30 homens, sob o comando do capitão De la Motte, ficou estabelecida nessa fortificação. O objetivo dos franceses era garantir uma possessão na terra que lhes permitisse explorar os fabulosos recursos da mata, que depois seria chamada de Mata Atlântica. 

Pouco tempo depois, a nau La Pèlirene retornou para a França levando uma carga que incluía “três mil toras de pau-brasil, três mil peles de onça, muita cera e até seiscentos papagaios falantes”. Para azar dos franceses, a nau acabou interceptada por uma esquadra portuguesa enquanto cruzava o Estreito de Gibraltar. Esse episódio assustou a Coroa de Portugal, que rapidamente implementou a política das Capitanias Hereditárias e ainda em 1532 teve início a colonização efetiva do Brasil. 

Eu comecei a postagem relembrando esses fatos históricos por que a fabulosa Mata Atlântica fascinou os europeus à “primeira vista” e suas riquezas despertaram a cobiça de muita gente. Citando como exemplo o pau-brasil, que de tão valioso pode ter inspirado o nome que foi dado a nova terra, foram derrubadas mais de 70 milhões de árvores entre o início do século XVI e meados do século XIX. 

Para se ter uma ideia dos volumes de pau-brasil retirados da Mata Atlântica e “exportados” para a Europa, podemos analisar as grandes montanhas de blocos de rocha que foram abandonados na costa brasileira. Esses blocos eram embarcados em Portugal nas naus vazias que se dirigiam para a nossa costa e atuavam como estabilizadores da flutuação.  

Chegando aos pontos de embarque, os blocos de lastro eram descartados e o peso da carga de pau-brasil assumiria essa função. O Forte dos Reis Magos, em Natal – Rio Grande do Norte, foi totalmente construído com blocos de lastro descartados pelos navios cargueiros. A exploração do pau-brasil foi o marco inicial de um contínuo processo de degradação ambiental que dura até os nossos dias. 

À chegada dos primeiros exploradores europeus, a Mata Atlântica era uma floresta contínua que ocupava toda a faixa litorânea de nossa costa desde o Rio Grande do Sul até o Rio Grande do Norte. Em alguns trechos, a floresta entrava pelo interior do território e chegava a regiões do Norte da Argentina e Oeste do Paraguai. De acordo com as estimativas, a Mata Atlântica ocupava originalmente uma área com cerca de 1,3 milhão de km², o que corresponde a aproximadamente 15% do território brasileiro

Diferente das paisagens polinésias que vemos atualmente, o primeiro trecho da Mata Atlântica visitado pelos europeus na Região Nordeste apresentava uma floresta densa, com uma largura que variava entre 60 e 80 km e se espremia entre o Agreste, no interior, e as águas do Oceano Atlântico. Os imensos coqueirais que hoje encontramos em todo o trecho nordestino do litoral brasileiro são uma consequência da destruição praticamente total da Mata Atlântica na região. O coco, só para lembrar, é originário das regiões do Indo-Pacífico e foi trazido ao Brasil por navios mercantes vindos da Índia

De acordo com o livro História das Expedições Científicas no Brasil, de C. de Mello-Leitão, nosso país era considerado até fins do século XVI como um “desprezível quinhão das gloriosas conquistas portuguesas, terra que dava mais trabalhos e canseiras que vantagens”. O desprezo pelo Brasil era tamanho na ocasião que altas autoridades do clero nessa época chegaram a recomendar a venda da terra para a rainha Catarina de Médici (1519-1589), da França. 

Mesmo após a divisão do território nas famosas Capitânias Hereditárias, quase nenhum esforço científico foi feito para estudar a flora e a fauna da Mata Atlântica. Os Donatários das Capitanias não receberam qualquer obrigação legal de realizar quaisquer explorações científicas em seus quinhões de terra. Toda a exploração se limitava a linha da costa e a alguns rios de maior tamanho. Os Donatários estavam preocupados apenas em manter as costas livres de piratas e contrabandistas, além de “cuidar da ferocidade dos indígenas”. 

As primeiras observações mais próximas do que podemos chamar de “científicas” coube aos padres Jesuítas. Em suas campanhas de penetração pelos sertões em busca de catequizar e educar os indígenas, esses padres passaram a fazer observações textuais sobre “as regiões e suas riquezas, seus frutos, sua fauna, seus habitantes, rios navegáveis e os caminhos”. Essas anotações eram bastante genéricas e baseadas em grande parte nas opiniões dos religiosos e quase nada em qualquer metodologia científica. 

Preocupados com a abertura de grandes campos agrícolas para o plantio da cana e produção do açúcar, o produto mais valioso há época, os grandes Donatários iniciaram um processo de destruição contínua do trecho nordestino da Mata Atlântica, que se estenderia por cerca de três séculos. Muitas espécies animais e vegetais desapareceram nesse período, antes que qualquer anotação ou observação fosse feita. 

Além do chamado Ciclo da cana de açúcar, as áreas de domínio da Mata Atlântica assistiriam ao avanço da mineração na região das Geraes, ao ciclo do café a partir do início do século XIX, ao nascimento e crescimento de inúmeras cidades e também o avanço da agricultura e da pecuária. Até meados do século XX, a maior parte da população brasileira vivia em áreas de Mata Atlântica. Como resultado de tudo isso, a Mata Atlântica é atualmente o bioma mais ameaçado do Brasil, restando menos de 10% da sua cobertura original

Dentro de nossa área principal de interesse aqui no blog – os recursos hídricos, essa destruição massiva da Mata Atlântica trouxe inúmeras consequências negativas para importantes rios, especialmente nos antigos domínios do bioma no litoral da Região Nordeste. O grande rio São Francisco, sobre o qual tratamos em postagens recentes, perdeu importantes volumes dos seus caudais vindos de rios com nascentes na Zona da Mata, em Minas Gerais, e também no trecho do Baixo do Velho Chico.

Ao longo das próximas postagens, vamos traçar um quadro geral da história da ocupação das áreas antes ocupadas pelos diferentes biomas que formavam a Mata Atlântica e analisar os principais impactos ambientais que surgiram e ainda surgem por toda uma grande área do Brasil. 

OS MITOS E AS LENDAS DAS MARGENS E ÁGUAS DO VELHO CHICO

Carranca do rio São Francisco

Sempre que falamos de rios, lagos, represas e outros corpos d’água, a primeira imagem que vem à nossa mente é a de um rasgo ou de uma depressão no solo cheia de água. Porém, um rio ou qualquer outro corpo d’água é algo que extrapola os limites do mundo físico das águas, dos relevos e das populações, e também flui sutilmente por caminhos imateriais. 

Simon Schama, escritor e historiador britânico, sintetizou esse sentimento com essa afirmação: 

“Ver um rio equivale a mergulhar numa grande corrente de mitos e lembranças, forte o bastante para nos levar ao primeiro elemento aquático de nossa existência intrauterina”. 

Em uma postagem anterior eu citei a “moura encantada”, um mito derivado de antigas lendas celtas do Norte de Portugal, da Galícia e todo o Norte da Espanha e Oeste da França, que ilustra muito bem essa dimensão mítica das águas. Essa lenda fala de espíritos travestidos na forma de lindas mulheres, que eram vistos nas margens de rios e que encantavam os homens como as sereias.

Essas lendas sobreviveram aos romanos, aos suevos, aos muçulmanos e também ao predomínio do cristianismo na Península Ibérica. Ainda hoje, lendas sobre as mouras e as bruxas (as “mouras tortas”) estão muito presentes no folclore da Galícia e do Norte de Portugal. 

Aos tempos da chegada dos primeiros exploradores lusitanos ao litoral do Nordeste do Brasil, não foi de se estranhar a fascinação que as mulheres indígenas criaram nesses homens. As histórias que ouviam desde a infância e que falavam de mulheres de cabelos e olhos escuros, corpos bem formados e que se banhavam e se penteavam nas margens dos rios pareciam se tornar realidade.

Com o início da colonização do Brasil e, especialmente devido à falta de mulheres lusitanas e africanas, essas mulheres indígenas passaram a ter um papel fundamental como companheiras e esposas desses homens, gestando em seus ventres as primeiras gerações de “brasileiros”. 

Curiosamente, os indígenas da região Nordeste e das terras ao longo da bacia hidrográfica do rio São Francisco já tinham sua própria lenda sobre uma sereia das águas – a Uiara. Essa deusa das águas é de uma imensa beleza e possui cabelos longos. Ela costuma cantar nas noites de lua cheia. Pescadores, ribeirinhos e indígenas prestam suas homenagens ofertando presentes para a Mãe d’Água.

O mito da Uiara é muito parecido com o da Iara, dos indígenas da região da Bacia Amazônica, e também lembra muito as lendas de Iemanjá, a rainha do mar de origens africanas. Isso demosntra que as águas e margens do rio São Francisco se tornaram um ponto de encontro de mitos europeus, indígenas e africanos. 

Nêgo D'água

Outra criatura mítica que “vive” nas águas do rio São Francisco é o Nêgo D’água (vide imagem acima). Ele é descrito como uma criatura de pele escura e que tem a aparência de um rapaz de porte atlético. Tem a cabeça sem qualquer fio de cabelo e orelhas pontudas. Os pés e as mãos têm garras afiadas, com membranas interdigitais como os anfíbios. Vive no fundo Rio, junto com os surubins, dourados, piaus e curimatãs-pacus. Em outros rios do Brasil ele é conhecido como Caboclo D’água.  

Para alguns, ele é um protetor das águas. Para outros, uma terrível ameaça. Os ribeirinhos dizem que ele gosta de gargalhar forte, o que costuma apavorar quem está por perto. De vez em quando, ele se deita sobre as grandes pedras no meio do rio para tomar sol. Os pescadores fazem de tudo para não cruzar com o Nêgo D’água e sempre trazem uma garrafa de cachaça em seus barcos para uso “emergencial” nos casos de um encontro acidental: eles fazem a oferenda da bebida para que a criatura não vire a jangada ou a canoa. 

Muitos dizem que as oferendas de pouco adiantam: a brincadeira preferida do Nêgo D’água é atormentar os seres humanos tirando os peixes dos anzóis, partindo as linhas, rasgando as redes ou assustando quem estiver nos barcos. Também gosta de aterrorizar as mães: costuma carregar as crianças que tomam banho longe das margens do rio. 

Os ribeirinhos mais antigos também juram que no fundo do rio São Francisco se esconde um gigantesco e multicentenário surubim, conhecido como Minhocão. De tão velha, a criatura perdeu as suas barbatanas e o corpo ficou anelado e comprido como o verme. Quando enfurecido, o ser desfere golpes violentos contra as embarcações, que naufragam e vão, aos destroços, para o fundo do rio. O Minhocão também tem a má fama de escavar sob os barrancos da beira do rio, derrubando as casas dos “beiradeiros” que teimam em se aproximar perigosamente dos seus domínios. 

Outra tradição mitológica bastante característica do rio São Francisco é o uso das carrancas nas proas das embarcações. Marinheiros e pescadores são, desde os primórdios da história da humanidade, criaturas supersticiosas. A força, os perigos e os mistérios do mar, passados também para as águas dos grandes rios, deram origem a quantidades imensas de crendices e histórias folclóricas em todos os cantos do mundo. Relatos de monstros e serpentes marinhas, sereias, leviatãs, entre outras criaturas sobrenaturais, são encontrados ainda hoje na cultura popular de muitos povos.  

Antigos moradores das costas da Escandinávia, os vikings nos legaram um importante conjunto de tradições folclóricas e uma complexa mitologia. Os velozes barcos destes implacáveis bárbaros eram chamados de knörr, na versão curta para transporte de carga, e langskip, uma versão com casco mais longo usada em batalhas. Uma característica marcante dessas naus era a presença de um dragão ou cabeça de serpente marinha, conhecido como drakkar, esculpido em madeira na proa do barco.  

drakkar tinha a função de espantar monstros marinhos que, eventualmente, cruzassem o caminho da embarcação e, de quebra, colocavam em pânico qualquer população que avistasse uma dessas naus de perfil inconfundível navegando nas costas oceânicas dos mares do Norte. Um exemplo do terror que tomava conta das populações nesses ataques ainda pode ser encontrado na língua castelhana – quando as crianças não se comportam bem, as mães espanholas dizem que el  noruego” – o norueguês ou o viking, vai levá-las embora. 

Curiosamente e sem que haja uma explicação concreta para a prática, imagens antropomórficas muito parecidas com os antigos drakkar passaram a ser esculpidas pelas populações ribeirinhas do São Francisco a partir de meados do século XIX, e instaladas nas proas das embarcações, virando uma espécie de marca registrada do Velho Chico. 

Os ribeirinhos e pescadores passaram a atribuir características místicas às carrancas: espantar os maus espíritos, evitar que a embarcação afundasse ou que passasse por maiores perigos durante as fortes chuvas, além funcionar como um amuleto para atrair muitos peixes. Essa tradição, infelizmente, vem perdendo força – com a redução dos estoques pesqueiros e com as dificuldades na navegação no rio São Francisco, é cada vez menor o número de embarcações com carrancas singrando as águas do rio. 

Todos esses mitos e crendices das populações ribeirinhas e de pescadores podem ser encontrados nas águas e margens dos grandes rios do mundo. Um didático exemplo que podemos citar são os grandes rios da Bacia Amazônica. Devido à forte de presença da cultura dos povos indígenas na região, existem inúmeras encantarias e lendas associadas as águas

Sempre que falamos dos problemas ambientais que estão destruindo as águas de nossos rios, precisamos ter consciência que essa destruição extrapola os aspectos físicos e geográficos e atinge em cheio a toda uma herança cultural viva das populações ribeirinhas, dos pescadores e dos indígenas que vivem a longo das margens e que se “nutrem” das águas desses rios. 

O importante rio São Francisco não sofre apenas dos males da poluição, do assoreamento de sua calha e da redução dos caudais de suas águas. Muito dessa cultura e de todo esse conjunto de encantarias e lendas também estão a desaparecer, pouco a pouco. 

A NAVEGAÇÃO NO RIO SÃO FRANCISCO

Benjamim Guimarães

Uma forma de avaliarmos a “quantas anda” a saúde do rio São Francisco é verificarmos como está a navegação em suas águas. E as notícias, infelizmente, não vão ser das melhores. 

Pelas características dos terrenos que atravessa ao longo do seu curso de mais de 2.800 km, a calha do rio São Francisco nunca permitiu a navegação em todo o seu curso. Entre os principais obstáculos naturais para a navegação destaca-se a famosa Cachoeira de Paulo Afonso, um conjunto de degraus rochosos com um desnível total de mais de 80 metros. Outro obstáculo era o Salto do Sobradinho, hoje encoberto pelo Lago homônimo, um trecho rochoso do leito do rio e com fortes corredeiras. As intervenções humanas, especialmente a construção de barragens de usinas hidrelétricas sem eclusas para a navegação, ajudaram a complicar ainda mais a situação. 

O rio São Francisco pode ser dividido em quatro trechos diferentes: o Alto Rio São Francisco, que vai das nascentes na Serra da Canastra até Pirapora; o Médio, que vai de Pirapora, no Estado de Minas Gerais, até Remanso, na Bahia; o Submédio, localizado entre Remanso e Paulo Afonso e, finalmente, o Baixo Rio São Francisco, que vai de Paulo Afonso até a foz no Oceano Atlântico. Os trechos navegáveis se encontravam, em sua maior parte, nas regiões do Médio e Baixo Rio São Francisco.   

O Baixo Rio São Francisco começou a ser navegado ainda nos primeiros tempos da Colonização do Brasil. O historiador português Gabriel Soares de Sousa, autor do Tratado Descritivo do Brasil, publicado pela primeira vez em 1587, nos legou um breve registro dessa navegação:  

“Navega-se este rio com caravelões até a cachoeira, que estará da barra vinte léguas, pouco mais ou menos, até onde tem muitas ilhas, que o fazem espraiar muito mais que na barra, por onde entram navios de 50 tonéis pelo canal do Sudoeste, que é mais fundo que o do Nordeste.”   

Considerando que a légua portuguesa na época correspondia a aproximadamente 5 km (dependendo da fonte consultada, esse valor pode variar), essa antiga navegação subia pelas águas do rio São Francisco até 100 km da foz. As cidades de Penedo, em Alagoas, e Neópolis, em Sergipe, foram importantes portos fluviais neste período colonial, utilizados principalmente para o escoamento do açúcar produzido na região.  

Até algumas décadas atrás, embarcações menores, que tem pouco calado, conseguiam atingir o munícipio de Piranhas, no Estado de Alagoas, nas proximidades da barragem da Usina Hidrelétrica de Xingó e a cerca de 208 km da foz do rio. Com a contínua redução dos caudais do rio e a consequente redução da profundidade, a navegação por este trecho do rio São Francisco se tornou bastante perigosa

Outro importante trecho, que foi navegável e navegado por muito tempo, ligava a cidade de Pirapora, no Estado de Minas Gerais, até as cidades de Petrolina, em Pernambuco, e Juazeiro, no Estado da Bahia, numa extensão de 1.371 km. Atualmente, algumas embarcações menores, especialmente turísticas, ainda conseguem navegar além destas duas cidades, seguindo por alguns trechos entre os paredões do canyon e chegando até as proximidades de Paulo Afonso.  

Esse trecho navegável foi muito importante durante o chamado Ciclo do Ouro, que se estendeu por todo o século XVIII, quando foi intensa a navegação de barcaças com aventureiros e suprimentos através das águas do rio São Francisco na direção das Minas Gerais. Aqui é importante citar o rio Doce que, apesar de também permitir a navegação desde sua foz, no litoral do Espírito Santo, até as proximidades da região de Mariana, no coração das Geraes – com alguns obstáculos, é claro, não podia ser usado para navegação. O trecho final do rio era território dos implacáveis e ferozes índios botocudos, que resistiram aos invasores “brancos” até o final do século XIX. 

A navegação entre Pirapora e Petrolina/Juazeiro foi muito importante para o transporte regional de cargas e pessoas. Uma das mais icônicas embarcações a realizar esta viagem foi o vapor Benjamim Guimarães. Fabricado nos Estados Unidos em 1913, o vapor chegou a navegar pelas águas do rio Mississipi e da bacia Amazônica. Em meados da década de 1920, chegou ao rio São Francisco, onde fez história.  

Com capacidade para transportar até 170 passageiros, o Benjamim Guimarães (vide foto) gastava entre 3 e 5 dias para realizar a viagem, consumindo o equivalente a 1 m³ de lenha para cada hora navegada. Em 1955, todas as empresas de navegação foram encampadas pela União e o vapor Benjamim Guimarães, junto com outras trinta e uma embarcações, foi transferido para o Serviço de Navegação do São Francisco, passando depois para a Companhia de Navegação do São Francisco.  

A partir da década de 1960, com a abertura de estradas de rodagem e com a popularização cada vez maior dos transportes em ônibus e caminhões, essa rota fluvial foi perdendo importância e o número de embarcações foi sendo reduzido ano após ano. A degradação ambiental em toda a bacia hidrográfica também cobrou um alto preço, se refletindo em fortes reduções nos caudais, com o afloramento de rochas do fundo e com o surgimento de bancos de areia e de entulhos por grandes extensões – nos períodos de seca, a navegação por vários trechos desta antiga rota fluvial se tornou bastante difícil.  

Nos últimos anos, o transporte de cargas voltou a ganhar importância ao longo de um trecho de 560 km de águas do rio São Francisco e de alguns dos seus afluentes, como os rios Paracatu, Grande e Corrente. A Hidrovia do Rio São Francisco já transporta, anualmente, cerca de 60 mil toneladas de cargas, com um enorme potencial de crescimento. Devidos aos problemas de assoreamento em vários trechos, essa navegação é mais intensa nos períodos das chuvas, quando o nível dos rios da bacia hidrográfica aumenta consideravelmente. 

Com o forte crescimento do agronegócio na região conhecida como MATOPIBA, que engloba áreas do MAranhão, TOcantins, PIauí e BAhia, seria de se esperar um aumento do transporte de cargas agrícolas por via hidroviária em vários afluentes e em trechos do rio São Francisco. O Governo Federal está trabalhando na construção da FIOL – Ferrovia de Integração Oeste Leste, modal de transporte que vai ligar a Região Centro-Oeste até o Porto Sul, em Ilhéus no Sul da Bahia. Esse novo modal de transporte trará um grande potencial para integração de cargas transportadas através dessa hidrovia. 

Infelizmente, o avanço das fronteiras nessa extensa região de Cerrado implica na substituição de áreas de matas nativas por campos de soja e milho. Conforme já comentamos em postagens anteriores, o Cerrado abriga importantes aquíferos e lençóis subterrâneos de água, fundamentais na alimentação de nascentes de rios, muitos dos quais são afluentes do rio São Francisco. 

Ou seja – o grande potencial hidroviário de vários rios dessa região para o transporte de grãos produzidos no MATOPIBA está sendo comprometido pelo próprio avanço das frentes agrícolas nessa região. O transporte hidroviário é bem mais barato que o rodoviário, o modal mais utilizado para o transporte de grãos aqui no Brasil. Combinado com os baixos custos do transporte ferroviário, os fretes para o transporte dos grãos do MATOPIBA seriam imbatíveis e tornariam esses produtos extremamente competitivos no mercado interno e externo. 

Projetos de reflorestamento de grande envergadura em áreas de nascentes de riachos e rios em áreas de Cerrado, respeito ao Novo Código Florestal que estabelece a preservação de 35% da mata nativa em áreas de Cerrado e a realização de dragagem em trechos críticos tomados pelo assoreamento, são algumas medidas urgentes que precisam ser implementadas para que se estabilize a situação crítica atual do rio São Francisco, antes das coisas começarem a melhorar.  

Além de garantir a continuidade da navegação em trechos importantes do rio, essas medidas contribuirão para a melhorias dos volumes dos caudais e da qualidade das águas do nosso Velho Chico, além de contribuir muito para a preservação da ictiofauna nativa do rio

O APROVEITAMENTO DO POTENCIAL HIDRELÉTRICO DAS ÁGUAS DO VELHO CHICO

UHE Angiquinho

A inauguração de um novo trecho das obras do Projeto de Transposição das águas do rio São Francisco, no Estado do Ceará, reacendeu o debate sobre a importância de suas águas para um grande pedaço do território brasileiro. Chamado por muitos de rio da integração nacional, o importante São Francisco sofre com todo o tipo de agressões ambientais já há muitas décadas e não tem mais o vigor de outrora.  

Desmatamentos em antigas áreas de domínio de vegetação de Cerrado, projetos de mineração, lançamento de grandes volumes de esgotos residenciais e industriais, descarte de lixo e outros resíduos – essas são as agressões mais frequentes sofridas pelo rio São Francisco. Entre outras graves consequências, essas agressões vêm resultando numa redução contínua dos caudais do rio

Além de sua importância como manancial de abastecimento de água, o rio São Francisco abriga um importante conjunto de centrais hidrelétricas, fundamentais para o abastecimento da Região Nordeste há várias décadas. Em diversos momentos nos últimos anos, a redução drástica dos volumes de água armazenado nos reservatórios da calha do São Francisco ameaçou a geração de eletricidade em várias dessas centrais, o que acendeu novas “luzes de alerta” ao longo do rio. 

O primeiro aproveitamento do potencial hidrelétrico do rio São Francisco foi a Usina Hidrelétrica de Angiquinho, inaugurada em 1913 (vide foto). Essa pequena usina hidrelétrica foi o resultado dos esforços de Delmiro Gouveia (1863-1917), um empresário e empreendedor cearense, que enxergou o potencial da Cachoeira de Paulo Afonso no rio São Francisco e não poupou esforços para a construção da primeira usina hidrelétrica do Nordeste. 

A Usina Hidrelétrica de Angiquinho contava com três turbinas – uma de 175 kVa, uma segunda de 450 kVa e a terceira com 625 kVa. A energia gerada na unidade era transportada por uma rede elétrica a uma distância de 24 km até as fábricas de Delmiro Gouveia na cidade de Pedras, no interior do Estado de Alagoas. Nessa época, só havia algum abastecimento de energia elétrica nas principais capitais do Nordeste, com geração a partir de centrais termelétricas a carvão ou via queima de óleos combustíveis.   

Em 1921, durante o Governo do Presidente Epitácio Pessoa, foram realizados os primeiros levantamentos técnicos e topográficos da Cachoeira de Paulo Afonso e do rio São Francisco com vistas ao futuro aproveitamento para a geração hidrelétrica. Foi em meados da década de 1940, durante o Governo Getúlio Vargas, que foi criada a CHESF – Companhia Hidrelétrica do Rio São Francisco, e foram iniciados os esforços para a construção das usinas hidrelétricas em Paulo Afonso.   

A primeira obra concluída pela CHESF na região na década de 1940, foi uma usina hidrelétrica piloto, com uma potência total de 2 MW, que tinha como objetivo fornecer energia elétrica para o futuro canteiro de obras. A Usina Hidrelétrica Paulo Afonso I teve suas obras iniciadas em 1949 e concluídas em 1954, com 3 grupos geradores e uma potência total de 180 MW. Foram construídos na época um total de 860 km de linhas de transmissão, dotadas de estações intermediárias em Angelim, em Pernambuco, e Itaparica, no Estado da Bahia, que passaram a levar a energia elétrica produzida em Paulo Afonso para as cidades de Recife e Salvador.   

Um detalhe histórico relevante da construção da Usina Hidrelétrica de Paulo Afonso foram as críticas de políticos e jornalistas das Regiões Sul e Sudeste, que afirmavam “que o Nordeste não oferecia demanda para tanta energia elétrica e que era um grande desperdício de recursos os investimentos na região”. A história mostrou que essas críticas eram infundadas e as águas do São Francisco ainda veriam a construção de outros grandes projetos de geração hidrelétrica voltados para a Região Nordeste. 

Entre os anos de 1963 e 1968 foi construída a segunda unidade, a Usina Hidrelétrica Paulo Afonso II, que acrescentou mais 480 MW ao sistema, através de 6 grupos geradores. Entre 1969 e 1970 foram concluídas as obras de Paulo Afonso III, com 4 grupos geradores e potência instalada total de 864 MW. Em 1979, foi concluída a Usina Hidrelétrica Paulo Afonso IV. Essa unidade foi construída dentro de uma caverna, com extensão total de 210 metros, 24 metros de largura e 55 metros de altura, onde foi instalada uma unidade geradora com potência total de 410 MW.  

Em 1971, começou a ser construída a Usina Hidrelétrica de Moxotó, localizada a cerca de 3 km a montante da Cachoeira de Paulo Afonso. Essa usina, que foi inaugurada em 1975, está localizada no município de Delmiro Gouveia, já no Estado de Alagoas. Sua barragem formou um reservatório com uma área de aproximadamente 100 km² e sua potência instalada pode atingir até 440 MW. Em 1983, o nome da Usina foi alterado para Apolônio Sales.  

Juntas, as Usinas Hidrelétricas Paulo Afonso I, II, III e IV e Moxotó, geram uma potência total de 4,2 mil MW, colocando o Complexo Hidrelétrico de Paulo Afonso na terceira posição entre as unidades de geração hidrelétrica do Brasil, ficando atrás apenas de Belo Monte, com mais de 11 mil MW, e de Tucuruí, com uma potência de 8 mil MW. A gigantesca Usina Hidrelétrica de Itaipu, com uma potência total de 14 mil MW, não entra nessa lista por se tratar de um empreendimento binacional. 

Um outro capítulo importante do aproveitamento do potencial hidrelétrico do rio São Francisco foi a construção da Usina Hidrelétrica de Sobradinho, que começou a ser construída em 1973, num trecho do rio São Francisco a 40 km a jusante das cidades de Juazeiro, no Estado da Bahia, e de Petrolina, em Pernambuco. A Usina foi projetada para gerar 1.050 MW de energia elétrica a partir de 6 unidades geradoras com potência unitária de 175.050 KW. A barragem teria um comprimento total de 12,5 km, com uma altura máxima de 41 metros. A usina entrou em operação em 1979.  

O lago formado a partir da construção da barragem de Sobradinho possui uma capacidade de armazenamento total de 34 bilhões de metros cúbicos de água, com um espelho d’água máximo de 4.214 km². Um dos maiores impactos da formação do Lago de sobradinho foi o deslocamento forçado de aproximadamente 12 mil famílias das áreas que seriam inundadas. Um marco desse drama é a música Sobradinho, de Sá, Guarabyra e Zé Rodrix. 

Mais ao Sul, dentro do território de Minas Gerais, o destaque é a Usina Hidrelétrica de Três Marias, que teve suas obras iniciadas em 1957, há mesma época da construção de Brasília, e foi concluída em 1961. Essa Usina Hidrelétrica contava com uma capacidade inicial de geração de 65 MW e com linhas de transmissão de 300 mil Volts para o sistema elétrico da região Central de Minas Gerais e de 138 mil Volts para a região Norte do Estado, para a região de Patos e Patrocínio e, eventualmente, interligando com a linha de transmissão de Peixotos a Araxá. A potência instalada da Hidrelétrica foi sendo ampliada, atingindo uma capacidade total de 396 MW.   

Os últimos aproveitamentos energéticos das águas do rio São Francisco foram as Usinas Hidrelétricas Luiz Gonzaga e Xingó. A Usina Hidrelétrica Luiz Gonzaga, que já foi chamada de Usina Hidrelétrica Itaparica, foi concluída em 1988 e fica localizada no município de Petrolândia, em Pernambuco, a 312 km da foz do rio São Francisco e a cerca de 50 km a montante (correnteza acima) do Complexo Hidrelétrico de Paulo Afonso. A barragem da represa da Usina atinge uma altura de 105 metros e suas águas movimentam 6 grupos geradores, que atingem uma potência total de cerca de 1,48 mil MW. Além de gerar energia elétrica, a Usina Luiz Gonzaga também atua na regularização das vazões do rio São Francisco que seguem na direção do complexo de Paulo Afonso. 

Usina Hidrelétrica de Xingó, localizada entre os Estados de Alagoas e de Sergipe a cerca de 65 km a jusante da Cachoeira de Paulo Afonso, foi idealizada de forma a se aproveitar dessa extensa formação geológica para a inserção de seu lago.  A potência instalada atual da hidrelétrica de Xingó totaliza 3.162 MW, o que a coloca na lista das maiores unidades geradoras do Brasil.  

A usina possui 6 grupos geradores e possui a previsão para a instalação de mais 4 grupos. A hidrelétrica é operada pela CHESF e seu primeiro grupo gerador iniciou suas operações em 1994. Xingó é responsável por cerca de 30% da energia elétrica gerada na Região Nordeste e já foi considerada uma das mais modernas e eficientes usinas hidrelétricas do mundo

Resumidamente, esse é o quadro geral das centrais hidrelétricas instaladas na calha do São Francisco, o que nos dá uma ideia da sua grande importância regional, uma importância que vai muito além do abastecimento de água para as populações locais.  

AINDA FALANDO DA POLUIÇÃO DAS ÁGUAS DO RIO SÃO FRANCISCO

Poluição no rio São Francisco

A degradação ambiental do rio São Francisco, especialmente no tocante à qualidade das águas, preocupa muita gente, sobretudo os moradores dos 521 municípios cortados pelos rios da sua grande bacia hidrográfica em 6 Estados da Federação: Goiás, Minas Gerais, Bahia, Pernambuco, Sergipe e Alagoas, além do Distrito Federal. São mais de 15 milhões de brasileiros que dependem, direta ou indiretamente, das águas do Velho Chico.

Com o avanço das obras de Transposição, essas águas estão chegando a um número cada vez maior de brasileiros nos sertões dos Estados de Pernambuco, Ceará, Paraíba e Rio Grande do Norte. Quando todo o Sistema de Transposição estiver concluído, serão aproximadamente 12 milhões de novos usuários das águas do rio São Francisco – é muita responsabilidade para um rio só.

Uma das grandes preocupações atuais dessas populações é como tem andado a “saúde” do Velho Chico. Conforme já comentamos em postagem anterior, mais de quatro séculos de atividades de mineração dentro da sua bacia hidrográfica já causaram estragos consideráveis na calha e nas águas, tanto do São Francisco quanto em seus rios tributários, especialmente no trecho mineiro. Mais de 2/3 dos caudais do São Francisco dependem das águas de rios tributários dentro do Estado de Minas Gerais e muitos estão em situação caótica.

Além dos problemas criados pelos sedimentos gerados pelas atividades mineradoras, que entulham os canais dos rios, as águas recebem diversos contaminantes percolados a partir dos rejeitos minerais. Falo aqui de metais pesados como chumbo, mercúrio, cádmio e zinco, entre outros.

Um dos mais tóxicos e temidos é o arsênico, um semimetal que se acumula no organismo e que pode levar ao desenvolvimento de câncer de pele, pâncreas e pulmão, provocar abalos no sistema nervoso, malformação neurológica e abortos. Em amostras de água colhidas nos rios Paracatu e das Velhas, dois dos principais afluentes mineiros do rio São Francisco, traços de arsênico foram encontrados em 28%.

Outra importante fonte de preocupações são os esgotos domésticos e industriais de centenas de cidades, que são lançados nas águas da bacia hidrográfica do rio São Francisco sem qualquer tipo de tratamento. Um dos destaques neste quesito é o rio das Velhas, classificado com o 6° rio mais poluído do Brasil. O rio das Velhas é o segundo maior afluente do rio São Francisco e responde por cerca de 70% do abastecimento de água de Belo Horizonte e Região Metropolitana.

Apesar de toda essa importância, grande parte dos esgotos dos 6 milhões de habitantes da Região Metropolitana de Belo Horizonte acabam sendo lançados na bacia hidrográfica do rio das Velhas in natura. Além de esgotos domésticos, o rio e seus afluentes recebem esgotos industriais de curtumes, frigoríficos, indústrias têxteis, metalúrgicas e siderúrgicas, poluentes que se juntam aos resíduos de cádmio, chumbo, cianeto, cromo, mercúrio e zinco gerados pelas mineradoras, além de muito lixo. São cerca de 320 m³ de águas poluídas que essa bacia hidrográfica lança no rio São Francisco a cada segundo.

Outro importante afluente que sofre com a poluição das águas é o rio Paraopeba, que atravessa 35 municípios mineiros até chegar na sua foz na Represa de Três Marias. Estudos realizados ao longo da calha do rio confirmaram que 90% dos municípios da sua bacia hidrográfica não tratam seus esgotos. A situação, que já não era das mais confortáveis, ficou ainda pior após o rompimento da barragem de rejeitos minerais de Brumadinho, em 2019.

O Córrego do Feijão, onde ficava a barragem da empresa Vale do Rio Doce, é um dos afluentes do rio Paraopeba. Milhares de toneladas de rejeitos minerais e muita lama acabaram arrastadas para a calha do rio Paraopeba – um trecho de 40 km do rio já foi declarado “morto” por grupos ambientalistas em consequência do desastre.

Também não podemos deixar de falar do rio Paracatu, que já foi o mais caudaloso afluente do rio São Francisco, contribuindo com até 26% dos seus caudais. O Paracatu, ou “rio bom” em tupi-guarani, tem cerca de 485 km de extensão e era famoso por ser um rio largo e profundo, onde perto de 360 km eram navegáveis. Esse grande rio, infelizmente, não existe mais – a calha do rio está bastante assoreada e cheia de bancos de areia, dificultando a navegação até de lanchas pequenas.

O grande algoz do rio Paracatu foi o avanço das frentes agrícolas no Cerrado, o que desencadeou uma destruição maciça de áreas de mata nativa nos campos ao longo do rio e de matas ciliares em suas margens. Além de perder grande parte dos seus caudais, o rio passou a receber grandes volumes de sedimentos e de resíduos de fertilizantes e agrotóxicos usados nas plantações, carreados para a calha durante a temporada das chuvas.

Também merecem uma menção “nada honrosa” os rios Betim e Pará, que dão uma importante contribuição na degradação da bacia hidrográfica do rio São Francisco com altas cargas de esgotos domésticos e industriais, além de muito lixo. Essa lista poderia ser complementada com o nome de outras dezenas de rios, que ao longo dos anos foram transformados em verdadeiros canais de escoamento de lixo e esgotos.

Grandes rios como o São Francisco tem uma notável capacidade para eliminar esgotos de origem orgânica ao longo do seu curso. A oxigenação contínua das águas e a ação de colônias de bactérias conseguem eliminar os resíduos orgânicos. Infelizmente, o mesmo não ocorre com contaminantes químicos e minerais, que no máximo serão diluídos e continuarão presentes nas águas até o seu encontro com o mar. O mesmo se aplica ao lixo lançado nas águas, em especial os plásticos, que farão parte da “paisagem” por todo o percurso do rio.

Essa sucessão de agressões prejudica, e muito, todos os usuários das águas do rio e de toda a sua bacia hidrográfica. Cidades que captam essas águas para uso no abastecimento de suas populações estão tendo que gastar cada vez mais dinheiro com a compra de produtos químicos usados nas estações de tratamento de água – são gastos que, inevitavelmente, serão repassados aos usuários na forma de aumento nas contas de água.

Pescadores tradicionais das margens dos rios sentem cada vez mais a redução dos estoques pesqueiros nas águas. Espécies que já foram abundantes como o surubim, dourados, cachorras, matrinxãs, piraputangas e trairões são cada vez mais raros nas águas dos rios. Até mesmo singrar as águas com suas canoas e barcos tradicionais está ficando cada vez mais difícil em muitas regiões por causa do intenso assoreamento dos canais.

Um novo sopro de esperança para o rio São Francisco e para outros importantes rios brasileiros surgiu recentemente – foi aprovado pelo Senado Federal o Novo Marco do Saneamento Básico. Entre outras medidas, esse Novo Marco abre espaço para os investimentos privados na área do saneamento básico e acaba com o direito de preferência das companhias estaduais de saneamento básico. Entre outras, o Marco estabelece como meta que 90% da população tenha coleta e tratamento de esgotos até o ano de 2033. Muitos dos atuais problemas de qualidade das águas do rio São Francisco poderão ser resolvidos com essas ações.

Mesmo assim, ainda vai faltar muito para equacionar a maior parte dos problemas que estão prejudicando, e muito, a saúde do nosso Velho Chico.

UMA INCÔMODA FOTO DA NASA

Foto NASA

Estamos na época do verão amazônico, período em que chove muito pouco em toda a Região Norte do Brasil. É nessa época em que as queimadas na Amazônia se proliferam por todos os lados e as fotos dos satélites de monitoramento mostram partes do bioma com sinais de “catapora” – pontos vermelhos por todos os lados. Os trechos mais vulneráveis da Amazônia estão no Leste, onde se encontra o Estado do Pará, e no Sul, principalmente o Norte do Mato Grosso e grande parte de Rondônia. 

Como parte do “pacote” de más notícias, grandes jornais internacionais já começam a falar dessas queimadas na Amazônia e, logo mais, o velho discurso sobre “a transformação da Amazônia em um mar de cinzas” vai recomeçar. 

Nesses últimos dias, uma foto divulgada pelo FIRMS – Fire Information for Resource Management System, ou Sistema de Gerenciamento e Pesquisa de Informações sobre o Fogo, entidade ligada a NASA – Administração Norte-americana do Espaço, na sigla em inglês, passou a circular nas redes sociais e deve estar incomodando muita gente. A imagem que ilustra essa postagem é de hoje (26/07/2020) e você poderá acessá-la através do link: https://firms.modaps.eosdis.nasa.gov/map 

Observando a imagem, nós percebemos claramente que algumas regiões da Floresta Amazônica estão queimando. Conforme já comentamos em postagens anteriores, perto de 15% do bioma Amazônico já estão ocupados por atividades agropecuárias e, todos os anos, trechos dessa área são tomados por queimadas feitas por pequenos agricultores. Também são inúmeros os focos de incêndio em áreas do Cerrado e da Caatinga Nordestina. 

Essas queimadas, chamadas popularmente de “coivaras”, tem como objetivo preparar a terra para a prática de uma agricultura de subsistência – o fogo limpa as áreas ao mesmo tempo que deposita uma camada de cinzas que vai ajudar na melhoria da fertilidade dos solos. No caso da Amazônia, conforme já tratamos em postagens anteriores, a fertilidade dos solos não é das melhores. Aqui vale lembrar que a coivara é usada em todo o Brasil há milhares de anos pelos indígenas e a técnica foi passada para os demais agricultores. 

Grandes grileiros de terras públicas, garimpeiros, madeireiros e outros espertalhões também se valem desse período de seca para fazerem as suas próprias queimadas com fins mais escusos – aqui vale a fiscalização e a aplicação da lei. No geral, as queimadas ocorrem anualmente sempre nos mesmos terrenos

No caso das áreas do Cerrado, o fogo é uma parte natural de sua ecologia há milhões de anos. A vegetação do bioma é altamente adaptada para conviver com os incêndios – as árvores possuem uma casca grossa que queima, preservando o cerne da madeira. Muitas sementes de plantas e árvores do Cerrado, inclusive, dependem do fogo para sair do estado de dormência e germinar. Pouco tempo após queimadas devastadoras, o Cerrado volta a todo o seu esplendor. 

Agora, vamos para a parte incômoda da foto – observem que áreas bem maiores em outras regiões do mundo também estão ardendo e nenhum dos defensores das florestas sequer ousa levantar a voz para protestar. Salta aos olhos a grande extensão de áreas incendiadas numa larga faixa da África, em Madagascar, no Norte da Austrália, na Nova Guiné, na Indonésia, em todo o Sudeste Asiático, no Leste Europeu e, em especial, nas regiões da taiga na Rússia. Olhando com atenção para a foto, você perceberá focos de incêndio em grande parte do mundo – curiosamente, até em regiões de deserto como no Norte da África e no Oriente Médio. 

Regiões florestais de todo o mundo – inclusive a Floresta Amazônica, vem sofrendo com um intenso grau de devastação e todas merecem uma atenção especial. Recentemente, eu publiquei uma extensa série de postagens falando dos problemas ambientais e de destruição de florestas em diversos países pelo mundo afora, mostrando que muito se fala sobre a Amazônia e pouco se faz para proteger outros importantes biomas e florestas em outros países. 

Políticos estrangeiros, ambientalistas, jornalistas, “famosos” e até o Papa se metem a falar das queimadas na Amazônia e, muitas vezes, lembram da antiga ideia da internacionalização da Amazônia. Minha pergunta: a maior parte das florestas tropicais (ou o que sobrou delas) em Madagascar está queimando – alguém está preocupado em intervir na Ilha?

Milhares de quilômetros quadrados da taiga na Rússia de Vladimir Putin estão ardendo nesse momento – algum desses valentes tem peito para encarar os poderosos exércitos russos? Incêndios também pipocam em grande parte dos Estados Unidos – alguém vai intervir e ameaçar Donald Trump? 

Problemas ambientais e hipocrisia são coisas que não faltam nesse nosso mundo…

OS PROBLEMAS CRIADOS PELA MINERAÇÃO NAS ÁGUAS DO RIO SÃO FRANCISCO

Assoreamento na calha do rio São Francisco

Um verdadeiro divisor de águas na história do rio São Francisco foi a descoberta de minas com grandes volumes de ouro na Serra do Sabarabuçu, em Minas Gerais, em 1693. Bandeirantes paulistas, liderados por Fernão Dias Paes e depois por seu genro Manuel Borba Gato, vasculharam essa região por muitos anos, guiados por antigas lendas indígenas. Com a notícia destas descobertas, milhares de colonos das regiões canavieiras, principalmente da Região Nordeste, largaram tudo e se dirigiram aos sertões das Geraes para tentar a sorte na mineração. 

À primeira vista, esse comentário pode não refletir os impactos que essa mudança representou na vida da Colônia – até meados do século XVIII, pouco mais de 60 anos depois, perto de 2/3 de todos os habitantes do Brasil, estimados há época em 500 mil habitantes, já estavam concentrados na região das Minas Geraes e envolvidos em alguma atividade ligada à “caça do ouro”. A indústria açucareira, que até então era a principal atividade econômica do Brasil de então, entrou em uma crise sem precedentes por falta de mão de obra. 

A verdadeira “febre do ouro” que varreu a Colônia após a divulgação das primeiras notícias dos achados auríferos nas Geraes provocou uma corrida sem precedentes para os sertões de Minas Gerais, onde não havia a menor infraestrutura ou canais regulares para o suprimento de mercadorias e víveres. O Vale do Rio São Francisco, já densamente povoado e ocupado pelas fazendas de gado, foi o caminho seguido pela maior parte dessa corrente migratória, que se espalhou ao longo dos rios de toda a sua bacia hidrográfica e regiões lindeiras nas Geraes . 

Com o crescimento dos achados auríferos e o aumento da produção de ouro, a indústria açucareira entrou em queda livre a partir de meados do século XVIII. Além da falta de braços nos canaviais, cresceu muito a concorrência com os engenhos de açúcar holandeses e ingleses na região do Caribe. O golpe final nesta indústria virá com a transferência da capital da Colônia da cidade de Salvador para o Rio de Janeiro em 1763 – os caminhos para a produção e o escoamento do ouro eram mais fáceis a partir das terras fluminenses.  

Na busca alucinada pelo valioso ouro, pode-se dizer que cada pedra do leito dos rios da região das Geraes foi revirada, cada barranco e pedaço de terra próximo das margens foi escavado, começando-se assim um intenso e contínuo processo de devastação ambiental que hoje ameaça a sobrevivência do Velho Chico. Nas palavras de Afonse D’Escragnolle de Taunay

“Intensa foi em todo o Brasil a crise determinada pela formidável perturbação aurífera, sob os pontos de vista social, econômico, sobretudo psicológico.” 

O chamado Ciclo do Ouro chegou ao fim nos últimos anos do século XVIII, quando todos os principais veios de ouro das Geraes se esgotaram. Um detalhe importante da crise econômica que tomou conta das regiões de mineração era a sua total dependência de “importações” de alimentos e bens de outras regiões da Colônia, principalmente das boiadas que vinham dos sertões do Semiárido e de mulas de carga e outros alimentos vindos da Província de São Paulo e da Região Sul. Tomados pela “febre do ouro”, esses aventureiros não tinham tempo a perder com a produção de alimentos e a produção de outros bens. 

Com a derrocada econômica, a grande população da Região das Minas Geraes foi abrigada a se dedicar a trabalhos mais triviais como a agricultura e a pecuária, atividades econômicas que ainda hoje são fundamentais no atual Estado de Minas Gerais. A mineração se manteve como uma atividade das mais importantes, mas agora voltada ao minério de ferro e seu processamento. Há época do Brasil Colônia, existiam empresas de Portugal que detinham o monopólio para a venda de produtos de ferro como ferramentas, panelas e equipamentos agrícolas – logo, a nascente indústria metalmecânica mineira há época foi ilegal durante muitas décadas. 

Minas Gerais é o Estado brasileiro com as maiores reservas de minério de ferro. Segundo dados da ANM – Agência Nacional de Mineração, os subsolos mineiros guardam perto de 72,5% do minério de ferro do país, seguido por Mato Grosso do Sul, com 13,1%, e pelo Estado do Pará, com 10,7% das reservas. Além de minério de ferro, encontramos em Minas Gerais outras reservas minerais como manganês, zinco, níquel, cobre, ouro (sim, ele ainda é encontrado em grandes profundidades), prata, bauxita, cromo, estanho, tungstênio e urânio, entre outros. A mineração e outras atividades ligadas ao setor se tornaram uma das bases econômicas do Estado. 

Conforme já tratamos em uma série de postagens aqui do blog, mineração e recursos hídricos são duas coisas que não combinam nada bem. Para acessar os veios minerais no subsolo, é inevitável a supressão da vegetação, o que, por sua vez terá inúmeras consequências negativas nos sistemas de aquíferos e lençóis subterrâneos de água, comprometendo nascentes de rios e riachos. Existe um outro detalhe importante da mineração e processamento de minérios – a necessidade de carvão para os altos-fornos das fundições e siderúrgicas. 

Na maior parte dos países com grande tradição metalmecânica, o carvão mineral é a grande fonte de energia usada nos processos de transformação dos minerais em chapas e peças metálicas. O Brasil é extremamente pobre em reservas de carvão mineral – os principais Estados que possuem essas reservas são Santa Catarina e Rio Grande do Sul, que produzem um carvão mineral de baixo poder térmico. Na falta desse importante combustível fóssil, nosso país se valeu, por décadas, do carvão de origem vegetal. 

Estima-se que perto de 90% da Mata Atlântica que existia no Estado de Minas Gerais acabou sendo derrubada e transformada em carvão vegetal. As antigas carvoarias, notórias utilizadoras de mão de obra infantil, também não pouparam a vegetação do Cerrado, inclusive as famosas veredas de muitos contos de Guimarães Rosa. Muito antes da transformação do Cerrado em grandes campos de soja, milho e pastagens para o gado, as nascentes de muitos rios tributários do rio São Francisco já experimentavam notáveis reduções em seus caudais. 

Um outro gravíssimo problema da mineração são os rejeitos minerais. Muito antes dos grandes acidentes com as barragens de rejeitos minerais em Mariana, em 2015, e em Brumadinho, em 2019, grande parte da bacia hidrográfica do rio São Francisco já sofria com o assoreamento e entulhamento dos seus canais com resíduos minerais lançados por um sem número de empreendimentos de mineração de todos os portes. De acordo com dados da ANM, existem cerca de 320 barragens de rejeitos minerais em Minas Gerais, quase metade do total existente em todo o Brasil, um sinal dos riscos potenciais aos recursos hídricos no Estado

Sem a proteção das matas, grandes volumes de areia, argila, silte e outros sedimentos acabam sendo arrastados para as calhas dos rios e acabam se acumulando – estudos indicam que 23 milhões de toneladas de sedimentos chegam na calha do rio São Francisco a cada ano. Segundo os relatos de muitos pescadores tradicionais das margens do Velho Chico, trechos que num passado não muito distante chegavam a apresentar profundidades de até 20 metros, hoje em dia estão se tornando extremamente rasos.

Existem alguns locais do rio São Francisco que até alguns anos atrás só podiam ser atravessados de barco e que hoje podem ser atravessados facilmente a pé. No período da seca, grandes bancos de areia ficam expostos (vide foto), o que demonstra o grau de assoreamento na calha do rio e nível da degradação ambiental no Velho Chico. Um antigo ícone do São Francisco, o vapor Benjamim Guimarães, há muito não singra as águas do rio, principalmente devido aos riscos de encalhe em bancos de areia.

Além de todos os problemas para a ictiofauna (peixes) do rio São Francisco, esse grau de assoreamento cria problemas para a navegação em muitos trechos, compromete a captação de água em muitas cidades e pode resultar em grandes inundações em momentos de fortes chuvas – sem espaço no leito do rio, as águas vão ocupar espaços nas cidades e margens, desencadeando uma série de tragédias humanas e materiais. Outra vítima dessas agressões são as grande hidrelétricas instaladas ao longo da clha do rio, que sofrem com a irregularidade das vazões.

Continuamos na próxima postagem.

OS GRANDES PROBLEMAS AMBIENTAIS DO RIO SÃO FRANCISCO

Avanço da soja contra o Cerrado

Nesses últimos meses, as chuvas na bacia hidrográfica do rio São Francisco estão sendo bastante generosas. O lago de Sobradinho, que em meados de 2017 chegou ao nível mais baixo de sua história – 2,8%, hoje esbanja saúde e está com 82,2% de sua capacidade (dados do ONS – Operador Nacional do Sistema Elétrico, em 22/07/2020). Outros reservatórios ao longo da calha do rio também estão muito “bem na fita”: Três Marias está com 87,12% de sua capacidade e Itaparica está com 87,77%

Infelizmente, não é sempre que o rio vive com essa “fartura” de águas nesses últimos tempos. 

Conforme comentamos em uma postagem recente, foi inaugurado um novo trecho do Sistema de Transposição de águas do rio São Francisco. As abençoadas águas do Velho agora estão chegando aos sertões do Ceará, um dos Estados da Região Nordeste que, historicamente, mais sofreu com grandes estiagens. Quando todas as obras, que vêm se arrastando desde 2007, forem concluídas, as águas do rio São Francisco chegarão a 12 milhões de sertanejos, amenizando assim os gravíssimos problemas de abastecimento no Semiárido Nordestino. 

Entre os inúmeros problemas ambientais que estão afetando a “saúde” do Velho Chico, a redução dos caudais é um dos mais críticos. A origem desse mal está diretamente ligada aos avanços da agricultura em áreas do Cerrado, bioma que concentra perto de 75% das nascentes dos rios tributários (ou afluentes) do São Francisco.  

As áreas de Cerrado foram consideradas por muito tempo como inadequadas para a agricultura comercial de larga escala. Com solos extremamente ácidos e considerados pouco férteis, extensas regiões do território brasileiro ficaram ocupadas por pequenas propriedades rurais e por reduzidas lavouras de subsistência durante vários séculos. Foi graças ao desenvolvimento de tecnologias para a correção do solo e, principalmente, com o desenvolvimento de sementes adaptadas para crescimento em regiões do Cerrado que esse panorama começou a mudar rapidamente já na década de 1970. 

Os Governos militares da época tinham enorme interesse na expansão da produção de grãos em regiões do país de baixa população, especialmente na região do Cerrado brasileiro. O mundo vivia na época um momento complicado da Guerra Fria entre russos e americanos, que disputavam a liderança da humanidade. Aqui no Brasil, os nossos militares estavam preocupados com algumas ideias como a internacionalização da Amazônia, proposta feita por algumas nações estrangeiras há época – a prioridade dos Governos militares era a ocupação, no menor tempo possível, de grandes vazios em nosso território.   

O Cerrado era considerado plano e com farta disponibilidade de recursos hídricos para a irrigação. Desde a mudança da capital brasileira para a nova cidade de Brasília em 1960, foram feitos grandes investimentos na construção de rodovias em direção ao Planalto Central e para toda a Região Centro-Oeste, o que favorecia tanto o escoamento da produção de grãos quanto o fluxo de imigrantes de outras regiões na direção da nova fronteira agrícola.   

Um marco dessa época, um período que ficou imortalizado pela alcunha de “Brasil Grande”, foi a construção da Rodovia Transamazônica, que ia desde o Leste da Paraíba até o Oeste do Estado do Amazonas, um caminho para “levar homens sem terras para uma terra sem homens”. Alguns anos antes, sucessivos Governos haviam trabalhado na integração da Região Norte ao restante do país através de novas rodovias. Datam dessa época a abertura das Rodovias Cuiabá-Porto Velho, Cuiabá-Santarém e a Belém-Brasília. Essas novas rodovias incentivaram centenas de milhares de famílias, especialmente da Região Sul, a migrarem para as Regiões Centro-Oeste e Norte. 

Em meados da década de 1970, a EMBRAPA – Empresa Brasileira de Pesquisas Agropecuárias, através do seu Centro Nacional de Pesquisa de Soja, passou a trabalhar em pesquisas para o desenvolvimento de cultivares de grãos adaptados às condições de solo e de clima do Cerrado brasileiro. No final da década de 1970, foram anunciadas as primeiras variedades de soja adaptadas ao clima Tropical e a esses solos, algo que mudaria completamente os rumos da agricultura no Brasil.   

Os campos agrícolas se expandiram rapidamente na direção de Mato Grosso, que acabou dividido em Mato Grosso e Mato Grosso do Sul, Rondônia e Acre, de um lado, e Norte de Goiás, que acabou se transformando no Estado de Tocantins, Oeste da Bahia e, mais recentemente, na direção do Sul do Estado do Piauí e do Maranhão. Regiões do Cerrado nos Estados de Minas Gerais, São Paulo e Paraná, que já estavam ocupadas por cidades e plantações, experimentaram saltos na produtividade. 

Atualmente, os antigos domínios do Cerrado concentram 36% de todo o rebanho bovino e 63% da produção de grãos do Brasil – 30% do Cerrado foi transformado em pastagens para boiadas. No Cerrado, a soja representa 90% (15,6 milhões de hectares) da agricultura do bioma. Mais da metade (51%) da soja produzida no Brasil vem de plantações no bioma Cerrado.  

Nos últimos dez anos, o Cerrado foi o bioma brasileiro que sofreu a maior perda de área nativa – 50 mil km², área maior do que o território do Estado do Rio de Janeiro. A região conhecida como MATOPIBA, que incorpora áreas dos Estados do MAranhão, TOcantins, PIauí e BAhia, é atualmente a maior fronteira agrícola de expansão da cultura da soja e apresenta as maiores perdas de vegetação e de espécies animais nativas do Cerrado.  A FIOL – Ferrovia de Integração Oeste Leste, atualmente em construção, deverá aumentar ainda mais a pressão da agricultura sobre o Cerrado da região.

Toda essa expansão de campos agrícolas e de pastagens em áreas de Cerrado tem um alto custo ambiental, que se traduz na redução dos caudais das bacias hidrográficas com nascentes no bioma – das 12 grandes bacias hidrográficas brasileiras, 8 tem nascentes em áreas do Cerrado, com destaque para a bacia do Rio São Francisco. A redução nos volumes de água faz-se sentir por todo o território brasileiro. Infelizmente, o avanço da fronteira agrícola que se viu nos últimos 50 anos já consumiu aproximadamente metade do bioma, fragmentando o Cerrado em inúmeras ilhas – ilhas de vegetação cercadas por campos de grãos por todos os lados. 

A vegetação nativa do Cerrado tem como principal característica sistemas de raízes muito profundos – essas raízes, normalmente, são bem maiores do que a parte visível da planta acima do solo. Esses sistemas radiculares super dimensionados foram uma resposta evolutiva das plantas ao clima e as características dos solos do Cerrado, onde o lençol freático e os aquíferos são muito profundos. Na temporada das chuvas, essas raízes permitem que a água infiltre com mais facilidade nos solos, ajudando assim no processo de recarga de aquíferos e lençóis subterrâneos de água

Com o avanço das frentes agrícolas no Cerrado nas últimas décadas, uma parte considerável da vegetação nativa foi derrubada e a dinâmica de recarga das águas do subsolo foi profundamente comprometida. As raízes da soja e do milho, plantas que agora abundam no bioma, são extremamente curtas e pouco ajudam no processo de infiltração da água no solo. Sem a recarga natural, o nível dos aquíferos e dos lençóis de águas estão ficando cada vez mais profundos, o que, por sua vez, reduz a quantidade de água que “brota” das inúmeras nascentes – são essas águas que estão deixando de chegar na calha do rio São Francisco, especialmente nos meses de seca

A água que hoje está armazenada nas represas do rio São Francisco, represas essas que fazem parte de grandes complexos hidrelétricos, rapidamente serão utilizadas na geração de energia elétrica. Se a próxima temporada de chuvas na bacia hidrográfica não for das melhores, voltaremos a ver em breve o recuo das águas em grande parte das margens do Velho Chico. 

São níveis altos e baixos cada vez mais preocupantes.

OS ÍNDIOS E OS SERTÕES, OU OS BANHOS DA “MOURA ENCANTADA” NAS ÁGUAS DO RIO SÃO FRANCISCO

Moura encantada

Quem costuma acompanhar as minhas postagens já deve ter percebido que eu sempre coloco palavras como “descoberta” e “descobrimento”, quando relacionadas é claro com a chegada dos europeus às Américas, entre aspas. Essa é uma espécie de protesto em defesa dos milhões de indígenas americanos que aqui viviam antes da chegada dos primeiros exploradores do Velho Mundo. Em minha modesta opinião, se tivermos de usar esses termos em algum texto que seja para se referir aos indígenas, os verdadeiros descobridores do Novo Mundo. 

Existem muitas dúvidas sobre o tamanho real das populações indígenas que habitavam as três Américas há chegada da expedição de Cristóvão Colombo em 1492. Isolados nessa parte do mundo por dezenas de milhares de anos, os habitantes do Novo Mundo não tinham imunidade às mais triviais doenças que circulavam entre as populações da Europa, Ásia e África. Falamos aqui de doenças comuns como gripe, varíola e sarampo. O que sabemos com certeza é que, menos de um século depois do primeiro contato com os exploradores, mais de 80% das populações indígenas morreriam vítimas dessas e de outras doenças. 

As estimativas sobre as populações indígenas americanas vão de cifras entre 8,4 milhões de habitantes até uma população equivalente à da Europa em 1.500 – cerca de 112,5 milhões de habitantes. No México, citando um exemplo mais conhecido, havia cerca de 25 milhões de indígenas vivendo há época da chegada de Hernán Cortés – um século depois, os censos indicam que essa população caiu para apenas 1 milhão de habitantes. 

As terras brasileiras também estavam cheias de indígenas há época da chegada da expedição de Pedro Álvares Cabral em 1.500. As estimativas falam entre 1 e 5 milhões de indígenas vivendo em todo o nosso território, divididos em diferentes povos e grupos linguísticos. Esses vários grupos tiveram comportamentos diferentes em relação aos “estrangeiros”. 

Muitos grupos indígenas tupis simpatizaram de imediato com os portugueses e rapidamente se prontificaram a ajudá-los nos trabalhos de derrubada e transporte do valioso pau-brasil  (Paubrasilia echinata) – estimativas falam do corte de 75 milhões de árvores ao longo de 300 anos. Também ajudaram na caça de animais para a retirada das peles e na coleta de “drogas do sertão”, plantas com características similares a muitas das especiarias compradas no Oriente como pimentas e outros temperos – os mercadores vendiam esses genéricos em Portugal como “autênticos temperos da Índia”. Lembrando das antigas aulas de história nos tempos do ensino fundamental, eram esses índios que “trabalhavam em troca de espelhinhos e miçangas”. 

Outros grupos, como os ferozes botocudos do Sul da Bahia, Espírito Santo e Leste de Minas Gerais, lutaram bravamente contra os invasores e resistiram o quanto puderam. Algumas aldeias isoladas desses povos só foram “amansadas” no início do século XX. Um terceiro grupo de povos indígenas, simplesmente, resolveu abandonar o litoral para se embrenhar pelos sertões, tentando ficar o mais longe possível dos colonizadores. Essa foi a origem de muitas tribos dos sertões nordestinos e das margens do rio São Francisco

Um dos casos mais surpreendentes de fuga indígena foram os tupinambaranas, uma tribo indígena que vivia na região de Pernambuco e que fugiu de lá logo após a chegada dos portugueses. Esses índios seguiram continente adentro na direção de Mato Grosso, seguindo depois para a região de Rondônia e, por fim, se fixaram em uma ilha no rio Amazonas. Essa saga durou vários anos e foram percorridos mais de 5.600 km. Eram perto de 60 mil indígenas no começo dessa jornada e só uma parte conseguiu chegar viva ao seu destino final.

Conforme comentado na última postagem, as mulheres indígenas tiveram um papel fundamental na gestação, literal, do povo sertanejo e brasileiro em geral. Nas sucessivas levas de colonizadores europeus e de escravos africanos que desembarcavam no Brasil dos primeiros séculos, as mulheres eram absoluta minoria – talvez 5% dos contingentes humanos que aqui desembarcavam.  

Com a falta de mulheres de suas respectivas etnias (acho esse termo bem mais adequado que raças), brancos e negros se valiam da parceria e dos casamentos com as “moçoilas” indígenas. A diversidade étnica dos brasileiros vem daí. No livro “O povo brasileiro”, do antropólogo Darcy Ribeiro, você encontrará uma maravilhosa descrição desse processo. 

Existiu um componente mítico entre os portugueses e que foi fundamental para essa aproximação com as mulheres indígenas que é muito pouco comentado – falo aqui da lenda da “moura encantada”. Essas criaturas mágicas são espíritos com poderes sobrenaturais, presentes no folclore de Portugal, da Galícia e de todo o Norte da Espanha e Oeste da França, regiões que foram habitadas no passado por populações celtas.  A imagem que ilustra essa postagem mostra a estátua da lendária Moura Floriples, em Olhão – Portugal

Essas populações ancestrais eram conhecidas como mouros pelos antigos ibéricos. Os muçulmanos que invadiram a Península Ibérica e que fomos ensinados a chamar de mouros, eram na realidade os mauris do Norte da África, onde existe um país que, bem por acaso, se chama Mauritânia ou “terra dos mauris”. A Igreja Católica, propositalmente, fez uma fusão entre os mouros e os mauris a fim de combater muitas lendas heréticas que ameaçavam o predomínio religioso da Igreja na Península Ibérica. Surgiu assim o mouro muçulmano “genérico”. 

As antigas lendas celtas falavam de espíritos travestidos na forma de lindas mulheres, que se banhavam nos rios e encantavam os homens. Perceba que existe uma grande semelhança com as antigas lendas das sereias. Originalmente loiras, essas mulheres passaram a ser descritas com cabelos e olhos escuros como as lendárias princesas árabes e com corpos “bem formados”. As “mouras encantadas” povoavam os sonhos dos homens ibéricos. Como acontecia em toda boa lenda, existia também uma entidade oposta – a “moura torta”, uma bruxa feia e má. O texto a seguir, que descreve como nenhum outro essa lenda, é de Gilberto Freire e foi retirado do antológico livro “Casa-Grande e Senzala”:

“Moura-encantada, tipo delicioso de mulher morena e de olhos pretos, envolta em misticismo sexual – sempre de encarnado, sempre penteando os cabelos ou banhando-se nos rios ou nas águas das fontes mal-assombradas.” 

Quando os primeiros exploradores portugueses desembarcaram em terras brasileiras, os marinheiros rapidamente ficaram encantados com a “beleza” das mulheres indígenas, que “com os seus cabelos negros e longos, e corpos gordos” eram a imagem perfeita das míticas “mouras encantadas” das histórias que ouviam desde a sua infância. Os primeiros brasileiros que nasceram, filhos de um pai português e de uma mãe indígena, foram resultado desse encantamento e não necessariamente frutos de ataques e abusos sexuais como algumas fontes históricas podem sugerir. 

Outro processo, esse bem histórico, que ajuda a entender os primeiros tempos da colonização do Brasil é o chamado cunhadismo – um homem branco que tomasse uma mulher índia como esposa passava a ser considerado como um “irmão” pelos outros homens da tribo. Ou seja, todos os índios daquela tribo passavam a ser, imediatamente, seus cunhados. E ter uma “família” grande era fundamental para ajudar em trabalhos como a derrubada, corte e transporte de milhares de toras de pau-brasil. 

Apesar da extrema receptividade de muitas tribos indígenas aos colonizadores que chegavam as suas terras, os até então desconhecidos vírus invisíveis das doenças que citamos se espalhavam entre os nativos e, em muitos casos, dizimavam tribos inteiras. Parte importante do chamado “genocídio dos povos indígenas” que encontramos em muitos livros de história tiveram suas origens em atos involuntários como esses. 

Não queremos aqui, em hipótese alguma, minimizar os gravíssimos problemas que foram enfrentados pelos povos indígenas das Américas ao longo dos últimos séculos da história. Ao contrário – queremos ressaltar a sua importância na formação do povo brasileiro, especialmente dos sertanejos nordestinos e das populações do vale do rio São Francisco, regiões que foram fundamentais para a posterior colonização de todo o Brasil

E dentro de todo esse grande universo histórico e mítico, foram muitos os encontros de homens de origem Lusa com as muitas “mouras encantadas” das margens e águas do rio São Francisco. 

O POVOAMENTO DAS MARGENS DO RIO SÃO FRANCISCO

Margens do rio São Francisco

Conforme comentamos em uma postagem anterior, a foz do rio São Francisco foi descoberta no dia 4 de outubro de 1501 pela primeira expedição exploratória de Américo Vespúcio. Seguindo a tradição da época, os marinheiros batizaram o rio com o nome do santo católico do dia – São Francisco de Assis. Entre as anotações no diário de bordo do capitão, foi marcado que a correnteza do rio era muito forte e que sinais de água doce eram encontrados até 4 km mar adentro

Um fato interessante dessa “descoberta” é constatação que a foz e as margens do rio São Francisco eram densamente povoadas por diversas tribos indígenas. Aliás, esses indígenas tinham dois nomes diferentes para o rio. Para algumas tribos, era Opará, uma palavra que pode ser traduzida como “rio-mar” ou ainda “rio grande como o mar”. Tribos de outro grupo linguístico se referiam ao rio como “Pirapitinga”, que significa “rio onde se pesca o peixe da casca branca”. 

Existem diversas teorias sobre o povoamento das Américas. Uma das mais clássicas fala da migração de povos da Ásia na direção da América do Norte através do Estreito de Bering. Há cerca de 40 mil anos atrás, essa passagem entre o extremo Leste da Rússia e o Alasca foi coberta por uma grossa camada de gelo, o que permitiu a passagem de sucessivas ondas migratórias de grupos humanos.  

Após a gradual ocupação das Américas do Norte e Central, grupos humanos começaram a chegar na América do Sul há cerca de 20 mil anos. Estudos arqueológicos feitos em parceria com instituições estrangeiras encontraram vestígios de ocupação humana datados em 16 mil anos em escavações na Lagoa Santa, Minas Gerais, com 14,2 mil anos em Rio Claro, São Paulo, e com 12,7 mil anos em Ibicuí, no Rio Grande do Sul. 

Estudos arqueológicos independentes liderados pela pesquisadora brasileira Niède Guidon na região do Parque Nacional Serra da Capivara, no Piauí, já encontraram vestígios de ocupação humana com mais de 50 mil anos. Esses achados arqueológicos passaram por um processo de datação que usa o método do Carbono-14. Apesar desses achados brasileiros comprovarem a presença humana em nosso território há muito mais tempo do que se imaginava antes, quem escreve a “nossa história” são instituições de pesquisa estrangeiras – se essas instituições não mudarem seus dados, a “história” vai continuar escrita do jeito que está. 

Pela proximidade com as rotas de migração via América Central, a Floresta Amazônica foi um dos principais polos indígenas do Brasil ao longo de milhares de anos. Os primeiros grupos indígenas a ocupar o litoral brasileiro foram as populações dos sambaquis – montes artificiais formados pelo acúmulo de conchas e outros sedimentos. No litoral do Nordeste existem sambaquis com idade superior a 8 mil anos. Quando os europeus “descobriram” o rio São Francisco, a região já era habitada há milhares de anos por tribos indígenas como Pankarau, Atikum, Kimiwa, Truka, Kiriri, Tuxa e Pankarare.

Deixando de lado esse “pequeno detalhe” da ocupação indígena, os primeiros assentamentos de colonizadores europeus na região do baixo São Francisco foram os canaviais e os engenhos para a produção do açúcar. Ao longo das margens do rio São Francisco, a largura da densa floresta de Mata Atlântica superava os 80 quilômetros, o que garantiu solos férteis e muita lenha para se queimar nas caldeiras dos engenhos. Outro marco na colonização da região foi a criação de gado, que começou oficialmente em 1543 sob autorização da Coroa de Portugal. Graças a isso, existem muitas referências históricas ao rio São Francisco como “rio-dos-currais”. 

A convivência entre bois e canaviais não era das melhores – conforme já comentamos em postagens anteriores, os bois invadiam os campos e se deliciavam com os brotos adocicados de cana de açúcar. Os imensos prejuízos da indústria açucareira com as boiadas levaram a uma lenta “expulsão” dos bois rumo ao interior do Nordeste. A crise entre os agricultores e os pecuaristas atingiu seu ápice em 1701, quando foi assinada uma Carta Régia, ou um decreto, pela Coroa de Portugal proibindo a criação de gado a menos de 10 léguas (entre 60 e 70 km) do litoral. 

Com a expulsão das boiadas do litoral nordestino, teve início um processo que eu costumo chamar de “diáspora bovina”. Esse processo foi o principal responsável pela ocupação das regiões do Agreste e do Semiárido Nordestino por populações cada vez mais numerosas de gentes e de rebanhos animais de todos os tipos. Os criadores de gado não tardaram a descobrir o Vale do Rio São Francisco, onde encontraram um curso de águas perenes e espaço de sobra para se estabelecer e ver as boiadas se multiplicarem. Ao longo das margens do Velho Chico foram surgindo primeiro as grandes fazendas de criação e depois as cidades. 

Há um aspecto ambiental importante em todo esse processo: com o crescimento das populações humanas e a necessidade de pastagens para os rebanhos (bovinos, equinos, muares, caprinos e ovinos), criou-se a necessidade de mais pastagens para os animais e de campos agrícolas para a produção de alimentos. Entre uma área de caatinga e outra há sempre uma pequena extensão de campos – e para ampliar as extensões destes campos utilizou-se indiscriminadamente do poder do fogo das queimadas, consumindo as árvores ressequidas da caatinga e criando espaços artificiais para o crescimento das pastagens.  

Esses novos campos nunca eram suficientemente grandes para saciar a fome dos grandes rebanhos e os animais foram se adaptando ao consumo de várias espécies de vegetais que cresciam nesses campos e caatingais. Precisamos destacar aqui o insaciável apetite dos bodes e as cabras, animais que comem, praticamente, qualquer tipo de vegetal. Toda essa pressão ecológica levou a um aumento da aridez de muitos trechos do Semiárido. 

O avanço das boiadas pelo sertão teve muitos outros percalços além do clima extremo e da terra difícil, com amplo destaque para os embates com índios. Terras ocupadas desde os tempos imemoriais por diversas nações indígenas eram invadidas por grandes boiadas, que sem pedir licença avançavam vorazmente sobre os limitados recursos naturais do meio. Além de atacar os boiadeiros, os índios desenvolveram gosto pelo sabor da carne bovina e passaram a caçar os animais. Bandeirantes paulistas foram convocados pelo Governo Colonial para “apaziguar” os índios do sertão nordestino, eventos que entraram para a história com o nome de Guerras do Norte

A partir do século XVIII, com descoberta das minas de ouro na região das Geraes e o grande afluxo de gentes para os trabalhos de pesquisa, mineração e transporte do metal rumo ao litoral, as águas e as margens do rio São Francisco se transformariam em caminhos de entrada e saída dos sertões. As grandes boiadas se transformariam numa importante fonte de alimentação para os mineradores e aventureiros, seguindo o curso do rio São Francisco a caminho dos sertões das Minas Gerais. De “desertão”, palavra que está na origem de sertão, a bacia hidrográfica do rio São Francisco foi ficando cada vez mais povoada

Escravos fugidos das senzalas, mulatos rejeitados, índios aculturados e fugitivos de toda a ordem, brancos aventureiros, excedentes populacionais dos engenhos, bandeirantes paulistas cansados da vida nômade e aventureira – o sertão começou a receber gentes em quantidades cada vez maiores, que foram se “aconchegando” e ficando. A soma de todas essas diferentes gentes iniciou a geração – no ventre das mulheres indígenas (é importante lembrar que havia pouquíssimas mulheres brancas ou negras nos primeiros séculos da colonização do Brasil), de toda a população dos sertanejos nordestinos.  

O vale do Rio São Francisco se transformou no berço que acolheu toda essa gente dos sertões. O resto, é história…