O RISCO DE EXTINÇÃO DA PIABANHA DO RIO PARAÍBA DO SUL

Piabanha

A degradação dos recursos hídricos é uma triste realidade em praticamente todas as regiões do mundo. Entre os principais vilões dessa verdadeira tragédia socioambiental estão os desmatamentos, a poluição das águas por esgotos domésticos e industriais, a agricultura, a construção de represas de usinas hidrelétricas, a mineração, entre outras atividades humanas. De todas as criaturas vivas que tem as águas como habitat, onde se incluem mamíferos aquáticos, crustáceos, répteis e anfíbios, os peixes estão entre os que mais sofrem os impactos. Uma espécie brasileira que exemplifica esse drama é a piabanha do rio Paraíba do Sul

O rio Paraíba do Sul tem pouco mais de 1.100 km de extensão e atravessa três dos mais importantes Estados brasileiros: São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais. Apesar de estar muito longe da lista dos maiores rios do país, o Paraíba do Sul se destaca como um dos rios mais importantes – suas águas são responsáveis pelo abastecimento de mais de 16 milhões de pessoas em dezenas de cidades nesses três Estados. No Estado do Rio de Janeiro, o rio Paraíba do Sul é o maior e mais importante manancial de abastecimento da população. Na cidade do Rio de Janeiro e em alguns municípios da Baixada Fluminense, as águas do rio Paraíba do Sul, que são desviadas através de um complexo sistema de transposição entre bacias hidrográficas e conduzidas através do rio Guandu, cerca de 12 milhões de pessoas recebem essas águas todos os dias através de suas torneiras

Apesar dessa importância ímpar, o Paraíba do Sul é considerado o 5° rio mais poluído do país. São imensos volumes de esgotos domésticos e industriais lançados em suas águas todos os dias, além de resíduos de mineração, de pesticidas e fertilizantes agrícolas e, muito pior – 5 barragens dividiram a sua calha em segmentos isolados, prejudicando o livre fluxo das comunidades aquáticas ao longo do rio. 

Para que todos comecem a entender o drama de muitas dessas espécies aquáticas, vejam o significado do nome do rio – a palavra paraíba é de origem tupi e indica “um local pedregoso ou áspero”, uma definição muito precisa de um rio de correntezas fortes, com leito pedregoso e muito encachoeirado. As nascentes dos rios Paraibuna e Paraitinga, formadores do rio Paraíba do Sul, estão localizadas numa altitude de 1.800 metros na Serra da Bocaina, interior do Estado de São Paulo. Extensos trechos do rio apresentam (ou apresentavam) águas com correnteza forte e calha acidentada, características que favorecem a sobrevivência de peixes musculosos e possuidores de grande habilidade para vencer obstáculos ao nadar contra a correnteza.

A piabanha (Brycon insignis), que em algumas fontes é chamada de piabinha, um peixe voraz e extremamente adaptado a águas correntes e frias, é uma espécie de peixe típico do rio Paraíba do Sul. A espécie pode atingir um comprimento de 80 cm e um peso de até 10 kg, tendo sido uma das espécies comerciais mais importantes do rio (vide foto). Histórias de antigos pescadores contam que a piabanha é um peixe brigador quando pego no anzol, dando muito trabalho para ser retirado da água

Como acontece com outras espécies de peixes migratórios, a piabanha precisa subir o rio, lutando ferozmente contra a correnteza e as quedas d’água na época das cheias, em busca de lagoas marginais com águas calmas nas cabeceiras dos rios, ambientes ideais para a sua reprodução. De acordo com observações científicas, a desova do peixe ocorre entre os meses de dezembro e fevereiro – suas ovas são incubadas em remansos e várzeas. Predadora voraz, a piabanha come de tudo: peixes pequenos na fase juvenil e frutos, flores e sementes na fase adulta. 

De acordo com dados da antiga Divisão de Proteção e Produção de Peixes e Animais Silvestres, um departamento de proteção à vida silvestre que existia no governo paulista, no ano de 1951 foram pescadas 373 toneladas de peixes de 26 espécies diferentes no trecho paulista do rio Paraíba do Sul – deste total, 15 toneladas eram de piabanhas; em 1950, foram pescadas 24 toneladas de peixes desta espécie; atualmente, a piabanha está praticamente extinta nas águas do rio Paraíba do Sul dentro dos limites do Estado de São Paulo e só são encontradas em alguns trechos do rio e em alguns afluentes no Estado do Rio de Janeiro. Além da poluição das águas, são as barragens construídas ao longo do rio Paraíba do Sul as principais responsáveis pelo desaparecimento da espécie a montante do rio. 

Com a construção da barragem da Usina Hidrelétrica Ilha dos Pombos no rio Paraíba do Sul em meados da década de 1920, criou-se o primeiro obstáculo para a subida de peixes como a piabanha em direção as nascentes dos rios. Na área da barragem, onde as águas são calmas e repletas de sedimentos, formou-se um tipo de ambiente diferente, definido em biologia como lêntico ou de águas paradas (águas correntes formam os chamados ambientes lóticos), com características adequadas para outras espécies de peixes. A concentração de partículas de sedimentos em suspensão nas águas de ambientes lênticos dificulta a penetração da luz solar, o que reduz a produção e o crescimento de plantas aquáticas, fonte primária da cadeia alimentar do rio; o ambiente também passa a apresentar concentrações menores de oxigênio dissolvido na água – as espécies nativas, habituadas a outras condições ambientais, ou morrem ou migram para outros trechos do rio.  

Esses novos ambientes aquáticos se mostraram adequados à introdução de novas espécies, como o dourado (Salminus maxillosus), originário da bacia do rio Paraná e introduzido na bacia do rio Paraíba do Sul em 1946, além de tilápias e bagres de origem africana e tucunarés da bacia do rio Amazonas, entre outras. O isolamento das populações de peixes de uma mesma espécie em diferentes ambientes por causa das barragens das represas, resultou, no longo prazo, numa redução da diversidade genética dos indivíduos, característica essencial para a sobrevivência de uma espécie. A soma de todos estes problemas resultou numa redução drástica dos estoques de peixes em diversos trechos do rio Paraíba do Sul. Sem considerar o prejuízo biológico para o ecossistema fluvial, irreversível para muitas espécies, essa redução dos volumes de peixes inviabilizou as atividades de milhares de pescadores profissionais que tiravam o seu sustento das águas do rio Paraíba do Sul. 

Só para relembrar a importância da pesca na calha do Paraíba do Sul, um dos eventos religiosos mais importantes da história do Brasil ocorreu em 1717, quando um grupo de pescadores retirou com suas redes, em ocasiões e lugares diferentes, os fragmentos de uma imagem de Nossa Senhora das águas do rio. Esse evento, considerado milagroso, deu origem ao culto à Nossa Senhora Aparecida, que foi transformada na padroeira do Brasil. No local dessa descoberta, que foi um dos mais piscosos entre todos os rios brasileiros, uns poucos pescadores, que ainda insistem na profissão, têm de se esforçar muito para capturar alguns poucos peixes atualmente. 

Além de peixes como a piabanha, existe uma lista com 40 espécies de vertebrados ameaçadas de extinção na bacia hidrográfica do rio Paraíba do Sul. A lista inclui quelônios (tartarugas aquáticas), lagostas e camarões de água doce, estas últimas são espécies de grande valor comercial. Uma das espécies em sério risco de extinção é o cágado-de-hogei, uma espécie só encontrada na bacia do rio Paraíba do Sul, fato que causa muita preocupação entre os especialistas e autoridades ambientais. A escassez de peixes nas águas do Paraíba do Sul é tão intensa que, em alguns trechos, os exemplares comercializados em mercados ou servidos em restaurantes de cidades nas margens do rio são espécies exóticas criadas em cativeiro. 

Uma das alternativas para a resolução destes problemas seria a adoção das chamadas “escadas para peixes”, que permitem que os animais consigam transpor os obstáculos físicos ao longo do curso do rio, além da adoção de programas de captura e transporte de peixes de uma região para outra. Infelizmente, há uma diversidade de atores diferentes atuando na bacia do rio Paraíba do Sul: empresas geradoras de energia (Light, CESP, CEMIG, entre outras), de governos estaduais e municipais, de empresas usuárias das águas do rio e populações. Sem conseguir que todos se articulem de maneira organizada, o rio continua sofrendo imensamente. 

Em meio a todos esses grandes problemas, infelizmente, as piabanhas do rio Paraíba do Sul viraram história de pescador… 

Publicidade

A PREOCUPANTE SITUAÇÃO DOS JACARÉS DA BARRA DA TIJUCA NO RIO DE JANEIRO

Jacarés da Barra da Tijuca

Na última postagem, contamos a história de Teimoso, o lendário jacaré que apareceu nadando nas poluídas águas do rio Tietê em São Paulo no início da década de 1990. A saga do animal mobilizou a opinião pública de toda a cidade e levou à criação de diversos programas de despoluição e de melhorias no rio. Foram mais de dois meses de buscas e tentativas para capturar o jacaré – ao final, foram capturados sete animais, que provavelmente foram soltos no rio por um criador clandestino. Os jacarés foram levados para o Parque Ecológico do Tietê. 

A história com final feliz de Teimoso e seus “irmãos” está muito longe do drama vivido por seus parentes que vivem na região do Complexo Lagunar de Jacarepaguá, na Zona Oeste da cidade do Rio de Janeiro. Com cerca de 280 km², o complexo é formado pelas Lagoas da Tijuca, Camorim, Jacarepaguá, e Marapendi. Essa região tem apresentado um forte crescimento imoobiliário nos últimos anos e possui uma população de mais de 400 mil habitantes. Centenas de condomínios e prédios residenciais foram construídos na região, confinando os grandes bandos de jacarés que habitavam as lagoas a espaços cada vez mais restritos. Especialistas calculam que, apenas no Complexo Lagunar de Jacarepaguá, vivam perto de 4 mil animais. Uma curiosidade – a palavra Jacarepaguá vem do tupi-guarani e significa, literalmente, “enseada ou lugar dos jacarés”.

Além dessa verdadeira invasão das antigas áreas alagadas por assentamentos humanos, os jacarés passaram a enfrentar sérios problemas com a poluição das águas. Como é usual nas cidades brasileiras, essa intensa urbanização não foi seguida pela criação de uma infraestrutura adequada de saneamento básico, especialmente do quesito coleta e tratamento de esgotos. Muitos condomínios até construíram estações próprias para o tratamento dos seus esgotos, mas faltam redes públicas para o transporte final dos efluentes; parte dos condomínios e edifícios, simplesmente lançam suas águas servidas diretamente nas lagoas. Com a alta concentração de matéria orgânica, as lagoas apresentam uma grande quantidade de microalgas e plantas aquáticas, além de uma baixa concentração de oxigênio dissolvido na água. Isso que reduz a disponibilidade de peixes e outros alimentos para os jacarés. O mal cheiro nas águas também é considerado insuportável pelos moradores dos imóveis localizados mais próximos dos corpos d’água. 

Outro problema ligado à falta de infraestrutura urbana na região são os alagamentos localizados provocados pela precária drenagem das águas pluviais. Com a formação de “pequenas” lagoas em ruas e canteiros das avenidas, não é incomum que jacarés ocupem temporariamente essas águas, assustando muitos moradores que passem distraídos pelo local. No último verão, um grande jacaré foi avistado numa imensa poça de água que se formou no canteiro central da Avenida Ayrton Senna, um dos principais acessos à Barra da Tijuca. Segundo os relatos de alguns motoristas, vários veículos passaram muito perto do jacaré. O Corpo de Bombeiros teve de ser chamado para resgatar esse animal. 

Os canteiros de obras de construções também acabam criando ambientes propícios ao acúmulo da água das chuvas e atração de jacarés. Foi o que aconteceu nos fundos de um grande shopping center na Barra da Tijuca no ano passado. No local começou a ser feito um aterro para a ampliação do estacionamento – porém, com a chegada do período das chuvas, a área ficou completamente alagada e foi invadida por um grupo de jacarés. A administração do shopping center foi obrigada a construir uma cerca de contenção, de forma a evitar que os animais invadissem os corredores do estabelecimento. Especialistas do Instituto Jacaré, uma ONG – Organização Não Governamental, que desenvolve estudos acadêmicos para a conservação e monitoramento de animais silvestres como o jacaré-do-papo-amarelo, foram chamados para capturar e transferir os animais para seu ambiente natural. Essa ONG já capturou e cadastrou mais de 400 jacarés na região. 

A abertura de toda uma rede de ruas e avenidas de acesso aos condomínios e edifícios também fragmentou os diferentes habitats, expondo os jacarés à riscos de atropelamento durante os seus deslocamentos. A visão de jacarés na beira das vias é frequente, momento em que muitos acabam agredidos por pedradas e pauladas por parte de alguns moradores da região – muitas dessas agressões partem de pessoas temerosas da presença dos animais nas proximidades de suas casas; grande parte das agressões, porém, é motivada por puro vandalismo. 

Essa alta concentração de jacarés em uma região relativamente pequena, tem criado cenas e situações incomuns. Num desses casos, um jacaré com cerca de 1,5 metro de comprimento foi encontrado nadando na piscina de um tradicional colégio da Barra da Tijuca. Uma funcionária do colégio se deparou com o animal enquanto trabalhava e precisou pedir ajuda para o Corpo de Bombeiros. O jacaré foi devolvido à natureza depois da captura. 

O jacaré-do-papo-amarelo (Caiman latirostris) é amplamente distribuído pelas bacias hidrográficas dos rios Paraná, Paraguai, Uruguai e São Francisco, além de ser encontrado em ecossistemas costeiros como os manguezais, estuários de rios e regiões lagunares, como é o caso da Barra da Tijuca. Em média, os jacarés dessa espécie têm cerca de 2,5 metros de comprimento, mas já foram encontrados espécimes com até 3,5 metros. Os animais adultos apresentam uma cor verde-oliva, que passa a uma cor quase negra conforme os animais ficam mais velhos; os filhotes apresentam uma cor em tons de marrom, com listas e pontos negros pelo corpo. Durante a fase de acasalamento, os animais costumam ficar com a região do papo amarelada, o que deu origem ao nome popular da espécie. De acordo com dados da EMBRAPA – Empresa Brasileira de Pesquisas Agropecuárias, os jacarés dessa espécie pesam entre 45 e 80 kg. 

A espécie é carnívora e se caracteriza por ter uma mordida extremamente forte, que pode partir o casco de uma tartaruga. Normalmente, os jacarés-do-papo-amarelo não costumam atacar seres humanos, exceto em situações onde o animal se sinta ameaçado. Muitos moradores da região tem insistido em fazer “selfies” próximas dos jacarés, casos que são preocupantes. Como são animais de sangue frio, os jacarés precisam ficar por longos períodos expostos ao sol. Nesses momentos, os animais costumam ficar imóveis, uma característica que acaba estimulando os mais corajosos a se aproximarem muito, o que pode assustar o jacaré e resultar em um ataque

Além dos jacarés, as águas do Complexo Lagunar de Jacarepaguá também são o habitat de capivaras, lontras, cágados, entre outras espécies nativas, que também sofrem os efeitos do avanço da mancha urbana e da poluição. Toda essa rica fauna, em conjunto, sofre de um outro mal, que está ficando cada vez mais frequente: a caça ilegal para o consumo de carnes “exóticas”, um hábito bastante arraigado em muitas comunidades dos subúrbios do Rio de Janeiro, que, infelizmente, tem avançado para alguns açougues e “boutiques” de carnes de algumas áreas nobres. Os caçadores costumam atacar à noite, período em que o metabolismo dos jacarés se reduz drasticamente, deixando os animais altamente vulneráveis. Além dos evidentes crimes ambientais que são a caça de animais silvestres e a comercialização de suas carnes, os eventuais consumidores poderão estar se expondo a toda uma série de doenças e contaminantes tóxicos presentes nas águas de todo o Complexo Lagunar. 

Apesar da aparente abundância de jacarés na região, a situação que se apresenta é insustentável no longo prazo, podendo levar a extinção da espécie dentro de algumas décadas. A se manter o crescimento desordenado da cidade do Rio de Janeiro na direção da região da Barra da Tijuca e prossigam os despejos de quantidades cada vez maiores de esgotos nas águas das lagoas, não tardará para toda a região se transformar em um simples depósito de águas sujas e sem vida, uma paisagem muito conhecida em várias das grandes cidades do Brasil. 

TEIMOSO, O LENDÁRIO JACARÉ DO RIO TIETÊ

Teimoso

Uma das histórias mais surpreendentes e até folclóricas sobre a resiliência da vida no poluído rio Tietê é a saga do jacaré Teimoso, que mobilizou Bombeiros, Polícia Florestal,  Guarda Civil Metropolitana, grupos ambientais e de proteção aos animais e, sobretudo, toda a população da cidade de São Paulo em 1992. Foram mais de dois meses de busca e tentativas de captura ao animal. 

O rio Tietê, para quem não conhece a cidade de São Paulo, atravessa a mancha urbana no sentido Leste-Oeste. Durante grande parte da história da cidade, o rio Tietê foi uma importante via de transporte de cargas e pessoas por todo o Planalto de Piratininga, ligando toda uma série de pequenas cidades do entorno ao centro da cidade de São Paulo. Na região onde encontramos hoje a Rua 25 de Março, um dos mais importantes centros comerciais da cidade, funcionou um movimentado porto fluvial até o início do século XX. O chamado Porto Geral ficava no rio Tamanduateí, o principal afluente do rio Tietê na região. 

Com o forte crescimento da cidade e com uma utilização cada vez maior dos transportes rodoviários, a navegação no rio Tietê foi sendo gradativamente abandonada. A partir da década de 1920, a calha irregular do rio Tietê passou a ser retificada, com vistas a permitir o avanço da cidade sobre as antigas áreas de várzea. Na década de 1950, foi inaugurado o primeiro trecho da Marginal Tietê, isolando ainda mais a calha do rio. A intensa urbanização também se refletiu em um aumento cada vez maior da poluição nas águas do rio, que cada vez mais foi relegado a um plano secundário na vida da cidade. O antigo rio, cheio de vida, acabou transformado em uma imensa vala de esgotos a céu aberto. 

A percepção negativa (e até repulsiva) da população em relação ao rio Tietê mudou abruptamente em meados do ano de 1992, quando começaram a circular vários relatos de avistamentos de um jacaré nadando nas águas poluídas, entre as pontes da Vila Maria e da Vila Guilherme, na Zona Norte da cidade. A surpreendente notícia passou a atrair um grande número de moradores da região para as margens e pontes do rio Tietê – todos queriam ver o jacaré, que rapidamente ganhou o “carinhoso” nome de Teimoso. Não tardou muito para as autoridades confirmarem que era um jacaré-do-papo-amarelo, uma espécie nativa da Mata Atlântica e que há várias décadas não era visto nas águas do rio Tietê. 

As primeiras tentativas de busca e captura ao jacaré Teimoso foram feitas por Bombeiros da cidade de São Paulo, que passaram a vasculhar as águas e margens em um bote, com apoio de equipes em terra. Os Bombeiros pretendiam lançar uma rede para capturar o jacaré – o esperto animal sempre mergulhava nas águas escuras e assim conseguia driblar os caçadores. É interessante comentar que todas as tentativas de captura do jacaré eram acompanhadas por uma verdadeira multidão de curiosos, o que, em vários momentos, chegou a paralisar o tráfego de veículos em trechos da Marginal (vide foto). Um batalhão de fotógrafos e jornalistas dos principais jornais, revistas, emissoras de rádio e televisão, em carros, motos e até em helicópteros, acompanhavam atentamente cada uma dessas operações. 

Depois de duas semanas de buscas ao jacaré, dois Bombeiros em um bote e mais uma equipe em terra finalmente conseguiram cercar o animal – uma rede com cerca de 40 metros foi lançada nas águas do rio Tietê e o animal foi aprisionado contra uma das margens. Foi então que um helicóptero apareceu bruscamente e assustou o animal, que mergulhou e conseguiu escapar por baixo da rede. A “plateia” foi à loucura após essa fuga espetacular do Teimoso. Os constrangidos Bombeiros passaram a se desculpar pelas falhas na captura do jacaré, alegando que não tinham nenhuma prática nesse tipo de atividade. 

As operações de buscas feitas pelos Bombeiros receberam reforços da Polícia Florestal e da Guarda Civil Metropolitana da cidade de São Paulo, e se estenderam por mais dois meses. O jacaré foi finalmente capturado por uma equipe da Polícia Florestal enquanto nadava nas águas do rio Pinheiros, um afluente do rio Tietê na Zona Sul de São Paulo. Na realidade, foram capturados sete jacarés nessa operação, o que levantou a suspeita dos animais terem sido libertados nas águas do rio por algum criador clandestino. Todos os animais foram levados para o Parque Ecológico do Tietê, na Zona Leste de São Paulo. 

O jacaré-do-papo-amarelo (Caiman latirostris) é amplamente distribuído pelas bacias hidrográficas dos rios Paraná, Paraguai, Uruguai e São Francisco, além de ser encontrado em ecossistemas costeiros como os manguezais e estuários de rios. Em média, os jacarés dessa espécie têm cerca de 2,5 metros de comprimento, mas já foram encontrados espécimes com até 3,5 metros. Os animais adultos apresentam uma cor verde-oliva, que passa a um tom quase negro conforme os animais ficam mais velhos; os filhotes apresentam uma coloração em tons de marrom, com listas e pontos negros pelo corpo. Durante a fase de acasalamento, os animais costumam ficar com a região do papo amarelada, o que deu origem ao seu nome popular. A espécie é carnívora e se caracteriza por ter uma mordida extremamente forte. De acordo com informações da EMBRAPA – Empresa Brasileira de Pesquisas Agropecuárias, os jacarés dessa espécie pesam entre 45 e 80 kg, o que nos dá uma ideia das suas necessidades calóricas diárias. 

A presença de um grupo de jacarés na calha do rio Tietê, onde os níveis de oxigênio dissolvido na água eram, na época, próximos de zero, intrigam os especialistas até hoje. Com essas condições, as águas do rio não podiam suportar praticamente nenhuma forma de vida e não há como saber como os jacarés conseguiram se alimentar por tanto tempo. O cardápio de um jacaré-do-papo-amarelo pode incluir moluscos, crustáceos, peixes, aves, morcegos, répteis, anfíbios e até animais maiores como antas e capivaras. A exceção de uma ou outra ave desavisada que posou numa das margens do rio ou de algum rato de passagem pela calha, praticamente nenhuma outra forma de vida podia ser encontrada nas águas do rio.  

O jacaré Teimoso colocou o rio Tietê em evidência na grande mídia e foi fundamental para despertar a atenção da população da cidade de São Paulo para os problemas de poluição nas águas do rio – de uma hora para outra, descobriu-se que aquela grande vala de esgotos poderia abrigar vida. O animal foi transformado na mascote de uma campanha que foi criada por grupos ambientalistas para pressionar as autoridades locais a realizarem investimentos na limpeza e despoluição do rio Tietê. 

Apesar de ainda ocupar a primeira posição na lista dos rios brasileiros mais poluídos, a situação do rio Tietê melhorou muito depois da aparição do jacaré Teimoso. Em 1999, teve início um grande conjunto de obras para o aprofundamento da calha e urbanização das margens do rio, com vistas a um maior controle das inundações na cidade. De acordo com dados da CETESB – Companhia Ambiental do Estado de São Paulo, mais de 90% das fontes de poluição industrial do rio Tietê já foram controladas. Também houve um substancial aumento nos volumes de esgotos coletados e tratados em toda a Região Metropolitana de São Paulo, o que reduziu o volume de poluentes que chega na calha do rio. A mancha de poluição, que antes chegava até 530 km e atingia a região de Barra Bonita,  recuou para pouco mais de 120 km. 

Jacarés e capivaras, além de ratões-do-banhado, guarás e garças, entre outras espécies animais que teimam em sobreviver nas águas e margens dos poluídos rios da Região Metropolitana de São Paulo, são exemplos da determinação e resiliência da vida animal, que, apesar das dificuldades criadas pela humanidade, ainda insistem em sobreviver nos ambientes altamente degradados dos nossos recursos hídricos. 

Que seus exemplos nos inspirem a cuidar melhor de nossas águas. 

AS CAPIVARAS DOS RIOS TIETÊ E PINHEIROS

Capivara do rio Tietê

Na última postagem, nós falamos de um tema bastante polêmico e que tem revoltado muita gente – capivaras que vivem dentro de um condomínio residencial em Itatiba, cidade do interior de São Paulo, estão sendo capturadas e abatidas por uma empresa especializada. O motivo – um morador desse condomínio morreu no início de 2018, vítima da febre maculosa. Essa doença é provocada pela bactéria Rickettsia rickettsii, que é transmitida pelo carrapato-estrela (Amblyomma cajennense). As pobres capivaras tiveram o azar de ser uma das espécies hospedeiras desse carrapato e, por tabela, acabaram envolvidas no imbróglio. E a parte mais triste dessa história – o abate das capivaras foi determinado pela Secretaria de Infraestrutura e Meio Ambiente do Estado de São Paulo, que passou a considerar o local como uma área de risco para a febre maculosa

A capivara (Hidrochoerus hydrochaeris) é o maior mamífero roedor do mundo. Elas estão incluídas no mesmo grupo de roedores onde estão as cutias, as pacas, os preás e os porquinhos-da-índia. O animal poder atingir mais de 90 kg de peso e um comprimento de 1,2 m. O corpo é recoberto por uma pelagem densa e escura, totalmente adaptada para passar longos períodos dentro d’água, e com tons que vão do avermelhado ao marrom. É uma animal exclusivo da América do Sul, onde se distribui em rios, lagos e pântanos das grandes bacias hidrográficas a Leste da Cordilheira dos Andes e em altitudes inferiores a 1.200 m. 

O famoso Planalto de Piratininga, onde foi fundada a cidade de São Paulo em 1554, já foi um habitat com características das mais excepcionais para a vida das capivaras. O Planalto era cortado por uma complexa rede hidrográfica, com grandes rios como o Tietê, Tamanduateí e Pinheiros, além de centenas de pequenos rios e córregos. Estudos recentes demonstram que a região já foi uma grande mancha do bioma Cerrado, cercado por vegetação de Mata Atlântica e da Mata das Araucárias. Com o crescimento das cidades em toda a região do Planalto de Piratininga, a poluição das águas e a canalização em massa de riachos e córregos, os habitats naturais e as capivaras foram desaparecendo da região. 

Em meados de 1992, começaram a surgir relatos de muitas pessoas, afirmando que um jacaré estava nadando nas águas altamente poluídas do rio Tietê – essa notícia acabou se confirmando logo depois. Teimoso, nome que a população deu ao heroico jacaré, deu um verdadeiro baile em bombeiros e especialistas, só sendo capturado cerca de dois meses depois. Numa próxima postagem falaremos dessa incrível história. A saga do Teimoso, que teve um final feliz, inspirou os paulistanos a olhar para o sofrido rio Tietê com outros olhos – e foi justamente esse novo olhar que permitiu que um fenômeno que estava ocorrendo discretamente viesse a luz: as capivaras estavam voltando a recolonizar as margens dos grandes rios urbanos da cidade de São Paulo. 

Minha primeira experiência com essas capivaras se deu em 2003, ano em que passei a atuar na área da construção civil pesada e do meio ambiente, quando trabalhei nas obras de extensão de um grande complexo viário na Zona Leste da cidade de São Paulo. Uma das “obras de arte” (nome que se dá a obras como pontes e viadutos) do projeto era uma ponte sobre o rio Tietê. Uma pequena equipe de operários foi instalada nas margens do rio, encarregada de fazer os trabalhos de corte da vegetação e preparação do terreno para a instalação do canteiro de obras. 

Na manhã de uma sexta-feira, recebi uma preocupante notícia via “rádio-peão” (o famoso boca-a-boca que existe entre os funcionários); os operários daquela frente de obras haviam capturado uma capivara e estavam se preparando para transformá-la no prato principal de um churrasco no final de semana. Desesperado com os impactos que esse churrasco teria na obra (a Polícia Ambiental já estava em nosso cerco por causa de alguns problemas no licenciamento ambiental da obra), procurei imediatamente o chefe da Segurança no Trabalho, que também já havia ouvido a mesma notícia. Juntos com alguns outros encarregados da obra, seguimos para a beira do rio para conversar com esse grupo. Após muita negação, a equipe acabou confessando e se comprometeu a libertar a capivara. Passado o susto, tive tempo de parar e chegar na beira do rio Tietê pela primeira vez em minha vida. A pouco mais de dez metros dali, uma capivara e seus filhotes pastavam calmamente. 

Essas capivaras “paulistanas”, muito provavelmente, migraram desde áreas do Alto Tietê, trecho inicial da bacia hidrográfica ainda preservado e com grandes trechos ainda apresentando as mesmas características ambientais dos tempos do início da colonização do Planalto de Piratininga. Seguindo a calha do rio, grupos de capivaras passaram a ocupar trechos das margens onde há abundância de vegetação e também nascentes com água relativamente limpa. O nome capivara vem do tupi-guarani kapi-wara e significa, literalmente, “comedor de grama”. Com a garantia de comida e água “potável”, os animais usavam as águas do rio Tietê apenas para nadar e se locomover, seguindo cada vez mais longe. 

No final da década de 1990, o Governo do Estado de São Paulo iniciou um grande projeto de revitalização da calha do rio Tietê com vistas ao controle das enchentes, onde estavam previstas obras de aprofundamento da calha do rio e urbanização das margens. Um grande número de capivaras precisou ser retirado das margens e levado para o Parque Ecológico do Tietê, localizado no extremo Leste da cidade. Mesmo com todos esses cuidados, as capivaras fugiam do Parque e voltavam a se aventurar ao longo da calha do Tietê. Essa intensa corrente migratória atravessou boa parte da mancha urbana e atingiu a bacia hidrográfica do rio Pinheiros, na Zona Sul da cidade. Atualmente, bandos de capivara podem ser vistos ao longo da Marginal do rio Pinheiros.  

As margens do rio Pinheiros, que continuam cobertas por vegetação, acabaram transformadas numa espécie de “paraíso das capivaras”, onde podem ser vistas às centenas (vide foto). Uma ciclovia com mais de 20 km de extensão, que foi implantada ao longo das margens do rio, ajudou a transformar as capivaras em mais uma das atrações turísticas da cidade. As cabeceiras do rio Pinheiros também abrigam as represas Billings e Guarapiranga que, apesar de muito maltratadas pelo crescimento desordenado das cidades, ainda apresentam muitas áreas verdes e trechos com águas de boa qualidade, que também passaram a atrair esses animais. As capivaras retomaram pouco a pouco seus antigos domínios. 

Apesar das boas condições de vida e do bom relacionamento com os visitantes, as capivaras enfrentam alguns problemas. As margens dos rios Tietê e Pinheiros são cercadas por importantes vias expressas – as famosas Marginais; de vez em quando, um ou outro animal invade alguma das pistas da Marginal e acaba morrendo atropelado. Em vários trechos das margens também existem trilhos das linhas de trens urbanos, onde também já ocorrem muitos atropelamentos de animais. Outro risco são alguns moradores das muitas “comunidades” que existem ao longo das Marginais – há notícias de muitas capivaras que foram capturadas e transformadas em ingredientes de ensopados e churrascos

Os casos de febre maculosa que têm surgido em algumas regiões do Brasil também trazem seus riscos para as capivaras “paulistanas”. São Paulo tem uma população de mais de 11 milhões de habitantes e, caso surja algum surto da doença na cidade, é quase certo que muitos dedos serão apontados para esses animais. Numa situação dessas, não seria muito difícil que alguma autoridade ordenasse o abate dos animais. 

Como se vê, a vida de uma capivara “paulistana” não é nada fácil… 

VEJA NOSSO CANAL NO YOUTUBE – CLIQUE AQUI

AS AMEAÇAS À BIODIVERSIDADE DAS ÁGUAS, OU FALANDO DE CAPIVARAS, FUTEBOL E FEBRE MACULOSA

Zizito

Dentro de poucos dias, este blog Água, Vida & Cia, vai completar 3 anos de existência. Nesse período, foram publicadas cerca de 800 postagens, tratando dos mais diferentes problemas ligados aos recursos hídricos e à poluição das águas. Se você pesquisar em nosso arquivo, vai encontrar inúmeras publicações falando sobre saneamento básico, resíduos sólidos, poluição, irrigação e agricultura, mineração, geração de energia elétrica, bacias hidrográficas e temas similares. 

Nessas últimas semanas, temos acompanhado um tema incômodo nos noticiários – os casos de febre maculosa em várias regiões do país e a responsabilização das inocentes capivaras pelo avanço da doença. Em um condomínio residencial da cidade de Itatiba, no interior de São Paulo, um grupo de capivaras está sendo abatido com autorização da Secretaria de Infraestrutura e Meio Ambiente do Estado. O motivo: um morador do condomínio morreu vítima de febre maculosa e, para evitar a propagação da doença, foi determinada a eliminação de todos os animais do bando.  

Essa situação lamentável está acontecendo em um momento complicado – a capivara foi escolhida como mascote da Copa América, um campeonato continental de seleções de futebol. Ao mesmo tempo que o Zizito (vide foto), um personagem representando uma capivara, entretém as torcidas nos estádios de futebol brasileiros, as capivaras desse condomínio estão sendo capturadas em armadilhas e depois mortas através da aplicação de uma injeção letal, algo que está revoltando muita gente. Pegando uma carona nesta trágica história, vamos dedicar algumas das nossas próximas postagens a outros animais que estão enfrentado problemas semelhantes em nossos rios, represas e lagos. 

A febre maculosa é uma doença infecciosa provocada pela bactéria Rickettsia rickettsii, que é transmitida pelo carrapato-estrela (Amblyomma cajennense). Como as capivaras são hospedeiras naturais do carrapato-estrela, elas, involuntariamente, acabaram envolvidas num grande surto da doença que está em andamento em diversas regiões do país. Existe um detalhe aqui que não vem sendo considerado: a capivara é apenas uma das hospedeiras desse carrapato – ele também é encontrado em animais de grande porte como cavalos e bois, aves domésticas, roedores e, eventualmente, até em cães. O carrapato-estrela é hematófago, ou seja – se alimenta de sangue, e qualquer animal que apareça em seu caminho e tenha potencial para lhe oferecer um “rápido lanchinho”, será transformado, mesmo que temporariamente, num hospedeiro. 

Mas, como é mais fácil jogar a culpa em uma pobre espécie animal que teima em sobreviver em pequenos córregos e rios poluídos pela humanidade, que as capivaras paguem com a própria vida por todos esses males. Medidas básicas de saneamento como o abastecimento de água, coleta e tratamento de esgotos, coleta e destinação correta dos resíduos sólidos, carpina e manutenção de terrenos baldios e áreas verdes, entre outras medidas, que muito ajudariam no controle do vetor da doença – o carrapato-estrela, estão sendo deixadas de lado. 

A capivara (Hydrochoerus hydrochaeris) é o maior roedor do mundo, podendo atingir um peso de 90 kg e até 1,2 m de comprimento. Ela ocorre nas principais bacias hidrográficas da América do Sul, onde é encontrada em rios, lagos e pântanos que se encontrem em altitudes inferiores a 1.300 metros e a Leste da Cordilheira dos Andes. Animal extremamente rústico, a capivara se adapta facilmente a ambientes degradados e poluídos. Um exemplo da resiliência da espécie são os grandes grupos de capivaras que passaram a viver nas margens e águas do rio Tietê, dentro da Região Metropolitana de São Paulo. Esse trecho do rio é considerado o de águas mais poluídas do Brasil. 

Em Itatiba, um pequeno grupo de capivaras encontrou, há alguns anos atrás, um habitat nas margens de um córrego que atravessa o terreno do condomínio Ville de Chamonix. Sem incomodar ninguém, as capivaras foram ficando e o grupo foi crescendo, chegando a cerca de 30 animais, entre adultos e filhotes. A “pacífica” convivência entre humanos e animais silvestres ficou abalada após a morte de um morador do condomínio, vítima da febre maculosa, em janeiro de 2018. Após a divulgação da notícia, uma parte dos moradores que já não simpatizava com a presença dos animais, passou a exigir a remoção ou eliminação imediata dos animais. No local vive um total de 480 famílias. 

De acordo com informações da administração do condomínio, foram propostas outras medidas para controlar a situação, entre elas a remoção do bando para outro local ou até a castração dos animais. A Secretaria de Infraestrutura e Meio Ambiente do Estado de São Paulo, entretanto, passou a considerar o local como uma área de risco para a febre maculosa e determinou o abate dos animais. Uma empresa foi contratada para fazer a captura e o abate dos animais. Até o dia 18 de junho, cerca de 20 capivaras já haviam sido mortas

Uma medida tão radical para o controle da doença dividiu os moradores do condomínio e vem provocando reações por todos os lados. Diversas entidades de proteção à vida animal têm se pronunciado, afirmando que a simples eliminação das capivaras não vai resolver o problema – os carrapatos-estrela vão continuar existindo no meio ambiente e será questão de tempo até que encontrem outro animal hospedeiro. Diante de todas as repercussões negativas provocadas pela medida, o Ministério Público de São Paulo pediu maiores informações à Secretaria de Infraestrutura e Meio Ambiente. Uma representação contra o abate das capivaras foi protocolada pelo Ministério Público em 27 de maio e, devido à burocracia, ainda está em andamento. 

Existem casos confirmados de febre maculosa nos Estados de São Paulo, Minas Gerais, Rio de Janeiro, Espírito Santo, Bahia e Pernambuco. Um dos locais onde o surto da doença é mais grave é a cidade de Contagem, na Região Metropolitana de Belo Horizonte. Até o último dia 12, já existiam 47 notificações da doença na cidade. O principal foco do surto é a região de entorno de um grande terreno baldio com cerca de 120 mil m², que é atravessado por 2 córregos. Esses córregos desaguam na Lagoa da Pampulha, já dentro da cidade de Belo Horizonte, local onde existem grandes grupos de capivaras. Esses animais, de quando em vez, sobem o curso desses córregos para se alimentar da densa vegetação que cobre esse terreno. Aliás, a palavra capivara vem do nome tupi-guarani dado ao animal –  kapi-wara, que significa “comedor de capim”. Nesse caso, basta se manter o terreno limpo e com a vegetação cortada para manter as capivaras bem longe. 

Assim como está acontecendo em Itatiba e Contagem, existem grandes grupos de capivaras em muitos dos lugares onde estão sendo relatados surtos da doença, que, mais dia menos dia, poderão também ser responsabilizadas pela transmissão da doença e poderão enfrentar o mesmo fim dos animais de Itatiba. Já existe uma vacina contra a febre maculosa brasileira, porém, ela é pouco indicada por garantir apenas uma proteção parcial e a doença ser considerada pouco frequente e de tratamento simples e rápido. Os casos fatais da doença são relativamente raros. 

Essa questão da febre maculosa lembra muito o caso dos macacos que vivem dentro de áreas urbanas das grandes cidades da Região Sudeste e que, no ano passado, passaram a ser responsabilizados por vários casos de febre amarela urbana. Centenas e mais centenas de saguis, micos e macacos de diversas espécies, foram abatidos a tiros, a pauladas ou ainda envenenados por moradores, que imaginavam estar controlando assim o avanço da doença. Como está acontecendo nesse caso com as capivaras, era bem mais fácil, naquela época, jogar toda a culpa da febre amarela nos macaquinhos. Os grandes criadouros dos mosquitos Aedes Aegypt nas casas dos moradores, esse era, então, um problema bem menor e que podia ser lançado para um segundo plano. 

A história nos ensina que, para problemas difíceis e complexos, não existem soluções fáceis

UM DESASTRE SOCIAL E AMBIENTAL QUE ATENDE PELO NOME DE USINA HIDRELÉTRICA DE BALBINA

Floresta inundada pela represa da Usina Hidrelétrica de Balbina

Há exatos trinta anos, entrou em funcionamento o quinto e último grupo gerador da Usina Hidrelétrica de Balbina, localizada no município de Presidente Figueiredo, distante cerca de 200 km da cidade de Manaus, capital do Estado do Amazonas. O polêmico empreendimento foi concebido anos antes, ainda durante o período dos Governos Militares (1964-1985), com o objetivo de fornecer metade da energia elétrica consumida na cidade, onde se localizam os importantes Polo Industrial e a Zona Franca de Manaus. O rápido crescimento da cidade não demorou a desequilibrar a oferta energética de Balbina, que tem uma potência total instalada de apenas 250 MW, e que atualmente fornece, em média, pouco mais de 10% do consumo de energia elétrica manauara. 

A Usina Hidrelétrica de Balbina está localizada no rio Uatumã, um dos afluentes do rio Amazonas, e teve suas obras de construção iniciadas em 1985. A barragem da Usina, com 51 metros de altura, provocou o alagamento de uma área total de 2.360 km², quase duas vezes o tamanho do município do Rio de Janeiro. Apesar toda essa área inundada, o volume de produção média de energia elétrica no empreendimento se situa na casa dos 112 MW – em períodos de forte estiagem, a produção elétrica chega a cair para 50 MW. De acordo com especialistas do setor, Balbina é a pior usina hidrelétrica do Brasil dentro de uma lista com 116 empreendimentos, quando se compara a área alagada com a capacidade de produção.  

Pesquisadores da UFAM – Universidade Federal do Amazonas, e do INPA – Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia, alertaram insistentemente as autoridades do setor elétrico da época sobre o erro que seria a construção de Balbina. Isso aconteceu no momento em que a Hidrelétrica ainda estava na fase de projeto e os estudos podiam ter sido paralisados. As “otoridades” preferiram não dar ouvidos aos especialistas da Região Amazônica e o desastre social e ambiental acabou consumado, criando o que muitos consideram “um dos maiores crimes ambientais que a engenharia já cometeu neste país”

Ao contrário dos baixíssimos volumes de produção de energia elétrica, Balbina e seu gigantesco lago são verdadeiros campeões quando se fala na produção e emissão de gases de efeito estufa como o metano (CH4) e dióxido de carbono (CO2). Como aconteceu em outros empreendimentos hidrelétricos, grande parte da floresta que existia nas áreas que seriam alagadas pelo reservatório não foram suprimidas antes do fechamento das comportas da represa (vide foto). Quando encoberta pelas águas, essa vegetação começa a apodrecer e a emitir os gases. Nos momentos de seca, quando as águas baixam, essas emissões são ainda maiores. Para cada MW de energia elétrica produzido na Usina Hidrelétrica de Balbina, há uma emissão de 3 toneladas de gases de efeito estufa – numa usina termelétrica, essas emissões são 10 vezes menores e se situam na casa de 0,3 tonelada para cada MW produzido

A retirada da população ribeirinha das áreas sujeitas ao alagamento seguiu um roteiro bastante conhecido: pessoas sendo retiradas de suas casas com promessas de uma vida melhor no futuro. Quem, eventualmente, resistisse à desapropriação, acabava sendo retirado à força. Durante as fases inicias das obras, onde há muito serviço braçal, muitos dos chefes de família até conseguiram arranjar trabalho. Entretanto, conforme o grau de complexidade dos trabalhos foram crescendo, as oportunidades de trabalho para essas pessoas foi diminuindo. Da mesma forma que aconteceu em outras obras para a construção de usinas hidrelétricas na Amazônia, grande parte desses desalojados do rio Uatumã não receberam nenhuma indenização – quem recebeu alguma coisa, recebeu muito pouco dinheiro. 

Depois da conclusão das obras, um grande número de famílias desalojadas passou a ocupar uma vila de casas, construídas originalmente para receber os trabalhadores das obras. A construtora responsável pelas obras conseguiu expulsar uma grande parte dos invasores, alegando que precisava desmontar as casas, que seriam enviadas para um novo canteiro de obras no Estado do Pará. Cerca de 250 famílias conseguiram continuar vivendo nessa vila. Alguns anos mais tarde, essas casas passaram a receber a energia elétrica gerada em Balbina. Aqui há uma grande ironia da história – a tarifa cobrada por essa energia elétrica era, simplesmente, a maior tarifa praticada por uma empresa de distribuição de energia no Brasil

Outro grupo que foi fortemente impactado pela construção de Balbina foram os indígenas Waimiri Atroari, que se autodenominam Kinja. Suas Terras Indígenas foram afetadas pelo enchimento do reservatório da Hidrelétrica, relembrando que, naqueles “tempos de chumbo” (as obras começaram dentro do Período dos Governos Militares), não havia espaço para reclamação ou necessidade de se realizar estudos prévios de impactos ao meio ambiente. Os Indígenas dessa etnia sofreram sucessivos impactos a partir da década de 1960, quando começaram a ser feitas as grandes obras na Região Amazônica. Uma dessas obras, a construção da Rodovia BR174, que liga Manaus, no Estado do Amazonas, a Caracaraí, em Roraima, atravessou as suas terras e causou um forte impacto na população.  

Outro projeto impactante foi o início da mineração da cassiterita em 1981, que forçou a retirada dos indígenas das áreas onde havia o mineral. Diferentemente de nós, que nos autodenominamos “civilizados” e nos apegamos a bens materiais, os indígenas têm uma forte ligação com a terra, as águas, com os espíritos das matas e elementos sagrados – as populações ribeirinhas herdaram muitos desses valores indígenas. Um desligamento abrupto desses “elementos” intangíveis altera completamente o seu modo de vida e as suas expectativas – os mais velhos das comunidades, frequentemente, não sobrevivem às mudanças. Um levantamento feito pela Funai – Fundação Nacional do Índio, nas terras dos Waimiri Atroari em 1972, mostra isso com uma clareza absoluta: o censo encontrou cerca de 3 mil índios da etnia na região; apenas dois anos depois, um novo recenseamento encontrou apenas 600 indivíduos

Os impactos ao meio ambiente também foram fortíssimos, o que foi comprovado através de um recente estudo sobre a biodiversidade existente nas 37 ilhas formadas no lago da Hidrelétrica, que foi comparada com 3 áreas florestais próximas. Foi constatado que a maioria das populações de grandes mamíferos, aves e tartarugas desapareceu das terras dessas ilhas; apenas 0,7% do território das ilhas ainda conservavam uma comunidade diversificada de espécies. O isolamento de espécies animais em ilhas, conforme os ensinamentos da Biologia da Conservação, é um caminho praticamente sem volta para a extinção de espécies. Estoques limitados de alimentos, falta de diversidade genética e baixos índices de natalidade, estão entre os principais problemas. Os territórios dessas ilhas também sofreram com vendavais, tempestades e incêndios. 

As populações da fauna e flora aquática também sofreram seus próprios impactos. O barramento do rio altera completamente os ciclos das águas, que na Floresta Amazônica apresentam enormes variações entre os períodos de seca e de cheia. A barragem provoca uma forte alteração no ambiente do rio, que passa da condição de lótico, ou de águas rápidas, para lêntico, ou ambiente de águas paradas. Espécies de peixes e de outros animais adaptados a um ciclo de vida em águas rápidas e a constantes migrações contra a correnteza do rio, de uma hora para outra passam a viver em um mundo de águas paradas, perdendo completamente sua orientação, inclusive na caça de suas presas.  

Já as espécies de águas lentas ou paradas, essas passam a se multiplicar sem controle, alterando complemente o equilíbrio natural do ambiente. Essas mudanças nas águas também afetam toda a flora local – muitas espécies de árvores dependem das cheias sazonais dos rios para dispersar suas sementes. E sem gerar descendentes, essas árvores poderão desaparecer da região no médio e longo prazo. As águas paradas do reservatório também proporcionam uma multiplicação sem controle da vegetação aquática, especialmente das macrófitas. À época da seca, quando as águas do reservatório baixam consideravelmente, toneladas dessas plantas mortas se amontoam sobre as terras nuas e passam a liberar grandes volumes de gases de efeito estufa. 

A Usina Hidrelétrica de Balbina foi um dos grandes erros do nosso país na área da energia elétrica, criando imensos impactos ambientais e sociais sobre uma extensa região da Floresta Amazônica, nos dando pouquíssimos benefícios em troca. Não é à toa que muitos especialistas pregam a desativação da Usina e demolição completa da sua barragem

Acho que pouca gente na Região Amazônia iria sentir a sua falta… 

VEJA NOSSO CANAL NO YOUTUBE – CLIQUE AQUI

USINA HIDRELÉTRICA DE BEM-QUERER: AS DISCUSSÕES E AS POLÊMICAS DE UM EMPREENDIMENTO NO AMAPÁ

Boa Vista

Há algumas semanas atrás, eu assisti ao interessantíssimo documentário “Don´t panic”, que apresenta uma palestra realizada em 2012, na Inglaterra, pelo respeitado cientista sueco Hans Rosling (1948-2017), que foi médico, professor, estatístico e palestrante internacional. Especialista em análise do crescimento demográfico mundial e de seus impactos ao meio ambiente, o Dr Rosling a certa altura começa a falar do consumo e dos impactos criados pelo uso da eletricidade pelas populações. 

Para mostrar a nossa dependência da energia elétrica e das comodidades criadas pelo seu uso, o cientista fez duas perguntas para a plateia – quantas pessoas viajaram de avião no último ano e quantas pessoas lavaram as suas roupas manualmente, sem usar uma máquina de lavar, no mesmo período. Com a resposta da primeira pergunta, foi possível verificar que uma grande parte da plateia não havia viajado de avião recentemente; em relação à segunda pergunta, simplesmente ninguém levantou a mão.  Em seu comentário, o Dr Rosling afirmou que a plateia até poderia ficar sem viajar de avião (lembrando que a palestra foi realizada na Inglaterra, um país rico, onde a população tem meios econômicos para gastar com esse tipo de transporte), mas não consegueria sobreviver muito tempo sem o acesso a energia elétrica e todos os confortos proporcionados por ela.

Comecei citando esse exemplo para reforçar uma percepção que todos nós temos: depois que qualquer pessoa se habitua às comodidades proporcionadas pela energia elétrica, é bem difícil, para não dizer praticamente impossível, retornar a uma vida anterior sem ter acesso à eletricidade. Essas comodidades vão das facilidades para tomar banho quente num chuveiro elétrico ou das roupas lavadas numa máquina automática ao entretenimento, cultura e comunicações proporcionados pelos sistemas de telefonia celular e computação. É quase impossível encontrar um “ambientalista” (uso o termo aqui num sentido amplo) que não entre em pânico quando não encontra uma tomada para recarregar seu smartphone ou laptop – nessas horas, pouco importará se a fonte da energia elétrica é limpa ou poluente. 

As grandes questões que sempre se levantam são os impactos ambientais e sociais decorrentes da construção dos empreendimentos geradores da preciosa energia elétrica. A instalação de usinas hidrelétricas em rios da Bacia Amazônica, assunto que falamos ao longo de diversas postagens, vem gerando um intenso debate dentro e fora do Brasil, onde as discussões giram em torno do futuro da maior floresta equatorial do planeta e as necessidades energéticas da população brasileira. Um tema dos mais atuais, que vai gerar enormes embates nos próximos meses, serão as discussões para a construção da Usina Hidrelétrica de Bem-Querer, em Roraima, único Estado que não está interligado ao Sistema Elétrico Brasileiro e que depende da energia elétrica gerada na Venezuela e da geração local através de usinas termelétricas. 

Localizado no extremo Norte do Brasil, o Estado de Roraima é um dos mais distantes e isolados do país. Com uma população de pouco mais de 500 mil habitantes, Roraima é o Estado menos populoso do Brasil e também o que apresenta a menor densidade demográfica – apenas 2,33 habitantes por km². O baixo número de habitantes sempre foi uma das características do território – em 1890, ano em que foi criado o município de Boa Vista, havia pouco mais de 1.000 habitantes brancos e mestiços na região. O povoamento do território só começou a ganhar algum folego a partir dos últimos anos do século XIX, quando o então Governador do Amazonas, Eduardo Ribeiro, ordenou a construção de uma estrada, com o objetivo de facilitar o transporte de gado de Boa Vista para Manaus.  

A palavra Roraima vem das línguas indígenas locais e significa algo como “serra verde”. Alguns linguistas afirmam que o nome também pode significar “mãe dos ventos” e “serra do caju”. Durante muito tempo, a região foi chamada de Território Federal do Rio Branco, numa referência ao maior e mais importante rio local. A adoção desse nome se deu em 1943, quando o território atual de Roraima foi desmembrado do Amazonas. 

Nos últimos meses, Roraima passou a frequentar, quase que diariamente, os telejornais do país por causa da crise dos imigrantes da Venezuela, país que faz fronteira com o Estado e que vive uma profunda crise econômica, política e social. Milhares de “refugiados” venezuelanos passaram a entrar no Brasil através de Roraima, criando uma série de problemas sociais na Região. O colapso da Venezuela também passou a afetar o fornecimento de energia elétrica para Roraima – sucessivos problemas na rede elétrica venezuelana têm deixado a população roraimense no escuro. Em 2018, foram 85 blackouts no Estado, dos quais, cerca de 72 foram decorrentes de problemas na Venezuela

Um complicador da situação do Estado foi o atraso na construção do Linhão de Tucuruí, uma linha de transmissão com mais de 700 km, que levaria a energia elétrica gerada na Usina Hidrelétrica de Tucuruí, no Pará, até Roraima. Essa obra foi licitada em 2011 e deveria ter ficado pronta em 2015. Cerca de 120 km dessa linha de transmissão cruzariam a Terra Indígena dos Waimiri-Atroari, motivo que levou o IBAMA – Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis, a negar a licença ambiental e o projeto acabou não saindo do papel, para desespero da população de Roraima. 

Uma das alternativas para resolver a questão do fornecimento de energia elétrica no Estado seria a construção de uma grande usina hidrelétrica no Rio Branco. Um dos projetos (existem estudos para a construção de 4 empreendimentos em Roraima) prevê a construção de uma usina hidrelétrica na região da Cachoeira do Bem-Querer, no município de Caracaraí, a cerca de 135 km de Boa Vista (vide foto). O empreendimento teria um custo estimado em R$ 6 bilhões e teria uma potência instalada de cerca de 650 MW.  

A eventual construção da Usina Hidrelétrica de Bem-Querer cobriria, e com muita folga, a demanda de energia elétrica do Estado de Roraima, que consome, em média, 90 MW/h, com alguns picos de até 140 MW/h. Roraima possui uma única PCH – Pequena Usina Hidrelétrica, em operação no rio Jatapu, que tem uma potência instalada de apenas 10 MW, além de 5 centrais termelétricas movidas a óleo diesel. A maior parte da energia elétrica consumida no Estado é gerada pela Usina Hidrelétrica de Guri, na Venezuela. 

As discussões sobre a viabilidade do empreendimento começam com a formação do lago da usina hidrelétrica, que alagaria uma área calculada em pouco mais de 500 km², considerada muito grande para o volume de energia elétrica que seria gerada. A comparação que vem sendo usado pelos ambientalistas locais é em relação ao lago da Usina Hidrelétrica de Belo Monte, no Estado do Pará, que ocupa uma área bem menor e tem uma potência instalada superior a 11 mil MW. A formação desse lago inundaria áreas de 6 dos 15 municípios do Estado, onde se incluem territórios de 7 UC’s – Unidades de Conservação. 

Os números iniciais falam que, perto de 6 mil pescadores artesanais, perderiam a sua fonte de sustento. Apesar de, em números absolutos, não parecer algo tão grande, isso corresponde a cerca 1,2% da população de Roraima. Outro forte argumento contra o barramento do rio Branco seria a interrupção da migração de diversas espécies de peixes vindos do rio Negro. A bacia hidrográfica do rio Branco cobre 80% do território de Roraima e suas águas atendem 90% da população do Estado, números que só reforçam a importância do rio e a preocupação de todos com os impactos negativos que poderão ser desencadeados com a construção da Usina Hidrelétrica. 

O Governo de Roraima afirma que a construção do empreendimento no rio Branco não é a melhor alternativa e que a obra poderia ser construída na região da Cachoeira do Tamanduá, no rio Cotingo. De acordo com as autoridades locais, uma usina hidrelétrica nesse local inundaria uma área com apenas 36 km². O grande nó para essa mudança é o fato desse local ficar dentro da Terra Indígena Raposa do Sol, o que, por si só, já impediria o licenciamento ambiental do empreendimento. Além disso, as lideranças do Conselho Indígena de Roraima são contrárias ao projeto, o que impede a realização de qualquer acordo de compensação ou transferência de terras. Uma outra hipótese seria a construção de duas usinas hidrelétricas na República da Guiana, que exportariam a energia elétrica para Roraima – uma solução complicada e que exigiria grandes esforços da Diplomacia brasileira. 

Enquanto esses entraves e as discussões prosseguem, a população de Roraima vai continuar sofrendo com os riscos de apagões constantes, sujeitas aos humores de Governantes estrangeiros e aos percalços criados pela profunda e complexa crise vivida na Venezuela. 

AS USINAS HIDRELÉTRICAS DO RIO MADEIRA EM RONDÔNIA

UHE Santo Antônio

O rio Madeira é um dos principais afluentes do rio Amazonas, com uma extensão total de 3.315 km, o que o coloca na lista dos mais maiores rios do mundo. O rio Beni é o mais extenso formador do rio Madeira, com nascentes no alto da Cordilheira do Andes na Bolívia. Depois de atravessar um longo trecho do país vizinho, o rio Beni se encontra com os rios Mamoré e Guaporé, formando o rio Madeira na divisa do Brasil e da Bolívia.

O trecho inicial do rio Madeira, que tem 320 km entre a cidade de Guajará-Mirim e Porto Velho, apresenta inúmeros afloramentos rochosos, fortes corredeiras e quedas d’água, o que sempre foi um obstáculo para a navegação. Nesse trecho, o rio Madeira apresenta um desnível com cerca de 60 metros, com uma vazão média de 20 mil m³/s, características ideais para a instalação de grandes empreendimentos hidrelétricos.  O trecho navegável do rio Madeira começa na cidade de Porto Velho e vai até a foz no rio Amazonas, numa extensão total de 1.086 km.

A dificuldade de navegação nesse trecho inicial do rio Madeira foi a principal responsável pela construção da famosa Ferrovia Madeira-Mamoré, um evento que marcou a história do Brasil e que é fundamental para se entender a história dos atuais Estados de Rondônia e do Acre, que nasceram e foram povoados durante o chamado Ciclo da Borracha a partir de meados do século XIX. Esse tema foi tratado longamente em postagens de uma série anterior.

A intenção de se aproveitar o potencial energético do rio Madeira remonta às décadas de 1960 e 1970, quando o Governo Federal implementou um audacioso plano para a construção de grandes empreendimentos hidrelétricos. Estudos mais detalhados para a implantação desses empreendimentos no rio Madeira, porém, só passaram a ser discutidos de forma mais concreta entre 1997 e 1998, quando foi criado o Plano Úmidas, dentro do chamado Projeto Planafloro. Esse Projeto continha uma série de propostas para o desenvolvimento sustentável do Estado de Rondônia até 2020. Entre essas propostas, foi apresentado um plano de transformar Rondônia em um “exportador” de energia elétrica para as Regiões do Centro-Sul do Brasil.

Além de estudos sobre a viabilidade de usinas hidrelétricas no rio Madeira, o Projeto previa a utilização do gás natural produzido nos campos de exploração de Urucu, no Estado do Amazonas, para gerar energia elétrica em usinas térmicas a gás (projeto que depende da construção do Gasoduto Urucu-Porto Velho), a retomada dos estudos para a implantação de diversas usinas hidrelétricas no rio Ji-Paraná e também de 64 pequenas usinas hidrelétricas em diversos rios do Estado de Rondônia, incluindo-se aqui a Usina Hidrelétrica de Samuel, tratada na postagem anterior. Com a farta disponibilidade de energia elétrica, o Governo local também esperava atrair um grande número de indústrias para o Estado.

Os estudos técnicos avaliaram o potencial das Cachoeiras de Teotônio e de Santo Antônio, localizadas bem próximas da cidade de Porto Velho, e também de um trecho do rio Madeira localizado a cerca de 120 km de Porto Velho. Foram avaliados os potenciais e os impactos para a instalação de empreendimentos de diversos portes, com potência instalada entre 1.000 e 8.000 MW. Alguns dos projetos de grande porte avaliados, inclusive, necessitariam de grandes reservatórios que incluiriam a inundação de áreas na Bolívia, enquanto que projetos menores só inundariam áreas dentro do Brasil.

Depois de todos esses estudos, foi tomada a decisão de se construir as Usinas Hidrelétricas de Santo Antônio e de Jirau, que passaram a ser conhecidas como Complexo do Rio Madeira. O colapso na geração de energia elétrica vivido pelo país em 2001, que ficou conhecido como o Apagão do Governo do Presidente Fernando Henrique Cardoso, acelerou a decisão para o início da construção dessas usinas hidrelétricas.

A Usina Hidrelétrica Santo Antônio (vide foto) está localizada a cerca de 25 km de Porto Velho e possui uma capacidade total instalada de 3.568 MW. Devido as grandes variações nas vazões do rio Madeira, que vão de 4 mil m³/s no auge do período seco até 40 mil m³/s durante o período das chuvas, a potência assegurada da Hidrelétrica é de 2.424 MW. O empreendimento possui 50 grupos geradores e ocupa a quarta posição entre as maiores Hidrelétricas em operação no Brasil. O reservatório da Hidrelétrica ocupa uma área máxima de 422 km², que é praticamente a área ocupa pelo rio Madeira no pico do período das cheias

A Usina Hidrelétrica de Jirau tem uma potência instalada máxima de 3.750 MW e uma potência assegurada de 2.184 MW. A Hidrelétrica também possui 50 grupos geradores e seu reservatório ocupa uma área máxima de pouco mais de 360 km². O empreendimento começou a operar comercialmente em 2013 e foi totalmente concluído em 2016. No caso da Usina Hidrelétrica Santo Antônio, a operação comercial foi iniciada em 2012 e a conclusão total das obras também se deu em 2016. Além de sua grande importância na geração de energia elétrica, as barragens do Complexo do rio Madeira também criaram a possibilidade de navegação hidroviária no antigo trecho de corredeiras do rio. Esse trecho tem um potencial para escoar cerca de 50 milhões de toneladas de grãos, principalmente soja, produzidas em regiões de Rondônia e de Mato Grosso, via rio Guaporé, e de regiões da Bolívia, através do rio Beni. Essas cargas seguirão para portos nos Estados do Amazonas e do Pará, através das hidrovias dos rios Madeira e Solimões/Amazonas, já em operação.

Como sempre acontece, a implantação desses empreendimentos de grande porte no rio Madeira causou uma infinidade de impactos ambientais e, principalmente, sociais em uma extensa área do Estado de Rondônia, em especial no município de Porto Velho com sua área de mais de 31 mil km² (maior que o Estado de Alagoas). Eu morei na cidade de Porto Velho entre os anos de 2009 e 2010, pico das obras nessas Usinas, e senti na pele alguns desses impactos. O intenso fluxo de pessoas que seguiu para Rondônia em busca de trabalho nas obras (além das Usinas Hidrelétricas, estavam em andamento outras obras como rede de abastecimento de água, sistemas de esgotos e construção de viadutos), o que gerou um brusco aumento na demanda por produtos de consumo, combustíveis, moradias, locação de veículos e hotéis, levando os preços de tudo para as “alturas”. Um exemplo que sempre cito era o custo do aluguel do meu apartamento na cidade – antes da chegada das obras, o preço médio do aluguel de um imóvel similar era R$ 400,00; quando a empresa em que eu trabalhava fez a locação, esse preço subiu para R$ 1.200,00.

Um dos dramas sociais mais impressionantes que acompanhei na cidade foi a desapropriação de milhares de famílias de ribeirinhos, que viviam nas margens do rio Madeira há várias gerações. Muitas dessas famílias tinham suas origens na Região Nordeste, principalmente no Estado do Ceará, e começaram a se instalar na região nas últimas décadas do século XIX, no período conhecido como Ciclo da Borracha. Um dos capítulos mais tristes desse processo foi a luta dessas famílias para a transferência dos restos mortais de seus familiares dos chamados “campos santos”, pequenos cemitérios das vilas, para locais longe das áreas que seriam alagadas. Essa transferência não havia sido prevista nas planilhas de custos das empreiteiras que “tocavam” as obras e foi necessária a intervenção do Ministério Público do Estado de Rondônia, que obrigou as empresas a fazerem um levantamento arqueológico completo desses locais e a transferência dos restos mortais desses antigos ribeirinhos.

Um outro dado que exemplifica o impacto social das obras foi visto no Distrito de Jaci Paraná, localizado a cerca de 60 km de Porto Velho. A pacata localidade, que tinha uma população de pouco mais de 13 mil habitantes em 2010, subitamente passou a abrigar uma grande população de prostitutas, vindas de todos os confins do país, atraídas pelas “oportunidades de trabalho” criadas por uma concentração de dezenas de milhares de operários. Lembro de uma reportagem da imprensa local que falava de até 4 mil “profissionais do sexo” vivendo no Distrito (é bem provável que esse número tenha sido aumentado pelo jornal). Entre as visitas desses operários aos bordéis e as intensas bebedeiras que se seguiam numa infinidade de pequenos bares, ocorriam inúmeras brigas e confusões, com algumas terminando com mortos e feridos – a antiga tranquilidade do lugar virou coisa do passado.

Como se nota, os impactos criados por esses grandes empreendimentos são bem maiores e mais complexos do que supõe o senso comum.

A IMPACTANTE E INEFICIENTE USINA HIDRELÉTRICA DE SAMUEL EM RONDÔNIA

IMG_2618

Quando falamos em problemas ambientais e sociais criados pela construção de uma usina hidrelétrico em rios da Bacia Amazônica, é muito difícil não lembrar da Usina Hidrelétrica de Samuel, localizada a cerca de 60 km da cidade de Porto Velho em Rondônia, no município vizinho de Candeias do Jamari. A Hidrelétrica foi construída no rio Jamari, um afluente do rio Madeira, num local onde existia uma cachoeira chamada Samuel. Em tese, a potência instalada em Samuel, 261 MW, seria suficiente para abastecer uma grande parte do território de Rondônia, um Estado isolado na Amazônia Ocidental. Sem contar com linhas de transmissão que lhe permitissem receber a energia elétrica gerada em outras regiões do país, Rondônia dependia da geração por centrais hidrelétricas a diesel. 

Apesar das boas intenções, a bacia hidrográfica do rio Jamari é relativamente pequena, com cerca de 15 mil km², e, consequentemente, a vazão média anual do rio Candeias é de apenas 366 m³ por segundo. Em decorrência dessa “falta de água”, a produção média de energia elétrica em Samuel fica limitada a uma “média” de 76 MW. Por outro lado, o represamento do rio Jamari levou a formação de um reservatório com cerca de 540 km² e que exigiu a supressão de uma área de floresta com cerca de 420 km². Como a região de Samuel é muito plana, foi necessária a construção de 57 km lineares de diques para limitar a expansão lateral do reservatório – se essas obras não tivessem sido feitas, o lago de Samuel ocuparia uma área muito maior.  

Essa relação entre uma grande área alagada e uma baixa produção de energia elétrica, coloca a Usina Hidrelétrica de Samuel na lista das mais ineficientes do Brasil. Cada metro quadrado de área alagada do reservatório resulta na geração de apenas 0,40 W, o que não chega à metade da potência esperada de 1 W e fica muito longe dos 10 W/m² das mais eficientes barragens de usinas hidrelétricas do país. O custo estimado do empreendimento, calculado em US$ 1 bilhão (o custo real nunca foi divulgado pelas empresas estatais responsáveis), também mostra uma péssima relação custo/benefício. Em resumo, falamos de uma área alagada e de custos de construção grandes demais, para uma produção de energia elétrica muito pequena.  

A construção de Samuel começou no início da década de 1980, ainda no tempo do Regime Militar, época em que grandes projetos de infraestrutura estavam sendo tocados em todas as regiões do país. No caso da Amazônia, região considerada estratégica pelos militares, era vital um rápido aumento da presença do Estado brasileiro para a garantia da soberania na região – os adeptos da “teoria da conspiração” temiam movimentos das grandes potências mundiais, que falavam abertamente da internacionalização da região, algo semelhante ao que foi feito em relação ao Continente Antártico, cujo Tratado de Internacionalização foi assinado em 1959. Foi dentro deste contexto, que a Região Amazônica recebeu pesados investimentos no período e surgiram obras como a Rodovia Transamazônica, a Usina Hidrelétrica de Tucuruí, o Projeto Carajás de mineração e a Zona Franca de Manaus. Apesar de ineficiente e altamente impactante ao meio ambiente, a construção da Usina Hidrelétrica de Samuel, que acabou se estendendo por 16 anos, se justificou dentro desse contexto histórico e político. 

A História da Hidrelétrica de Samuel está diretamente associada ao Projeto POLONOROESTE, financiado pelo Banco Mundial em 1981, projeto esse que reconstruiu e pavimentou a Rodovia BR-364, via que ligou os antigos Territórios Federais de Rondônia e do Acre ao restante do país a partir da cidade de Cuiabá. Após a conclusão dessa rodovia, o Estado de Rondônia passou a ser “inundado” com imigrantes vindos de outras regiões do país, especialmente da Região Sul, e passou a apresentar uma das maiores taxas de crescimento demográfico do país. A cidade de Porto Velho, citando um exemplo, cresceu a uma taxa de 7,6% ao ano entre 1970 e 1991, quando quadruplicou de tamanho. Esse crescimento explosivo da população também se refletiu no consumo de eletricidade, que passou de 5,8 Mil MW em 1970 para 145 mil MW em 1980, algo que foi fundamental para a decisão de se iniciar construção da Usina Hidrelétrica de Samuel já em 1982

Os impactos sociais gerados pela construção de Samuel foram relativamente pequenos – um total de 238 famílias que viviam na área de formação do lago, além de 20 famílias que viviam na região da Cachoeira de Samuel, tiveram de ser realojadas. A formação do lago também interrompeu uma estrada de acesso a um assentamento rural criado pelo INCRA – Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária, que passou a depender de uma travessia por balsa e recebeu a promessa de construção de uma ponte, o que, diga-se de passagem, só ficou na promessa. Os indígenas da tribo Uru-Eu-Uau-Uau, que habitam as cabeceiras do rio Jamari, também acabaram impactos indiretamente – o represamento do rio alterou negativamente a migração dos peixes e a fauna aquática ficou reduzida a algumas espécies da família dos bagres, consideradas de sabor ruim pelos índios e populações ribeirinhas. Eu cheguei a pescar junto à barragem da Hidrelétrica em 2010 (vide a foto que ilustre essa postagem, de boné branco e muito acima do meu peso atual) e só peguei esses “bagres”. 

Do ponto de vista dos impactos ambientais, a Usina Hidrelétrica de Samuel superou todas as expectativas. Comecemos falando dos mosquitos anofelinos, que encontraram no lago da Hidrelétrica um criadouro ideal. A região do reservatório, que fica entre as cidades de Ariquemes e Porto Velho, recebeu o título de “Capital Mundial da malária” em 1995, ano em que foram registrados mais de 29 mil casos da doença nessa região

Outro problema gravíssimo criado pela Usina Hidrelétrica de Samuel são as emissões de  GEE – Gases de Efeito Estufa. Em 1990, as emissões de GEE pela Hidrelétrica foram 11,6 vezes maiores do que a geração equivalente feita anteriormente por usinas termelétricas movidas a partir da queima de combustíveis fósseis, como no caso da Usina Termelétrica Rio Madeira, em Porto Velho. Para efeito de comparação, as emissões de GEE na Usina Hidrelétrica de Tucuruí se situaram entre 1,8 e 2,6 vezes no mesmo ano. Essas emissões tem origem na decomposição de plantas aquáticas da família das macrófitas, que infestam o reservatório, e também de restos de árvores que não foram cortadas antes da inundação. Essas emissões aumentam consideravelmente no período da seca, quando o espelho d’água sofre um forte deplecionamento ou redução. O nível do reservatório chega a baixar até 14 metros e as áreas expostas se transformam em verdadeiras fábricas de gás metano. No reservatório da Usina Hidrelétrica de Itaipu, citando um exemplo para comparação, a redução média do nível do reservatório é de, no máximo, 40 centímetros. 

O lago de Samuel também provocou uma forte elevação do lençol freático nas regiões de entorno. Em várias cidades próximas, como é o caso da cidade de Itapoã do Oeste, o nível do lençol freático chegou muito próximo da superfície, transformando as ruas em verdadeiros lamaçais. As prefeituras dessas cidades foram obrigadas a cavar canais ao largo das ruas, numa tentativa de escoar o excesso de água. Essa subida das águas subterrâneas também passou a provocar um forte estresse nas árvores de uma grande faixa de vegetação ao redor do lago, que passaram a sofrer com diversas doenças vegetais, fungos e parasitas. 

Samuel também criou uma brecha legal para a exportação de madeiras em toras, algo que havia sido proibido em 1965, e que levou a um grande desmatamento em outras regiões da Amazônia. As madeiras exploradas na região precisavam passar por um beneficiamento mínimo antes da exportação, como forma de gerar empregos nas madeireiras. Essa exceção foi criada para facilitar e simplificar a supressão e o corte das árvores da área sujeita ao alagamento da Usina de Samuel, mas acabou sendo usada por muitos espertalhões de toda a Região Norte. 

A liberação de mercúrio nas águas do rio Jamari, algo que acontece em represas por toda a Amazônia, é outro problema grave. Os solos da Amazônia apresentam fontes naturais de mercúrio, formadas ao longo de milhões de anos, originadas especialmente das erupções vulcânicas que lançaram esse metal tóxico na atmosfera. Com a formação das represas, esse mercúrio dos solos é dissolvido e passa a contaminar as águas na sua forma tóxica – o metil mercúrio. Esse mercúrio passa a contaminar e a se acumular em cadeia nas criaturas aquáticas, de plantas a peixes, que por fim acabam contaminando populações que comem os peixes capturados nos rios. O mercúrio ataca o sistema nervoso central dos seres humanos e causa uma série de problemas como fraqueza muscular, dormência nas mãos e pés, perda de memória, entre outros problemas graves. 

Se você pesquisar, vai descobrir que a lista de problemas criados pela Usina Hidrelétrica de Samuel é bem mais extensa. 

A INTRIGANTE HISTÓRIA DA USINA HIDRELÉTRICA DE BELO MONTE

UHE Belo Monte

Na última postagem, contamos rapidamente a história do projeto da Usina Hidrelétrica São Luiz do Tapajós, um complexo energético de grande porte que poderia ter sido construído no rio Tapajós, no Pará. Falhas nos estudos de impacto ao meio ambiente e, sobretudo, os impactos que as obras causariam em várias Terras Indígenas, levaram o IBAMA – Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis, a indeferir o pedido de licenciamento ambiental e, assim, impedir a construção do empreendimento. Também contribuíram para o fim dos planos da construção da Usina Hidrelétrica os pareceres da FUNAI – Fundação Nacional do Índio, e do Ministério Público Federal do Estado do Pará. 

Infelizmente, não é sempre que as leis, mais especificamente a Legislação Ambiental, são seguidas. Conforme os interesses dos “grupos de pressão” – políticos, empresários, ruralistas, entre outros, as coisas podem ser ajeitadas, mudando-se uma lei aqui, uma resolução ali, transformando um projeto ou empreendimento “ilegal” em algo “essencial” ao desenvolvimento do país. A construção da Usina Hidrelétrica de Belo Monte, no rio Xingu – também no Estado do Pará, é um dos grandes exemplos de como se levar “ao fim e ao cabo” um empreendimento hidrelétrico cheio de irregularidades. 

O rio Xingu nasce no Estado de Mato Grosso, entre as Serras do Roncador e Formosa, percorrendo uma extensão de quase 2 mil km até desaguar no rio Amazonas, no Pará. Os principais formadores do Xingu são os rios Ferro, Batovi e Culuene. O rio Xingu ganhou notoriedade nacional após a Expedição Roncador-Xingu, iniciada em 1943, e que, entre outras grandes realizações, culminou com a criação do Parque Indígena do Xingu em 1961. Aliás, foram justamente as notícias sobre o Parque Indígena, tanto as boas quanto as más, que mantiveram o rio Xingu em evidência durante décadas. Nos últimos anos, infelizmente, temos assistido a uma avalanche de más notícias vindas do rio, a maioria referente aos problemas sociais e ambientais criados após a construção da Usina Hidrelétrica de Belo Monte.  

A construção de usinas hidrelétricas no rio Xingu é um projeto antigo, que vem sendo gestado desde a época dos Governos Militares (1964-1985). Naqueles tempos difíceis, o mundo estava completamente polarizado, com as forças do chamado Mundo Livre, liderado pelos Estados Unidos, em “luta constante” contra as forças do Comunismo, sob o comando da Rússia – que seria, dentro da retórica ideológica da época, uma espécie de “Lado Negro da Força”. Um dos mantras repetidos pelos militares brasileiros no período dizia que “forças estrangeiras queriam internacionalizar a Amazônia” – logo, para se evitar que isso acontecesse, era imperativo que o Brasil “ocupasse a Amazônia”.  

Essa conversa pode até parecer um capítulo da “Teoria da Conspiração”, mas na verdade, quando se analisa as ações dos Governos Militares, se tem a nítida impressão que algo estava mesmo acontecendo. Entre as grandes obras realizadas e/ou idealizadas no período, encontramos a construção da Rodovia Transamazônica, a criação de diversos projetos de mineração como o de Carajás, no Pará, a construção de grandes usinas hidrelétricas nos rios da Amazônia, onde Tucuruí é o caso mais expressivo, além dos inúmeros projetos de distribuição de terras para agricultores sem-terra de outras regiões do país. Eu era garoto na época, mas lembro claramente do ufanismo nacionalista a cada nova mega obra anunciada ou concluída.  

No caso do Xingu, os planejadores do Governo Militar haviam criado o Projeto Kararaô, onde se planejava a construção de uma série de usinas hidrelétricas ao longo da calha do rio. Uma característica daqueles tempos duros era o chamado desenvolvimento a qualquer custo – sem a existência de leis ambientais ou de uma oposição forte no Congresso, o Governo fazia o que queria. Como eu sempre costumo dizer, uma autoridade “estrelada” passava o dedo em um mapa, indicando o trajeto de uma nova rodovia ou o local de uma obra e dizia: – Faça-se! Ninguém questionava a ordem e rapidamente máquinas e homens eram colocados a derrubar matas, mover morros, construir pontes e a expulsar qualquer um que estivesse no traçado a ser seguido por esta rodovia (fosse ele branco, índio ou quilombola) ou no sítio da obra. No caso do Projeto Kararaô, o fato de existirem áreas indígenas na região, era um “mero detalhe”.  

Felizmente, o Projeto Kararaô acabou engavetado e ficou esquecido por uns bons anos. Se tivesse sido realizado na época, teriam sido construídas 6 usinas hidrelétricas no Rio Xingu, o que teria provocado o alagamento de cerca de 20 mil km² e atingido áreas de 12 Terras Indígenas – dezenas de milhares de pessoas teriam sido expulsas de suas casas e propriedades rurais. Porém, o que os Governos Militares não tiveram a ousadia de implementar acabou sendo feito em 2011, por um governo civil democraticamente eleito, dentro do escopo do chamado PAC – Programa de Aceleração do Crescimento. A ideia de se construir uma usina hidrelétrica no rio Xingu foi tirada do papel e colocada em prática, agora com o nome de Usina Hidrelétrica de Belo Monte.  

O projeto de Belo Monte é derivado de um remodelamento do Projeto Kararaô feito em 1994, pelo antigo Departamento Nacional de Águas e Energia Elétrica (que foi sucedido pela ANEEL – Agência Nacional de Energia Elétrica), projeto esse apresentado à Eletronorte. Após a criação e implantação de leis e políticas de proteção ao meio ambiente, foi necessário fazer uma série de ajustes nos planos iniciais, de forma a se reduzir os impactos ambientais e, assim, conquistar a simpatia de ambientalistas e investidores, particularmente os internacionais. A área que seria ocupada pelo lago da hidrelétrica, para citar um exemplo das mudanças, foi reduzida de 1.225 km² para “apenas” 400 ou 500 km², mudança que evitaria a inundação de algumas áreas indígenas.  

Em 1996, a Eletrobrás pede autorização à ANEEL para iniciar os estudos técnicos complementares para verificar a viabilidade do aproveitamento energético das águas do rio Xingu em Belo Monte. Foi a partir da liberação desses estudos que teve início um confronto entre lideranças indígenas e ambientalistas contra autoridades do setor energético, onde cada um dos grupos procurava apresentar o seu lado da história. Não tardou para o impasse chegar ao MPF – Ministério Público Federal, ao Congresso Nacional e, depois ao STF – Supremo Tribunal Federal. Por decisão da Justiça, o licenciamento ambiental de Belo Monte teria de ter uma autorização do Congresso Nacional e ficar condicionado ao diálogo com as comunidades locais e as tribos indígenas da região.  

Em 2005, mesmo sem terem sido cumpridas as determinações do STF, um Decreto Legislativo foi aprovado no Congresso Federal, autorizando a construção da Usina Hidrelétrica de Belo Monte. Uma semana depois,  um outro Decreto foi aprovado no Senado Federal, também autorizando o prosseguimento dos estudos da Hidrelétrica. Apesar de inúmeras irregularidades no processo dos Estudos de Impacto ao Meio Ambiente e de protestos, o IBAMA liberou a LP – Licença Prévia, autorizando o início das obras. Em 2011, após a realização de um “leilão”, o Consórcio Norte energia venceu a disputa e iniciou a construção da Hidrelétrica, que terá uma potencia instalada total de 11 mil MW

A construção de Belo Monte impactou uma área equivalente a 18 mil km², o suficiente para encobrir doze vezes a área total da cidade de São Paulo. Inúmeros estudos ambientais independentes mostram que os impactos ambientais foram subestimados e que inúmeras espécies de plantas, peixes e outros animais correm sérios riscos, além de todo o sistema hidrológico da região ter sido comprometido, impactando na vida de milhares de ribeirinhos que dependem da navegação e transporte de cargas através das águas do rio Xingu.  

Mas o lado realmente “negro” da construção de Belo Monte vem sendo desvendado paulatinamente pelas investigações que estão sendo feitas pela Justiça Federal – a realização das obras de construção da Usina foi direcionada para um grupo específico de empreiteiras, com o objetivo explícito de pagar contrapartidas financeiras em função do apoio eleitoral a políticos de alguns partidos. Muita sujeira já veio à tona a partir das investigações da Operação Lava Jato e muito mais coisas ainda vão aparecer. Um grande exemplo do que está por baixo dessa história é o custo, que saltou dos R$ 4 bilhões previstos inicialmente para mais de R$ 30 bilhões

Quanto ao rio Xingu e aos povos que vivem ao longo de suas margens, eles que arquem com as consequências sozinhos…