A GRANDE SECA NA PAMPA E NOS PAMPAS

Os Pampas ou Campos Sulinos formam o segundo menor bioma do Brasil, só sendo maior que o Pantanal Mato-Grossense. O bioma se concentra no Estado do Rio Grande do Sul e ocupa uma área equivalente a 2% do território brasileiro. Os Pampas se estendem além das nossas fronteiras e ocupam importantes áreas no Uruguai e na Argentina, países onde é conhecido como La Pampa

Dentro do Brasil, os Pampas ocupam uma área total de pouco mais de 176 mil km². No total, o bioma ocupa uma área total de 750 mil km², ocupando praticamente todo o território do Uruguai e as províncias argentinas de Buenos Aires, La Pampa, Santa Fé, Córdoba, Entre Rios e Corrientes

De uma forma geral, os Pampas se caracterizam por terras onduladas com cerros, pequenas elevações em forma de tabuleiro. Normalmente, esses terrenos são bem servidos de chuvas, onde crescem gramíneas e arbustos de diferentes espécies intercaladas por pequenos bosques e capões esparsos. Costumam abrigar numerosos riachos e pequenos rios, mais conhecidos como arroios, além de formar pequenas lagoas entre os cerros no período das chuvas. 

Em tempos geológicos distantes, toda a região hoje ocupada pela Pampa/Pampas era um grande deserto de areias – esse deserto se entendia por grande parte das regiões Sul, Sudeste e Centro-Oeste do Brasil. Após o início do longo processo de fragmentação do antigo Supercontinente de Gondwana, teve início um período de intensa atividade vulcânica nessa região, conhecido como Derrame de Trapp.  

Durante esse evento, enormes volumes de lava vulcânica foram derramados sobre esse solo de areias, formando uma grossa camada de rochas graníticas. Uma das consequências desse processo foi a formação do Aquífero Guarani, um dos maiores reservatórios subterrâneos de água doce do mundo.  

Processos erosivos ao longo de milhões de anos cobriram essa camada de rochas graníticas com camadas de solos altamente arenosos e também com uma fina camada de solo fértil. Apesar de muito frágeis e suscetíveis a processos erosivos, os solos desse bioma são extremamente férteis para a produção agrícola e altamente produtivos para a agropecuária. 

Na Argentina, em particular, os solos da Pampa ocupam cerca de 25% do território e concentram a maior parte da produção de grãos do país. Foi graças a alta produtividade desse bioma, especialmente do trigo, que o país entrou no século XX como uma das nações mais ricas do mundo, condição que ela manteve até o final de década de 1920. 

Todo o bioma está sofrendo com uma intensa estiagem já há três anos. No Rio Grande do Sul já são 334 municípios atingidos pela seca, grande parte deles dentro dos domínios dos Pampas. De acordo com informações da FAMURS – Federação das Associações de Municípios do Rio Grande do Sul, os impactos econômicos poderão chegar aos R$ 100 bilhões. 

Segundo a FAMURS, para cada R$ 1,00 que deixa de ser gerado pela produção agropecuária, R$ 3,00 são perdidos pela economia do Estado do Rio Grande do Sul. Isso nos dá uma ideia dos impactos da estiagem para os gaúchos. 

Pela extrema importância da Pampa para a Argentina, a situação econômica por lá é bem mais desesperadora, lembrando aqui que os porteños convivem há vários anos com uma enorme crise econômica e com uma inflação galopante. 

A Bolsa de Cerais de Buenos Aires divulgou a poucos dias atrás uma nova projeção da safra agrícola 2022/2023, com números ainda mais desanimadores. A safra foi estimada em 33,5 milhões de toneladas, cerca de 4,5 milhões de toneladas a menos que a estimativa anterior. 

A região central da Argentina, considerada o grande celeiro agrícola do país, já perdeu metade da produção de soja nesta safra. A expectativa inicial era a de se atingir uma produção de 19,7 milhões de toneladas de soja, mas as projeções atuais já falam de pouco mais de 10 milhões de toneladas – a situação, entretanto, não para de piorar. 

De acordo com a FAA – Federação Agrícola Argentina, esta será a pior safra dos últimos 14 anos, uma péssima notícia para um país que precisa gerar, desesperadamente, recursos em moeda forte. Além das mazelas ligadas diretamente ao clima, os produtores culpam também a falta de políticas governamentais para o setor, a alta tributação, os problemas cambiais e a alta inflação. 

No pequeno Uruguai, país que tem menos de 3,5 milhões de habitantes, a situação não é menos desesperadora. As atividades agropecuárias e da agroindústria representam 12% do PIB – Produto Interno Bruto, e respondem por cerca de 70% do total das exportações do país. 

Conforme comentamos na postagem anterior, a NOAA – Administração Nacional Oceânica e Atmosférica do Estados Unidos, na sigla em inglês, afirmou que o bioma Pampa é a região do mundo que está sendo mais fortemente afetada pela seca atualmente. 

Para o Brasil, onde o bioma corresponde a apenas 2% do território, o problema é facilmente contornável pelo aumento da produção agropecuária nos outros biomas e também por subsídios financeiros aos produtores afetados pela seca. 

No caso da Argentina, a situação é muito pior – metade do território do país é formado por desertos e outros ¼ por áreas montanhosas. La Pampa é uma espécie de ilha de fertilidade e de produtividade única. No Uruguai, o bioma representa mais de 90% do território do país. 

Além de comprometer a renda de dezenas de milhares de produtores rurais, essa grande estiagem representa uma sensível perda para a produção e a disponibilidade de alimentos num mundo que já está caminhando a passos largos para uma escassez generalizada de vários produtos agropecuários. 

A questão é preocupante. 

OS IMPACTOS DAS MUDANÇAS CLIMÁTICAS NA PRODUÇÃO DE ALIMENTOS 

As últimas postagens aqui do blog precisaram ser dedicadas à cobertura dos estragos provocados pelas torrenciais chuvas no Litoral Norte de São Paulo. Já foram totalizadas 65 mortes e ainda existem 6 pessoas desaparecidas na região. Os trabalhos de busca prosseguem. 

Vamos retomar a questão da crise de produção de alimentos, uma preocupação mundial para os próximos anos. 

Em uma série de postagens falamos dos problemas com as culturas dos principais grãos consumidos pela humanidade – trigo, milho, arroz, soja e o milheto, que apesar de ser muito pouco conhecido pelos brasileiros é um alimento essencial em regiões semiáridas, especialmente na África. 

Falando de uma forma bastante resumida, a agricultura depende da combinação de solos férteis (com fertilidade natural ou feita a partir do uso de fertilizantes químicos), da disponibilidade de água (natural ou via sistemas de irrigação), além de condições adequadas de clima. 

O trigo, por exemplo, é uma cultura que se adapta melhor ao um clima temperado. Aqui no Brasil, o grão encontrou boas condições de produção na Região Sul, onde é clima é subtropical e possui alguma similaridade com o clima temperado. 

A EMBRAPA – Empresa Brasileira de Pesquisas Agropecuárias, uma referência mundial em pesquisas agrícolas, tem feito um excelente trabalho de tropicalização do trigo, criando variedades que produzem, muito bem aliás, nos solos e clima do Cerrado Brasileiro e também em Campos Amazônicos. 

Na década de 1970, a EMBRAPA conseguiu desenvolver variedades de grãos adaptadas ao Cerrado, com grande destaque para a soja, um grão originário de regiões de clima temperado. O sucesso desse trabalho levou o nosso país a disputas palmo a palmo a liderança da produção mundial de soja com os Estados Unidos. 

Um outro exemplo que podemos citar é o centeio, um grão aparentado com o trigo e que se mostrou adequado para a produção em altas latitudes como o Norte da Europa e da Rússia Asiática. Nesses locais, o clima extremo sempre foi um obstáculo para a produção do trigo e o centeio veio para “salvar a lavoura” e garantir a alimentação dessas populações. 

Falando um pouco das condições climáticas para a produção desses importantes grãos: 

A fase final de produção do trigo, do amadurecimento do grão até a colheita requer um clima seco. O grão é bastante sensível a umidade nessa fase – em caso de chuva, os grãos começam a germinar, o que compromete a qualidade final do trigo. Em regiões de clima temperado a colheita é feita no outono, época bastante seca. 

Já o nosso bom e velho arroz, o grão mais importante para a alimentação de populações na Ásia, depende bastante de umidade para a sua produção. Apesar de existirem variedades de arroz adequadas para a produção em sequeiro, ou seja, em solos secos, a maior parte das espécies é produzida em solos alagados ou fortemente irrigados. 

Citando um outro exemplo: o café, uma cultura que foi fundamental para a economia brasileira durante muito tempo. O cafeeiro requer solos férteis e bem drenados, além de necessitar de uma faixa adequada de temperatura – não pode ser muito quente nem muito frio. 

As mudanças bruscas de temperatura estão entre os maiores inimigos da produção do café, com destaque para as geadas, fortes ondas frias vindas do Sul da América do Sul e dos Andes. Os Estados do Paraná, São Paulo e de Minas Gerais, que já foram e/ou ainda são grandes produtores de café, já sofreram pesadas perdas com geadas fortes. Um exemplo foi a “geada negra” de 1975, que dizimou os cafezais do Paraná. 

E por que estamos falando de tudo isso? 

Mudanças climáticas estão alterando as características típicas do clima de muitas regiões, o que tem repercussões diretas na produção agrícola. Um exemplo fácil: secas sucessivas estão prejudicando a produção agrícola na faixa Oeste do Rio Grande do Sul, uma das mais produtivas de nosso país. 

De acordo com a EMATER – Instituto de Assistência Técnica e Extensão Rural, mais de dois terços dos municípios gaúchos decretaram situação de emergência em função da estiagem durante este ano. As zonas rurais estão sofrendo com falta de água para o abastecimento de populações humanas e animais, além dos usos na agricultura. 

Nas culturas de milho e soja, as perdas em algumas regiões do Estado poderão ficar entre 40% e 50%. A colheita do arroz ainda não começou no Rio Grande do Sul, mas já há notícias que falam que 30% das plantações foram abandonadas devido à falta de água.  

A mesma seca que está assolando o Rio Grande do Sul também está atingindo o Norte da Argentina e também o Uruguai. O bioma Pampa do Sul do Brasil se estende além de nossas fronteiras na direção desses países vizinhos onde é chamado de La Pampa

De acordo com informações da NOAA – Administração Nacional Oceânica e Atmosférica do Estados Unidos, na sigla em inglês, o bioma Pampa é a região que está sendo mais fortemente afetada pela seca em todo o mundo, particularmente na Argentina. 

O ano de 2023, é o terceiro consecutivo de seca intensa na região da Pampa. Dados do Governo argentino afirmam que 175 milhões de hectares no país estão sendo afetados pela seca. Além de comprometer fortemente a agricultura, a principal fonte de receitas externas da Argentina, a estiagem também está afetando a pecuária, outro pilar da economia do país. 

No Uruguai a situação não é menos dramática – cerca de 40% do território do país está sofrendo com uma forte estiagem desde o último mês de outubro. O Governo do país acabou de estender a situação de emergência agrícola até o mês de abril. 

E quem é a responsável por essa seca excepcional? 

Ela – La Niña, um fenômeno climático global que costumava ocorrer em intervalos de 2 a 7 anos, com uma duração de 9 a 12 meses, que, no entanto, está se repetindo pelo terceiro ano consecutivo, o mesmo período de persistência da seca na Pampa. 

Isso será apenas uma coincidência ou estamos assistindo os efeitos das mudanças climáticas globais? 

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A “TAXA DE PRESERVAÇÃO AMBIENTAL” DE UBATUBA, OU “NÃO QUEREMOS GENTE POBRE AQUI” 

Prosseguem os trabalhos de busca às vítimas das chuvas no Litoral Norte de São Paulo. De acordo com informações da Defesa Civil, já são 54 o número de vítimas fatais já confirmadas e, pelo menos, 30 pessoas ainda estão desaparecidas. 

Até o momento, os trabalhos de escavação dos escombros vinham sendo feitos de maneira manual e controlada, sempre com a esperança de se encontrar vítimas soterradas ainda vivas. Passados seis dias desde os desmoronamentos das encostas, essa esperança é cada vez mais reduzida e os trabalhos deverão passar a ser feitos por máquinas pesadas. 

Na última postagem aqui do blog eu fiz um breve resumo da origem dos bairros populares dos municípios atingidos pelos desmoronamentos das encostas. A valorização dos terrenos a beira mar, especialmente após a construção de rodovias de acesso como a Rio-Santos, empurrou as populações caiçaras para o “pé-das-serras”. 

Conforme apresentamos, os chamados caiçaras são as antigas populações do litoral da faixa entre o centro do Estado do Rio de Janeiro e o Litoral do Paraná. Essas populações se formaram a partir da mestiçagem entre os primeiros europeus a desembarcar no Brasil e as mulheres indígenas. 

Com o passar do tempo, esse grupo passou a também incorporar africanos, especialmente escravos fugitivos das grandes fazendas de cana-de-açúcar e de café. Isolados entre o mar e as montanhas, esses grupos preservaram os costumes e os hábitos religiosos dos primeiros colonizadores do país. 

Com a enorme valorização dos terrenos a beira mar, corretores de imóveis e especuladores de terras passaram a assediar as antigas vilas de caiçaras, oferendo baixos valores pelas terras – muitas vezes eram oferecidos objetos como ferramentas, roupas, sapatos ou outros itens banais em troca das terras. Sem maiores informações, grande parte desses nativos acabaram caindo no “canto da sereia”. 

Em municípios do litoral Sul de São Paulo como Peruíbe, Itanhaém e Mongaguá, onde existe uma antiga estrada de ferro que ligava o Porto de Santos ao Paraná, a divisão territorial que foi criada é bastante nítida. Todos os antigos caiçaras passaram a viver do lado da ferrovia ao largo da serra e o trecho entre a linha férrea e o mar ficou reservado para as casas de fim de semana e de veraneio das “gentes de fora”. 

Com o passar dos anos, esses bairros populares começaram a receber migrantes pobres vindos de outras regiões do país – especialmente nordestinos, que buscavam oportunidades de uma vida melhor. Felizmente, graças aos terrenos planos dessa região, essas populações correm menos riscos de desmoronamentos de encostas. 

No litoral Norte, onde o relevo é bem mais acidentado devido a Serra do Mar praticamente se encontrar com a faixa de areia do Oceano Atlântico, essa divisão entre as áreas de casas e prédios de veraneio e os bairros populares não é tão nítida. Esses bairros populares se dividem em diversos bolsões de casas nas encostas íngremes da serra. Quanto mais longe esses pobres ficarem da faixa de areia, melhor. 

Um exemplo dessa verdadeira divisão entre ricos e pobres nas disputas pelas areias das praias do Litoral Norte pode ser visto em uma espécie de pedágio que foi instituído pela Prefeitura de Ubatuba recentemente. Trata-se da Taxa de Preservação Ambiental, tributo que começou a ser cobrado no último dia 8 de fevereiro. 

Essa taxa foi criada em 2018 e regulamentada em abril de 2022, data em que foram estabelecidos os valores. A taxa é cobrada dos veículos que não estão registrados no município de Ubatuba e cidades vizinhas, e que permanecem por mais de 4 horas dentro dos limites do município. 

Motocicletas pagam R$ 3,50; carros R$ 13,00, utilitários R$ 19,50; micro ônibus e caminhões R$ 59,00 e ônibus R$ 92,00. Esse pagamento é renovado a cada 24 horas de permanência dos veículos na cidade. 

Por mais nobres que sejam as intenções da Prefeitura, que afirma que os recursos arrecadados pela taxa serão destinados à preservação do meio ambiente, o recado, na minha modesta opinião, é bem mais simples – não queremos gente pobre por aqui. 

Eu lembro claramente das famosas excursões de farofeiros para o litoral nos meus tempos de infância e adolescência. Minha cidade, São Paulo, fica a 70 km de Santos, a cidade litorânea mais próxima. Grupos fretavam ônibus de turismo e dividiam os custos entre um grupo de vizinhos. O ônibus saía bem cedo, chegando ao litoral no começo da manhã. Os turistas passavam o dia inteiro na praia e voltavam só a noite. 

Era comum que esses turistas levassem lanche ou comida pronta de casa – o famoso “frango com farofa” era um dos pratos mais comuns, daí o nome “farofeiros”. Um dos destinos mais comuns dessas excursões era a Praia Grande, que naqueles velhos tempos era uma longa faixa de praias semi desertas ao Sul da cidade de Santos. Há poucos anos atrás, a cidade simplesmente proibiu a entrada desses ônibus de excursão. 

Pessoalmente, eu entendo que a cobrança desse tipo de taxas ou a simples proibição do acesso de pessoas mais pobres às praias é uma afronta a liberdade de livre circulação das pessoas previstas na Constituição Federal. Acho que só o fechamento de praias por particulares, algo que é proibido por lei, mas que é muito comum em alguns lugares, é pior. 

Diante do quadro de destruição criado em todo o Litoral Norte pelas chuvas, acredito que essa taxa de preservação ambiental de Ubatuba (que, aliás, é a única cidade do litoral paulista que cobra) deveria ser imediatamente extinta ou então que seja transformada em uma taxa de reconstrução da cidade, onde todos os recursos arrecadados sejam utilizados para a construção de moradias populares decentes para os mais pobres. Outras cidades deveriam adotar o mesmo procedimento, que nesse caso seria justo. 

Meio ambiente, por definição, abrange tanto os recursos naturais como florestas, águas e fauna, como também as pessoas e seu meio ambiente artificial – casas, ruas e outras construções. Não há como separar um do outro! 

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DIÁSPORA CAIÇARA, OU LEMBRANDO DAS RAÍZES DA TRAGÉDIA NO LITORAL NORTE DE SÃO PAULO 

Todos devem estar acompanhando o desenrolar das buscas e o trabalho de atendimento às vítimas das fortes chuvas que devastaram bairros inteiros em cidades do Litoral Norte do Estado de São Paulo. 

Os números oficiais confirmam um total de 46 mortes, sendo 45 em São Sebastião, o município mais fortemente atingido, e 1 em Ubatuba. Os bombeiros trabalham para localizar entre 30 e 40 pessoas desaparecidas. Existem 1.730 desalojados e 766 desabrigados na região. 

Além dos incansáveis esforços no atendimento às vítimas, também estão sendo feitos importantes trabalhos para a recuperação da infraestrutura destruída e/ou danificada pelas chuvas, especialmente a reabertura das vias de acesso aos bairros mais distantes e também as rodovias. 

A mais importante dessas rodovias é o trecho local da BR-101, mais conhecida como Rodovia Rio-Santos. A BR-101 é uma das mais importantes rodovias do país, com uma extensão total de 4.650 km. Ela começa no município de Touros, no Rio Grande do Norte, e acompanha a faixa litorânea até São José do Norte, no Rio Grande do Sul. 

Essa rodovia foi construída durante as décadas de 1950 e 1960, onde se aproveitaram diversos trechos de estradas já existentes. Dentro do território do Estado de São Paulo e também no Sul do Estado do Rio de Janeiro, as obras de construção da BR-101 tiveram um importante papel no deslocamento de antigas populações caiçaras – grande parte das vítimas das chuvas no Litoral Norte de São Paulo descendem dessas populações. 

Antes da chegada dos portugueses no Brasil, todo o litoral do país era ocupado por diferentes tribos indígenas como os Tupis, os Tamoios, os Tabajaras, os Caetés, os temidos Botocudos, entre outros. Muitos desses povos eram inimigos ferrenhos. 

Após o chamado Descobrimento do Brasil em 1500, e início da colonização, muitas desses povos acabaram se aliando aos portugueses, tendo colaborado inicialmente com a exploração do pau-brasil e início do plantio da cana-de-açúcar. O povo brasileiro, lembrando aqui da chamada Matriz Tupi de Darcy Ribeiro, começou a surgir a partir da miscigenação de brancos europeus com mulheres indígenas. 

Entre a região central do litoral do Estado do Rio de Janeiro e o litoral do Paraná, essa miscigenação criou os caiçaras, um brasileiro típico da faixa litorânea da Região Sudeste e de parte do Sul. Com o passar do tempo, esse grupo passou a incorporar também negros, especialmente quilombolas, fugitivos das antigas fazendas de cana e de café. 

Isolados entre o mar e as serras, esse grupo desenvolveu uma cultura e costumes próprios. Vivendo da pesca e de pequenos roçados, esse grupo manteve vivo costumes e crenças religiosas dos tempos iniciais da colonização, além de preservar um português arcaico repleto de palavras indígenas. 

Essa verdadeira “cápsula do tempo” em que os caiçaras viveram por mais de quatro séculos foi quebrada no final da década de 1960, época em que começaram os trabalhos de construção da Rodovia Rio-Santos. 

Um dos primeiros trabalhos a serem feitos para a construção de uma rodovia é a desapropriação da chamada faixa de domínio da estrada. Essa faixa inclui a área onde a rodovia será construída, além de faixas ao longo das margens das pistas. 

O trecho do Litoral Sul do Estado do Rio de Janeiro e Norte de São Paulo tem características muito particulares. A Serra do Mar, no trecho paulista, e a Serra da Bocaina, no trecho fluminense, praticamente se encontram com a faixa de areia. Os caiçaras, literalmente, sempre viveram espremidos entre o mar e as montanhas. 

Para liberar a faixa de terras para a rodovia, grande parte das vilas dessas populações tiveram de ser desapropriadas. Sem nos alongarmos muito nos métodos que foram usados pelas autoridades para conseguir essa liberação, podemos afirmar que os caiçaras saíram com um enorme prejuízo. 

Sem ter uma noção exata do valor de suas terras, essas pessoas acabaram aceitando valores irrisórios – há relatos de moradores que simplesmente trocaram suas terras por objetos comuns como ferramentas e até botas. Expulsos da beira do mar, essas populações buscaram refúgio nas encostas das serras, dando origem a diversos dos bairros devastados pelas chuvas dos últimos dias. 

A abertura da Rodovia Rio-Santos criou um segundo fenômeno nessa faixa litorânea – uma forte especulação imobiliária. A grande beleza cênica entre o mar e as montanhas deu ao lugar o nome de Costa Verde. Essa faixa de litoral engloba os municípios de Mangaratiba, Angra dos Reis, Itaguaí, Parati, todos no Estado do Rio de Janeiro, e Ubatuba, Caraguatatuba, São Sebastião e Ilhabela, no Estado de São Paulo. 

As vilas de pescadores caiçaras que conseguiram sobreviver ao processo de construção da Rodovia Rio-Santos agora passaram a conviver com o cerco de corretores de imóveis e especuladores de terras. Foram muitas as promessas de uma vida melhor com “dinheiro no bolso”. Não foram poucas as vilas tradicionais que simplesmente desapareceram do mapa nesse processo. 

A expulsão dos caiçaras da beira do mar, uma história que não é muito conhecida da maioria da população e que eu costumo chamar de diáspora em referência ao processo de expulsão e dispersão dos judeus no ano 70 pelas tropas romanas, foi muito além de uma mudança de endereço. Sem ter acesso ao mar, todos os hábitos de vida e de trabalho mudaram para sempre. 

Morando em casas improvisadas nas perigosas encostas das serras, essas populações acabaram transformadas em empregados das mansões e dos apartamentos de fins de semana e de férias dos “endinheirados de fora. Os orgulhosos pescadores de outrora viraram caseiros, porteiros, jardineiros, faxineiros, vigias, cozinheiros e pedreiros, entre outros tipos de trabalhos braçais. 

Sem conseguir prosperar economicamente e mudar para áreas com terras melhores, essas comunidades caiçaras não tiveram outra opção senão a de avançar continua e perigosamente encostas de serras acima. Imigrantes pobres vindos de outros regiões do país também passaram a se refugiar e a construir suas casas nessas regiões de encostas. 

As fortes chuvas e os deslizamentos de mais essa “tragédia anunciada” também atingiram casas e comércios nas áreas mais nobres das cidades. Entretanto, quem mais sofreu e está sofrendo com a tragédia são os pobres das encostas dos morros – em sua grande maioria descendentes dos antigos caiçaras. 

O resgate e o atendimento a essas populações, como se vê, precisa ser bem mais profundo do que todos nós imaginamos. 

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LITORAL NORTE DE SÃO PAULO: O MAIOR VOLUME DE CHUVAS REGISTRADO EM 24 HORAS DA HISTÓRIA DO BRASIL 

Continuam intensos os trabalhos de resgate e atendimento às vítimas das fortes chuvas no litoral Norte do Estado de São Paulo. Além de São Sebastião, Ubatuba, Ilhabela, Caraguatatuba e Bertioga, municípios do Litoral Norte que desde o último sábado vinham sofrendo fortemente com as chuvas torrenciais, São Vicente e Praia Grande, no Litoral Sul, também entraram para a lista dos mais atingidos. 

De acordo com a última atualização oficial, divulgada na tarde desta segunda-feira, dia 20 de fevereiro, foram contabilizadas 41 vítimas fatais, sendo 40 em São Sebastião e 1 em Ubatuba, Ao menos 40 pessoas seguem desaparecidas, além de 1.730 desalojadas e 766 desabrigadas. 

De acordo com informações do CEMADEN – Centro Nacional de Monitoramento e Alerta de Desastres Naturais, o volume de chuvas acumulado no Litoral Norte de São Paulo em 24 horas atingiu a impressionante marca de 682 mm, o maior volume já registrado no Brasil. 

Para que todos tenham ideia do tamanho da catástrofe – o evento climático mais extremo registrado anteriormente em São Sebastião se deu em 2014, quando choveu o equivalente a 179 mm em 10 horas. Num período de 24 horas entre o último sábado, dia 18, e o domingo, dia 19, o município recebeu 640 mm de chuva, 3,5 vezes mais chuva que em 2014. 

De acordo com as medições pluviométricas do CEMADEN, feitas no mesmo período, foram registrado 680 mm de chuva em Bertioga, 388 no Guarujá, 337 mm em Ilhabela, 335 mm em Caraguatatuba, 234 mm em Santos, 203 mm em Praia Grande e 186 mm em São Vicente. 

Os trabalhos de busca e de salvamento estão sendo coordenados pelo Corpo de Bombeiros da Polícia Militar do Estado de São Paulo com apoio do Exército Brasileiro. Cerca de 14 helicópteros estão sendo utilizados nas operações. Também participam dos trabalhos funcionários públicos e membros da Defesa Civil das Prefeituras, além de milhares de voluntários. 

Lamentavelmente, essa nova tragédia está expondo mais uma vez os graves problemas criados pela falta de políticas de construção de moradias populares. As áreas mais fortemente atingidas foram justamente as encostas de morros, ocupadas irregularmente por populações de baixa renda. 

Essa é uma realidade já tratada em diversas postagens aqui do blog e que faz parte das paisagens de inúmeras cidades brasileiras. Encostas de morros, áreas de várzea e margens de rio são, na imensa maioria dos casos, as áreas urbanas que apresentam os menores preços de terrenos. Em grande parte dos casos trata-se de áreas públicas que simplesmente foram invadidas. 

Pela sua própria natureza, essas áreas deveriam ser mantidas em condições naturais, Encostas de morro, mesmo quando cobertas pela vegetação nativa, estão sujeitas a deslizamentos em períodos de fortes chuvas. Quando eu era adolescente e costumava acampar no trecho da Serra do Mar que fica no extremo sul da cidade de São Paulo, lembro de ter encontrado vários deslizamentos de encostas em áreas de mata fechada. 

O maior destes deslizamentos que encontrei ficava nas margens do rio Branco, já dentro do município litorâneo de Itanhaém. Uma faixa nua de terra descia desde uma altura de 300 metros na encosta da serra até a margem do rio, onde uma enorme massa de terra, pedras e troncos de árvore se acumulava. 

Quando uma encosta de morro é desmatada e ocupada por moradia, a situação de instabilidade fica ainda mais críticas, Além de perder as raízes das árvores, elementos que ajudam a estabilizar o solo da encosta, os construtores das moradias fazem recortes na forma de grandes degraus para construir sobre uma área plana. 

Em períodos de fortes chuvas, esses solos acumulam grandes volumes de água, o que, em muitas situações, acaba liquefazendo os sedimentos e transformando o solo em lama mole. A descida dessa lama morro abaixo acaba erodindo os solos que encontra pelo caminho, levando muitas vezes toda a encosta a ruir. Foi exatamente isso o que se viu em São Sebastião. 

Outro grande problema da ocupação desordenada em áreas urbanas são as margens e várzeas de córregos, ribeirões e rios. Em condições naturais, essas áreas recebem todo o excedente de água que transborda do corpo d’água, funcionando como uma área de amortecimento. 

Quando essas áreas são ocupadas irregularmente por moradias, o primeiro impacto se dá na destruição da vegetação, conhecida com mata ciliar. Entre as funções dessa vegetação destaco a retenção de material particulado, galhos e troncos de árvore, entre outros resíduos que são arrastados pelas enxurradas na direção da calha dos rios. Isso evita o assoreamento e entulhamento das calhas. 

Outra característica importante dessa vegetação é a sua capacidade de absorver parte da energia dos caudais, reduzindo assim a força da correnteza em momentos de cheia. Quando esse delicado equilíbrio natural do sistema é quebrado por ações antrópicas, ou seja, pelas mãos dos homens, a violência das águas foge de qualquer controle. 

Como sempre acontece em situações de desastres naturais, estamos assistindo toda uma corrente de solidariedade para com as vítimas das chuvas. Doções de dinheiro e arrecadação de alimentos, água, cobertores e outros itens estão sendo feitos por todos os cantos. Isso é essencial neste momento. 

Também está se falando na liberação de verbas para a realização de obras de contenção de encostas, para projetos de moradias populares, comportas, estações de bombeamento, entre outras obras essenciais, que, diga-se de passagem, já deveriam ter sido realizadas há muito tempo. 

A pergunta que sempre faço: quando é que vão começar a responsabilizar os gestores municipais e estaduais que deixaram de fazer seu trabalho direito ou que simplesmente se omitiram? Os problemas de ocupação de encostas nesses municípios litorâneos são antigos (para não dizer seculares) e sempre tem problemas – em maior ou em menor escala, ano após ano. 

Em uma postagem publicada aqui no blog no último dia 3 de fevereiro, citando só um exemplo do tamanho do problema, comentamos sobre uma reportagem de um grande canal de notícias onde se afirmava que o Governo do Estado de São Paulo não investiu todos os recursos orçamentários disponíveis para o combate das enchentes e obras de contenção de encostas em um período de 12 anos. 

Não seria a hora de colocar no banco dos réus todos esses ex-Governadores (um deles, aliás, é o atual Vice-presidente da República) e seus ex-secretários, além de ex-Prefeitos? 

O momento é triste e angustiante, mas é preciso dar um basta em todas essas tragédias anunciadas. 

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CHUVAS NO LITORAL NORTE DE SÃO PAULO: ATUALIZAÇÃO 

Prosseguem os trabalhos de busca, resgate e atendimento às vítimas das fortíssimas chuvas que devastaram diversos municípios do Litoral Norte do Estado de São Paulo. O Governo estadual decretou estado de calamidade pública em Ubatuba, São Sebastião, Ilhabela, Caraguatatuba e Bertioga. 

De acordo com informações oficiais já foram registradas 36 vítimas fatais, sendo 35 em São Sebastião e 1 em Ubatuba. Também existem 228 pessoas desalojadas abrigadas na casa de parentes e 338 desabrigadas, encaminhadas para abrigos públicos. 

Equipes de resgate trabalham na localização de dezenas de pessoas desaparecidas, especialmente na região Sul de São Sebastião, uma das mais fortemente atingidas pelas chuvas. Os trabalhos emergenciais também visam a desobstrução de deslizamentos de encostas que bloquearam rodovias e vias de acesso a alguns bairros. 

Mais de 100 bombeiros, além de centenas de voluntários, estão se empenhando no resgate e atendimento das vítimas. 

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URGENTE: CHUVAS FORTÍSSIMAS NO LITORAL NORTE DE SÃO PAULO

A cidade de São Sebastião, no litoral Norte de São Paulo, está em situação de calamidade pública. Em 24 horas a cidade recebeu o absurdo volume de 600 mm de chuva – isso significa que cada metro quadrado de solo na cidade recebeu um volume de 600 litros de água de chuva no período. 

Não existe infraestrutura que resista a tanta água. 

Bairros inteiros estão isolados em meio a ruas e avenidas cobertas por uma grossa camada de lama. Encostas de morros desabaram, encobrindo inúmeras casas. As vias de acesso ao município foram bloqueadas por deslizamentos. 

Os bairros em situação mais crítica são Cambury, Vila Sahy, Boiçucanga no Alto Tropicanga, Juquehy e Barra do Una, na região sul da cidade. As escolas da cidade foram disponibilizadas para receber os desabrigados e as equipes do Fundo Social de Solidariedade estão recebendo materiais de limpeza, água potável, entre outros itens. 

O mau tempo também está provocando fortes ressacas no mar, o que está impedindo o acesso das equipes de socorro por lanchas e outras embarcações aos bairros mais isolados. Helicópteros da Polícia Militar do Estado de São Paulo já foram deslocados para São Sebastião, porém, as condições do tempo estão impedindo os voos. 

Em Ilhabela, município vizinho, foram registrados 336 mm de chuva nas últimas 24 horas. O CEMADEN – Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden), colocou a faixa Sul do município em Estado de Atenção. 

O Governo do Estado de São Paulo está deslocando pessoal de apoio para auxiliar nos trabalhos de resgate e auxílio à população. O Governador Tarcísio de Freitas, inclusive, está se dirigindo até São Sebastião para avaliar in loco os problemas e coordenar as ações de auxílio a Prefeitura local. 

A previsão do tempo já havia alertado a população sobre a ocorrência de fortes chuvas durante o feriado do Carnaval na região – estavam previstos 250 mm de chuva, um volume já bastante alto, para os 5 dias do feriado. Os volumes de chuva, entretanto, foram bem maiores e caíram em uma fração do tempo previsto. 

Todos os eventos ligados ao Carnaval foram cancelados. Ainda não foram divulgadas informações sobre o número de vítimas fatais e de desalojados/desabrigados. 

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MILHETO, O SALVADOR DA LAVOURA?

O milheto, também conhecido como milhete, milho-miúdo, milho-alvo, painço, mileto e pão-de-passarinho, é um cereal originário do Sahel, uma extensa região semiárida da África. De acordo com estudos arqueológicos e botânicos, o milheto foi domesticado no Norte do Mali entre 2500 e 2000 antes de Cristo.  

Graças à sua fácil adaptação a terrenos de baixa fertilidade e com pouca disponibilidade de água, a cultura se espalhou por toda a África Subsaariana, especialmente nas regiões de savanas, bioma que guarda muitas similaridades com o Cerrado.  

Por volta do ano 1500 a.C, o milheto chegou à Índia, onde se adaptou bem às áreas semiáridas de regiões como o Rajastão. A partir da Índia, o grão começou a se espalhar por extensas áreas semiáridas da Ásia, se transformando em um importante alimento para grandes contingentes populacionais.  

As principais espécies de milheto cultivadas são o Pannisetum robustum e o Pannisetum glaucum. No Brasil é comum o cultivo da espécie Panicum miliaceum, que é mais conhecida pelo nome de painço. Os primeiros registros do milheto aqui no Brasil são da década de 1960. 

Nas regiões semiáridas da África Austral, em países como Angola, Namíbia, Zâmbia, Botswana, África do Sul, Zimbábwe, Moçambique, entre outros, o milheto é um grão de extrema importância para a alimentação humana. Se valendo de técnicas agrícolas das mais rudimentares e lutando contra a baixa fertilidade dos solos e a escassez de água, os agricultores conseguem arrancar da terra o seu “pão de cada dia”. 

A extrema capacidade de adequação do milheto a condições ambientais extremas levou a FAO – Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura, a declarar 2023 como o Ano do Milheto”. Em tempos de crise na produção de alimentos, essa é uma iniciativa importante. 

De cultura tradicional entre os agricultores mais pobres, especialmente em países da África, o milheto foi sendo gradativamente colocado em segundo plano pelos colonizadores europeus que tinham preferência por grãos como o milho e o trigo, culturas bem mais exigentes em termos de qualidade dos solos e de disponibilidade de água. 

Uma região onde a FAO pretende estimular a produção do milheto é o Chifre da África, onde uma forte estiagem vem causando enormes perdas nas lavouras agrícolas. O Chifre da África, também conhecido como Nordeste Africano e Península Somali é uma região com cerca de 1,88 milhão de km2 no nordeste do continente africano, onde se incluem territórios da Somália, Etiópia, Eritréia e Djibuti. 

Somente em 2022, mais de 755 mil pessoas foram forçadas a abandonar suas terras e vilas na região em busca das condições mínimas para a sobrevivência. Segundo a ONU, a região do Chifre da África vem recebendo chuvas muito abaixo da média desde o final de 2020, situação que já forçou o deslocamento forçado de mais de 1 milhão de pessoas

A cultura do milheto é bastante rudimentar e não requer nada mais que ferramentas agrícolas das mais simples. A preparação inicial dos solos é feita com a derrubada da rala vegetação, que é seguida pela queima dos restos de lenha, uma técnica que lembra muito a coivara praticada pelos nossos indígenas, quilombolas e agricultores mais tradicionalistas.  

Após a limpeza e a adubação rudimentar dos solos com as cinzas das madeiras queimadas, a terra é sulcada com arados puxados por animais, nada muito diferente do que era feito no Egito ou na Mesopotâmia há milhares de anos atrás. Esse trabalho de preparação do solo e a semeadura do milheto, que em Angola é conhecido como massango, coincide com o período das chuvas na região.  

A produtividade do milheto é bastante baixa quando comparada à de grãos mais tradicionais da agricultura mundial, mas é o suficiente para garantir a sobrevivência de muita gente. A literatura técnica fala de uma produtividade de 500 kg a 1 tonelada por hectare, porém, a média obtida em muitas regiões da África é de apenas 100 kg de grãos para cada hectare plantado. Para efeito de comparação, a produtividade média da soja no Brasil é de 3 toneladas/hectare e de 4,3 toneladas/hectare para o milho. Em algumas regiões da Europa, a produtividade do trigo chega a 7 toneladas/hectare. 

A questão da baixa produtividade da cultura, em princípio, não um problema insolúvel. Basta lembrarmos o caso da soja brasileira, grão que foi intensamente pesquisado e melhorado por pesquisadores da EMBRAPA – Empresa Brasileira de Pesquisas Agropecuárias, nas décadas de 1960 e de 1970. 

A soja é originária da China, país de clima temperado. As primeiras sementes de soja que chegaram ao Brasil vieram diretamente dos Estados Unidos e foram plantadas no Rio Grande do Sul na década de 1920. Como o clima dos Pampas Sulinos guarda semelhanças com o clima temperado, a cultura acabou se adaptando razoavelmente bem. 

O desafio que foi proposto para a EMBRAPA foi o de adaptar o grão para as condições inóspitas do Cerrado, onde além de um clima adverso ao cultivo do grão, os solos são extremamente ácidos e de baixa fertilidade. O desafio não só foi vencido como o Brasil acabou se transformando num dos maiores produtores mundiais do grão, disputando a liderança palmo a palmo com os Estados Unidos. 

Com o devido apoio financeiro internacional e com a expertise de instituições de pesquisa agropecuária como a EMBRAPA, o milheto poderá ser melhorado, passando a produzir muito mais nas mesmas condições ambientais. Isso faria a diferença na vida de centenas de milhões de pessoas em países e regiões de clima semiárido. 

Em condições normais, esse tipo de apoio financeiro internacional não costuma sensibilizar os dirigentes dos países mais ricos do mundo. Em tempos de crise na produção de alimentos, onde suas próprias populações estão sujeitas a fortes aumentos nos preços de alimentos, quiçá até na indisponibilidade de muitos produtos, talvez as coisas sejam diferentes. 

O aumento da produção de milheto em regiões pobres, além de garantir o sustento básico das populações locais, tende a reduzir a pressão por importações no mercado internacional, deixando maiores volumes de alimentos disponíveis para as populações dos países mais ricos. 

Num segundo momento, com o aumento da produtividade nessas regiões, poderá até haver um excedente de produção de milheto, permitindo inclusive a exportação do cereal para outros mercados. Essa possibilidade, um tanto utópica, não pode ser desprezada nesse momento de crise.  

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FALANDO DOS PROBLEMAS COM O NOSSO BOM E VELHO ARROZ 

Hábitos alimentares fazem parte da cultura dos diferentes países e ajudam a criar verdadeiros estereótipos de muitas populações. Para um europeu ou norte-americano é bem fácil associar o Brasil e os brasileiros ao samba, ao Carnaval e a uma boa feijoada. 

Também podemos associar meus ancestrais portugueses e italianos, respectivamente, a uma bacalhoada com batata e um bom prato de massa. Alemães são reconhecidos como grandes apreciadores de batata e os franceses por pratos mais refinados como o escargot

Inevitavelmente, povos do Extremo Oriente como chineses, japoneses e coreanos são imediatamente associados ao arroz, alimento consumido com a ajuda dos tradicionais “pauzinhos” – os hashis (vide foto). 

Sem qualquer tipo de discriminação, essa imagem tem fundamentos muito bem definidos – 90% de toda a produção mundial de arroz fica na Ásia, especialmente no Extremo Oriente e Sudeste Asiático. O arroz é o segundo cereal mais consumido do mundo, sendo o principal grão para o consumo humano na Ásia.  

Para sermos mais precisos, metade da população mundial tem no arroz seu principal alimento. O cereal é produzido em cerca de 116 países com os mais diferentes climas em todos os continentes. A produção mundial é estimada em cerca de 500 milhões de toneladas por ano. 

Um dos gêneros mais importantes é o Oryza, que engloba cerca de 23 espécies de arroz encontradas na Ásia, na África e nas Américas. De acordo com os especialistas, as espécies Oryza rufipogon e Oryza sativa originaram, através de diversos cruzamentos artificiais, algumas das principais espécies de arroz produzidas na atualidade.   

O arroz foi, muito provavelmente, o primeiro e principal alimento cultivado na Ásia. Evidências arqueológicas indicam que a planta “já domesticada” era cultivada ao longo do rio Yangtzé na China entre 8 mil e 10 mil anos atrás. Existem alguns estudos controversos que remetem o início do plantio do arroz “selvagem” por populações neolíticas há 15 mil anos na Coreia. 

Na literatura escrita da China, as primeiras referências textuais ao arroz datam de 5 mil anos atrás. No Subcontinente Indiano, o arroz também vem sendo cultivado desde o surgimento das primeiras civilizações nos vales dos rios Indus e Ganges. O cereal é citado em todas as escrituras sagradas desses povos, sendo usado também como oferenda em diversas cerimônias religiosas. 

De acordo com o que existe de consenso entre historiadores e arqueólogos, a cultura do arroz se expandiu a partir da China para todo o extremo Leste da Ásia, principalmente para a Coreia e o Japão, e Sudeste Asiático, onde se inclui os arquipélagos indonésio, malaio e filipino.  

A partir do Subcontinente Indiano, a cultura se estendeu por toda a Ásia Central, Oriente Médio e Europa, onde as primeiras plantas desembarcaram entre os séculos VII e VIII na Península Ibérica e nos Balcãs. Com a Era das Grandes Navegações iniciada no século XV, o grão ganhou, literalmente, o resto do mundo. 

A China é o maior produtor mundial de arroz, concentrando cerca de 29% da produção. Em segundo lugar vem a Índia, com cerca de 25% da produção mundial. Juntos, esses dois países tem uma população de 2,7 bilhões de habitantes, que tem o arroz como seu principal alimento. Também são grandes produtores o Vietnã, Tailândia, Japão, Bangladesh, Filipinas, Indonésia e Paquistão. O Brasil é o maior produtor das Américas. 

De acordo com informações do USDA – Departamento de Agricultura dos Estados Unidos, a produção de arroz em 2023 deverá ser de 503,3 milhões de toneladas, uma redução de 2,3% em relação à safra anterior. Uma menor oferta significa sempre preços mais altos para os consumidores. 

Ao longo de 20 anos, entre 2002 e 2022, a produção de arroz cresceu 36,14% em todo o mundo. Esse crescimento foi o resultado de um aumento da produtividade dos campos de 20,42%, ao mesmo tempo em que a área plantada subiu apenas 13%. 

O consumo mundial de arroz cresceu cerca de 27% nesse mesmo período. A maior produtividade permitiu um aumento de mais de 77% nos estoques estratégicos, além de proporcionar um aumento considerável do comércio internacional do grão – as exportações saltaram de 28,67 milhões de toneladas para 54,61 milhões de toneladas no período. 

Parte importante do crescimento da produção e do consumo de arroz no período podem ser explicados pelo forte crescimento das economias da China e da Índia nesse período. Plantios e colheitas tradicionais que eram feitas manualmente passaram a contar com a ajuda de tratores e máquinas, ao mesmo tempo que a melhoria dos salários permitiu que populações mais pobres tivessem mais acesso ao alimento. 

Ao mesmo tempo em que a produtividade cresce, problemas ambientais e climáticos vêm afetando importantes áreas de produção e provocando quebras nas safras. Aqui no Brasil, citando um exemplo, a cultura vem sendo fortemente prejudicada por seca, problema comum em outras regiões do mundo. 

Os Estados de Santa Catarina e do Rio Grande do Sul respondem por cerca de 80% de toda a produção brasileira de arroz, com volumes equivalentes a, respectivamente, 10% e 70% da produção nacional. A quase totalidade das plantações nesses Estados utilizam sistema de cultivo irrigado – ou seja, situações de estiagem afetam diretamente a produção. 

Outra região produtora bastante icônica e que vem sofrendo quebras de produção é o Delta do rio Mekong, no Vietnã. Aliás, o arroz produzido nessa região é considerado o melhor do mundo. A construção intensiva de barragens de hidrelétricas ao longo da calho do Mekong, maior rio do Sudeste Asiático, tem reduzido significativamente o volume dos caudais e prejudicando a produção. 

O Vietnã exporta seu excelente arroz e importa grãos de qualidade inferior para o abastecimento de sua grande população. Essa estratégia permite que o país gere importantes divisas para financiar seu desenvolvimento econômico. A crise na produção ameaça tanto a segurança alimentar quanto a economia do país. 

A crise na produção e os preços mais altos poderão deixar muitos milhões de pratos vazios em todo o mundo ou, na melhor das hipóteses, um pouco menos cheios de arroz do que de costume. Muito preocupante! 

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