O CONVÍVIO COMPLICADO ENTRE AEROPORTOS E POPULAÇÕES ANIMAIS VIZINHAS 

Na última postagem falamos de um problema inusitado no Aeroporto Eurico Aguiar Salles, na cidade de Vitória no Espírito Santo. Um piloto que acabou de pousar informou à torre de comando que a pista estava infestada de caranguejos, informação que paralisou todas as operações no aeroporto por um bom tempo. 

Conforme comentamos no texto, essa “invasão” dos crustáceos foi uma espécie de resposta ã invasão das áreas de manguezais da região pelo aeroporto. Lamentavelmente, a presença de caranguejos na pista é o menor dos problemas dos aeroportos – existem comunidades de animais instaladas nas proximidades destas infraestruturas que são muito mais perigosas para a aviação

De acordo com informações do Ranking Brasileiro de Severidade Relativa de Espécies da Fauna, uma publicação do CENIPA – Centro de Investigação e Prevenção de Acidentes Aeronáuticos, as aves são os animais que trazem maiores riscos para a operação de aeroportos. 

De acordo com esse ranking, as espécies mais problemáticas são o urubu-da-mata (Cathartes melambrotus), tesourão (Fregata magnificens), urubu-de-cabeça-preta (Coragyps atratus), urubu-de-cabeça-amarela (Cathartes burrovianus), urubu-de-cabeça-vermelha (Cathartes aura), entre inúmeras outras espécies de pássaros. 

Um detalhe curioso desse ranking é que nas 30 primeiras posições, apenas uma única espécie de mamífero é relatada – cachorros domésticos. Todas as demais posições são ocupadas por aves. 

De acordo com informações do CENIPA, acontecem mais de 2 mil colisões de pássaros com aviões no Brasil a cada ano. De acordo com uma estatística do órgão relativa a 2019, 185 dessas colisões (birdstrikes em inglês) foram consideradas graves. 

A maior parte dessas colisões graves envolveu aves de maior porte: 33 foram com urubus de diversas espécies, 19 com quero-quero (Vanellus chilensis) e 13 com carcarás (Caracara plancus). 

Um dos casos mais famosos de colisão de pássaros com uma aeronave, e que mostra que esse não é apenas um problema brasileiro, foi o caso do voo 1549 da US Airways, que acabou sendo levado para as telas do cinema com o título “Sully, o herói do rio Hudson”, de 2016, com Tom Hanks no papel principal. 

Esse voo partiu do Aeroporto LaGuardia, em Nova York, em 15 de janeiro de 2009. Poucos minutos após a decolagem, a aeronave se chocou com um enorme bando de aves, o que resultou na perda dos dois motores. Sem outra opção de retorno segura, o comandante Chesley Burnett Sullenberger III optou por um pouso de emergência no rio Hudson. Todos os 150 passageiros foram salvos. 

Como fica bem fácil de notar pelas estatísticas, os urubus são as aves que mais se envolvem em acidentes com aeronaves. Urubus são aves de grande porte que podem pesar de 1,5 a 12 quilos a depender da espécie. Essas aves são necrófagas, ou seja, se alimentam de animais mortos e de carnes em decomposição. 

Na natureza, o papel ecológico ocupado por essas aves é essencial. Ao comerem a carcaça de animais mortos, os urubus evitam que doenças e pragas dos mais diferentes tipos sejam propagadas por diferentes vetores. Aliás, a Lei de Crimes Ambientais (Lei Número 9.605 de 1998), é categórica em afirmar que urubus não podem ser mortos nem maltratados.  

Eu lembro bem das minhas férias escolares na infância, quando toda a minha família viajava par o sítio de parentes no Oeste Paulista. Era comum avistar grandes bandos de urubus voando nos horizontes ao largo das rodovias durante essas viagens. Dentro da cidade grande era raro ver uma dessas aves. 

De alguns anos para cá, pelo menos é essa a minha sensação, o número de urubus aqui na minha cidade – São Paulo, cresceu muito. Eu moro num condomínio grande com sete torres de apartamentos onde diversos casais dessas aves têm ninhos na laje superior. A explicação para isso é a grande presença de lixões e aterros clandestinos na cidade. 

Esses lixões se transformaram em áreas de alimentação para os urubus, que com comida em abundância e espaço de sobra para a construção dos ninhos, se multiplicaram sem controle e são vistos às centenas no horizonte e céus das cidades.  

Criminosamente, muitos destes lixões foram criados nas proximidades das cabeceiras de pistas dos aeroportos. As operações de pouso e decolagem ganharam um componente de risco extra, risco aumentado significativamente para aviões menores como os jatinhos executivos 

À coisa de uns vinte e cinco anos atrás, o dono de uma grande construtora, onde eu viria a trabalhar em tempos mais recentes, por muito pouco não viu seus dias encerrados em um grave desastre aéreo. Em uma viagem a trabalho num dos jatinhos da empresa (grandes construtoras costumam ter jatos particulares para uso em “serviço”), a poucos minutos do pouso em Belém, a aeronave sofreu um forte impacto seguido da explosão de uma das turbinas.  

Graças à perícia e à grande experiência do piloto, segundo relato que ouvi anos depois do próprio empreiteiro, foi possível compensar a potência do avião acelerando o segundo motor e fazer um pouso de emergência no aeroporto.  

Semanas depois do acidente, o relatório oficial das autoridades aeronáuticas confirmou a suspeita inicial do piloto: a turbina sugou um dos muitos urubus que planam nas proximidades do aeroporto, provocando assim a explosão da turbina.  

O número de acidentes aeronáuticos, diga-se de passagem, raramente fatais, envolvendo impactos de urubus contra a fuselagem ou contra as turbinas de aviões em voo cresceu muito nos últimos anos, particularmente em países “em desenvolvimento” como o nosso – a concentração de renda e muita gente vivendo do lixo são características comuns entre esses países. 

Ou seja – o problema com os caranguejos no aeroporto de Vitória é fichinha perto das centenas de lixões clandestinos nas cidades e dos milhares de urubus que sobrevoam as pistas de aeroportos por todo o Brasil. 

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CARANGUEJOS NA PISTA DE AEROPORTO IMPEDEM O POUSO DE AVIÃO NO ESPÍRITO SANTO 

Uma notícia inusitada que mostra como os impactos ambientais sempre se refletem em problemas para as populações humanas: 

Na última segunda-feira, dia 20 de março, um avião da empresa aérea Gol, que decolou do Aeroporto Santos Dumont, na cidade do Rio de Janeiro, com destino ao Aeroporto Eurico Aguiar Salles, em Vitória no Espírito Santo, precisou abortar o pouso e arremeter. 

De acordo com o comandante da aeronave, o piloto do avião que acabara de pousar no aeroporto informou que a pista estava tomada por uma grande quantidade de caranguejos, problema que poderia acarretar riscos para o pouso de aeronaves. A torre de controle do aeroporto recomendou que todas as aeronaves em procedimento de pouso permanecessem em espera até que uma equipe de solo confirmasse a informação. 

Em meio a risos, o comandante comunicou aos passageiros que a aeronave estava arremetendo por causa da presença de “uma quantidade absurda de caranguejos” na pista do aeroporto. 

Equipes de solo do aeroporto especializadas no resgate de fauna vasculharam a pista e encontraram apenas um caranguejo no local. O avião da Gol teve seu pouso autorizado cerca de 10 minutos após a confirmação das condições da pista de aterrisagem. 

O caso ganhou uma enorme repercussão nas redes sociais. A empresa privada que administra o aeroporto fez questão de esclarecer que todos os procedimentos previstos para esse tipo de situação foram tomados, de forma a preservar a integridade dos passageiros e dos crustáceos invasores. 

Apesar de provocar risos em muitos dos leitores, essa é uma questão delicada do ponto de vista ambiental, mostrando o quanto a invasão de áreas naturais por infraestruturas e atividades humanas pode ser problemática. 

O Aeroporto Eurico Aguiar Salles foi construído às margens da Baía de Vitória, também chamada da Baía do Espírito Santo. Essa baía se estende entre os municípios de Vila Velha, Vitória, Cariacica e Serra. 

A área é marcada pelo encontro das águas do Oceano Atlântico com o estuário de vários rios, o que resultou na formação de extensos manguezais e também de uma rica fauna. Ao longo da história, essa região abrigou diversos sambaquis, antigos sítios ocupados por povos indígenas. A colonização e ocupação da região por europeus começou no século XVI. 

O Donatário da Capitania do Espírito Santo foi o fidalgo e militar português Vasco Fernandes Coutinho, que se destacou em inúmeras conquistas militares de Portugal na Ásia e na África. Fernandes Coutinho recebeu o foral, o título de posse das terras, em 1534 e no ano seguinte, já no Brasil, fundou a Vila do Espírito Santo (atual Vila Velha), após “desterrar e dizimar” as tribos indígenas que habitavam essa região. O território da sua Capitania compreendia “50 léguas de costa, entre os rios Mucuri e Itapemirim”.   

Os indígenas expulsos pelos portugueses passaram a viver nas matas ao redor da Vila do Espírito Santo e, constantemente, organizavam ataques e tocaias contra os colonos. A Capitania também viria a sofrer com constantes ataques de corsários franceses e holandeses, que tinham como objetivo conquistar seu próprio quinhão de terras no litoral do Brasil. 

Depois de vários anos sob ataque dos indígenas, os portugueses decidiram se transferir para a Ilha de Santo Antônio, na Baía de Vitória, em 1551. Essa ilha era chamada de Guanaani pelos indígenas e possibilitava melhores condições para a segurança e defesa da população. Os portugueses fundaram na ilha a Vila Nova do Espírito Santo, que mais tarde seria conhecida com o nome de Vitória – a antiga ocupação no continente passaria a ser conhecida como Vila Velha.   

Como vem sendo comum em todo o litoral do Brasil, a expansão da mancha urbana das cidades costeiras muitas vezes se dá às custas do aterro de áreas de mangues. Para essas populações, essas áreas alagadas são espaços inúteis, não havendo maiores problemas na sua ocupação. Esse é um trágico engano. 

Manguezais são ecossistemas fundamentais para a vida marinha. Suas águas salobras possibilitam a reprodução de cerca de 70% das espécies marinhas de alto valor comercial, o que coloca os manguezais na posição de “maternidades dos oceanos”. Em regiões onde as áreas de mangue estão bem preservadas, a produtividade da pesca é muito maior que em locais onde essas áreas estão degradadas.  

Além de abrigar centenas de espécies de peixes, crustáceos, moluscos, vermes, insetos, aves, répteis e mamíferos, que encontram abundância de alimentos e abrigos seguros em seus domínios, os manguezais são a principal fonte de proteínas para as populações pobres das áreas litorâneas. Além de encontrar alimentos, essas populações costumam tirar o seu sustento da lama, literalmente, capturando e vendendo caranguejos. 

Os caranguejos são crustáceos da infra ordem Brachyura  e são encontrados em rios e mares de todo o mundo. Esses animais se adaptaram muito bem às áreas alagadiças e de águas salobras dos manguezais, se transformando numa das espécies animais símbolo desse ecossistema. 

Os caranguejos que vivem em manguezais são considerados animais semi-terrestres, ou seja, que dependem da presença da água para reprodução e parte de sua alimentação, mas que podem viver por longos períodos longe da água. 

Isso pode explicar a suposta invasão da pista do aeroporto por uma grande quantidade desses animais – no período de acasalamento e de reprodução, esses animais abandonam seus territórios nos manguezais e saem à procura de parceiros/parceiras em outros lugares. Eventualmente, a pista do aeroporto se transformou numa “rota de passagem” para os animais. 

É provável que essa invasão da pista por caranguejos esteja ocorrendo há muitos anos (talvez desde a construção do aeroporto), porém, com uma quantidade tão pequena de animais que nunca chamou a atenção de ninguém. Se o número de animais aumentou muito, é sinal de que a “saúde” ou a fragmentação dos manguezais atingiu níveis críticos, o que está afetando a vida e o comportamento dos caranguejos. 

Muito mais que um problema para as operações dos aviões no aeroporto, essa “invasão” precisa ser vista como um pedido de socorro dos animais dos manguezais da Baía de Vitória. 

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O DIA DE SÃO JOSÉ, OU FALANDO DE FÉ E CHUVAS 

No último domingo, dia 19 de março, foi comemorado o dia de São José, um santo muito venerado pelos sertanejos, especialmente no Estado do Ceará. Aliás, São José é o padroeiro do Estado desde 1621, ano em que foi publicado um decreto pelo Papa Gregório XV. 

De acordo com a tradição religiosa, São José foi o marido de Maria e o pai de Jesus Cristo. Carpinteiro de profissão, São José é considerado o protetor da Igreja Católica e padroeiro dos trabalhadores e das famílias por seu trabalho como artesão e por ser patriarca da Sagrada Família. 

Segundo a crença dos sertanejos, se as chuvas caírem até o dia de São José estará garantido um bom período de precipitações e de boas colheitas em todo o sertão. A temporada de chuvas é chamada de inverno na região. 

De acordo com os meteorologistas, a data do dia do padroeiro fica muito próxima do equinócio de outono, que ocorreu no último dia 22 de março. Nesse dia, os dois hemisférios da Terra ficam igualmente iluminados pelo Sol, o que faz com que o dia e a noite tenham exatamente a mesma duração. A partir desse momento, o Hemisfério Sul passa a receber menos luz solar, o que marca a chegada do outono. 

A partir do equinócio de outono as regiões próximas da linha do Equador recebem uma maior incidência de raios solares. Isso leva a um aumento do volume de ventos úmidos que chegam, o que, geralmente, pode resultar em chuvas. O Ceará e outros Estados que ficam mais ao Norte ficam dentro dessa região. 

Um bom período chuvoso no sertão, entretanto, também dependerá da ZCIT – Zona de Convergência Intertropical. Esse é um sistema meteorológico que permite a formação de grandes massas de umidade no oceano nas regiões tropicais e sua transferência para médias e altas altitudes. São essas nuvens que trazem as chuvas para o sertão. 

Para o homem simples que vive no Semiárido Nordestino, entretanto, o que vale mesmo é a fé no santo. 

A data é sempre marcada por procissões, novenas e muita oração por todos os cantos do Semiárido, especialmente nos períodos de seca. Os principais pedido dos fiéis, claro, são as chuvas e colheitas fartas. 

De acordo com informações do COGERH – Companhia de Gestão dos Recursos Hídricos, do Ceará, o Dia de São José chegou com 21 açudes sangrando no Estado, além de outros 11 com uma capacidade de armazenamento acima dos 90%. Na média, os açudes cearenses estão com 33% de sua capacidade de armazenamento. 

O maior açude do Ceará, o Castanhão, está operando com pouco mais de 20% de sua capacidade. Esse açude foi inaugurado em 2002 e possui capacidade para armazenar 6,7 bilhões de m³. É considerado o maior reservatório para usos múltiplos da América Latina. Sua capacidade de armazenamento corresponde a 37% da capacidade total de armazenamento de todos os 8 mil reservatórios existentes no Estado do Ceará, incluindo-se na lista o Açude Orós, que durante décadas foi o maior de todos. 

Em sua capacidade máxima de armazenamento, o Castanhão tem condições de abastecer toda a Região Metropolitana de Fortaleza por 3 anos ininterruptamente – o problema é que desde 2012, os volumes de chuvas que caíram na bacia hidrográfica do rio Jaguaribe foram insuficientes para recuperar plenamente os níveis desse Açude. 

O Semiárido Brasileiro ocupa uma área com aproximadamente 925 mil km², onde vivem cerca de 23,5 milhões de pessoas. É considerada a região semiárida mais superpopulosa entre todas as regiões semiáridas do mundo. Para efeito de comparação, a região do Deserto do Saara tem 9,2 milhões de km² (quase dez vezes maior que o nosso Semiárido) e uma população de apenas 2,5 milhões de pessoas.   

Secas no Semiárido Nordestino não são novidades para ninguém – a região está sujeita a ciclos de seca em intervalos regulares. Em intervalos maiores, acontecem secas generalizadas e de efeitos devastadores. Exemplos dessa anomalia climática aconteceram em 1915 no Ceará e em toda a região do semiárido em 1877 e 1932, as duas maiores crises até hoje registradas.  

Uma das mais trágicas foi a “Grande Seca” que se abateu sobre a região entre os anos de 1877 e 1879. Segundo as estimativas da época, o número de vítimas fatais ficou entre 400 e 500 mil mortes. Para que todos tenham uma ideia do tamanho da tragédia, a população da região do Semiárido Nordestino era de 800 mil pessoas há época.   

Normalmente as secas, mesmo as mais extensas, ficam limitadas ao período de um ano, mas não é raro que esse desequilíbrio alcance um período maior, dois anos e até três. Segundo os registros oficiais do Governo e notas de antigos cronistas, testemunhas oculares, médicos e jornalistas, ocorreram grandes secas em 1744, 1790, 1846, 1877, 1915, 1932, 1951 e 1979. 

Grandes obras literárias como os romances “O quinze”, de Rachel de Queiróz, e “Vidas Secas”, de Graciliano Ramos, imortalizaram personagens que viveram essas grandes tragédias. A cultura nordestina está impregnada com toda uma sucessão de dramas pessoais das populações em diferentes ciclos de seca na região. A religiosidade do povo também é marcante. 

Conforme já tratamos em inúmeras postagens aqui do blog, esse superpovoamento e a formação de vilas e cidades no Semiárido Nordestino começou no período colonial, época em que a grande riqueza do Brasil era a indústria do açúcar. Grandes extensões do litoral do Nordeste foram ocupadas por gigantescos canaviais, que pouco a pouco ocuparam todos os antigos domínios da Mata Atlântica

As boiadas dos criadores de gado invadiam os canaviais, onde os animais se deliciavam comendo os brotos tenros e adocicados da cana-de-açúcar, gerando grandes protestos dos senhores de engenho. Os conflitos foram se acirrando, o que levou à expulsão das boiadas do litoral e sua migração para os sertões.  

O problema era tão sério que, em 1701, foi publicada uma Carta Régia assinada pelo Rei de Portugal proibindo a criação de gado a menos de 60 km do litoral. Eu costumo chamar esse processo de “diáspora bovina“. 

E para as populações que foram surgindo nessa região tão bela e inúmeras vezes inóspita e tão carente de recursos hídricos, restou muito pouco, principalmente sua religiosidade e fé. 

Valha-nos São José!” 

MILHÕES DE PEIXES APARECEM MORTOS NO RIO DARLING NA AUSTRÁLIA

O dia 22 de março é bastante especial para quem, como nós aqui do blog, se preocupa com questões relacionadas aos recursos hídricos – esse é o Dia Mundial da Água, conforme decisão da ONU – Organização das Nações Unidas. 

Para mostrar como a questão é atual e preocupante, vamos tratar hoje da situação do rio Darling, simplesmente um dos mais importantes corpos hídricos da Austrália – milhões de peixes mortos estão tomando grandes extensões do rio, uma questão que está preocupando as autoridades locais. 

O rio Darling tem uma extensão total de 1.390 km, sendo considerado o terceiro maior rio da Austrália. Ele nasce no Norte do Estado de Nova Gales do Sul e desagua no rio Murray. A bacia hidrográfica dos rios Murray-Darling, a mais importante da Austrália, ocupa uma área de 1,061 milhão de km² e concentra 40% da área agrícola e 85% de toda a área irrigada do país. Essa região é chamada de celeiro agrícola da Austrália. 

A bacia hidrográfica dos rios Murray – Darling é responsável por 75% da produção de grãos da Austrália e ocupa áreas dos Estados de Queensland, Nova Gales do Sul e Vitória. Além da disponibilidade de água, recurso bastante escasso no continente, essa região apresenta climas Mediterrâneo (temperado) e subtropical. 

As nascentes do rio Murray ficam na Cordilheira Australiana no Sudeste do país, região que também é chamada de Alpes Australianos, e foz no Oceano Índico, nas proximidades da cidade de Adelaide. Apesar de bastante extenso, o Murray não é um rio caudaloso – seus caudais aumentam consideravelmente no curso médio do rio, quando o Murray passa a receber contribuições significativas de águas dos rios Murrumbidgee e, especialmente, do rio Darling

Segundo as autoridades de Nova Gales do Sul, os níveis de oxigênio nas águas do rio Darling estão muitos baixos, uma condição que está sendo fatal para os peixes. Segundo os relatos, a região da bacia hidrográfica está com altas temperaturas e o rio está sofrendo com fortes inundações. A combinação desses dois fatores está sendo apontada como a causa da queda dos níveis de oxigênio. 

Essa situação, que não é nova, está ocorrendo no rio desde fevereiro. Entre os anos de 2018 e 2019, quando a região enfrentou uma severa seca, também houve uma grande mortandade de peixes. Entretanto, segundo afirmações das autoridades, a atual mortandade de peixes é bem maior e muitos trechos do curso do rio estão bloqueados.

Os australianos têm trabalhado em duas frentes – a remoção dos peixes mortos da calha do rio por equipes especializadas e também no fornecimento de água potável por vias alternatinativas para as populações das cidades que são abastecidas com as águas do rio Darling

Aqui é importante citar que as águas dessa bacia hidrográfica abastecem, simplesmente, algumas das mais importantes cidades da Austrália – Sidney, Adelaide, Brisbane, Melbourne e Camberra, a capital do país.   

A Austrália, chamada por muitos de ilha-continente, é pouca coisa menor do que o Brasil – o país ocupa uma área de 7,7 milhões de km², exatamente 10% a menos do que o nosso território. Apesar da localização do país ocupar praticamente as mesmas latitudes das regiões Central e Sul do Brasil, o clima australiano é bem diferente do nosso – aliás, podemos afirmar que é praticamente o inverso.  

No Brasil, o clima Semiárido é encontrado em uma área relativamente pequena do interior da região Nordeste e no Norte do Estado de Minas Gerais – a maior parte do país tem clima Equatorial e Tropical; na região Sul, o clima é subtropical. Na Austrália, a maior parte do território tem climas Semiárido e Desértico.  

Uma estreita faixa ao longo das costas do Sul e uma grande área no Sudeste do país têm um clima Mediterrâneo, que nada mais é do que um clima temperado. Pequenas faixas ao Sudoeste e Leste do continente tem um clima subtropical e uma faixa no extremo Norte apresenta características Tropicais (clima quente com uma forte temporada de chuvas de Monção).   

Outra forma de avaliar as diferenças drásticas nos climas dos dois países pode ser observado na disponibilidade de água: o Brasil possui 12% das reservas de água doce do mundo (lembrando que a maior parte dessa água se encontra na Bacia Amazônica), com chuvas regulares na maior parte do território. A Austrália, ao contrário, é o continente mais seco do mundo, com cerca de 1% das reservas mundiais de água doce.  

Grande parte do território australiano sofre com a falta de chuvas, que além de irregulares, caem em volumes muito pequenos. Como se não bastassem todos esses problemas, o país enfrentou uma fortíssima estiagem generalizada entre os anos 2000 e 2009. É por isso que essa questão do rio Darling é tão preocupante. 

Essa escassez de recursos hídricos foi determinante na fundação das principais cidades da Austrália, que se concentram no Sudeste e Leste do país, além de regiões ao longo do extenso litoral. A população australiana, que atualmente está na casa dos 25 milhões de habitantes, desde as primeiras décadas da colonização adotou um estilo de vida voltado ao uso racional das reservas de água do país – nós brasileiros temos muito a aprender com eles!   

A Austrália é uma espécie de campeã quando se trata de tragédias ambientais. Ora são grandes incêndios florestais que se alastram por milhares de quilômetros, ora são secas intermináveis. O país também é recordista em espécies animais e vegetais invasoras. 

Durante dezenas de milhões de anos, a Austrália foi um território completamente isolado do restante do mundo. Esse isolamento permitiu uma evolução isolada da fauna local, o que fez surgir espécies animais fascinantes a exemplo de marsupiais como os cangurus, lobos-da-Tasmânia e ornitorrincos. 

Quando o país começou a ser colonizado a partir do final do século XVIII, inúmeras espécies animais começaram a ser introduzidas no país. Primeiro na forma de animais domésticos como cães, gatos, porcos, vacas, cavalos e ovelhas. Depois, muitos britânicos saudosos de sua pátria passaram a introduzir espécies destinadas a caça como raposas e coelhos. 

Outro exemplo de espécie invasora são os sapos-cururu, originários aqui da América do Sul e bastante comuns em todo o Brasil. Esses animais foram introduzidos na década de 1930, com o objetivo de combater pragas nos canaviais do país. Eles não só não cumpriram essa missão como se transformaram na mais importante espécie animal invasora da Austrália. 

E o rio Darling veio se juntar, definitivamente, ao grande rol de tragédias ambientais do país… 

O PODEROSO RIO ZAMBEZE

David Livingstone foi um eminente explorador e missionário britânico que ficou mundialmente conhecido por suas viagens pelo coração da África em meados do século XIX. Nascido em 1813, na Escócia, Livingstone decidiu se tornar médico missionário em 1834, época em que iniciou seus estudos em teologia e medicina em Glasgow

Em 1840, desembarcou na Cidade do Cabo, África do Sul, a serviço da Sociedade das Missões. A partir de então empreendeu inúmeras viagens pela então desconhecida “África Negra”, referência ao total desconhecimento que os europeus tinham do interior do continente.  

Além da evangelização dos nativos, Livingstone escrevia relatos sobre a geografia física e humana dos locais onde passava. Em 1949, ele se tornou conhecido em todo o Reino Unido pela descoberta do lago Ngami, no Deserto do Kalahari. A façanha lhe valeu uma medalha da Real Sociedade Geográfica Britânica. 

Entre 1852 e 1856, Livingstone empreendeu uma grande expedição através do curso do rio Zambeze, o maior rio da África Austral. Uma das suas descobertas mais especulares, feita em 1855, foram as grandes cataratas que foram batizadas como Victoria Falls em homenagem a Rainha da Inglaterra (vide foto). Ele atingiu a foz do rio Zambeze, no Oceano Índico, em 1856, se tornando o primeiro europeu a atravessar a África Meridional no sentido Leste-Oeste. 

O rio Zambeze (ou Zambezi) e seus inúmeros afluentes formam a quarta maior bacia hidrográfica da África, com área total de 1,39 milhão de km², só perdendo em tamanho para os rios Nilo, Congo e Níger. Essa bacia engloba uma área total equivalente a 4,5% de todo o território africano. O curso do rio Zambeze tem quase 3 mil km de extensão (algumas fontes falam de 2.550 km). 

As nascentes mais distantes do rio ficam nos Montes Kalene, no Noroeste da Zâmbia. Após correr cerca de 30 km no sentido Leste, o rio entra no território de Angola, voltando depois para o território da Zâmbia. Correndo no sentido Sul e depois Oeste, o rio Zambeze delimita a fronteira da Zâmbia com a Namíbia, com Botsuana e depois com o Zimbábue. Por fim, o rio entra no território de Moçambique, onde se encontra com as águas do Oceano Índico em um imenso delta. 

A bacia hidrográfica do rio Zambeze é a maior e a mais compartilhada de toda a África Austral. Nos oito países que formam a bacia hidrográfica vivem cerca de 168 milhões de habitantes, sendo que 51 milhões vivem dentro da bacia hidrográfica. Mais de 30 grupos étnicos diferentes vivem dentro dessa grande região. 

Cerca de 3/5 do território da bacia hidrográfica são cobertos por florestas e arbustos, sendo que metade da área é coberta por matas de miombo, uma vegetação do tipo semiúmida. Outro tipo de vegetação típica da região são as chamadas matas de mopane. Essas matas são caracterizadas pela predominância de algumas poucas espécies de árvores como as acácias e a teca do Zambeze. Cerca de 13% do território é utilizado para agricultura. 

No total, a bacia hidrográfica do rio Zambeze abriga mais de 6 mil espécies de plantas com flores, 650 espécies de aves e 200 espécies de mamíferos. Uma característica da fauna local é a presença dos grandes mamíferos africanos – elefantes, búfalos, girafas, leões e, cada vez menos, rinocerontes. 

O Zambeze é um rio caudaloso – sua descarga média no Oceano Índico é de 2.600 m³/segundo, pouco menor que os 2.820 m³/segundo descarregados pelo rio Nilo no Mar Mediterrâneo. Quatro grandes barragens de usinas hidrelétricas já foram construídas na calha do rio – Kariba, Cahora Bassa, Kafue e Itezhi-Tezhi. Todos esses grandes projetos, é claro, não levaram em conta os impactos ambientais ao rio, a flora e a fauna. 

Diferente do rio Orange, na África do Sul, que tem suas águas intensamente exploradas por sistemas de agricultura irrigada, esse uso na bacia hidrográfica do rio Zambeze ainda está engatinhando. De acordo com dados da FAO – Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura, apenas 171 mil hectares da bacia hidrográfica são irrigados, o que corresponde a aproximadamente 5% da área potencial estimada de 3 milhões de hectares. 

As culturas mais populares são o milho, feijão, milheto, amendoim, mandioca e batata-doce, entre uma enorme variedade de vegetais. Como acontece em grande parte da África Austral, a bacia hidrográfica do rio Zambeze é sujeita a grandes secas cíclicas, o que é um grande limitador para a produção agrícola tradicional. 

Um outro grande problema que essa região apresentava era a infestação das matas pela temida mosca tsé-tsé, inseto transmissor da febre do sono – a Tripanossomíase Humana Africana, uma doença que pode levar à morte do paciente caso não seja tratada corretamente. Foi só em décadas bem recentes que os Governos locais conseguiram erradicar esse inseto. 

A erradicação da mosca tsé-tsé, que foi extremamente benéfica para as populações humanas, se transformou numa grande ameaça para a biodiversidade de todo o vale do rio Zambeze. Grandes trechos das matas das margens passaram a ceder espaço para grandes plantações de algodão e de árvores exóticas como os pinheiros. Também foram introduzidos animais exóticos como a tilápia-do-Nilo, espécie introduzida por criadores comerciais no médio curso do rio Zambeze. 

O aumento das atividades humanas também inclui desmatamentos para a formação de pequenas aldeias e seus roçados de subsistência, queimadas (a agricultura tradicional africana também utiliza queimadas para a preparação do solo, a exemplo da coivara usada por nossos indígenas e caboclos), extração de madeira, entre outras agressões. 

Em tempos de grandes preocupações com a produção de alimentos, não tardará para que grandes grupos internacionais, especialmente de origem chinesa, voltem suas atenções para o enorme potencial agropecuário da bacia hidrográfica do rio Zambeze. Além dos baixos custos das terras, uma parte importante do rio é navegável, o que facilitaria, e muito, o escoamento da produção. 

Outro grande atrativo do rio é a sua foz no Oceano Índico, o que coloca qualquer eventual produção de grãos e outros produtos agropecuários a meio caminho da China quando comparado a países da América do Sul como o Brasil e a Argentina, grandes vendedores de commodities agropecuárias para a China. 

Esse grande potencial agropecuário poderá, em um futuro não muito distante, significar um grande risco socioambiental para a toda a bacia hidrográfica do rio Zambeze. 

ORANGE: UM DOS MAIS IMPORTANTES RIOS DA ÁFRICA AUSTRAL

África Austral é o nome dado a região correspondente ao sul do continente africano. Essa região é formada pela África do Sul, Namíbia, Lesoto, Botsuana, Madagascar, Moçambique, Malaui, Ilhas Maurício, Essuatíni (antiga Suazilândia), Zâmbia e Zimbábue. 

Grande parte dessa região é formada por terrenos áridos e semiáridos, onde os poucos rios perenes são considerados como uma verdadeira benção. Basta lembrar que o Deserto do Kalahari, com mais de 900 mil km², fica nessa região. Nas postagens anteriores citamos dois desses rios – o Okavango e o Cunene

A África do Sul, país com mais de 1,2 milhão de km², é um dos países mais importantes da África Austral, e tem grande parte do seu território formado por terrenos áridos e semiáridos. O rio mais importante do país é o Orange, que nasce nas Montanhas Drakensberg, no Lesoto. 

As Montanhas Drakensberg constituem a maior cadeia de montanhas da África Austral, tendo o monte Mafadi, com 3450 metros, como seu cume mais elevado. As nascentes mais elevadas do rio Orange se formam a partir do derretimento das neves dessas montanhas. Essas terras elevadas também recebem grandes volumes de chuvas. 

O rio Orange percorre cerca de 2.200 km no sentido Leste-Oeste atravessando todo o território da África do Sul, indo encontrar sua foz no Oceano Atlântico em Alexander Bay, na fronteira com a Namíbia. Aliás, o rio marca um longo trecho da fronteira entre os dois países. A bacia hidrográfica do rio Orange drena cerca de 973 mil km². 

O maior afluente do rio Orange é o rio Vaal com 1.210 km de extensão. O Governo da África do Sul construiu uma grande represa nas proximidades da cidade de Vereening, com o objetivo de regularizar os caudais desse rio e também permitir o uso da água em sistemas de irrigação. 

O trecho final do rio Orange, que engloba cerca de 800 km a montante da foz, possui uma infinidade de uádis, nome usado na África para indicar rios temporários que só apresentam água no período das chuvas e que ficam completamente secos nos meses de verão. 

Esse trecho engloba Namakwaland, uma extensa área semiárida entre a África e a Namíbia com cerca de 440 mil Km². É nessa região onde se encontra o famoso Planalto do Karoo. O rio também atravessa a faixa Sul do Deserto do Kalahari

Apesar da nítida carência de recursos hídricos, a África do Sul consegue ser uma grande produtora de alimentos, em especial milho, arroz, trigo, cevada, soja, sementes de girassol, batatas e cana-de-açúcar, além de frutas como laranjas, peras, maçãs e uvas. Aliás, o país é conhecido internacionalmente pela qualidade dos seus vinhos. 

De acordo com dados da EMBRAPA – Empresa Brasileira de Pesquisas Agropecuárias, de 2019, a indústria de vinhos da África do Sul ocupa mais de 94 mil hectares, onde cerca de 3 mil produtores empregam mais de 300 mil pessoas. O país produziu aproximadamente 1,12 bilhões de litros de vinho em 2017, exportando mais de 448 milhões de litros. 

Dentro desse cenário, o rio Orange cumpre um importante papel fornecendo água para culturas irrigadas, especialmente na região de Boegoebergdam e no trecho entre as Cataratas de Augrabies e a cidade de Upington, nas proximidades da fronteira com a Namíbia. 

Historicamente, o rio Orange apresentava grandes oscilações nos volumes dos seus caudais ao longo do ano. Na temporada das chuvas, o rio enchia bastante e apresentava correntezas violentas. Na época das secas os caudais diminuíam muito. 

Nos últimos anos, entretanto, toda a África Austral vem sofrendo com a falta e/ou com a irregularidade das chuvas, um problema que tem repercussões nos caudais de importantes rios como o Orange.  

Conforme já tratamos em postagens anteriores, o Oceano Índico vem apresentando um aumento contínuo nas temperaturas superficiais de suas águas, o que se reflete em mudanças nos padrões das chuvas em grandes extensões da África – especialmente Malaui, Moçambique, Zimbábue, Madagascar e África do Sul, além dos enclaves em território sul-africano do Lesoto e Essuatíni, além do Sul da Ásia e todo o Sudeste Asiático. 

De todos os grandes oceanos do planeta, o Índico é o que, proporcionalmente, mais sofre com as interferências das mudanças climáticas na Antártida. O derretimento de grandes massas de gelo no Polo Sul tem provocado alterações nas correntes marítimas do Oceano Índico que, combinadas com o aumento da temperatura das águas, tem reflexos diretos na formação e no deslocamento das massas de umidade que atingem a África e a Ásia – algumas áreas estão sofrendo com chuvas abaixo da média e outras com volumes muito acima da média histórica.   

As medições sistemáticas da temperatura das águas do Oceano Índico começaram em 1880. Nos últimos anos, estas medições têm encontrado aumentos sucessivos nas temperaturas das águas: em 2010, foi observado um aumento de 0,70° C em relação à média histórica; em 2011, a temperatura média caiu um pouco e mostrou um aumento de 0,58° C; de 0,62° C em 2012 e de 0,67° C em 2013. Nos anos seguintes, foram registrados recordes sucessivos de aumento da temperatura: 0,74° C em 2014, 0,90° C em 2015 e 0,94° C em 2016.   

Na África do Sul, mesmo contando com uma importante infraestrutura de sistemas de agricultura irrigada, a produção agrícola tem sofrido bastante com a falta de chuvas. E a situação traz incertezas sobre o futuro de importantes rios como o Orange

AS COBIÇADAS ÁGUAS DO RIO OKAVANGO

Nas últimas postagens aqui do blog falamos bastante do aproveitamento de águas de importantes rios em projetos de irrigação agrícola. Em tempos em que a produção de alimentos e o abastecimento de populações causam preocupações, esses projetos de irrigação são importantíssimos. 

O aproveitamento das águas de um rio é sempre problemático. Qualquer rio possui seu próprio ciclo hidrológico, onde se alternam períodos de cheias e de vazantes, características que regulam a vida de toda uma cadeia de fauna ao longo de suas margens, incluindo-se aqui as populações humanas. 

Projeto de irrigação implicam na retirada de grandes volumes de água nos rios, na construção de canais para o desvio de águas ou até mesmo na necessidade do represamento das águas. Não raras vezes, essa retirada de grandes volumes de água arruinou completamente regiões inteiras. 

Um dos casos mais clássicos tratados aqui no blog foi o do Mar de Aral na Ásia Central. Diversos projetos de irrigação implementados na calha dos rios Syr Daria e Amu Daria pelo antigo regime de planejamento central da antiga URSS – União das Repúblicas Socialistas Soviéticas passaram a retirar mais de 90% dos caudais desses rios, o que resultou na destruição do Mar de Aral. 

Com aproximadamente 68 mil km2, o Mar de Aral era a parte final da grande bacia hidrográfica endorreica formada pelos rios Amu Daria e Syr Daria. Nesse tipo de bacia hidrográfica, as águas não correm na direção dos oceanos, mas sim na direção de uma depressão no terreno, onde forma um lago ou uma planície alagável – a água se perde por evaporação. A exploração excessiva das águas dos rios reduziu o Mar de Aral a 1/10 de seu tamanho original. 

Um dos mais importantes rios da África Austral – o Okavango, poderá ter um futuro muito parecido com os rios Amu Daria e Syr Daria caso alguns projetos de irrigação sejam levados a cabo pelo Governo de Angola. 

O rio Okavango tem suas nascentes no Planalto Central de Angola entre Huambo e Cuito, em altitudes entre 1700 e 1800 metros. O rio percorre cerca de 1.600 km até uma depressão em Botsuana, formando o conhecido Delta do Okavango. Assim como acontece no Mar de Aral, o Delta do Okavango é a parte final de uma bacia hidrográfica endorreica, onde a perda de água se dá por evaporação. 

A bacia hidrográfica do rio Okavango ocupa uma área total de 690 mil km2 em Angola, Namíbia e Botsuana, atendendo mais de 900 mil pessoas, sendo que a maior parte vive em Angola (cerca de 60%). 

Em Angola, o rio Okavango (chamado localmente de Cubango) segue rumo ao Sul atravessando uma grande extensão de terrenos semiáridos, sendo a única fonte de água permanente para centenas de pequenas aldeias. Essas populações sobrevivem de pequenas roças de subsistência e da criação de animais. 

Ao atingir a fronteira com a Namíbia, o curso do rio passa a seguir na direção Leste, marcando a fronteira com Angola por cerca de 400 km até entrar no território de Botsuana.  

Na Namíbia, país formado basicamente por solos árido e semiáridos, as águas do rio Okavango são utilizadas em diversos projetos de irrigação, especialmente para a produção de milho branco, trigo, frutas e verduras. As águas do rio também são usadas para a dessendentação de grandes rebanhos de bovinos, ovinos e caprinos. 

Cerca de 40% dos caudais que chegam em Botsuana escoam para áreas pantanosas e os 60% se dividem em três canais principais que formam um grande leque aluvional do Delta do Okavango

A região do delta do Rio Okavango em Botsuana é considerada um dos últimos refúgios selvagens de toda a África e uma das maiores atrações turísticas da região Austral do continente. A luxuriante vegetação alimentada pelas águas do rio forma um verdadeiro paraíso para a vida selvagem, sustentando grandes mamíferos como elefantes, girafas, hipopótamos, búfalos e zebras, que por sua vez atraem os grandes predadores: leões, leopardos, guepardos e mabecos, sendo acompanhados por toda uma sequência de carniceiros como as hienas e abutres.  

A ciência ainda não dispõe de estudos completos acerca do delta do Okavango, mas, até o momento, já identificou 50 espécies de pássaros, 128 de mamíferos e 150 de répteis e anfíbios – o número de espécies de peixes e de insetos ainda é desconhecido. Somente em rebanhos animais criados pela população, o Delta sustenta 150 000 bovinos e 145 000 caprinos. 

Todo esse delicado sistema está sob ameaça – depois de mais de 37 anos de uma guerra civil devastadora em Angola, período em que centenas de milhares de famílias foram expulsas da região da bacia hidrográfica do rio Okavango, o Governo do país tem feito grandes esforços para “repovoar “a região 

Na região das nascentes do Rio Okavango, que foi um foco importante dos conflitos, o Governo iniciou em 2002 um intenso trabalho de localização e remoção de minas terrestres, criando condições para o retorno das famílias expulsas pelos conflitos armados. Órgãos oficiais estimam que a população na região chegará aos 2 milhões de habitantes nos próximos quarenta anos. 

Um outro risco regional é o avanço de grupos internacionais, especialmente chineses, interessados na implantação de grandes projetos agroindustriais com irrigação nas planícies. O baixo preço da terra, a aparente grande oferta de água do Rio Okavango, mão de obra farta e a baixos custos (70% da população de Angola vive da agricultura), num país com governo ditatorial e com instituições fracas, são convites para um desastre nos moldes da Ásia Central

Por fim, o maior de todos os riscos – projeções meteorológicas baseadas em modelos matemáticos indicam grandes alterações nos padrões das chuvas das montanhas de Angola nas próximas décadas devido as mudanças climáticas globais.  

Sem estas chuvas regulares e com os riscos que poderão ser criados pela superexploração das águas em projetos de irrigação, o delta do Okavango poderá desaparecer em poucos anos e a humanidade perderá mais um dos seus grandes tesouros naturais… 

É uma situação preocupante. 

VOCÊ JÁ OUVIU FALAR DO RIO CUNENE?

Pelas nossas fortes ligações históricas com Portugal e outros países da Europa, todos conhecemos, mesmo que só de nome, importantes rios do continente. Citando alguns exemplos: os rios Tejo e Douro, que tem nascentes na Espanha e Foz em Portugal; o rio Sena da França, o rio Tâmisa da Inglaterra ou ainda os rios Tibre e Pó da Itália

Se eu pedir para os leitores que já ouviram falar ao menos uma vez do rio Cunene (ou Kunene) ”levantarem a mão”, é provável que ninguém se manifeste. Abro uma exceção aqui para os muitos leitores que o blog tem em Angola que, com toda a certeza, conhecem bem esse rio. 

O rio Cunene nasce na província de Huambo, no Planalto Central de Angola, percorrendo cerca de 1.200 km até atingir sua foz no Oceano Atlântico na Namíbia. Sua bacia hidrográfica ocupa uma área total superior a 106 mil km2, sendo que 75% dessa área fica dentro do território angolano. 

O trecho final do rio Cunene, que marca a fronteira entre Angola e a Namíbia, é surpreendente – é um dos poucos cursos de águas perenes numa região extremamente árida. Aliás, o rio atravessa um longo trecho do Deserto do Kalahari, uma região que engloba mais de 900 mil km2 na Namíbia, África do Sul, Angola e Botswana. Próximo da foz, junto ao Oceano Atlântico, o rio cruza uma faixa do Deserto do Namibe

Kalahari deriva da palavra kgalagadi, que na língua dos povos da região significa “o lugar da grande sede”. namib significalugar vasto e desolado”. Essas duas referências, por si só, já nos dão uma ideia da importância desse rio. A foto que ilustra essa postagem foi tirada bem perto da foz do rio e mostra bem a aridez do lugar. 

O Planalto Central de Angola, conhecido localmente como Planalto de Bié, é uma região de clima temperado no centro do país e com chuvas abundantes. Cerca de metade da população rural de Angola vive nessa região. As nascentes dos rios que formam algumas das principais bacias hidrográficas da África Austral ficam nesse Planalto. 

Conforme o rio Cunene vai seguindo para o Sul de Angola e atinge altitudes cada vez menores, as paisagens vão ficando cada vez mais áridas, primeiro na forma de savanas semiáridas até que, finalmente, se transformam em um grande deserto. Nessas regiões, o rio é a fonte de vida de diversos povos tradicionais, que dependem do Cunene para a produção agrícola e para a criação de animais. Essas águas também são essenciais para uma grande diversidade de animais selvagens. 

De acordo com informações do Governo de Angola, existem projetos para a irrigação de uma área de mais de 600 mil hectares na bacia hidrográfica do rio Cunene até o ano de 2025. A maior parte desses projetos está concentrado no médio curso do rio. 

Entre os projetos já implantados destacam-se os de Matala e Humpata-Neves, na Província de Hulia, e Manquete, na Província de Kunene. A esses projetos se juntam Chibia-Gandjelas, na Província de Hulia, e Calueque, na Província de Kunene, sistemas atualmente inativos que receberam prioridade para reabilitação pelo Programa Nacional de Sistemas de Irrigação. 

Esse Programa também prevê a criação de novos sistemas de irrigação. A lista inclui o sistema Quipungo-Malipe, que atenderá cerca de 200 hectares; o Sendi, com 1.500 hectares, e o Chicungu, com cerca de 300 hectares. Todos esses sistemas ficam na Província de Hulia. Na Província de Kunene destaca-se o sistema Calueque, que atenderá uma área com 16 mil hectares. 

Além de atender projetos agrícolas, esses sistemas também provêm água para a dessedentação de rebanhos animais, uma atividade econômica fundamental para muitas tribos locais. Tradicionalmente, os criadores sempre dependeram da escavação de poços para atender as necessidades dos animais, um problema que sempre foi um limitador da produtividade. 

Para a Namíbia, país que é formado quase que exclusivamente por terrenos áridos e semiáridos, as águas de rios perenes como o Cunene, Orange, Okawango e Zambeze são essenciais para a agricultura. As áreas irrigadas produzem milho branco, trigo, verduras, uvas, azeitonas, tâmaras e outras frutas. Essa produção supre a população local e ainda permite a exportação de excedentes.

A região Centro-Norte da Namíbia recebe as águas do rio Cunene a partir de um canal aberto construído no final da década de 1960. As águas são captadas no açude Calueque em Angola. Essas águas alimentam o Sistema de Irrigação de Etunda, localizado a região de Omusati

A região abriga pequenas propriedades rurais onde o milho é a cultura principal. Culturas de subsistência como batata-doce, cebola, abóboras, amendoim, frutas e verduras também fazem parte das paisagens. 

Uma outra região que possui um grande potencial para a implantação de projetos de agricultura irrigada na Namíbia é Marienfluss. Essa é uma área remota e bastante isolada, onde o desenvolvimento dos projetos está dependendo dos avanços da construção da Usina Hidrelétrica de Baynes no rio Cunene, um projeto conjunto de Angola e da Namíbia. 

Além de sua importância ímpar para o abastecimento de vilas e aldeias, para a agricultura e para a pecuária, o rio Cunene também é uma importante atração turística tanto para Angola quanto para a Namíbia. O destaque vai para as Quedas do Monte Negro, que na Namíbia recebem o nome de Epupa

Essas cachoeiras ficam na fronteira entre os dois países, a cerca de 250 km a montante da foz. Nesse trecho, o rio Cunene atinge uma largura de 500 metros, com suas águas descendo por uma série de quedas ao longo de 1,5 km. A maior dessas quedas tem uma altura de 37 metros. 

O rio Cunene cumpre bem a sua missão cruzando uma região bastante árida e com recursos hídricos bastante escassos. Entretanto, é sempre bom lembrar que essas águas são finitas e que precisam ser utilizadas de maneira racional. A exemplo do que faz Israel, país tão árido quanto a Namíbia e o Sul de Angola, é preciso usar bem cada gota de água disponível. 

O GRANDE CANAL DO RAJASTÃO NA ÍNDIA 

Na última postagem falamos do Canal de Narmada, o maior canal de irrigação da Índia. Esse empreendimento foi concluído em 2008, contando uma extensão total de 532 km, sendo 458 km no Estado de Gujarat e outros 74 km no Rajastão. Estes dois estados ficam no Noroeste da Índia junto à fronteira com o Paquistão, uma região com terrenos extremamente áridos. 

As águas transportadas pelo sistema estão abastecendo cerca de 3.125 aldeias e permitindo agricultura irrigada em uma área com aproximadamente 246 mil hectares. Grande parte dessa região fica dentro do território semiárido do Deserto de Thar, o maior da Índia. 

Esse projeto se juntou a uma série de outras iniciativas que vem sendo implementadas na região desde o início do século XX. O Rajastão é o maior Estado da Índia em área e também um dos mais problemáticos. Os solos áridos e as poucas chuvas tornam a vida na região bastante difícil. Ao mesmo tempo, o Rajastão possui o maior trecho de fronteira entre a Índia e o seu arqui-inimigo Paquistão – o Governo sempre sonhou em ter uma grande população nessa região para dissuadir qualquer eventual avanço de tropas paquistanesas. 

O aparente sucesso do Canal de Narmada contrasta com os problemas e as críticas a outro grande projeto hídrico no Rajastão – o Canal Indira Gandhi. Esse projeto foi concebido na década de 1950 com o objetivo de trazer água de rios da verdejante região do Punjabi para os terrenos desérticos do Rajastão. 

O Punjabi é um Estado localizado no Norte da Índia e que tem uma área de mais de 50 mil km2. A palavra punjabi vem da língua persa e significa, literalmente, “terra dos cinco rios”, o que dá uma ideia da grande quantidade de recursos hídricos que a região possui. Uma parte do Punjabi fica no Paquistão. Em ambos os países a região é considerada como um verdadeiro celeiro agrícola. 

No vizinho Rajastão as coisas são bem diferentes. Cerca de 3/5 do território desse Estado são formados pelos solos áridos do Deserto de Thar, o maior da Índia. Trazer águas do Punjabi para o Rajastão sempre foi um sonho antigo dos indianos. 

O projeto do Canal do Rajastão foi concebido no final da década de 1940, no início da história da Índia como país independente. É sempre importante citar que, até 1947, Índia, Paquistão e Bangladesh formavam o Vice-reino Britânico da Índia. Com a independência, os conflitos religiosos entre hindus e muçulmanos levaram à divisão do país – o Paquistão e Bangladesh com população majoritariamente muçulmana de um lado, e os hindus da Índia de outro. Bangladesh se tornou independente do Paquistão em 1970. 

Por razões estratégicas, o Governo da Índia pretendia fixar o maior número possível de agricultores na faixa de fronteira com o Paquistão e a ideia da construção de um grande canal para o transporte de água foi muito bem aceita. Os trabalhos de construção foram iniciados em 1952 e visavam a construção de um trecho inicial com cerca de 250 km. 

Em 1960, os Governos da Índia e do Paquistão tiveram de negociar um acordo para a partilha das águas dos rios Satluj, Beas e Ravi, águas essas que seriam utilizadas para alimentar o Canal do Rajastão. Apesar das nascentes desses rios ficarem dentro do território da Índia, suas águas correm na direção do rio Indo (ou Indus), o maior e mais importante rio do Paquistão. Grande parte das hostilidades entre os dois países está relacionada com a partilha de recursos hídricos. 

A fase inicial do projeto contemplou a construção de um canal entre a Barragem de Harike, no Punjabi, e a cidade de Masitawali, no Rajastão. Além de um canal alimentador com 256 km, essa etapa incluiu a construção de um sistema de canais auxiliares com extensão total de quase 3 mil km. Essa fase de obras deveria ter sido concluída em 1971, mas, as obras se estenderam até 1983. 

Esse grande atraso foi o resultado de uma série de mudanças no projeto e, como bem conhecemos por experiência própria aqui no Brasil, de inúmeros casos de corrupção e desvio de verbas por parte de políticos e empresários da Índia. Qualquer semelhança com projetos similares aqui em nosso país não é mera coincidência. 

A segunda e mais criticada etapa de construção do agora chamado Canal Indira Gandhi, Primeira-Ministra indiana assassinada em 1984, se estendeu até o ano de 2010. Além de repetir os mesmos pecados da primeira etapa – principalmente no que diz respeito a desvio de verbas e corrupção, a maior parte dos canais construídos não está servindo para nada. 

A foto que ilustra essa postagem mostra um ramal de irrigação completamente seco, onde o fundo foi tomado pelas areias do Deserto de Thar. Essa é uma imagem que se repete em grande parte dos 3.400 km de ramais que foram construídos na segunda fase do projeto. 

De acordo com muitos especialistas, o sistema não possui água suficiente para irrigar toda a rede de canais e de ramais que foram construídos. O acordo com o Paquistão estipulou um volume máximo de água que poderia ser desviado para o Rajastão. Grande parte desses ramais foram construídos sem obedecer a quaisquer critérios técnicos, mas simplesmente para atender promessas populistas do Governo. Entre essas promessas havia um compromisso de irrigar 4,67 milhões de hectares. 

No auge da construção, o Governo do Rajastão criou um programa de estímulo para os pequenos agricultores, oferecendo lotes de terras com 6,32 hectares a serem pagos em prestações baixas ao longo de 15 anos. Dezenas de milhares de pequenos agricultores, inclusive de outros Estados da Índia, foram atraídos pelo “canto da sereia” e se deram mal.

Um exemplo do fracasso do projeto pode ser visto na região de Ramgarh, onde mais de mil famílias aderiram ao programa do Governo do Rajastão – cerca de 10 anos depois, apenas 25 estavam conseguindo pagar as parcelas do financiamento. 

Outro sinal do fracasso do empreendimento é visto no sistema de distribuição de água para as pequenas aldeias. A qualidade da água que chega até as caixas de armazenamento é tão ruim que só pode ser utilizada para a lavagem de roupas e panelas. Os aldeões precisam se valer das antigas cisternas de armazenamento da água das chuvas ou então da escavação de poços para seu abastecimento. 

Sistemas de irrigação bem projetados e operados corretamente podem significar a “salvação da lavoura” em regiões de clima árido. Entretanto, quando o objetivo dos governantes é simplesmente fazer politicagem barata para desviar recursos públicos, as chances de os projetos acabarem em completos desastres são enormes – o Canal Indira Gandhi foi um desses casos.. 

NARMADA, O MAIOR CANAL DE IRRIGAÇÃO DA ÍNDIA 

Um outro país onde a agricultura irrigada tem feito uma enorme diferença na vida de muita gente é a Índia, a segunda nação mais populosa do mundo com mais de 1,3 bilhão de habitantes. Projeções demográficas indicam que, muito em breve, o país deverá ultrapassar a China nesse quesito. 

A Índia ocupa uma área com cerca de 3,2 milhões de km2, território esse formado por um verdadeiro mosaico de biomas e climas, que vão das geladas montanhas da Cordilheira do Himalaia aos desertos áridos do Rajastão; dos grandes campos agrícolas do Punjab as áreas cobertas por florestas em Odisha, Chhattisgarh, Madhya Pradesh, Karnataka e Jharkhand. De gigantescas metrópoles como Nova Déli, Mumbai e Calcutá até pequenas aldeias perdidas nos mais distantes rincões do país. 

Em um país com tantas bocas para alimentar todos os dias, a agricultura precisa ocupar uma posição de destaque na economia – e ocupa. Atividades agropecuárias respondem por 18% do PIB – Produto Interno Bruto, da Índia, ocupando cerca de 42% da população economicamente ativa. 

Conforme já tratamos em inúmeras postagens aqui do blog, a agricultura é altamente dependente dos recursos hídricos. Em média, 70% dos recursos hídricos de uma região são consumidos por atividades agrícolas e pecuárias.  

Quando essa água não está disponível na própria região, como acontece nos casos de lugares como o Imperial Valley da Califórnia, do deserto na província de Minya, no Sul do Egito ou de praticamente todo o território de Israel, é preciso se valer de tecnologia e/ou de grandes obras hidráulicas para se conseguir praticar a produção de alimentos e a criação de animais. 

A Índia, já há muitas décadas, vem dando exemplos de sua capacidade de realizar grandes projetos de infraestrutura na área dos recursos hídricos. Um exemplo bem recente é o Canal de Narmada, que foi concluído em 2008, e é o maior canal de irrigação do país. 

O Canal de Narmada possui uma extensão total de 532 km, sendo 458 km no Estado de Gujarat e outros 74 km no Rajastão. Estes dois estados ficam no Noroeste da Índia junto à fronteira com o Paquistão, uma região com terrenos extremamente áridos. 

Esse canal distribui as águas da represa Sardar Sorovar, localizada em Gujarat, para 3.125 aldeias nesse Estado e 124 aldeias no Rajastão. A água é distribuída por uma rede de 42 canais auxiliares, sendo que o ramal Saurashtra, com uma extensão de 104 km, é o maior deles. Nesse ramal, inclusive, foram construídas três PCH – Pequenas Centrais Hidrelétricas, permitindo o aproveitamento de um desnível de mais de 50 metros ao longo do percurso do canal. 

Apesar de bem distante do Brasil, a Índia tem algumas peculiaridades bastante similares com o nosso país. Destaco a dificuldade de executar grandes obras públicas devido a enormes escândalos de corrupção e de desvio de verbas públicas. Qualquer semelhança com o Projeto de Transposição das Águas do Rio São Francisco no Nordeste brasileiro não é mera coincidência. 

Lá, entretanto, bem ao contrário do que muitas vezes acontece por aqui, sempre se consegue levar as obras a um bom termo. Políticos e empresários envolvidos em falcatruas são afastados e julgados (nem sempre condenados, é claro), mas o interesse público sempre acaba prevalecendo e as obras são concluídas. Esse foi o caso do Canal de Narmada, o que vem provocando enormes impactos econômicos e sociais, especialmente no Rajastão. 

Uma das regiões mais problemáticas da Índia tanto em termos políticos quanto para a prática da agricultura é o Rajastão, o maior estado indiano em área. Cerca de 3/5 das terras do Rajastão são tomadas pelas terras desérticas do Deserto de Thar. A maior parte desse deserto fica dentro do território da Índia (cerca de 85%) e o restante dentro do Paquistão. 

Relembrando um pouco da história, o Paquistão fazia parte do Vice-reino da Índia, uma possessão colonial da Inglaterra até 1947, quando toda a região conquistou a independência. Essa independência foi seguida um tumultuado e sangrento processo de partição do território entre muçulmanos e hindus. O Paquistão e Bangladesh, territórios de maioria muçulmana, foram desmembrados em um único Estado independente – o Paquistão. A maioria hindu ficou com o território da atual Índia. Em 1970, Bangladesh se tornou independente do Paquistão e também virou um Estado soberano. 

Desde então, indianos e paquistaneses vivem em um eterno estado de tensão e de disputas territórios, especialmente pelo controle da região da Cachemira e de Jammu, na região das Montanhas Himalaias. Dentro desse contexto complicado, o Governo da Índia sempre se preocupou em estimular o povoamento de toda a faixa de terras ao longo da fronteira com o Paquistão. 

No caso do Rajastão, a extrema aridez do Deserto de Thar sempre foi um obstáculo para o assentamento de agricultores nessa faixa fronteiriça. O Canal de Narmada surgiu com uma solução para parte desse problema. O canal principal no Estado possui cerca de 74 km de extensão, contando com 9 ramais de distribuição, atendendo uma área total de 1.477 km e abastecendo 124 aldeias. No total, o Canal de Narmada permite a irrigação de uma área total de 246 mil hectares. 

As águas do Canal de Narmada hoje abastecem as residências de centenas de milhares de indianos, além de permitirem a produção agrícola e a criação de animais em milhares de pequenas fazendas numa região que antes era praticamente inaproveitável para esses fins. 

Para o tamanho dessa imensa região árida e para um país com as características da Índia isso ainda é muito pouco. Com menos corrupção e desvios de recursos públicos, além de mais seriedade do Governo (propostas que também valem para nós aqui no Brasil), será possível fazer bem mais para essas populações e para as atividades agropecuárias.