AS FONTES DE ÁGUA POTÁVEL NA FLORESTA AMAZÔNICA

Iguarapé

Nas duas postagens anteriores falamos dos problemas criados pelo vazamento de rejeitos de mineração de barragens da empresa Alumina do Norte do Brasil em Barcarena, no Nordeste do Estado do Pará. A empresa é considerada a maior produtora de alumina do mundo, com capacidade de produção anual de 6 milhões de toneladas, e está instalada em Barcarena desde 1995.  

A alumina é a principal matéria prima para a fabricação do alumínio, um metal extremamente leve e resistente, com larga aplicação no mundo moderno, usado na fabricação de uma enorme gama de produtos, que vai de smart phones e computadores até aviões e naves espaciais, passando por embalagens para alimentos, bicicletas, materiais ortopédicos, entre outros produtos. Para a produção de 1 tonelada métrica de alumínio são necessárias 2 toneladas métricas de alumina – para se obter esse volume de alumina são necessárias de 4 a 7 toneladas de bauxita, mineral que passa por todo um processamento industrial para a retirada das impurezas. São justamente estas impurezas que formam os chamados rejeitos de mineração que ficam acumulados nas barragens da mineradora

Grande parte da Floresta Amazônica tem assistido a chuvas acima da média neste verão. Foram estas chuvas que elevaram fortemente os níveis de água retidos nas barragens de rejeitos da empresa em Barcarena, o que acabou resultando no transbordo e liberação de grandes volumes de lama contaminada com altas concentrações de minerais pesados como chumbo, bauxita, fósforo, nitratos e sódio. A empresa nega qualquer tipo de vazamento, porém, relatórios oficiais já confirmaram a contaminação das águas da região de entorno e o Ministério do Meio Ambiente solicitou o cancelamento de todas as licenças ambientais que permitem a operação da empresa. A empresa agora terá de responder judicialmente pelos problemas causados ao meio ambiente e arcar com os custos da reparação dos danos ambientais. 

O vazamento destes rejeitos de mineração contaminou igarapés e lençóis freáticos da região e centenas de famílias estão sem acesso a água potável para o abastecimento de suas casas, lembrando que não há redes públicas de abastecimento na região. A reinvindicação mais imediata desta população é que a empresa passe a fornecer água potável através de caminhões pipa, até que se encontrem fontes alternativas – por exemplo, a escavação de poços artesianos (a água destes poços, armazenada a grandes profundidades, não foi contaminada pelo vazamento). Como a empresa não reconhece que foi ela quem criou o problema, vive-se um complicado impasse. 

Poderá até parecer estranho para vocês, aproveitando o gancho criado por este acidente, mas as populações da Amazônia, em áreas rurais e urbanas, sofrem sistematicamente com a falta de água potável numa região conhecida em todo o mundo como o “paraíso das águas”? Deixem-me explicar: 

A Amazônia é a maior floresta equatorial do mundo e cobre quase metade do território brasileiro. Seu principal rio, o Amazonas, drena mais da metade das águas da América do Sul. Entre seus 1.100 tributários, existem alguns rios com mais de 1.500 km de comprimento – o rio Madeira tem mais de 4.800 km. A quantidade, a extensão e o volume d’água de seus rios tornam pequenos os rios de outros continentes. O conjunto dos rios que formam a Bacia Amazônica apresentam dez vezes mais espécies de peixe que todos os rios europeus reunidos, além de acumular 20% de toda a água fluvial do mundo. Esta gigantesca rede hidrográfica concentra 70% das reservas superficiais de água doce do Brasil.  

Apesar destes números grandiosos e da aparente farta disponibilidade, a água usada diariamente pelas famílias ribeirinhas da Amazônia não vem dos grandes e famosos rios, que carreiam grandes quantidades de argila e precisam passar por tratamento antes do seu uso para o abastecimento – é a água limpa e clara dos igarapés (vide foto) que abastece essa população. Os igarapés são afloramentos das águas subterrâneas dos lençóis freáticos e aquíferos, e são contados aos milhares em toda a Amazônia. Quando a população pobre da Amazônia não dispõe de um igarapé nas proximidades de suas casas, é preciso cavar um poço para assim garantir o abastecimento de água. Poços, aliás, são muito frequentes nas áreas urbanas, onde as regiões periféricas não são atendidas por redes públicas de abastecimento – na cidade de Porto Velho, onde eu morei por quase dois anos, metade da cidade não é atendida por essas redes de abastecimento. Apesar da abundância de água na região, faltam investimentos em estações de tratamento e em redes de distribuição – redes coletores de esgoto praticamente não existem.

O clima amazônico é dividido em apenas duas estações: um período quente e chuvoso e outro mais quente ainda e seco. Na época das chuvas, o solo da Floresta Amazônica se comporta como uma gigantesca esponja, provavelmente a maior do mundo, absorvendo e acumulando imensos volumes de água. Essa será a água que, liberada gradativamente durante o período da seca, alimentará os igarapés e os rios da grande bacia hidrográfica da Amazônia. Existe um, porém, neste período: os rios transbordam e avançam contra as margens da floresta – os igarapés desaparecem sob a inundação. Quem mora nestas áreas sujeitas a inundações terá de pegar uma canoa e um batalhão de latas e potes, e ir até um terreno mais alto para encontrar uma boa fonte de água potável. 

Assim que a temporada das chuvas se encerra, o nível do lençol freático está bem próximo da superfície do solo – se você escavar 10 ou 20 cm, encontrará muita água. Conforme o período da seca vai evoluindo, o nível do lençol freático se reduz dramaticamente – em algumas regiões ele chega a rebaixar em até 50 metros. Neste período de forte baixa do lençol freático, a população que depende dos poços começa a sofrer com a falta de água – os poços, que normalmente tem uma profundidade de uns poucos metros, secam completamente. Muitos igarapés também desaparecem. Vive-se uma verdadeira “seca verde”, algo surreal se comparado às fortes secas que assolam o semiárido brasileiro. 

Ou seja: apesar de viverem na região brasileira (quiçá do mundo) com a maior disponibilidade de água doce, as populações das áreas urbanas, rurais e ribeirinhas da Amazônia sofrem sistematicamente com a falta de água potável. Este desastre ambiental vivido pela população que mora nas cercanias da fábrica da Alumina em Barcarena só faz escancarar o problema.

OS FRACOS ECOS DE UMA PRIMAVERA SILENCIOSA, OU ACONTECEU EM BARCARENA

janus

Em 1962, a renomada ambientalista, bióloga marinha e escritora americana Rachel Carson publicou um livro que dividiu a história da humanidade em dois períodos distintos – antes e depois da Primavera Silenciosa, título dado à renomada publicação.

Alarmada com o uso crescente e sem qualquer controle de inseticidas e herbicidas pelos produtores rurais americanos, Rachel Carson relatou em linguagem acessível e extremamente didática as consequências nefastas destes venenos para a natureza e para a saúde dos seres humanos. O livro se transformou rapidamente em um sucesso de crítica e de público, sem esquecer é claro da fúria e da ira que despertou em dirigentes da indústria química mundial, e foi fundamental para a proibição do uso de muitos destes venenos pelos agricultores e a um controle mais rígido da produção e venda de agrotóxicos pelo Governo dos Estados Unidos.

Duas consequências da publicação de Primavera Silenciosa: a criação da EPA – Environmental Protection Agency (Agência de Proteção Ambiental dos Estados Unidos) em 1970 e o início do movimento ambientalista, que mudaria o mundo para sempre. O controle da poluição do ar, da água e dos solos; os problemas ligados à geração e ao descarte do lixo; a queima de combustíveis fósseis não renováveis e a busca por fontes de energia limpas; a destruição das florestas tropicais e o avanço das fronteiras agrícolas; a caça às baleias e a proteção dos rinocerontes negros da África – uma grande parcela da humanidade passou a se preocupar com estes e com os mais diferentes problemas ambientais, além de buscar alternativas para o futuro do planeta. Essa mudança de percepção levou a uma série de mudanças na legislação dos países, na busca do foi batizado posteriormente de Desenvolvimento Sustentável.

Viva!

Mas criou-se também um “Lado Negro da Força” – à medida que a legislação ambiental avançava nos países mais desenvolvidos e se criavam restrições para a produção “suja” de produtos poluentes e perigosos para o meio ambiente, muitos grupos empresariais descobriram que, transferindo suas fábricas para países pobres da periferia do mundo, onde as leis ambientais eram frouxas ou inexistentes, a produção e o lucro poderiam prosseguir sem grandes problemas. Surgiu assim um comportamento que lembra a imagem de Janus, o deus de duas caras da mitologia romana (vide imagem) que representa a dualidade humana: empresas que em seus países adotam um tipo de postura ética e legal em relação a proteção ambiental, mas que em outros países agem de maneira completamente diferente. Citando um exemplo: a Union Carbide.

Acuada pela nova legislação ambiental dos Estados Unidos na década de 1960, a Union Carbide iniciou o processo de transferência de suas fábricas, digamos, “mais problemáticas” para países em desenvolvimento – uma fábrica de pesticidas da empresa passou a operar na cidade de Bhopal, Índia. Famosa por seus custos baixíssimos, mão de obra farta, legislação ambiental praticamente inexistente e quase nenhuma restrição a investimentos estrangeiros, a Índia se transformou num dos destinos preferenciais das grandes empresas poluidoras.

Em dezembro de 1984, a ganância e a esperteza da gigante multinacional sofreu um revés histórico: uma falha na operação de equipamentos nesta empresa provocou o vazamento de 40 toneladas de gases tóxicos. A nuvem de gases contaminou mais de 500 mil moradores da cidade de Bhopal – dados oficiais afirmam que 3 mil pessoas morreram intoxicadas; fontes não oficias afirmam que o número real de mortos pode ter chegado à casa de 10 mil vítimas. No vergonhoso processo de reparação judicial que se seguiu, advogados da Union Carbide ofereceram valores de indenização extremante baixos às vítimas – como justificativa se alegou no tribunal: “não há como comparar o valor da vida de um americano com a de um indiano”. Felizmente, a empresa não conseguiu se recuperar da tragédia que provocou.

O Brasil também se transformou no destino de muitas destas empresas – o regime militar que governava o país no período via com bons olhos os investimentos que as “novas” empresas gerariam no país. Cubatão, cidade da região da Baixada Santista no Estado de São Paulo, se transformou em sede de muitas destas empresas e, ainda na década de 1980, ganhou a fama de cidade mais poluída do mundo e Vale da Morte. Foram necessárias várias décadas e pesados investimentos dos Governos para reverter os prejuízos ambientais na cidade. Uma destas empresas que operou na cidade, a multinacional francesa Rhodia, até hoje ainda administra passivos ambientais na região: terrenos contaminados por pesticidas químicos (“pó-da-China” ou agente laranja) em Cubatão, São Vicente e na Praia Grande.

Em Paulínia, cidade do interior do Estado de São Paulo, uma outra tragédia ambiental, esta de autoria da fábrica de agrotóxicos da multinacional anglo-holandesa Shell, que funcionou na região entre 1973 e 1993: a contaminação de solos e lençóis subterrâneos de água com pesticidas organoclorados aldrin, endrin e dieldrin. Apesar da empresa negar até hoje sua responsabilidade no caso, mais de 80% dos moradores da localidade no período apresentavam resíduos das substâncias em seus organismos em exames médicos realizados em 2001 – muitos desenvolveram enfermidades gravíssimas e morreram.

A pergunta que fica: estas empresas teriam se comportado com tanta desfaçatez ou imprudência em seus países de origem? A justiça dos seus respectivos países teria sido complacente com seus atos e com toda uma lista de danos ao meio ambiente e à saúde de populações contaminadas e/ou mortas após intoxicação por produtos químicos?

O vazamento de resíduos de mineração na fábrica da empresa Alumina do Norte em Barcarena, Nordeste do Estado do Pará, parece colocar a multinacional norueguesa Norsk Hydro nesta lista de empresas de comportamento dualista: na Noruega, país que se destaca na vanguarda do desenvolvimento sustentável e do discurso de proteção ambiental, a empresa é referência em ética empresarial e em práticas ambientais das mais nobres – nos confins da Floresta Amazônica, longe dos olhos do mundo civilizado, a empresa age com métodos predatórios e insustentáveis.

Encerro com uma constatação curiosa: consultei os principais jornais da Noruega de hoje e só encontrei referências ao “acidente” de Barcarena em três publicações: Aftenposten, Dagens Naeringsliv e no Regnar – no final da tarde, as notícias, que foram atribuídas a “fotografias e boatos infundados divulgados nas redes sociais do Pará”, simplesmente desapareceram dos noticiários. É assim que se comportam os paladinos noruegueses do desenvolvimento sustentável?

Deixo a pergunta a Gro Harlen Brundtland, ex-primeira ministra da Noruega e destacada líder mundial em matéria de desenvolvimento sustentável ou, quem sabe, para Sua Majestade Harald V, Rei da Noruega e ecologista de carteirinha…

O VAZAMENTO DE REJEITOS DE MINERAÇÃO EM BARCARENA, OU A CASA DA MÃE JOANA

Vazamento de rejeitos em Barcarena

Uma mineradora multinacional, um vazamento de rejeitos de mineração e populações ribeirinhas sofrendo com a contaminação das águas pelos mais diferentes tipos de minerais tóxicos. 

Quem acompanha as postagens aqui no blog já viu esse mesmo roteiro em outras tragédias ambientais: vazamentos de rejeitos de mineração no rio Doce, em Mariana; no rio Pomba em Cataguases e no rio Itabirito, na divisa entre os municípios de Congonhas e de Ouro Preto, todas no Estado de Minas Gerais. Neste Estado existem mais de 700 barragens, sendo que ao menos 450 destas estruturas são utilizadas para o armazenamento de rejeitos de mineração – logo, não há como se estranhar o grande número de “acidentes”. 

Em novembro de 2016, tratei de um “acidente” envolvendo caulim, um mineral utilizado na produção de papel, que vazou dos tanques de rejeitos de uma empresa e contaminou inúmeros igarapés no município de Barcarena, no Pará. Apesar do forte impacto para as comunidades locais, a notícia teve repercussão apenas em veículos de comunicação do Estado. A mesma Barcarena agora é manchete em todo o mundo graças a um novo vazamento, agora de resíduos de uma empresa multinacional produtora de alumina. 

O Estado do Pará é o segundo maior produtor de minérios do Brasil, só perdendo para Minas Gerais. A atividade gera aproximadamente 300 mil empregos diretos e indiretos, numa cadeia produtiva que corresponde a 20% do PIB estadual e a mais de 80% das suas exportações. As duas maiores jazidas minerais são Oriximiná, grande produtora de bauxita, a matéria prima para a produção do alumínio, e a Serra dos Carajás, onde se encontra uma das maiores reservas de minério de ferro do mundo, além de minerais como manganês, cobre, bauxita, níquel e ouro. O município de Barcarena concentra um grande número de empresas processadoras de minérios e há muitos anos vem registrando uma série de vazamentos de rejeitos de mineração, com a contaminação de igarapés e lençóis subterrâneos de água. O drama vivido pela população local raramente consegue ultrapassar os limites do Estado. 

Na última semana começaram a pipocar notícias na imprensa nacional e internacional, com informações sobre vazamentos de rejeitos minerais de barragens da empresa multinacional Norsk Hydro. A unidade industrial da empresa de origem norueguesa, registrada como Alumina do Norte do Brasil S.A, está sediada desde 1995 em Barcarena, sendo considerada a maior processadora de alumina do mundo, com uma capacidade de produção anual de 6 milhões de toneladas. As fortes chuvas que vêm castigando toda a região amazônica neste verão, com índices acima da média, elevaram perigosamente os níveis das barragens de rejeitos. De acordo com denúncias feitas pela população que vive nas circunvizinhanças,  essas barragens passaram a liberar a perigosa “lama vermelha”, contaminada com altos níveis de resíduos minerais. Inicialmente, a empresa emitiu nota negando qualquer vazamento de lama ou rejeitos minerais a partir de suas instalações. 

Um relatório do Instituto Evandro Chagas, instituição federal de pesquisas científicas sediada na cidade de Belém, identificou graves danos ao meio ambiente, com modificações drásticas das características físico-químicas e biológicas das águas superficiais e subterrâneas da região de entorno da unidade da Alumina. O laudo técnico atestou a presenças de altos níveis de produtos químicos como fósforo, alumínio, nitrato e sódio nas águas, que também sofreram uma forte elevação no pH (potencial hidrogeniônico), passando a alcalina e imprópria para o consumo. Os níveis de alumínio encontrados na água, para citar um único exemplo, estavam 25 vezes acima do nível máximo permitido pela legislação

Durante as vistorias realizadas pelas autoridades ambientais, uma nova e gravíssima irregularidade foi encontrada – uma tubulação clandestina despejava irregularmente água contaminada com rejeitos minerais da empresa em um igarapé. Rapidamente, o discurso de negação da empresa mudou, passando a admitir a existência dos vazamentos. A empresa também se disse “surpreendida” pela descoberta da tubulação clandestina de drenagem e informou que estava abrindo uma auditoria interna para identificar e punir os responsáveis pela instalação irregular. 

Apesar da enorme repercussão provocada pelo acidente nos últimos dias, as primeiras notícias sobre o vazamento foram divulgadas ainda no dia 12 de fevereiro por um site de notícias de Belém – há rumores deste vazamento circulando nas redes sociais desde dezembro. Naquela data, a população já reclamava da cor e do gosto da água usada no abastecimento de suas casas. Na ocasião, as barragens de rejeitos de mineração já ameaçavam transbordar e as equipes da empresa passaram a utilizar sacos de areia para elevar a altura das barragens e tentar assim evitar o transbordamento. De acordo com informações dos habitantes da região, as barreiras com sacos de areia não foram eficazes o suficiente para impedir o vazamento da lama vermelha. 

Barcarena é uma espécie de “casa da mãe Joana” das empresas de mineração. Contando com enorme apoio e incentivos dos Governos Estadual e Federal, além de energia elétrica farta (e com preços subsidiados) produzida pela Usina Hidrelétrica de Tucuruí, o município se tornou grande produtor e exportador de produtos minerais. Graças à industria da mineração, o Pará ocupa a 11° posição no PIB nacional, porém apenas a 22° posição em distribuição de renda, o que mostra claramente as distorções econômicas da atividade. A exploração e a produção mineral, como é do conhecimento de todos, são altamente degradantes e potencialmente poluidoras do meio ambiente, exigindo das empresas um alto comprometimento em relação ao atendimento de uma rigorosa legislação ambiental.  

Apesar dos discursos ambientalmente engajados das grandes empresas do segmento, especialmente das multinacionais, os desrespeitos no cumprimento da legislação ambiental são notórios em grandes complexos minerais pelo país afora e os chamados “acidentes de produção” tem se tornado cada vez mais frequentes. Em Barcarena, graças ao relativo isolamento do município em relação aos principais centros urbanos do país e da falta de fiscalização das autoridades, os problemas costumam ser mais frequentes do que a média nacional. 

Além das evidentes consequências negativas do acidente ambiental, que deixou centenas de famílias sem abastecimento de água potável – para falar o mínimo, causou maior espanto a postura da empresa, que negou categoricamente qualquer irregularidade, só passando a admitir o acidente após a divulgação da descoberta da tubulação clandestina. A Noruega, nação a que pertence a controladora da empresa, é referência mundial em qualidade de vida, tecnologia, educação, governança pública, energias alternativas e produção limpa, ética e sustentabilidade ambiental – nós brasileiros, sistematicamente, somos apontados por dedos noruegueses e acusados de todos os tipos de agressões ambientais e da destruição da Floresta Amazônica. Era de se esperar uma postura mais ética da empresa escandinava. Vou falar disto na minha próxima postagem. 

Ironizando o drama: derramamento de rejeitos de mineração na Amazônia dos outros é refresco.

A INESQUECÍVEL BIDU SAYÃO, OU FALANDO DE ALAGAMENTOS LOCALIZADOS

Bidu Sayão

“Bidu Sayão é uma ilustre desconhecida para a maioria de nós, pobres mortais. No mundo da música lírica internacional, ela teve seu nome eternizado no Olimpo das grandes divas da ópera. Pequena na estatura, mas grandiosa na sua capacidade vocal, Balduína de Oliveira Sayão, mais conhecida como Bidu Sayão, brilhou nos palcos dos grandes teatros da Europa e dos Estados Unidos entre as décadas de 1920 e 1950. Citando uma única passagem de sua vida já é possível entender a grandeza do seu nome: após uma antológica apresentação em fevereiro de 1938 na Casa Branca, sede do Governo dos Estados Unidos, o Presidente Franklin Roosevelt ofereceu a cidadania americana à interprete; “no Brasil eu nasci e no Brasil morrerei” respondeu Bidu. Infelizmente, morreu de pneumonia em 1999, pouco antes de completar 94 anos, sem realizar o seu desejo de rever a Baía de Guanabara e a sua cidade natal: Itaboraí (RJ).”

Bidu Sayão também é o nome de uma pequena rua de um bairro da cidade de Porto Velho em Rondônia, onde um alagamento localizado transformou a minha vida e a de meus colegas de trabalho em uma verdadeira via crúcis. Após realizarmos obras para a implantação de uma rede coletora de esgotos nesta rua em 2009, toda a imprensa da cidade passou a nos atacar devido a um alagamento que surgiu na parte central da via. Reportagens repletas de erros de português e matérias em noticiários de TV, que misturavam assuntos diferentes, faziam parte de uma verdadeira guerra entre diferentes grupos políticos da cidade, onde infelizmente acabamos sitiados no fogo cruzado.

Depois de semanas de tiroteio midiático, um laudo pericial independente de um topógrafo comprovou que a parte central da rua era 25 cm mais baixa que os extremos – não havia como a água da chuva escoar corretamente; o testemunho de diversos moradores da rua afirmavam que o problema já existia a vários anos, comprovando que a responsabilidade pelo alagamento era da Prefeitura da cidade. E, como num passe de mágica, todas as acusações simplesmente desapareceram dos meios de comunicação. O parágrafo que abre esta postagem é parte de um elegante artigo (isso porque as acusações eram de um mal gosto extremo) que escrevi para um veículo de comunicação da cidade, em defesa do nosso trabalho. Depois de tudo, Bidu Sayão se tornou inesquecível para todos nós.

Lembrei deste “causo verídico verdadeiro” para comentar sobre os problemas criados pelos alagamentos localizados, que normalmente são provocados pelo lixo e por resíduos descartados de forma irresponsável nas vias públicas das cidades. Basta cair uma chuva mais forte para que todos estes resíduos acabem sendo arrastados pelas enxurradas na direção das bocas de lobo, canaletas, tubulações, grelhas e outros dispositivos de drenagem das águas pluviais, e assim causar todo o tipo de problemas em ruas e avenidas.

Os sistemas de drenagem de águas pluviais incluem todos os dispositivos e infraestruturas instaladas em uma rua, praça, bairro ou cidade com a função de captar e dar vazão rápida para as águas das chuvas, evitando que essas acumulem e provoquem danos à uma comunidade. Estes dispositivos são projetados para tolerar pequenas quantidades de resíduos sólidos que, inevitavelmente, serão arrastados pelas chuvas: areia, pedriscos, folhas, galhos, resíduos de pneus e lixo. Se ultrapassados os limites nas quantidades destes resíduos sólidos, o funcionamento da drenagem das águas pluviais fica comprometido, resultando em pontos de alagamentos em ruas e avenidas, criando transtornos para motoristas e moradores que vivem na vizinhança.

Um exemplo destes problemas acontece nas chamadas bocas de lobo – esses dispositivos são instalados ao longo das sarjetas, com a função de captar e encaminhar o fluxo das águas pluviais na direção das tubulações subterrâneas do sistema, que seguem na direção dos corpos de drenagem (rios, córregos, piscinões etc). Esses dispositivos são dotados de uma caixa de retenção, onde os materiais particulados e os resíduos sólidos ficam retidos. Essas caixas de retenção devem receber uma atenção especial dos responsáveis pelos serviços de zeladoria da cidade – é necessária a execução de limpeza periódica, esvaziando-se essas caixas, obrigatoriamente nas épocas de seca; com a chegada dos períodos chuvosos, as bocas de lobo devem estar preparadas para realizar a sua função.

Outro grande problema, esse muito frequente, são os sacos de lixo não recolhidos pelos serviços de limpeza urbana que, durante as chuvas mais fortes, são arrastados pela enxurrada e bloqueiam os drenos de águas pluviais, especialmente as grelhas e as bocas de lobo, provocando rapidamente pontos de inundação. Nesse tópico podemos incluir os resíduos da construção civil, que figuram entre os campeões no descarte irregular das cidades. Pedaços de madeira e resíduos de demolição podem ser arrastados para o leito das ruas em eventos de chuva forte –  além de bloquearem os drenos de água, esses resíduos podem se transformar em verdadeiras armadilhas para os veículos e oferecer sérios riscos à segurança dos passageiros e condutores.

Um problema menos visível é o assoreamento das tubulações e canais de drenagem, que acumulam sistematicamente camadas de areia e argila no fundo, implicando numa redução gradativa da capacidade de drenagem dos grandes volumes de águas pluviais. Autoridades responsáveis devem manter um calendário de manutenção desses sistemas, realizando trabalhos sistemáticos de limpeza e dragagem. Muitas vezes uma fina lâmina de água corrente pode até dar a impressão de uma grande profundidade num curso de água, quando na realidade essa profundidade é de alguns poucos centímetros. Em momentos de forte chuva, quando nenhum de nós tem o controle do volume de água que atinge o solo, é preciso ter certeza que os sistemas de drenagem tenham capacidade para absorver e dar vazão rápida para as águas pluviais. Não havendo cuidados com a limpeza e a manutenção destes sistemas de drenagem, o resultado poderá se apresentar em grandes inundações, com prejuízos materiais e algumas vezes até com vítimas fatais, além de graves riscos de proliferação de doenças de veiculação hídrica como a leptospirose, hepatite, cólera, giardíase entre outras.

As violentas enchentes que assolam as nossas cidades neste período de chuvas de verão e que vem ocupando grande espaço nos noticiários, como tentei demonstrar nesta postagem, nem sempre decorrem da falta de obras de infraestrutura de drenagem urbana – muitas vezes, são as deficências na gestão dos resíduos sólidos e a falta de educação das populações que estão na raiz dos problemas. Precisamos cobrar insistentemente os administradores de nossas cidades na manutenção e ampliação dos sistemas e disposítivos que realizam a drenagem de águas pluviais das vias e áreas públicas urbanas. Também é necessário bater forte nos moradores – o lixo e os resíduos descartados incorretamente hoje poderão se transformar na enchente de amanhã.

E relembrando: todas essas preocupações devem ser preventivas, ou seja, deve-se pensar e agir nos períodos de seca. Quando as chuvas e as enchentes chegam, é tarde demais.

AS MEGA ENCHENTES DE SÃO PAULO

Praça Charles Miller

São Paulo é, com muita folga, a maior cidade do Brasil. Com uma população na casa dos 11 milhões de habitantes (se considerarmos a Região Metropolitana como um todo, esse número supera a casa dos 16 milhões). Com tamanha concentração de gentes de todos os tipos, lugares e classes sociais, os números de São Paulo são sempre superlativos – por isso usei o prefixo Mega para falar das enchentes por nossas bandas.

A Vila de São Paulo de Piratininga foi fundada no dia 25 de janeiro de 1554, no alto de um morro e a pouco mais de 1 km do rio Tamanduateí, curso d’água que respondeu pelo abastecimento da população da Paulicéia até meados do século XIX, quando a poluição das águas forçou a busca por fontes alternativas de abastecimento na Serra da Cantareira.

Prestando atenção na data da fundação da Vila, percebe-se que o evento se deu no meio do verão, época em que toda a região do Planalto de Piratininga sofre com as pesadas chuvas e enchentes. Costumo imaginar que, originalmente, os padres jesuítas fundadores da cidade optaram por construir as primeiras cabanas na margem do Tamanduateí, talvez nos primeiros dias do mês de janeiro. Ocorre que, surpreendidos pelas fortes chuvas e por uma indescritível enchente, os religiosos e toda a indiada saíram correndo com móveis, apetrechos e livros na cabeça em direção ao morro mais próximo – acabaram por “refundar” a Vila nestas terras mais altas…

Piratininga, a palavra tupi-guarani usada pelos índios para descrever os campos que cercavam a grande rede hidrográfica no alto da Serra do Mar, significa “lugar onde se encontra peixe seco”. Explico – na época das chuvas, os rios do planalto transbordavam e os peixes se espalhavam pela mata inundada, como ocorre em regiões da Floresta Amazônica. Quando as águas baixavam, muitos peixes ficavam presos em poças de água, que secavam lentamente. Bastava aos índios saírem à cata dos peixes já secos e, assim, garantirem um bom jantar. Ou seja, a cidade de São Paulo já nasceu com referências a enchentes já no seu sobrenome (ou no seu DNA)!

A cidadezinha perdida no alto da Serra do Mar ficou praticamente esquecida por mais de 300 anos até que, graças ao início da cafeicultura em terras paulistas, começou a cresceu como nenhuma outra, assumindo a posição de maior cidade do país já nas primeiras décadas do século XX. Esse crescimento rápido se deu com a canalização forçada de centenas de córregos (ou “córgos” no dialeto local), ocupação de extensas áreas de várzeas (que tem a função de comportar as águas excedentes dos rios nas épocas das chuvas) e ocupação de encostas de morros. Como não poderia ser diferente, enchentes generalizadas nos verões paulistanos são tão típicas quanto o pão com manteiga e café com leite, os pastéis de feira, os engarrafamentos e o “Samba do Arnesto“. Inclusive, uma postagem que publiquei aqui no WordPress em 2016 tinha o singelo nome de “São Paulo de Piratininga, ou a terra das enchentes”.

Mas ao invés de falar das incontáveis tragédias provocadas pelas enchentes de verão em São Paulo, vou apresentar um caso de sucesso no combate a um tradicional ponto de alagamento num dos cartões postais da cidade – a Praça Charles Miller:

A Praça Charles Miller é um dos endereços mais famosos da cidade – é aqui que fica o Estádio Municipal Paulo Machado de Carvalho, mais conhecido como Estádio do Pacaembu; recentemente, o Estádio passou a abrigar o Museu do Futebol, o que deu visibilidade internacional e transformou o endereço em um destino turístico da cidade. Até anos atrás, a Praça era famosa por outro motivo nem um pouco glamuroso: o local era um dos pontos de enchentes mais temidos da cidade.

O bairro do Pacaembu nasceu em 1925, quando a Cia. City, empresa inglesa de arquitetura iniciou o loteamento e a urbanização da região. Uma das primeiras ações da empresa foram os trabalhos de drenagem e aterro de grandes áreas, que culminaram com a canalização do ribeirão Pacaembu e a construção da avenida homônima, até hoje a principal via do bairro. Foi a Cia. City quem doou, para a Prefeitura de São Paulo em 1935, o terreno de 75 mil m² onde foi construído o famoso Estádio do Pacaembu (vide foto), inaugurado em 1940. Além da criação de um dos bairros mais charmosos da cidade, as ações da City, involuntariamente, acabaram por consolidar todo um ambiente favorável à formação de fortes enxurradas em dias de chuva, com a formação de enchentes violentas na parte baixa do bairro onde fica a Praça Charles Miller.

O famoso “endereço” das enchentes criou transtornos no bairro por várias décadas até que, em 1993, as autoridades da Prefeitura e do Governo do Estado juntaram forças e iniciaram as obras de um gigantesco reservatório subterrâneo com capacidade para armazenar 75 milhões de litros de água das chuvas. Projeto pioneiro na cidade, o conhecido Piscinão do Pacaembu foi inaugurado em 1995 e se transformou rapidamente numa referência no combate de enchentes localizadas; dezenas de outros piscinões foram construídos ao longo dos anos em outras regiões da cidade, auxiliando imensamente no controle de pontos de inundações. Há divergência entre os especialistas, especialmente em relação aos custos de limpeza, sobre a eficácia dos piscinões – na minha opinião, pelo alto custo e falta de grandes terrenos nas áreas urbanas, a construção de piscinões sob praças e avenidas é uma boa opção para as cidades.

O grande desafio para a construção do Piscinão do Pacaembu não foi exatamente na área de engenharia, mas na área da burocracia – tanto o Estádio do Pacaembu quanto a Praça Charles Miller eram construções tombadas pelo Conselho do Patrimônio Histórico e Cultural da Cidade e, por este motivo, não poderiam sofrer qualquer tipo de intervenção. Foram necessárias incontáveis reuniões e acordos entre todas as partes envolvidas no processo para que se autorizasse o início das obras; todo esforço acabou valendo a pena!

O crescimento das cidades e a constante impermeabilização dos solos urbanos com concreto, asfalto e edificações de todo o tipo, estão criando cada vez mais as condições para a formação de grandes pontos de alagamentos nas cidades, com riscos tanto materiais quanto para a segurança dos moradores. Cada vez mais serão necessários estudos e projetos urbanos que visem a criação de pontos de retenção e acúmulo temporário de águas pluviais, evitando assim a formação das enchentes nos pontos mais baixos.

Piscinões subterrâneos como o que foi construído sob a Praça Charles Miller são exemplos práticos de como resolver os problemas extremos provocados pelas enchentes nas cidades. Como faltam áreas para o estacionamento de veículos nas cidades, faço aqui uma sugestão para as Prefeituras: abram concessões para a iniciativa privada construir estruturas que funcionem como piscinões (em um nível mais profundo) e estacionamentos (em um nível mais próximo do solo) sob as praças e avenidas da cidade – o piscinão atenderá o interesse da população e a empresa privada poderá faturar alugando as vagas de estacionamento para os motoristas. Todo mundo vai sair ganhando

À Charles Miller é atribuída a introdução do futebol no Brasil – batizar a praça onde fica o estádio de futebol mais tradicional da cidade com seu nome é uma justa homenagem; já a construção do Piscinão do Pacaembu, essa pode ser chamada de um verdadeiro “gol de placa”. 

Fica a dica para outras grandes cidades brasileiras.

 

CHUVAS, ENCHENTES E MOSQUITOS, OU RELEMBRANDO A ILÍADA DE HOMERO

Cavalo de Tróia

Fortíssimas chuvas assolaram a Cidade do Rio de Janeiro na última semana e, como forma de justificar o injustificável, autoridades públicas da administração municipal, de todos os níveis, desandaram a falar besteiras. A culpa pelos estragos causados pelas enchentes foi creditada “às mais fortes chuvas em 150 anos”, à São Pedro, à Loira do Banheiro, ao Coelhinho da Páscoa, entre outros – não ouvi nenhuma autoridade fazer um “mea culpa” e assumir seu quinhão de responsabilidade pela tragédia.

A falta de preparo de nossas cidades no controle das águas pluviais extrapola, e muito, os limites da Cidade Maravilhosa – são raros os exemplos de cidades de nosso país que estão, adequadamente, preparadas para suportar chuvas um pouco mais fortes, sem que ocorram transtornos para a população.

Relembrando mais uma vez o conceito, o saneamento básico visa a saúde e o bem-estar da população a partir da criação de um espaço físico saudável para moradia, trabalho e lazer. Para tornar isso possível é necessário que se façam obras e se estruturem serviços que permitam o abastecimento de água potável, a eliminação adequada e o tratamento dos esgotos, o manejo das águas pluviais, a limpeza das áreas públicas e privadas e a correta destinação dos resíduos gerados pela comunidade. Quando se consegue atender a todas estas necessidades com serviços adequados, se consegue também controlar os chamados vetores – ratos, baratas, mosquitos, pulgas, piolhos, sarnas, entre outros transmissores de doenças.

Se prestarmos atenção na realidade de nossas cidades, de todos os tamanhos e das mais diferentes regiões, vamos verificar que apenas o abastecimento de água potável, muitas vezes por razões “eleitoreiras”, aparece como uma prioridade – todos os demais serviços e infraestruturas do saneamento básico são deixadas “meio de lado” e tocadas à base de muito improviso. Por experiência profissional em obras e por formação, foco grande parte das minhas postagens nos problemas de infraestrutura de coleta e tratamento dos esgotos e nas consequências do lançamento destes efluentes nos rios, lagos e demais corpos d’água.

Nestes tempos em que a febre amarela tem obtido grande destaque nos meios de comunicação e causado enorme preocupação para as populações das regiões mais populosas do Brasil, é importante falar dos problemas criados pelas deficiências dos sistemas de drenagem de águas pluviais em nossas cidades. E a razão é bastante simples – além de todos os conhecidos estragos causados pelas chuvas, a formação de poças de águas paradas e o acúmulo de água em recipientes e/ou resíduos descartados sem maiores cuidados criam as condições para a reprodução de um dos mais cruéis vetores de doenças nas áreas urbanas: os mosquitos.

Além do velho conhecido mosquito urbano Aedes Aegypti, citados aqui em inúmeras postagens e transmissor de diferentes doenças, precisamos incluir na lista de vetores os mosquitos silvestres de espécies como o Haemagogus e o Sabethes que, graças a uma série de problemas ambientais, estão vivendo cada vez mais próximos dos núcleos urbanos. Pesquisa recente do Instituto Evandro Chagas em Belém, comprovou a presença do vírus transmissor da febre amarela em uma outra espécie de mosquito – o Aedes albopictus. Esse mosquito é encontrado tanto em áreas urbanas quanto rurais, característica que acrescenta uma dimensão nova à transmissão da febre amarela.

Os mosquitos fazem parte das paisagens de nosso planeta há, pelo menos, 170 milhões de anos. São insetos que passam por uma metamorfose completa durante o seu ciclo de vida, onde uma parte se passa obrigatoriamente dentro da água (fase de larva e de pulpa). E como grande parte de nosso país possui estações onde ocorrem chuvas regulares e existem densas matas onde há inúmeros locais onde a água pode acumular, são muitos os ambientes propícios à reprodução e sobrevivência das mais diferentes espécies silvestres destes insetos. Nas áreas urbanas, onde o meio ambiente foi alterado para o nosso maior conforto, criamos inúmeros “ambientes” adequados à reprodução e a sobrevivência das espécies urbanas de mosquitos.

A febre amarela atinge mais de 200 mil pessoas a cada ano, causando cerca de 30 mil mortes – 90% dos casos ocorrem no continente africano. No Brasil, o vírus transmissor da febre amarela circula livremente em aproximadamente 3.600 municípios, incluindo todos os municípios dos Estados das regiões Norte e Centro-Oeste – inclusive o Distrito Federal; da Bahia, Maranhão e Piauí na Região Nordeste; além de partes das regiões Sudeste e Sul. Desde 1942 não eram registrados casos da doença em áreas urbanas e grande parte da população brasileira, especialmente destas áreas urbanas, raramente ouvia falar da doença – pescadores e turistas que visitavam algumas destas regiões com a presença mais ativa do vírus é que se preocupavam em tomar a vacina contra a doença.

As populações das áreas onde a febre amarela é endêmica são atendidas há muito tempo por programas de cobertura vacinal, o que manteve a doença sob controle até agora. O avanço recente da doença na direção de áreas densamente povoadas do país, especialmente na região Sudeste, onde as populações não estão vacinadas, é altamente preocupante – a febre amarela é letal em 40% dos casos, o que justifica a enorme preocupação das autoridades médicas do país. É aqui que me manifesto – a deficiência em infraestrutura de saneamento básico em nossas cidades, especialmente no manejo de águas pluviais e dos resíduos sólidos, é uma espécie de calcanhar de Aquiles, aquele ponto fraco que nos deixa vulnerável aos ataques das mais diferentes doenças, incluindo-se a febre amarela, Dengue, Chikungunya, Zika, Síndrome de Guillain-Barré, Mayaro, entre outras.

Há um outro lado ainda mais sombrio – criadas as condições ideais para a reprodução e a sobrevivência dos mosquitos em nossas cidades, nada impede que outros mosquitos “imigrantes”, vindos de outras regiões do mundo e hospedeiros de outros vírus, cheguem por aqui e acabem por se instalar em nossas vizinhanças. Lembro que o mosquito Aedes Aegypti é originário da África e chegou ao Brasil em navios mercantes e negreiros ainda no período Colonial. Os portos brasileiros movimentam hoje mais de 5 milhões de contêineres a cada ano, sem falar nas cargas e pessoas transportadas entre países em aviões, ônibus, carros e caminhões – nada impede que um grupo de uma outra espécie de mosquitos, vindos por exemplo das Ilhas Fiji ou de Madagascar, cheguem por aqui, carregando em seus corpos sabe-se lá qual tipo de vírus. São novos e preocupantes tempos.

Num passado remoto, a mitológica cidade de Tróia caiu graças a engenhosidade de Aquiles e de seu pequeno grupo de soldados que, escondidos no interior de um cavalo de madeira (vide imagem), penetrou sorrateiramente na cidade, abrindo os portões para a entrada do grande exército dos gregos. Mosquitos escondidos em um contêiner podem fazer algo semelhante em nossas cidades.

Torço para que superemos da melhor maneira possível essa crise criada pelo avanço da febre amarela e que aprendamos, rapidamente, a resolver de uma vez por todas os problemas primários da infraestrutura de nossas cidades. Nós não podemos mais ficar à mercê de chuvas, enchentes e mosquitos!

UM SISTEMA DE DRENAGEM DE ÁGUAS PLUVIAIS “RAZOÁVEL”, OU AS ENCHENTES NA CIDADE MARAVILHOSA

Exterminador do Futuro

Na minha última postagem fiz uma crítica bastante incisiva a declarações de autoridades do Rio de Janeiro que, em nota divulgada à imprensa, classificou o sistema de drenagem de águas pluviais da Cidade como “razoável”. Relembrando, a Cidade do Rio de Janeiro foi atingida por uma chuva extremamente forte na madrugada do último dia 15, que resultou em uma verdadeira situação de calamidade pública em diversos bairros. Foram enchentes localizadas, alagamentos generalizados em regiões baixas, quedas de árvores, desmoronamentos de imóveis, escorregamento de encostas, milhares de famílias desabrigadas e, desgraçadamente, 4 mortes foram registradas. Cerca de 48 horas depois da tragédia, haviam aproximadamente 100 mil residências ainda sem energia elétrica e muitos alagamentos persistentes em muitos pontos da cidade.

A foto que ilustra esta postagem, escolhida a dedo, mostra parte de um sistema de drenagem de águas pluviais, verdadeiramente, razoável. Muitos de vocês devem ter achado a imagem bastante familiar – trata-se de uma cena de um dos muitos filmes rodados nos canais do sistema de águas pluviais ligados ao rio Los Angeles, na cidade homônima da Califórnia, Estados Unidos. Dezenas e mais dezenas de filmes americanos, produzidos em Hollywood (distrito da cidade de Los Angeles), mostraram cenas de perseguições ao longo da calha concretada deste rio; podemos citar os filmes Exterminador do Futuro (vide foto) e Uma Saída de Mestre; no filme O Núcleo – Missão ao Centro da Terra, um ônibus espacial faz um pouso de emergência no local. Em outro filme, bastante exagerado na ficção, o rio Los Angeles foi usado para desviar a lava de um vulcão em formação na cidade – estou falando de Volcano: a fúria.

Além de toda esta importância como cenário para as mais diferentes produções cinematográficas, o rio Los Angeles também funciona como um excepcional canal para a drenagem das chuvas na cidade. Olhando para a foto sem uma maior atenção, fica até difícil encontrar qualquer vestígio do rio – se veem algumas manchas com água como uma calçada após uma chuva rápida. A curiosa desproporção entre o pequeno filete de água e o tamanho da calha tem uma explicação simples – as calhas de todo o sistema foram superdimensionadas para receber grandes volumes de águas das chuvas e evitar enchentes na cidade – simples assim.

A cidade de Los Angeles tinha um problema muito conhecido das grandes cidades brasileiras – a cada chuva mais forte, os sistemas de drenagem de águas pluviais não conseguiam dar conta da vazão do grande volume de água e as enchentes tomavam conta de grandes áreas da mancha urbana: qualquer semelhança com São Paulo, Rio de Janeiro ou Recife não é mera coincidência. Na década de 1940, a Prefeitura da Cidade decidiu pela realização de uma grande obra para resolver, em definitivo, o problema.

O canal do rio Los Angeles, que na maior parte do ano era um leito seco, foi “canalizado”. O sentido aqui diverge da tradicional rede de tubulações subterrâneas, tão comum na canalização de córregos urbanos no Brasil – o leito do rio foi retificado e transformado em um canal largo e profundo, revestido por concreto num trecho de 80 quilômetros. O canal foi dimensionado para receber um grande volume de águas de chuva, começando com uma largura de 80 metros e chegando a 120 metros no trecho final. Graças a esse superdimensionamento e a forte declividade do canal, a correnteza pode chegar a uma velocidade de 50 km/h, característica que permite a drenagem rápida de grandes volumes de água de chuva. Uma vez concluído o canal principal de drenagem, sistemas locais nos bairros foram construídos e melhorados. As enchentes violentas na cidade viraram “coisa do passado”.

No sistema de drenagem de águas pluviais “razoável” da Cidade do Rio de Janeiro, basta uma chuva de verão mais forte para os problemas “pipocarem” por todos os lados. Na madrugada do dia 15, a chuva assumiu proporções amazônicas – 123,6 mm de chuva em uma hora, criando problemas nos mais diferentes bairros da cidade: Anchieta, Anil, Barra, Campinho, Centro, Cocotá, Grajaú-Jacarepaguá, Guadalupe, Ilha do Governador, Irajá, Jacarepaguá, Jardim Sulacap, Laranjeiras, Linha Vermelha, Maracanã, Olaria, Pechincha, Pedra de Guaratiba, Penha, Ramos, Recreio dos Bandeirantes, Santa Cruz, Sepetiba, Taquara, Vila Valqueire, Vila Cosmos e Vista Alegre.

Além de problemas de drenagem pluvial, onde se alternam enchentes e alagamentos, a cidade também mostrou as suas deficiências mais crônicas: queda de dezenas de árvores que, a reboque, danificaram trechos aéreos da rede elétrica, paralização dos sistemas de transporte, hospitais às escuras ou com geração precária de energia elétrica, lixo e resíduos arrastados pela enxurrada, habitações precárias em morros sob risco de desmoronamento, interrupção do abastecimento de água, retorno de esgotos em muitas casas (devido a ligações irregulares de saídas de águas pluviais dos imóveis nesta rede), entre outros problemas graves.

A chuva, como todos sabem, é um fenômeno da natureza essencial para a vida no planeta, contra o qual não temos nenhum controle e que nunca seremos fortes o bastante para vencer: temos de adaptar nossas cidades para o convívio com as chuvas, de forma a minimizar ao máximo os eventuais problemas e prejuízos de sua fúria. Apesar de previsível e natural num país de clima essencialmente equatorial e tropical, muitas cidades do Brasil ainda não estão plenamente adaptadas ao convívio com este fenômeno.

Em uma época onde as alterações climáticas resultantes do aquecimento global tendem a criar as mais diferentes distorções nos padrões das chuvas, é fundamental que as grandes e médias cidades se preparem ou para o aumento ou para a redução das chuvas. Em muitas cidades será exigido um redimensionamento das redes de drenagem de águas pluviais já existentes (se é que existem), com vistas ao aumento do volume de águas que virão; em outras, onde haverá uma redução das chuvas, será necessária a construção de novas represas para o armazenamento de água para o abastecimento das populações, reflorestamento de áreas de nascentes e a busca por fontes alternativas de água, projetos que deverão ser pensados desde já.

Soluções milagrosas ou os famosos improvisos, tão comuns entre nossos administradores públicos, deverão ser esquecidos. Após mais de 500 anos de história do nosso país, todos temos uma razoável noção das regiões e cidades onde há problemas de excesso ou de falta de chuvas. Também já é possível prever, ou pelo menos antever, os locais onde as possíveis mudanças nos padrões climáticos se manifestarão com uma maior intensidade. Não é admissível que se continue de braços cruzados esperando pela próxima catástrofe, pela próxima tempestade ou seca devastadora.

Em tempo: a meteorologia prevê a volta de chuvas fortes na cidade do Rio de Janeiro no próximo dia 22 de fevereiro – espero, sinceramente, não precisar escrever novamente sobre a tragédia das enchentes na Cidade Maravilhosa.

Uma coisa é certa: a depender das nossas escolhas no presente, o futuro poderá ser um vingador implacável.

A VIOLÊNCIA DAS TEMPESTADES DE VERÃO, OU A CIDADE DO RIO DE JANEIRO DEBAIXO D’ÁGUA

Enchentes Rio de Janeiro

Na noite da última quarta-feira e madrugada da quinta-feira, entre os dias 14 e 15 de fevereiro, uma poderosa formação de nuvens de chuva atingiu o litoral Norte do Estado de São Paulo e as regiões do litoral Sul e Central do Rio de Janeiro, provocando imensos prejuízos para as populações locais.

Em São Paulo, onde as fortes chuvas começaram a cair ainda na manhã do dia 14 de fevereiro, as tempestades causaram fortes estragos nas cidades de São Sebastião, Ilhabela, Caraguatatuba e Ubatuba. A Rodovia Mogi-Bertioga, uma das ligações entre o Planalto Paulista e o litoral teve diversos escorregamentos de encostas, que bloquearam completamente a rodovia. Trechos da Rodovia Rio Santos também tiveram quedas de barreiras sem o bloqueio total das pistas, porém, com muito barro acumulado sobre o pavimento da via. Nas cidades da região, foram registradas enchentes e alagamentos localizados, em pontos já bastante conhecidos pela população, causadas por antigos problemas nos sistemas de drenagem de águas pluviais.

Na cidade do Rio de Janeiro, a chuva foi simplesmente catastrófica – de acordo com dados divulgados pelo Alerta-Rio, entre 0h00 e 1h00 da madrugada do dia 15, foram registrados 123,6 mm de chuva na estação de medição meteorológica Barra/Riocentro. Esse volume de chuvas, o maior já registrado na cidade em apenas uma hora, é de proporções amazônicas – em 2010, quando trabalhava em obras de infraestrutura no Estado de Rondônia, testemunhei uma chuva de 132 mm em pouco mais de uma hora: posso afirmar que é água que não acaba mais!

A fortíssima tempestade causou inúmeros estragos por toda a cidade, incluindo alagamentos localizados em muitas avenidas, enchentes generalizadas em áreas mais baixas, quedas de árvores, desabamentos de construções e deslizamentos de encostas. Quatro pessoas morreram e pelo menos 1.500 ficaram desalojadas. Até ontem, dia 17 de fevereiro, cerca de 100 mil casas permaneciam sem energia elétrica devido aos estragos causados na fiação aérea da cidade.

Uma das cenas mais, digamos assim, dantescas da tragédia foi o afundamento de um trecho da ciclovia Tim Maia em São Conrado. Essa ciclovia, aliás, é a mesma que teve um trecho derrubado pela força das ondas de uma ressaca em 2016, poucas semanas após a inauguração. Isso só reforça a sensação da falta de infraestrutura de drenagem de águas pluviais na cidade ou, para falar o mínimo, de obras malfeitas e/ou mal projetadas (essa ciclovia, na minha humilde opinião, é uma verdadeira aula – “Tudo o que não se deve fazer em uma obra pública: projeto, execução e custos”).

Segue a reprodução de um trecho de reportagem publicada em um grande jornal local, onde se pode perceber que o caos foi generalizado em toda a cidade do Rio de Janeiro:

“Árvores caíram em mais de 60 ruas, causando obstrução de vias (e) afetando o tráfego de veículos. Órgãos da prefeitura atuam nos bairros de: Anchieta, Anil, Barra, Campinho, Centro, Cocotá, Grajaú-Jacarepaguá, Guadalupe, Ilha do Governador, Irajá, Jacarepaguá, Jardim Sulacap, Laranjeiras, Linha Vermelha, Maracanã, Olaria, Pechincha, Pedra de Guaratiba, Penha, Ramos, Recreio dos Bandeirantes, Santa Cruz, Sepetiba, Taquara, Vila Valqueire, Vila Cosmos e Vista Alegre.

Na Avenida Brasil, a pista lateral sentido Centro foi interditada na altura de Ramos por causa da queda de uma árvore. O COR (Centro de Operações Rio) informou que a interdição provoca reflexos em Irajá. Algumas pessoas desceram dos ônibus e tentaram seguir caminho a pé.

A Autoestrada Grajaú-Jacarepaguá segue interditada em direção à Zona Oeste devido, também, à queda de uma árvore. Na Linha Vermelha, uma árvore caída na pista sentido Centro, na altura da Infraero, ocupou duas pistas, o que provocou tumulto no trânsito. A melhor opção para quem quer chegar ao Centro da cidade é a Avenida Pastor Martin Luther King e outras vias internas. (…)

Na área hospitalar, 11 unidades (hospitais municipais Evandro Freire, Paulino Werneck, Albert Schweitzer, Francisco da Silva Telles, Nossa Senhora do Loreto, Álvaro Ramos, maternidades Alexander Fleming e Carmela Dutra e UPAs Vila Kenndey, Sepetiba e Madureira) sofreram com a falta de energia e funcionam com geradores para garantir a assistência aos pacientes. O Hospital Lourenço Jorge utilizou o gerador por um período até o restabelecimento da energia.”

O Prefeito da Cidade do Rio de Janeiro, cujo nome convém nem citar, se reuniu com secretários e assessores no sábado, dia 17, para avaliar os problemas e estragos causados pelo temporal em toda a cidade. Uma nota divulgada pela assessoria de imprensa das “otoridades”, em minha opinião, é assustadora:

“Nossos reservatórios na Zona Norte não chegaram a transbordar, e foi satisfatório. No dia seguinte de manhã, na Fazenda Botafogo, a drenagem conseguiu que as águas tivessem um nível muito menor. Na Zona Oeste, no Jardim Maravilha, houve um tempo de escoamento maior, devido ao bairro estar bem abaixo da linha do mar, numa chuva que há décadas não caía sobre o Rio”.

Passados quatro dias das fortíssimas chuvas, com algumas áreas da cidade ainda inundadas ou com ruas cobertas com uma grossa camada de lama e lixo, além de um imenso rastro de destruição deixado pelos problemas de falta de infraestrutura para o escoamento de águas pluviais, e as máximas autoridades usam a classificação “Satisfatória” para avaliar o sistema de drenagem de águas pluviais da cidade? Desculpem-me, mas isto é uma grande brincadeira.

Durante o Carnaval, lamentavelmente, a Cidade do Rio de Janeiro sofreu com uma explosão de violência jamais vista, com roubos, arrastões e balas perdidas “comendo solto” (na última sexta-feira, não por coincidência, o Governo Federal decretou intervenção no sistema de segurança pública do Estado); logo depois, na noite da Quarta-feira de Cinzas, uma tempestade varreu a cidade e castigou a população como nunca. O Sr. Prefeito, que durante todo esse tempo esteve fora do país em uma suposta viagem “oficial”, chega depois de todo o estrago já feito e, na primeira reunião com seus secretários e assessores, diz uma barbaridade destas – não dá para levar a sério gente deste tipo!

A Cidade Maravilhosa e o Estado do Rio de Janeiro são grandes, fortes e importantes demais para a mediocridade e incompetência dos seus governantes atuais. Torço para que dias e tempos melhores cheguem logo ao “coração do meu Brasil”.

O DESAPARECIMENTO DA ILHA NEW MOORE NO OCEANO ÍNDICO

Bangladesh

Nas minhas últimas postagens venho falando sobre os impactos das alterações climáticas em toda a região do Oceano Índico, fenômeno que tem suas primeiras consequências já visíveis: uma fortíssima seca na faixa Leste e Sul da África, que atinge 50 milhões de pessoas; aquecimento das águas do Canal de Moçambique, onde está havendo um aumento do número de ciclones e de tempestades tropicais; aumento no volume das chuvas de monção na Índia e em todo o Sudeste Asiático; diversas ilhas e países insulares sob ameaça de desaparecimento devido à elevação do nível do Oceano Índico.

A recente divulgação de notícias sobre a crise no abastecimento de água na Cidade do Cabo, na África do Sul, deu uma visibilidade maior ao problema. As ameaças do aumento do nível do mar nas Ilhas Maldivas, um famoso e importante destino turístico ao Sudoeste da Índia, também causou muita comoção em todo o mundo. Porém, estão ocorrendo diversos problemas “menores” em regiões sem nenhuma visibilidade e que nos dão uma noção da extensão regional dos impactos climáticos no Oceano Índico. E o desaparecimento repentino de uma pequena ilha no Golfo de Bengala nos dá uma ideia dos problemas que a região enfrentará nos próximos anos.

A pequena ilha de 10 km² era disputada entre a Índia e Bangladesh há muitos anos, sendo chamada de New Moore pelo Governo indiano – os habitantes locais, os bengaleses, chamavam a ilha de Talpati. A ilha, que nunca foi habitada e era visitada apenas por pescadores, foi formada a partir do acumulo de sedimentos carreados pelo rio Hariabhanga e tinha uma elevação máxima de 2 metros acima do nível do mar.

De acordo com dados da Escola de Estudos Oceanográficos da Universidade de Jadavpur em Calcutá, toda a região do delta dos rios Ganges e Brahmaputra vem apresentando um aumento sistemático do nível do mar há várias décadas – nos últimos 10 anos, houve um aceleração visível na velocidade deste aumento do nível das águas, o que resultou no desaparecimento da ilha New Moore.

As preocupações com a elevação do nível do Oceano Índico na região do Golfo de Bengala são muito maiores – o avanço das águas do mar está ameaçando a sobrevivência da maior floresta de manguezais do mundo, localizada entre a Índia e Bangladesh. O delta do rio Ganges-Brahmaputra, conhecido na língua local com Sundarbans, se estende por aproximadamente 350 km de linha de costa, o que o torna o maior delta do mundo. Suas terras interiores, baixas e extremamente férteis, estão entre as de maior produtividade agrícola do mundo (vide foto) e alimentam centenas de milhões de pessoas – com o aumento do nível do mar grande parte dessa região poderá ficar submersa.

Em qualquer lugar do mundo, uma perspectiva de futuro como essa seria dramática – no subcontinente indiano, uma das áreas com maior densidade populacional do mundo, a situação é, simplesmente desesperadora: Bangladesh tem uma população de 160 milhões de habitantes e a Índia, impressionantes 1,34 bilhão de habitantes.

Além da destruição dos manguezais e do alagamento das terras agrícola, a elevação das águas do Oceano Índico na região poderá criar, somente em Bangladesh, até 20 milhões de “refugiados ambientais” nos próximos anos.

O DRAMA DAS ILHAS MALDIVAS

Maldivas

Quem mora em um país de dimensões continentais como o Brasil tem muita dificuldade para imaginar as consequências catastróficas que o aumento do nível dos oceanos poderá representar para os pequenos países insulares espalhados pelo mundo. Em nossa confortável situação, temos certeza que as populações de nossas cidades costeiras terão para onde se mudar caso o oceano avance com maior violência contra as nossas praias.

Agora, o que você faria se o seu país fosse uma ilha com altitudes máximas de 2 metros acima do nível do mar e, dia após dia, você percebesse o avanço contínuo das águas contra a terra?

As Ilhas Maldivas são, há muito tempo, um paraíso turístico que atrai milhares de visitantes de todo o mundo, que buscam as suas praias de areias brancas e águas transparentes. A Repúblicas das Maldivas, nome oficial do país, está localizada no Oceano Índico, próximo ao Sudoeste da Índia. São 1.196 pequenas ilhas, agrupadas em 26 atóis. A população total das ilhas é de 330 mil habitantes, que vivem basicamente da pesca e do turismo.

O ponto mais alto da Ilhas Maldivas fica a exatos 2,3 metros acima do nível do mar – aliás, a altitude média do território é de 1,5 metros. A maior parte da população vive em áreas com altitude de 1 metro acima do nível do mar. A capital do país, Malé, onde vivem 100 mil pessoas fica a desesperadores 0,9 metros em relação ao nível do mar! Acho que você já conseguiu entender o título que dei a esta postagem. As Ilhas Maldivas poderão desaparecer em poucos anos devido às mudanças climáticas globais e ao gradual aquecimento das águas do Oceano Índico. E os problemas já são visíveis.

As águas ao redor das Ilhas Maldivas são formadas por extensos bancos de corais multicoloridos, onde vivem as mais diversas espécies de peixes tropicais. Essas águas são consideradas como uma das melhores do mundo para o mergulho e foram fundamentais para colocar o pequeno país insular na rota do turismo internacional. Infelizmente, o aquecimento das águas do Oceano Índico e a consequente acidificação das águas está matando os corais. As formações, que combinam diversos tipos de seres vivos e rochas calcárias, sofrem com o processo conhecido como branqueamento (bleaching), que acontece quando os corais passam a sofrer com o aumento da temperatura e perdem a sua cor, ficando totalmente brancos. Mais de 60% dos corais ao redor das Ilhas Maldivas apresentam sinais de branqueamento, problema que vem afastando os mergulhadores e que já afeta fortemente a indústria do turismo.

O visível avanço do mar contra as praias das Ilhas é outra fonte de pesadelos para a população. A erosão continua de praias está provocando a redução gradual do já pequeno território das Maldivas, cuja área é de apenas 298 km². As preocupações com o eventual desaparecimento das Ilhas só aumentam – recentemente, a ilha New Moore, um pequeno pedaço de terra com 10 km² e com altitude média de 2 metros acima do nível do mar no Golfo de Bengala, foi totalmente encoberta pelas águas do Oceano Índico – a elevação do nível do mar é a causa mais provável para esta tragédia. Felizmente, a ilha, que era disputada entre a Índia e Bangladesh, era desabitada. Vou falar do caso desta ilha na próxima postagem.

E o drama dos maldives (ou maldívios) não é único – existem dezenas de países insulares em todos os oceanos do mundo que correm o risco de ver suas terras serem encobertas gradativamente pelas águas do mar. E não há para onde correr – serão necessários acordos internacionais para que outros países possam receber estes “refugiados climáticos”.

Parodiando um antigo ditado espanhol: você até pode não acreditar no aquecimento global, mas que ele existe, existe!