De acordo com os Vedas, conjunto de textos religiosos hindus que remontam ao ano 1.500 a.C., a fertilidade das vacas foi associada a várias divindades. Graças a isso, o status do animal passou a ser elevado gradativamente dentro do contexto religioso e as vacas e bois, por extensão, passaram a ser considerados sagrados. Dentro do antigo sistema de castas da sociedade indiana, as vacas eram consideradas mais puras que os humanos brâmanes, a casta mais alta dos sacerdotes hindus. Esse status passou a garantir que as vacas não fossem mortas, feridas e que também pudessem circular livremente pelas ruas sem serem incomodadas.
Durante séculos, vacas e bois eram encontrados vagando sossegadamente pelas ruas das cidades indianas, convivendo pacificamente com pessoas dos mais diferentes tipos e outras espécies animais, onde se incluem cães, gatos, carneiros, cabritos, elefantes, camelos, entre muitas outras. Vale ressaltar que as populações muçulmanas do país, para desespero da maioria hindu, sempre consumiram a carne de bovinos. Depois da independência da Índia em 1948 e das profundas mudanças sociais e econômicas vividas pelo país, as coisas começaram a mudar e as vacas passaram a perder lentamente sua condição de animal sagrado.
Conforme já comentamos em uma postagem anterior, o consumo de carne bovina tem crescido entre os indianos da classe média, que consideram este alimento como um sinal de status num país em forte crescimento econômico. Também tem crescido os comunicados de roubo de gado – em 2019 foram registradas cerca de 40 mil ocorrências no país. Grupos criminosos roubam os animais e os transportam para abatedouros clandestinos, que por sua vez abastecem o mercado. Em grande parte do país o abate de gado ainda é proibido por força de lei.
A grande ironia da situação é que a Índia se transformou em uma das grandes processadoras e produtoras de couro animal do mundo, com uma produção anual de mais de 180 milhões de metros quadrados em peças de couro (dados de 2013). Nessa conta se incluem couro de búfalos (Bos gaurus) e iaques (Bos grunniens), espécies bovinas muito próximas de bois e vacas, mas que estão livres da condição de sagradas.
Couros de bois e vacas também acabam entrando nessa conta – além dos abates clandestinos que citamos, alguns Estados do país permitem o abate desses animais em frigoríficos especializados na exportação de carne – a Índia é um dos maiores exportadores mundiais de carne bovina e bubalina (búfalos). Também se incluem o couro de animais “sagrados” que morreram de morte natural e que têm seu couro retirado por dalits, a casta mais baixa entre os indianos (os chamados intocáveis ou impuros).
Os curtumes indianos, conforme já comentamos anteriormente, são grandes poluidores do meio ambiente. Essas indústrias utilizam produtos que contém substâncias altamente tóxicas como mercúrio, arsênico e, principalmente, sais de cromo. Essas substâncias são utilizadas para mumificar e amaciar o couro, além de entrarem na composição de tintas, solventes e vernizes. Os resíduos desses produtos são em grande parte misturados aos efluentes que são despejados sem qualquer tipo de tratamento e poluem gravemente as águas de córregos e rios usadas no abastecimento de cidades e vilas.
Esses curtumes também são um dos ambientes de trabalho dos mais insalubres para milhões de trabalhadores. Em grande parte dessas instalações, os trabalhadores não usam os EPIs – Equipamentos de Proteção Individual, como luvas, máscaras, botas e aventais, equipamentos essenciais para quem lida em contato direto com produtos tóxicos. Muitos, inclusive, vivem mergulhados até a cintura nos tanques onde as peças de couro são tratadas, respirando vapores tóxicos e tendo pés, pernas e mãos em contato direto com todos esses produtos.
O processo do curtimento do couro começa ainda nos abatedouros, quando as peças recém retiradas das carcaças dos animais são tratadas com pesticidas, que vão evitar o desenvolvimento de fungos durante o transporte das peças até os curtumes. As peças de couro possuem restos de carne, gordura, tendões, pêlos, fezes e outras impurezas, que vão precisar ser retiradas antes do início dos processos de curtimento. Até 70% do chamado couro cru se transforma em resíduos, que muitas acabam sendo descartados junto com os efluentes líquidos. Os profissionais que fazem essa limpeza, frequentemente, trabalham sem o uso de luvas e máscaras, respirando um ar contaminado e muito mal cheiroso.
As peças de couro limpas são depois colocadas em tanques para lavagem e início do processo de curtimento. O processo mais usual para o tratamento do couro, e também o mais tóxico, é feito com o uso de sais de cromo. Para curtir 1 tonelada de couro são gastos entre 20 e 80 m³ de água, onde são adicionados cerca de 250 mg/l de cromo e cerca de 50 mg/l de sulfeto. Esses produtos tratam o couro, evitando que ele apodreça com o tempo.
O cromo é um metal de transição com importantes aplicações na metalurgia, especialmente na produção do aço inoxidável. Os compostos de cromo (estado de oxidação +6) são muito oxidantes e podem ser altamente nocivos. Em altas concentrações, estes compostos podem causar diversos problemas à saúde humana, indo desde problemas respiratórios, infecções, infertilidade e deficiências congênitas. Lançado junto com os efluentes nas águas dos rios, o cromo pode causar problemas nas guelras dos peixes e também provocar alguns tipos de câncer em animais e populações humanas que bebam ou mantenham contato com estas águas.
Profissionais que trabalham nos curtumes, expostos diariamente a toda uma gama de produtos químicos, podem apresentar problemas como rinite, problemas no estômago, lesões na pele e, em casos extremos, riscos de desenvolver câncer no pulmão. As instalações dos curtumes costumam ter estruturas improvisadas e sem as mínimas condições de segurança. Os trabalhadores estão sujeitos a riscos de quedas, exposição à cal, soluções químicas usadas no curtimento e a uma série de produtos químicos, ferimentos e lesões em máquinas e ferramentas de corte, inalação de gases tóxicos, afogamento em tanques, queimaduras químicas, entre outros problemas.
Estudos médicos recentes têm associado os compostos de cromo hexavalente (Cr(Vl)) aos riscos de desenvolvimento de câncer respiratório nas fossas nasais e nos pulmões, além de câncer na bexiga, nos testículos e pâncreas. A EPA – Agência de Proteção Ambiental dos Estados Unidos, a IARC – Agência Internacional de Pesquisa em Câncer, e a OMS – Organização Mundial da Saúde, passaram a classificar o cromo hexavalente como cancerígeno e tem feito esforços para banir o seu uso. A maioria dos curtumes da Índia faz vista grossa a essas recomendações e o produto continua sendo usado em larga escala no país.
Como resultado do contato direto e diário com todo um conjunto de produtos químicos tóxicos, os trabalhadores dos curtumes da Índia são facilmente reconhecíveis pelas manchas brancas na pele das mãos, dos pés e das pernas, cicatrizes das muitas doenças de pele e queimaduras químicas sofridas ao longo dos anos. Também são muitos comuns os trabalhadores “aposentados” (na realidade estão incapacitados para o trabalho) precocemente devido aos inúmeros problemas de saúde e doenças contraídas e acumuladas ao longo do tempo. Isso sem falar nas incontáveis viúvas e órfãos deixados por trabalhadores mortos em um sem número de “acidentes” nos curtumes.
Os problemas criados no meio ambiente pelos inúmeros curtumes da Índia são enormes e precisam ser revolvidos no menor tempo possível. Mas a destruição de vidas de milhares de trabalhadores também é muito grande e não podem, de maneira alguma, serem esquecidas.
[…] despejos industriais no rio através de tubulações clandestinas. Entre essas empresas havia um curtume, atividade famosa pelo uso de produtos compostos por metais pesados como os sais de cromo, […]
CurtirCurtir
[…] estabilizando o teor de umidade e garantindo a durabilidade. Calcula-se que aproximadamente 80% do couro usado no mundo seja empregado na fabricação de calçados, o que justifica a presença de tantos curtumes na […]
CurtirCurtir
[…] gravíssima fonte de poluição são os despejos das indústrias que trabalham nos segmentos de tratamento e tingimento do couro. Apesar de parcela expressiva da população indiana ser adepta do hinduísmo e venerar […]
CurtirCurtir