Na minha última postagem falamos da aparente incoerência entre a cobertura universal de redes coletoras de esgotos na cidade de Curitiba e o fato do rio Iguaçu ocupar a segunda posição no ranking dos rios mais poluídos do Brasil. Deixem-me explicar isto antes que curitibanos raivosos comecem a me mandar mensagens de protesto: a simples presença de uma rede coletora na porta dos imóveis de uma localidade não é garantia de que todos os esgotos do local estão sendo despejados de forma regular – muitos imóveis antigos, construídos antes da construção da rede pública de esgotamento sanitário, já estavam ligados a antigos sistemas particulares de manilhas que despejavam os efluentes do imóvel em algum curso d’água próximo. É muito comum que estes imóveis estejam no segundo ou terceiro dono, dono esse que desconhece a infraestrutura de tubulações do imóvel, escondida sob pisos cerâmicos ou de pedra, ou ainda sob vistosos jardins. A época da conclusão da rede coletora pública de esgotos, esses imóveis foram ligados à rede, porém, muitas vezes em condições onde não é possível afirmar que todos os efluentes gerados na rede hidráulica interna estão sendo lançados neste ramal de saída – efluentes de edículas nos fundos dos terrenos podem estar lançando esgotos nas águas de córregos e rios canalizados sem que os proprietários do imóvel saibam. Vou descrever uma situação que vivi aqui em São Paulo que ilustra muito bem esse problema:
Entre os anos de 2013 e 2014 trabalhei em um escritório no charmoso bairro do Jardim Paulista, a 300 metros de um dos portões do Parque do Ibirapuera – para quem não conhece a cidade de São Paulo, trata-se do parque urbano mais importante da cidade, com quase 1,6 milhão de metros quadrados, e listado como uma das melhores áreas verdes urbanas do mundo. Nesta área do Jardim Paulista não existem edifícios, mas apenas casarões e mansões centenárias da antiga elite da cidade. Na primeira semana de trabalho neste escritório, caiu uma daquelas famosas tempestades de fim de tarde, típicas do Verão paulistano. Terminada a chuva, na saída para a volta ao lar com o carro que estava estacionado na frente do escritório, observei que as duas rodas que estavam sobre a sarjeta pareciam estar cobertas com “lama” – ao me aproximar para conferir, rapidamente percebi pelo cheiro que aquilo, na realidade, eram resíduos de fezes. Outros carros estacionados ali apresentavam os mesmos resíduos – aliás, a rua ficou com o cheiro “característico” por vários dias. Prestando um pouco mais de atenção na inclinação da rua e na elevação dos terrenos, entendi rapidamente que existia ali um córrego canalizado e que inúmeras daquelas mansões estavam despejando seus esgotos nas suas águas.
As áreas de entorno do Parque do Ibirapuera, especialmente o Jardim Paulista e a Vila Nova Conceição, é onde se encontram os imóveis mais caros da cidade de São Paulo, com preços entre R$ 12 e R$ 14 mil por metro quadrado, em média – somente em áreas de Copacabana, Leblon e Ipanema, na cidade do Rio de Janeiro, você vai encontrar imóveis mais caros. Esta região, mais conhecida como Jardins, é disparada a que tem a melhor infraestrutura da cidade, com ruas arborizadas, imóveis elegantes, restaurantes caríssimos e, algo que anda muito em falta nas nossas cidades: muita segurança. Mesmo com todos esses invejáveis pontos positivos, trata-se de uma região onde “fezes afloram” das redes coletoras de águas pluviais em dias de chuva forte. Para todos entenderem a complexidade do problema, vou citar o exemplo dos lagos do famoso Parque do Ibirapuera (vide foto) – esses lagos foram formados a partir do represamento do Córrego do Sapateiro. Esse corpo d’água se forma na área do Parque do Ibirapuera a partir da junção das águas de diversos córregos, hoje canalizados, que drenam os bairros do entorno. A Prefeitura de São Paulo, há várias décadas, vem tentando despoluir as águas destes lagos e ainda não conseguiu solucionar totalmente o problema – o motivo: os lançamentos irregulares de esgotos nos córregos da região pelas mansões e por muitos edifícios de luxo dos Jardins e da Vila Nova Conceição. A única forma possível de se identificar os imóveis irregulares é através do uso de corantes especiais, lançados nos vasos sanitários destes imóveis – após a descarga ser acionada, uma equipe de técnicos posicionada nas margens do lago verifica se a mancha de corante aparece na superfície – se isto acontecer, bingo: uma ligação irregular foi localizada. Mas, vai conseguir autorização de um destes “ricaços” para entrar no imóvel e fazer este teste…
Na cidade de Curitiba e dos muitos rios “invisíveis”, são esses lançamentos irregulares de esgotos, semelhantes aos da região dos Jardins em São Paulo, os “prováveis” responsáveis pela poluição difusa que se vê na rede de corpos d’água da cidade e que chegam ao rio Iguaçu. Como demonstrei no caso de São Paulo, a identificação dos imóveis e a localização dos pontos de descarga destes efluentes nos corpos d’água é um trabalho extremamente complicado, especialmente quando estão os córregos e rios receptores dos efluentes estão canalizados e esquecidos a muito tempo e, muitas vezes, nem a Prefeitura da cidade nem os moradores mais velhos sabem ao certo onde estão localizados.
A localização, reabertura e a recuperação ambiental e paisagística destes rios invisíveis, e também dos inúmeros canais de córregos e rios poluídos em áreas urbanas, é um movimento interessante e que vem ganhando força nos últimos anos em importantes cidades mundo afora. É uma ideia que poderá ajudar muito na resolução deste grave problema em Curitiba. Exemplos que podem ser citados são o do rio Cheonggyecheon em Seul, na Coréia do Sul, e do Córrego Pirarungáua em São Paulo – corpos d’água que estavam soterrados e esquecidos a várias gerações e que voltaram a vida e a luz do sol para o deleite das populações. Caso seja do seu interesse, neste link você encontrará um excelente artigo que trata deste atualíssimo e importante tema.
Que “faça-se a luz” sobre as águas destes rios e córregos invisíveis da bela cidade de Curitiba. Continuamos no próximo post.