“RIO MADEIRA ATINGE O MAIOR NÍVEL REGISTRADO NOS ÚLTIMOS 50 ANOS”

Cheia no rio Madeira

Nas últimas postagens falamos bastante da navegação pelas Hidrovias dos rio Madeira e Guaporé, destacando sua importância para a economia regional. Apesar de ser um modal de transportes extremamente promissor e de custos muito baixos, se comparado ao transporte rodoviário, a navegação fluvial também apresenta alguns problemas – a variação brusca dos níveis de água na calha dos rios, em função das estações do ano, é o principal deles.

Este ano, as fortes chuvas na Bolívia, país onde se encontram os principais rios formadores do Madeira, estão provocando enchentes acima da média – a foto mostra um longo trecho da Rodovia Federal BR-364, no trajeto que liga as cidades de Porto Velho, no Estado de Rondônia, e Rio Branco, no Acre, completamente tomado pelas águas do rio Madeira. Vale lembrar que esta Rodovia é a única ligação terrestre do Acre com o restante do país.

Vejam abaixo uma matéria publicada pelo CENSIPAM – Centro Gestor e Operacional do Sistema de Proteção da Amazônia, órgão do Ministério da Defesa, falando sobre as excepcionais cheias do rio Madeira neste ano:

O rio Madeira deverá manter-se em elevação pelo escoamento das chuvas ocorridas em sua bacia, podendo alcançar o nível de 19,80 metros (cenário com chuvas acima da média na bacia). Caso não se confirme a previsão de mais chuvas nas cabeceiras, esse será o maior nível atingido pelo rio Madeira dos últimos 50 anos (o nível máximo que o rio já alcançou foi 17,52, há 17 anos) e deverá se manter nesta cota nos próximos dias. O dado é do Informe Técnico, elaborado pelo Centro Regional do Sipam em Rondônia, enviado às defesas civis, representadas pelo Centro Nacional de Gerenciamento de Riscos e Desastres (CENAD), CEDEC’s de Rondonia e Acre, COMDEC de Porto Velho e Rio Branco, entre outros órgãos. Semanalmente, eles recebem as informações, com dados de meteorologia captados de satélites e de hidrologia utilizando informações do Serviço Geológico do Brasil (CPRM) e da Agência Nacional de Águas (ANA).

A expectativa é de redução no volume de chuvas em abril, porém, a área da bacia está saturada, mantendo o nível do rio elevado, principalmente, nas cabeceiras dos Rios Beni, Madre de Dios, Mamoré e Guaporé.  “Em função disso, o solo não consegue absorver o volume de água”, acrescenta o meteorologista do Sipam Marcelo Gama.  Ele complementa que o mês de abril ainda é um mês chuvoso na porção sul da Amazônia Ocidental, sendo maio um mês de transição e só em junho é que tem início ao período de seca.

As informações de chuvas na bacia são monitoradas, por meio dos insumos dos satélites GOES, NOAA, oriundos do sistema de recepção do Censipam e os registros de chuva estimados pelo satélite TRMM, da NASA, os quais são aplicados ao modelo hidrológico de correlação múltipla de chuva vazão, para as bacias dos principais formadores do Madeira: Beni (incluindo o Rio Madre de Dios), Mamoré e Guaporé, desenvolvidos pelo Centro Regional do Sipam em Porto Velho. Para complementar as informações, são utilizados os prognósticos de precipitação gerados pelo modelo Brams do Sipam, relacionados ao comportamento das chuvas nos próximos três dias. Os dados gerados são processados no modelo hidrológico de chuva-vazão, possibilitando estimar a cota futura de inundação para um, cinco e dez dias.

Além das informações repassadas diariamente, o CRPV/Sipam ofereceu apoio de infraestrutura física e tecnológica e abrigou a sala de situação para gerenciamento da crise pela Defesa Civil. “Trabalhamos de forma conjunta para repassar com brevidade os dados à Defesa Civil. Nosso trabalho tem sido preponderante para os órgãos envolvidos na enchente do rio Madeira”, ressalta o gerente do Centro Regional de Porto Velho, José Neumar da Silveira.

O trabalho colaborativo reflete em ações benéficas para a sociedade. “A precisão e alto nível de qualidade dos dados do Sipam são fundamentais para o desenvolvimento de atividades e para definir a linha de atuação da Defesa Civil e órgãos parceiros”, afirma o coordenador estadual de Defesa Civil e comandante geral de Corpo de Bombeiro de Rondônia, Coronel Caetano.”

 

Fonte: http://www.sipam.gov.br/noticias/rio-madeira-atinge-o-maior-nivel-registrado-nos-ultimos-17-anos

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A HIDROVIA DO RIO MADEIRA

Rio Madeira

Com aproximadamente 1.086 km de águas navegáveis, o rio Madeira forma a segunda mais importante hidrovia da bacia Amazônica, só ficando atrás do poderoso rio Amazonas. A navegação pela intrincada rede de rios ganhou importância a partir da segunda metade do século XIX, quando toda a região da Floresta Amazônia foi transformada na grande “mina”, onde milhares de homens se embrenhavam nas matas em busca do “ouro branco” da floresta: o látex. O rio Madeira passou então a ocupar uma posição de destaque, se transformando na principal via de comunicação e transporte com o Sudeste da Amazônia e região do Território do Guaporé. 

Passado mais de um século da derrocada do Ciclo da Borracha, quando a exploração e produção do látex na região é bastante insignificante, o rio Madeira continua sendo a mais importante via de transportes (senão a única) entre Porto Velho e Manaus. Aqui vale ressaltar que a rodovia BR-319, que fazia a ligação entre Porto Velho e Manaus, está intransitável e com vários trechos interrompidos há muitos anos. De todo o trecho navegável do rio Madeira, somente as populações das cidades de Porto Velho, no Estado de Rondônia, e de Humaitá, no Amazonas, possuem acesso ao transporte rodoviário – todos os demais habitantes dependem exclusivamente do Madeira para o transporte de cargas e de pessoas. 

O rio Madeira tem uma largura que varia entre 440 metros e 10 km, com uma declividade de apenas 1,7 cm e um percurso de águas totalmente livres, sem barragens ou qualquer outro obstáculo para a navegação. A profundidade oscila bastante em função das mudanças entre o período das chuvas, que vai de julho a outubro, e da seca, que vai de fevereiro a maio, podendo chegar aos 18 metros. O rio é navegável durante todo o ano, permitindo o tráfego de comboios de barcaças de carga com até 18 mil toneladas. 

Rondônia é um Estado de fronteira, que está geograficamente deslocado em relação aos grandes centros habitacionais dos país. As maiores cidades no entorno de Porto Velho, a capital do Estado, são Manaus, distante cerca de 900 km e com acesso exclusivamente fluvial ou aéreo, e Cuiabá, distante cerca de 1.450 km. Os grandes núcleos habitacionais  do país como Belo Horizonte e São Paulo estão a mais de 3 mil km de distância. A saída oceânica direta, se considerarmos a BR-230, Rodovia Transamazônica, uma via transitável, é o porto da cidade de Belém do Pará, a mais de 2.550 km de distância. Esse isolamento geográfico cria uma série de problemas tanto para o escoamento da produção local, quando para a importação de produtos de consumo para a população: o custo do frete encarece tudo. Entre os anos de 2009 e 2010, quando morei na cidade de Porto Velho em função do meu trabalho nas obras do sistema de esgoto da cidade, eu simplesmente ficava assustado com o preço dos produtos a cada vez que ia ao supermercado. 

A principal via de ligação do Estado de Rondônia com o restante do país é a Rodovia Federal BR-364, que sai de Cuiabá, capital do Estado de Mato Grosso, e vai até a cidade de Rio Branco, no Acre, atravessando todo o Estado de Rondônia. No total, Rondônia conta com mais de 7,2 mil km de estradas de rodagem, entre vias federais e estaduais, todos convergindo facilmente na direção de Porto Velho. Essa situação transformou o modal de transportes de navegação fluvial no rio Madeira numa importante opção ao caro e poluente transporte rodoviário. 

Os principais produtos agrícolas “exportados” por Rondônia pela Hidrovia do rio Madeira são soja, cacau, café, milho, arroz, feijão e mandioca. O Estado também é o caminho de passagem de parte da produção de grãos de Mato Grosso, levada por via rodoviária até Porto Velho, para transporte pelo rio Madeira até os portos de Manaus e Itacoatiara. A pauta de produtos inclui, além da soja e do milho, produtos do complexo da soja como o farelo, a casquinha e o óleo de soja. Completam a lista contêineres de produtos, açúcar e veículos, que sem a opção de rodovias, seguem nas embarcações até as grandes cidades do Estado do Amazonas. Na viagem de volta (subindo o rio Madeira), as embarcações trazem produtos de consumo, gás natural, gasolina e óleo diesel, matérias primas, veículos, e todos os demais produtos e equipamentos utilizados pelas empresas instaladas em Rondônia

A cidade de Porto Velho conta com um terminal graneleiro, construído em 1995 com o objetivo de dinamizar os embarques na cidade. Em apenas dois anos de operação, o terminal atingiu a plena capacidade de operação, sendo responsável por quase 90% de todos os embarques da Hidrovia do rio Madeira. O restante dos embarques e desembarques é feito nos portos fluviais da cidade que, até a minha última visita em 2010, eram extremamente precários e sem uma infraestrutura à altura da importância da navegação fluvial no rio Madeira. 

Os comboios de barcaças de carga autorizados a navegar no rio Madeira são compostos por até 20 barcaças de 2 mil toneladas cada e um rebocador/empurrador, com o comprimento máximo limitado a 270 metros, 55 metros de largura e calado de 3,6 metros. Nos períodos de seca intensa, os comboios de carga são limitados a 9 barcaças por razões de segurança. O principal porto de destino das cargas é o de Itacoatiara no rio Amazonas, que tem capacidade para atender até 40 comboios por semana. O porto tem capacidade para receber navios entre 40 mil e 60 mil toneladas e está localizado a pouco mais de 1.100 km das águas do Oceano Atlântico. Os portos de Manaus, capital do Estado do Amazonas, e de Santarém, no Estado do Pará, são outros destinos importantes para as cargas transportadas pela Hidrovia do rio Madeira. O volume total de cargas transportadas na Hidrovia é superior a 4 milhões de toneladas anos, sendo que as cargas de soja correspondem a 55% deste total. 

Conforme comentamos em postagem anterior, a Hidrovia do Rio Madeira tem um grande potencial de crescimento, especialmente se for integrada à Hidrovia Guaporé-Mamoré. Essa Hidrovia permitiria que parte das cargas que são transportadas hoje por via rodoviária, desde regiões de Mato Grosso e Rondônia, passem a ser transportadas por via fluvial nos rios Guaporé e Mamoré. O incremento desta Hidrovia poderá, inclusive, atender ao transporte de cargas de grãos e de outros produtos desde regiões do interior da Bolívia. O grande “nó” logístico atual é a interligação entre as cidades de Guajará-Mirim e Porto Velho, que até décadas passadas era feito através de Ferrovia Madeira-Mamoré – não custa lembrar que essa Ferrovia é hoje uma simples lembrança e, simplesmente, precisaria ser reconstruída. 

O Brasil é um país privilegiado por grandes extensões de águas navegáveis em seus rios, especialmente na região da Bacia Amazônica. Diferentemente de outros países, que foram abrigados a cavar canais de navegação com centenas de quilômetros (lembro o exemplo do Canal do Midi, na França, que foi concluído em 1.666), nossas hidrovias precisam, basicamente, de instalações portuárias, sinalização e, em alguns casos, de barragens com eclusas. A Hidrovia do rio Madeira, que é uma das mais privilegiadas que temos, só precisa de melhor infraestrutura portuária e de cargas, cada vez mais cargas. 

O LÁTEX E UM CERTO PORTO VELHO

Soldados da Borracha

O látex começou a ser utilizado por indústrias do segmento de confecção ainda no século XVIII, quando era pulverizado sobre capas de chuva com o objetivo de criar uma camada impermeável, que funcionava perfeitamente nos dias de chuva. Em dias de extremo calor, porém, a camada impermeável se tornava grudenta e em dias muito frios ela endurecia e se tornava quebradiça. Outros produtos da época feitos à base do látex apresentavam os mesmos problemas. 

Em 1839, o inventor americano Charles Goodyear, depois de inúmeros experimentos, desenvolveu o processo da vulcanização, onde uma mistura de látex e enxofre era submetida a pressão e calor, permitindo a modelagem das peças de borracha e tornando-as resistentes ao calor e ao frio. Após a invenção deste processo, as aplicações industriais e o consumo do látex no mundo explodiram. A borracha passou a ser a matéria prima de uma série de produtos inovadores: correias para máquinas, sapatos, luvas, chapéus, roupas impermeáveis, flutuadores, bandas de rodagem para rodas de carroças (mais tarde substituídas por rodas com pneus), mangueiras, entre outros produtos. Nas últimas décadas do século XIX, com o uso cada vez maior da eletricidade, peças isolantes à base de borracha ganharam enorme importância no mercado mundial. 

O látex é uma seiva natural produzida por várias espécies de árvores e plantas, com destaque para a seringueira (Hevea brasiliensis), uma espécie nativa da Floresta Amazônica. Detentor de uma parte considerável dessa Floresta, o Brasil rapidamente despontou como o maior produtor mundial de látex. Entre os anos de 1870 e 1920, as exportações de látex respondiam por 25% das exportações brasileiras, só perdendo para o café. A forte demanda da matéria prima e a escalada internacional dos preços levaram a uma busca pelos seringais localizados em áreas cada vez mais isoladas da Floresta Amazônica. Na intrincada rede fluvial da bacia Amazônica, o rio Madeira começou a ganhar destaque pela facilidade de acesso à cidade de Manaus, que era uma das capitais da borracha ao lado de Belém. A foz do Madeira no rio Amazonas fica bem próxima da cidade de Manaus, o que favorecia tanto o transporte das pélas de látex (bolas sólidas de látex defumado) para o porto da cidade, assim como a vinda de embarcações com alimentos, roupas, remédios, ferramentas e demais suprimentos na direção das inúmeras fazendas espalhadas ao longo das margens do rio. 

Com o objetivo de dinamizar ainda mais as exportações do látex da Amazônia, o Imperador Dom Pedro II assinou, em 1873, um decreto autorizando o tráfego de navios mercantes de todas as nações no rio Madeira. Além das preocupações com o látex, essa medida visava atender às demandas das empresas estrangeiras que estavam envolvidas com a construção de uma estrada de ferro na região do alto rio Madeira. O Governo Imperial do Brasil e a Bolívia haviam assinado em 1867, o Tratado de Ayacucho, que estabelecia oficialmente a fronteira entre os dois países. Pelo Tratado, a Bolívia teve de fazer algumas concessões territoriais ao Brasil – em contrapartida, o Governo Imperial se comprometeu a construir uma estrada de ferro ligando o rio Mamoré, na divisa com a Bolívia, ao trecho navegável do rio Madeira, criando assim uma via de transporte para a produção do látex daquele país. Para atender as necessidades logísticas de embarque e desembarque de cargas, foram construídas instalações portuárias na Vila de Santo Antônio no alto rio Madeira, nas proximidades de uma cachoeira – essas instalações eram chamadas de Porto Novo

Entre 1872 e 1878, foram feitas duas tentativas para a construção da ferrovia por empresas estrangeiras, ambas frustradas por epidemias de doenças tropicais, especialmente a malária. As obras só seriam retomadas em 1907, quando uma empresa americana, a Madeira Mamoré Railway Company, capitaneada pelo megaempresário Percival Farquhar, assumiu os trabalhos. Insatisfeitos com as condições do porto local, os dirigentes da empresa optaram pela construção de novas instalações num ponto do rio, alguns quilômetros abaixo, num local conhecido como Porto Velho – essas instalações se transformariam no embrião da futura capital do Estado de Rondônia. Após cinco anos de obras e de inúmeros percalços, entre os quais a morte de milhares de trabalhadores vitimados por  doenças (oficialmente, foram 6 mil mortes), a Ferrovia Madeira-Mamoré, com 366 quilômetros de extensão, começou a operar entre as cidades de Porto Velho e Guajará-Mirim em 1912. Além de transportar cargas da Bolívia, a Ferrovia atendia também os produtores de látex do vale do rio Guaporé

Para infelicidade dos produtores brasileiros, o látex produzido na Malásia e no Ceilão começou a ser colocado no mercado internacional em grandes volumes a partir de 1913, derrubando as cotações do produto e causando fortes perdas econômicas. Nas últimas décadas do século XIX, empresários ingleses haviam contrabandeado milhares de sementes de seringueiras e formado plantações no Sudeste asiático. Essa queda de preços desestimulou cada vez mais a produção do látex no Brasil – a atividade só voltaria a ganhar importância a partir de 1939, com a eclosão da Segunda Guerra Mundial. 

A Segunda Guerra Mundial, conflito que se desenrolou entre 1939 e 1945, colocou as potencias do Eixo, formado por Alemanha, Itália e Japão, contra o resto do mundo. Em 1942, o expansionismo imperial do Japão na Ásia levou à invasão de grandes países produtores de látex: Ceilão, Malásia, Birmânia, Filipinas, Bornéo e Cingapura. A partir desses eventos, o látex brasileiro voltou a ser uma matéria prima estratégica para os países aliados como os Estados Unidos, Inglaterra e França. Dentro do esforço de guerra, o Governo brasileiro recrutou os chamados Soldados da Borracha (vide fotos), na sua maior parte formado por nordestinos, para se embrenhar nas matas da Amazônia e extrair o látex, da mesma forma que antigas gerações de seringueiros, também migrantes nordestinos, haviam feito décadas atrás.

Esses Soldados da Borracha, cujo número é calculado em 55 mil homens, receberam inúmeras promessas de prêmios e compensações pela difícil tarefa que tinham pela frente – em 1945, com o fim do conflito e a regularização do fornecimento de látex pela região do Sudeste asiático, tanto os Soldados da Borracha quanto as promessas foram esquecidos nos confins da floresta

A região do Território do Guaporé, que na década de 1980 seria transformada no Estado de Rondônia, só voltaria a receber atenção do Governo Federal a partir do final da década de 1950, quando foram iniciados diversos programas de colonização agrária nas regiões desabitadas do interior do Brasil. Um destes programas, que tinha como lema “Uma terra sem homens para homens sem-terra“, buscava estimular a migração de famílias de trabalhadores rurais para a região Amazônica. Inicialmente, esses programas levaram milhares de famílias para o então grande Estado de Mato Grosso, que depois foi dividido em Mato Grosso e Mato Grosso do Sul. Depois, com a construção da rodovia BR-364, que ligou as cidades de Cuiabá, no Mato Grosso, a Porto Velho, em Rondônia, e Rio Branco, no Acre, milhares de famílias, especialmente da região Sul, migraram para os Estados de Rondônia e Acre. 

Nesses novos tempos, o rio Madeira voltou a ganhar importância. Ao invés das antigas cargas de pélas de látex, a grande demanda atual é o transporte das safras de grãos das novas frentes agrícolas criadas em Mato Grosso, Rondônia e Acre. 

Falaremos destas cargas em nossa próxima postagem. 

O “DESCONHECIDO” RIO GUAPORÉ

Forte Principe da Beira

Com mais de 1.500 km de extensão, o rio Guaporé nasce na Serra dos Parecis, no Estado de Mato Grosso, e corre, no sentido Norte, definindo a fronteira entre o Brasil e a Bolívia até atingir sua foz no rio Mamoré. Apesar do porte majestoso e da sua importância regional, o rio Guaporé é um ilustre desconhecido no resto do Brasil. Uma exceção a esta regra são os praticantes da pesca, que consideram o rio Guaporé como um dos melhores destinos turísticos para estes esportistas. 

Localizado, literalmente, nos confins do Brasil, o rio Guaporé foi mapeado pela primeira vez pela expedição do bandeirante Antônio Raposo Tavares, que entre 1648 e 1651, percorreu cerca de 10 mil km, saindo primeiro de São Paulo em direção ao Mato Grosso, atingindo depois as faldas da Cordilheira dos Andes no então Vice Reino do Peru, depois descendo em jangadas diversos rios da bacia do rio Amazonas, incluindo-se na lista os rios Guaporé, Mamoré, Madeira e Amazonas, até chegar na cidade de Belém do Pará. Essa grande expedição, ao que tudo indica, atendeu aos interesses geopolíticos de Portugal: Raposo Tavares havia viajado para Lisboa em 1647, onde foi encarregado de organizar esta missão exploratória dentro dos limites do território da Espanha, definidos pelo tratado de Tordesillas. Essa expedição, que ficou conhecida como a Bandeira dos Limites, foi fundamental para a consolidação atual do território brasileiro. 

Devido ao isolamento geográfico, o rio Guaporé ficou por muito tempo esquecido pelas autoridades da Colônia, especialmente por estar localizado dentro do território espanhol. Conforme já comentamos em postagem anterior, em 1494 foi assinado um tratado entre os Reinos de Portugal e Espanha que dividiu as terras recém descobertas no continente americano. O Tratado de Tordesillas criou um meridiano que atravessava o território brasileiro de Norte a Sul, tendo como referências as cidades de Belém do Pará, ao Norte, e Florianópolis, ao Sul. Pelo Tratado, praticamente toda a região Centro-Oeste e Norte faziam parte do território espanhol. Tratados posteriores como o de Madrid, assinado em 1750, e de Santo Ildefonso, assinado em 1777, redefiniram os antigos limites e o território do Brasil chegou, praticamente, ao tamanho atual. 

A primeira iniciativa de ocupação feita pelo Governo Colonial para o povoamento da região do rio Guaporé se deu em 1776, quando foi ordenada a construção do Real Forte Príncipe da Beira (vide foto). E esse súbito interesse não foi à toa: foram descobertas reservas de ouro ao longo do rio Guaporé e os administradores da Colônia, que viviam o auge da mineração de ouro na Região das Geraes, preferiram não correr riscos. As descobertas de ouro nesta região, porém, não foram as mais promissoras. O interesse pelo Guaporé só viria a ser reavivado na segunda metade do século XIX, durante o chamado Ciclo da Borracha, quando toda a produção local de látex era transportada através deste rio até a Guajará-Mirim e depois até Porto Velho, e dali transportada até Manaus pelo rio Madeira. Essa logística de transportes foi facilitada com a conclusão das obras da Ferrovia Madeira-Mamoré em 1912, praticamente no final do Ciclo da Borracha. Com a decadência da exploração do látex, a região do Rio Guaporé voltaria a um relativo isolamento. Em meados do século XX, após inúmeros projetos de colonização e de desenvolvimento agrário no Mato Grosso e em Rondônia, o rio Guaporé foi redescoberto. 

A primeira iniciativa para navegação no rio Guaporé coube à Guaporé Rubber Company, uma empresa de capital norte americano, criada para explorar o látex na Amazônia. A empresa recebeu autorização do Governo Federal para instalação na região em 1912. Foi somente em 1917, após a eclosão da Primeira Guerra Mundial (1914-1918), que a empresa iniciou suas operações. A região Amazônica teve seus dias de glória entre 1850 e 1912, período em que foi a maior produtora e exportadora de látex do mundo. Esse apogeu ruiu no início do século XX com o início da produção de látex no Sudeste asiático. Sementes de seringueira foram contrabandeadas pelos ingleses em fins do século XIX e levadas para a Malásia, onde foram criadas grandes plantações e o látex passou a ser produzido em escala industrial, concorrendo com grande vantagem com a produção da Amazônia. Com o início da Grande Guerra, as autoridades americanas temiam a tomada das áreas produtoras na Malásia por alemães ou algum dos seus aliados e, por causa disto, tornaram a voltar suas atenções para o látex da região da Amazônia. 

A fim de escoar a sua produção, a Guaporé Rubber Company se associou com empresários locais e criou uma empresa de navegação, que cobria toda a área do rio Guaporé até a cidade de Guajará-Mirim, onde as cargas eram transferidas para a Ferrovia Madeira-Mamoré e transportadas até Porto Velho, de onde seguiam em barcas para Manaus. A empresa estendeu os serviços de navegação para o transporte de passageiros, atendendo populações das áreas ribeirinhas e ilhas do rio Guaporé. Em 1943, todos os serviços de navegação foram transferidos para o Governo Federal, sendo criada a Guaporé Serviços de Navegação. Com a criação do Estado de Rondônia em 1982, a empresa foi transferida para o Governo local e passou a ser chamada de Empresa de Navegação de Rondônia. Poucos anos depois, a empresa acabou falindo. 

O rio Guaporé é navegável desde Vila Bela da Santíssima Trindade, no Estado de Mato Grosso, até Guajará-Mirim, em Rondônia, num trecho total de 1.175 km. O rio Mamoré, onde o Guaporé faz sua foz, é navegável por um trecho de cerca de 400 km, o que permite a criação de uma hidrovia com mais de 1.500 km de águas navegáveis – a Hidrovia Guaporé-Mamoré. A partir da cidade de Guajará-Mirim, o rio Madeira, formado pela junção das águas dos rios Beni, Mamoré e Guaporé, tem um longo trecho com afloramentos rochosos, cachoeiras e corredeiras, o que impede a navegação. É justamente aqui que a antiga Ferrovia Madeira-Mamoré começa a fazer falta. 

Conforme apresentamos na postagem anterior, a Ferrovia Madeira-Mamoré fazia a ligação por terra entre as cidades de Porto Velho e Guajará-Mirim, uma vez que a navegação no trecho inicial do rio Madeira não era possível. Inaugurada em 1912, a ferrovia funcionou até os primeiros anos da década de 1980, quando teve as atividades encerradas. Diferente de outras ferrovias brasileiras, que conseguiram manter seu patrimônio mesmo após o encerramento das atividades, os trilhos e praticamente todo o patrimônio da Ferrovia Madeira-Mamoré foi dilapidado e depredado pela população – o pouco que sobrou, está enferrujando no meio da mata. Para operar novamente, os cerca de 370 km de trilhos da antiga Ferrovia e todas as suas instalações precisariam ser reconstruídos, além de ser necessária a compra de novas locomotivas e vagões. 

Com a transformação do Brasil numa das grandes potências agrícolas do mundo e tendo o Estado de Mato Grosso na primeira posição na produção de grãos, todas as alternativas possíveis para o escoamento dessa produção devem ser buscadas – transportes rodoviários, ferroviários e hidroviários. O rio Guaporé, com águas navegáveis correndo ao lado de grandes áreas produtoras de grãos em Mato Grosso e em Rondônia, proporciona um potencial de navegação para o transporte de cargas nada desprezível, potencial este que pode ser estendido para áreas produtoras na Bolívia. 

Talvez, pensar em se reconstruir a Ferrovia Madeira-Mamoré para integrar os transportes entre as Hidrovias dos rios Guaporé-Mamoré e Madeira, não seja uma má ideia e sim um bom negócio.

A NAVEGAÇÃO NO RIO MADEIRA E A CONSTRUÇÃO DA FERROVIA MADEIRA-MAMORÉ

Ferrovia Madeira-Mamoré

A bacia hidrográfica do Rio Amazonas é a maior do mundo, abrangendo uma área de mais de 7 milhões de km², sendo a responsável por 1/5 do fluxo total de água doce do planeta. Abrange áreas do Peru, Bolívia, Equador, Colômbia, Venezuela, Guiana, Guiana Francesa e Suriname. No Brasil, a bacia Amazônica ocupa uma área de aproximadamente 4 milhões de km², abrangendo os Estados do Acre, Rondônia. Amazonas, Roraima, Amapá, Pará e Mato Grosso. A bacia hidrográfica dos rios Tocantins e Araguaia está contida na área de abrangência da bacia Amazônica (a foz do rio Tocantins fica na região da Ilha do Marajó, no delta do rio Amazonas), o que inclui na lista os Estados de Goiás, Tocantins e parte do Maranhão. No total, o rio Amazonas tem mais de 7 mil afluentes, onde existem cerca de 25 mil quilômetros de águas navegáveis – há bastante assunto para se falar. Vamos começar tratando da Hidrovia do rio Madeira. 

O rio Madeira é um dos principais afluentes do rio Amazonas, com uma extensão total de 3.315 km, o que o coloca na lista dos mais maiores rios do mundo. O rio Beni é o mais extenso formador do rio Madeira, com nascentes no alto da Cordilheira do Andes na Bolívia. Depois de atravessar um longo trecho do país vizinho, o rio Beni se encontra com os rios Mamoré e Guaporé, formando o rio Madeira na divisa do Brasil e da Bolívia.  

O trecho inicial do rio Madeira apresenta inúmeros afloramentos rochosos, fortes corredeiras e quedas d’água, o que sempre foi um obstáculo para a navegação.  O trecho navegável do rio Madeira começa na cidade de Porto Velho e vai até a foz no rio Amazonas, numa extensão total de 1.086 km

A dificuldade de navegação no trecho inicial do rio Madeira foi a principal responsável pela construção da famosa Ferrovia Madeira-Mamoré, um evento que marcou a história do Brasil e que é fundamental para se entender a história dos atuais Estados de Rondônia e do Acre, que nasceram e foram povoados durante o chamado Ciclo da Borracha a partir de meados do século XIX. 

látex é uma seiva natural produzida pela seringueira ou árvore-da-borracha (Hevea brasiliensis), uma espécie típica da Floresta Amazônica, sendo um produto conhecido e utilizado pelos índios da região a milhares de anos. Em 1839, o inventor americano Charles Goodyear desenvolveu o processo conhecido como vulcanização, onde calor e pressão são aplicados em um composto a base de látex natural, que se transforma na borracha, um produto com inúmeras aplicações industriais. Essa invenção criou um gigantesco mercado para o látex – como detentor da maior reserva natural de seringueiras do mundo, o Brasil rapidamente passou a monopolizar a produção e exportação do produto, fazendo a fortuna de muita gente. 

A busca pelos seringais e a exploração do látex levou à criação de uma estrutura semi escravocrata de exploração do trabalho por todos os confins da Amazônia e à ascensão de uma nova classe social – os Senhores da Borracha. Os seringueiros, os profissionais responsáveis pela exploração do látex e pré-processamento do produto na forma de pélas, eram recrutados entre os flagelados das inúmeras secas da região Nordeste. Os seringueiros e suas famílias eram enviados para o meio da floresta, onde eram obrigados a produzir grandes cotas de pélas em troca de comida e outros suprimentos. Foi assim que se iniciou o povoamento do Território do Guaporé, nome depois mudado para Rondônia, e do Acre, uma região que o Governo Imperial do Brasil reconheceu como pertencente à Bolívia desde a assinatura do Tratado de Ayacucho em 1867.  

A invasão de seringueiros brasileiros na região Acre não tardou a provocar um forte conflito com as autoridades bolivianas, que frequentemente organizavam expedições armadas para expulsar os invasores. A situação atingiu um ponto crítico em 1901, quando os revoltados seringueiros proclamaram a Independência do Acre. A fim de se evitar o agravamento da situação, foram organizadas reuniões de alto nível entre os Governos do Brasil e da Bolívia. Depois de muita negociação, em 1903 o Brasil assinou um acordo com a Bolívia, o Tratado de Petrópolis, que estabeleceu o pagamento de uma indenização de 2 milhões de libras esterlinas em troca do território do Acre, a sessão de uma faixa de terras na fronteira do Estado de Mato Grosso ao país vizinho e, por fim, que o Brasil bancaria a construção de uma ferrovia com aproximadamente 370 km, ligando a cidade de Porto Velho a Guajará-Mirim, criando assim um corredor para a exportação do látex produzido pela Bolívia

A construção da Ferrovia Madeira-Mamoré estendeu-se de 1907 a 1912, lembrando que entre 1872 e 1878 já haviam sido feitas duas tentativas para a construção da ferrovia, obra prometida pelo Brasil e que figurava como parte importante do Tratado de Ayacucho. Doenças tropicais como a malária, o tifo e o beribéri atacavam os trabalhadores e impediam o avanço das obras. De acordo com dados oficiais, perto de 6 mil trabalhadores morreram apenas nos últimos 5 anos das obras, o que rendeu o título nada honroso de “ferrovia da morte”

Os trens (vide foto) circularam sem interrupção na Ferrovia Madeira-Mamoré entre 1912 e 1972, quando um decreto presidencial iniciou o processo de extinção da ferrovia. Em 2009, conforme já comentei em postagem anterior, fui transferido para uma obra do sistema de esgotos da cidade de Porto Velho e fiquei assustado com o grau de degradação da ferrovia – dos antigos 366 km de trilhos restou um trecho com menos de 20 km e apenas uma locomotiva a vapor em funcionamento. Os trilhos foram removidos pela população e transformados em mourões de cercas, suportes e vigamentos para telhados, colunas para reforço de construções entre outros usos; dezenas de locomotivas e vagões depenados jazem enferrujando no meio da mata. O antigo Governo Militar, que dirigiu nosso país entre 1964 e 1985, achou melhor construir uma rodovia paralela aos antigos trilhos – curiosamente, muitas das antigas pontes metálicas da ferrovia foram reformadas para uso pela nova rodovia. 

Locomotiva abandonada

O desmantelamento selvagem da Ferrovia Madeira-Mamoré, que por si só já foi um crime contra o patrimônio histórico, cultural e arquitetônico de Rondônia, foi uma espécie de “tiro no pé” – com o crescimento da produção agrícola na região Centro-Oeste, é cada vez maior o tráfego de carretas vindas do Estado de Mato Grosso trazendo grãos para embarque nos comboios de barcaças de carga no rio Madeira. Se ainda em operação, a Ferrovia Madeira-Mamoré ocuparia uma posição de destaque no Estado de Rondônia em nossos dias: a integração logística entre as Hidrovias dos rios Guaporé e Madeira. Para quem não conhece, o rio Guaporé nasce no Estado do Mato Grosso e segue até a confluência dos rios Beni e Mamoré em Rondônia, onde se forma o rio Madeira – são mais de 1.500 km de águas navegáveis, que tem grande potencial para complementar a navegação no rio Madeira. 

Vamos tratar deste assunto na nossa próxima postagem. 

AS USINAS HIDRELÉTRICAS DO RIO TOCANTINS

Lago UHE Estreito

Na última postagem falamos dos problemas ambientais do rio Araguaia, que, entre outros males, sofre com a redução sistemática dos caudais e intenso assoreamento de sua calha. O avanço da agricultura e a destruição de extensas áreas de vegetação de Cerrado estão na origem dos problemas, que também atingem em cheio o rio Tocantins. Felizmente, o rio Araguaia não teve sua situação piorada pela construção de usinas hidrelétricas. Estudos técnicos feitos na bacia hidrográfica do rio Araguaia indicavam um potencial de geração hidrelétrica de 3.1 megawatts e havia a previsão para a construção de três usinas hidrelétricas: Santa Isabel, Torixoréu e Couto Magalhães. Para  a sorte do rio, Governo Federal acabou desistindo desses projetos

No rio Tocantins, ao contrário, foram construídos vários complexos hidrelétricos, transformando o rio numa sucessão de represas, o que deu uma dimensão diferente aos problemas. A primeira usina hidrelétrica do rio Tocantins foi Tucuruí, concluída em 1984 e causadora de inúmeros problemas ambientais e sociais, sobre os quais falamos em postagem anterior. Em 1998, foi concluída a Usina Hidrelétrica de Serra Mesa, que formou um dos maiores espelhos d’água do Brasil; em 2002 foram finalizadas as Usinas de Cana Brava e Luís Eduardo de Magalhães; em 2006 foi a vez da Usina de Peixe Angical e em 2009 as Usinas de Estreito e São Salvador.  

A construção de uma usina hidrelétrica em rio cria uma série de problemas para os seres vivos que vivem nas suas águas e para as pessoas que moram nas áreas ribeirinhas. Vamos nos ater inicialmente a dois destes problemas: a barragem cria um obstáculo para a migração dos peixes no período da piracema e também altera o ambiente natural das águas, que passa a ser chamado de lêntico, ou de águas paradas. Estes dois problemas somados podem alterar completamente as características das águas e afetar profundamente a vida de todas as criaturas aquáticas. 

A piracema é um fenômeno natural que ocorre todos os anos nos rios, quando diversas espécies de peixes nadam correnteza acima, buscando as áreas tranquilas das nascentes ou de lagoas marginais para procriar. A palavra piracema na língua dos índios tupi significa, literalmente, a “subida dos peixes”. Algumas estimativas sugerem que cerca de 80% de todas as espécies de peixes de água doce sejam reofílicas, ou seja, são espécies que precisam nadar contra a correnteza, com diferentes graus de dificuldade, para amadurecer sexualmente e conseguir se reproduzir. Essa migração pode ser de alguns quilômetros rio acima até uma lagoa marginal com águas tranquilas, ou de milhares de quilômetros até as nascentes de um determinado rio. Os filhotes desses peixes, chamados de alevinos, precisam da tranquilidade e proteção das águas calmas para crescer até um tamanho que lhes permita sobreviver nas águas mais profundas e turbulentas do rio.  

Um dos peixes migratórios mais famosos do mundo é o salmão, que na sua fase adulta vive nas águas dos oceanos. Quando atingem uma certa idade, esses peixes, instintivamente, nadam milhares de quilômetros de volta até as cabeceiras dos rios em que nasceram para se reproduzir. No Brasil, entre as espécies de piracema destaca-se o dourado (Salminus maxillosus), uma espécie similar ao salmão, encontrada nas Bacias dos rios Paraná, São Francisco, Doce e do Paraíba do Sul. Chamado por muitos de “rei do rio”, o dourado pode atingir até um metro de comprimento e 25 kg de peso. Esses peixes têm um corpo musculoso, adaptado para vencer fortes corredeiras, os chamados ambientes lóticos ou de águas correntes rápidas, além de possuírem órgãos sensoriais que os levam a nadar contra a força da correnteza do rio. A construção de inúmeras barragens nestas bacias hidrográficas afetou dramaticamente as populações de dourados – a espécie praticamente desapareceu desses rios.  

Nos rios Tocantins e Araguaia são exemplos de peixes de piracema o jaú, pirarucu, matrinxã, pacu-prata, cachara e mandi. Essas espécies estão correndo sérios riscos devido aos sucessivos obstáculos criados pelas barragens construídas no rio. Mesmo que tenham ajuda humana para vencer os obstáculos criados pelas barragens das usinas, os peixes de piracema sofrem com a falta de orientação sensorial em ambientes de águas paradas, os chamados ambientes lênticos. Dependendo do tamanho e da extensão dos lagos das represas hidrelétricas, os peixes de piracema podem não conseguir prosseguir com sua jornada de migração. Um exemplo dessa dificuldade é o lago da Usina Hidrelétrica de Estreito, construída entre os Estados de Tocantins e do Maranhão, que tem 300 km de extensão e largura de até 5 km, o que alterou profundamente as características originais das águas do rio. 

A Usina Hidrelétrica de Estreito começou a ser construída em 2002 e teve suas comportas fechadas em 2009, formando um lago com aproximadamente 550 km², que encobriu terras ribeirinhas de 12 municípios, sendo 2 no Estado do Maranhão e 10 em Tocantins. Calcula-se que cerca de 2 mil famílias tiveram de ser transferidas para outras terras – muitas famílias reclamam até hoje da qualidade dessas terras, que são muito arenosas e apresentam uma baixa fertilidade. Assim como aconteceu na Usina Hidrelétrica de Tucuruí, grandes extensões de mata não foram cortadas e as águas da represa de Estreito encobriram inúmeras árvores vivas (vide foto). Conforme já comentamos, essas árvores submersas começam a apodrecer e deixam as águas ácidas e anôxicas (com baixos níveis de oxigênio), o que compromete a sua qualidade e impede a sobrevivência de peixes e de outros seres aquáticos. 

Um outro fato que chama bastante a atenção na barragem da Usina de Estreito é que não foi incluída no projeto a construção de uma “escada para peixes” ou de qualquer outro dispositivo que permitisse a migração na época da piracema. Informações fornecidas pela empresa responsável pela operação da Usina dão conta que, desde o final da construção da represa em 2009, estão sendo estudadas alternativas técnicas para permitir que os peixes subam o rio nos períodos de piracema. Esses quase dez anos dedicados a “esses estudos” é tempo mais do que suficiente para levar à extinção de inúmeras espécies de peixes, ao mesmo tempo que pode favorecer o crescimento descontrolado de populações de outras espécies próprias de ambientes lênticos, alterando completamente o equilíbrio ecológico de todas as espécies aquáticas. A exceção da Usina Hidrelétrica de Peixe Angical, que foi dotada de uma “escada para peixes” desde a sua construção, todas as demais usinas hidrelétricas construídas no rio Tocantins se transformaram em barreiras para a migração dos peixes. 

Outra decisão, quase inacreditável, foi a autorização da construção dessa série de usinas hidrelétricas sem a previsão imediata de eclusas, dispositivos que possibilitam a passagem de embarcações através das barragens, permitindo o transporte de cargas pelo rio. Na barragem da Usina Hidrelétrica de Tucuruí, conforme comentamos em postagem anterior, a construção posterior do sistema de eclusas, que entre atrasos nas obras e problemas de gestão, custou R$ 1,6 bilhão. Para efeito de comparação, esse custo equivale a 1/3 do custo total da construção da Usina Hidrelétrica de Estreito, o que deixa evidente o preço que a falta de planejamento deste tipo de obra vai custar para a viabilização da Hidrovia Tocantins-Araguaia

O assoreamento intenso vivido pelas águas do Tocantins também cobrará seu preço nas represas de todas as hidrelétricas do rio, levando a uma redução substancial da vida útil das Usinas, que pouco a pouco terão a profundidade dos lagos reduzidas devido ao acúmulo constante de areia e outros sedimentos. 

Em resumo – o rio Tocantins foi transformado em um importante sistema gerador de energia elétrica, comprometendo a sobrevivência de inúmeras espécies de peixes e criaturas aquáticas, além de criar uma série de obstáculos para a navegação fluvial. Tudo isso somado ao forte assoreamento e à redução dos seus caudais.  

Isso não é exatamente o que se pode chamar de desenvolvimento sustentável. 

ARAGUAIA: UM RIO QUE AGONIZA LENTAMENTE

Rio Araguaia

Em novembro último, escrevi uma postagem aqui no blog com o título: Araguaia: um rio que poderá desaparecer em 40 anos. A catastrófica conclusão não é minha, mas sim de pesquisadores sérios, que vem acompanhando a situação do rio há muitos anos e que, baseados em metodologias científicas, constataram uma redução lenta e gradual dos caudais do rio. Isso quer dizer, literalmente, que se a trajetória de redução das águas continuar no atual ritmo, em 40 anos o leito do rio poderá ficar completamente seco. 

Lendo essa afirmação, você poderá achar difícil que um rio com mais de 2 mil km de extensão possa desaparecer assim meio que “de repente”. Isso é possível e já aconteceu inúmeras vezes em nosso planeta. Vou citar o exemplo do famoso rio Nilo, no Egito, berço de uma das mais impressionantes civilizações do mundo antigo. Até uns 10 mil anos atrás, o rio Nilo tinha um curso bem mais longo – ele virava para o Leste em um ponto do Alto Egito e atravessava todo o Norte da África, desaguando no Oceano Atlântico. As margens do rio Nilo de então eram repletas de matas e de vida. Uma drástica alteração na geologia do solo bloqueou o antigo curso e fez o rio mudar seu curso, que passou a seguir direto rumo ao Norte e a desaguar no Mar Mediterrâneo. Como consequência do desaparecimento do rio e de mudanças climáticas regionais surgiu o Saara, o maior deserto do mundo. Se o rio Araguaia vier a desaparecer, como dizem alguns estudos, as consequências ambientais não vão ficar muito distantes do que ocorreu com o Norte da África 

O rio Araguaia nasce na Serra do Caiapó, na divisa dos Estado de Goiás e Mato Grosso. Segue então rumo ao Norte, fazendo primeiro a divisa entre o Tocantins e Mato Grosso; depois entra no Pará e segue até desaguar no rio Tocantins, num curso de aproximadamente 2,1 mil quilômetros. O Araguaia já foi considerado um dos rios mais piscosos do mundo, atraindo praticantes da pesca esportiva de todos os cantos do Brasil e do exterior. Com a construção da Usina Hidrelétrica de Tucuruí no Sul do Estado do Pará, concluída em 1984 e que não foi projetada de forma a permitir a migração dos peixes de piracema nos períodos de desova, teve início um processo de declínio da ictiofauna no rio Tocantins e, consequentemente, no rio Araguaia, seu maior tributário. De rio sem peixe a rio sem água, foi um “pulo”. 

A redução sistemática dos caudais do rio, que na época da seca mais parece um córrego em muitas regiões, tem afetado a economia e a vida de inúmeras comunidades ribeirinhas, que retiravam seu sustento das águas durante o ano todo com a pesca, com o transporte fluvial de mercadorias e com o turismo. Agora, com o rio apresentando bons volumes de água apenas nos períodos das chuvas, essa população vive numa espécie de “trabalho em meio período”, o que não é bom para ninguém. 

Uma imagem muito comum nas margens do rio Araguaia, presentes também ao longo do rio Tocantins, são as gigantescas voçorocas criadas pelas chuvas, algumas alcançando mais de 70 metros de largura e 50 metros de profundidade. Essas formações resultam da forte erosão dos solos durante a época das chuvas e carreiam, a cada ano, milhões de toneladas de sedimentos para a calha do rio. A origem destas erosões está no manejo inadequado do solo, que teve sua vegetação original de Cerrado substituída por imensos campos agricultáveis de soja e milho. Apesar da aparência pobre acima da superfície, as espécies vegetais do Cerrado possuem sistemas de raízes extremamente complexas e profundas, que permitem a infiltração de porcentagens significativas das águas das chuvas em direção aos aquíferos subterrâneos, ao mesmo tempo que protegem o solo contra a erosão. Cultivares como o milho e a soja, ao contrário, possuem raízes muitos curtas, e facilitam a formação de fortes enxurradas e a erosão dos solos. 

Os solos do Cerrado sempre foram considerados muito pobres e extremamente ácidos para o cultivo em larga escala, característica que garantiu a sua conservação até décadas bem recentes. Com o desenvolvimento de técnicas agrícolas como a calagem, onde é feita a correção do solo a partir da aplicação de calcário, a adubação fosfatada e a adubação potássica, entre outras, o Cerrado se tornou altamente produtivo. O grande salto da agricultura na região se deu mesmo em 1980, quando foi lançada a soja Doko. Resultado de mais de 10 anos de trabalhos de pesquisa e cruzamento de milhares de variedades de soja, a Doko se adaptou perfeitamente ao solo e ao clima do Cerrado. Em poucas décadas, surgiram imensos campos de cultivo da variedade em áreas do Cerrado nos Estados de Goiás, Tocantins, Minas Gerais, Mato Grosso e Mato Grosso do Sul; em anos mais recentes, a cultura se expandiu para a região Oeste da Bahia e em partes do Piauí e do Maranhão. Com o avanço da agricultura e o corte da vegetação nativa do Cerrado, foi iniciada a contagem regressiva para o fim dos grandes rios da região. 

Os antigos rios grandes e caudalosos, com fartos estoques de peixe e muita vida em suas margens, cada vez mais se transformam em pequenos córregos nos meses de seca, com profundidades de poucos centímetros. Trechos que em décadas passadas só podiam ser atravessados em balsas ou embarcações, agora podem ser atravessados facilmente a pé, caminhando sobre os montes de entulho e areia (vide foto). Sem entrarmos nos problemas de abastecimento de água das populações, da perda de uma importante fonte de alimentação fornecida pela pesca e da destruição de um ambiente fundamental para a manutenção de inúmeras espécies aquáticas e terrestres, essa redução dos caudais é um “tiro no pé” em termos de transporte. A navegação de barcaças de carga nos rios, atividade fundamental para o escoamento da produção local de grãos, tende a ficar restrita, cada vez mais, aos períodos de cheia. 

Não há como ser contra aos avanços da agricultura e da pecuária na região do Cerrado e das oportunidades de trabalho e renda que as culturas de grãos e a produção de carnes, leite e derivados proporcionam. É preciso que se devolvam mecanismos de proteção para as águas, conciliando o desenvolvimento econômico e social com a proteção ambiental. E para isso, não é necessário que se reinvente a roda – basta estimular-se a criação de faixas de vegetação de Cerrado ao longo das margens dos rios, recriando-se a famosa mata ciliar, a proteção de áreas de nascentes e o replantio de vegetação em áreas de recarga dos aquíferos, além do respeito às áreas de reserva legal de vegetação nas propriedades. Essas são algumas providências simples e que são essenciais para a manutenção da vida.  

 A situação no rio Tocantins não é muito diferente daquela que vemos no Araguaia. Trataremos disto na nossa próxima postagem.

OS IMPACTOS SOCIAIS E AMBIENTAIS DA CONSTRUÇÃO DA USINA HIDRELÉTRICA DE TUCURUÍ

Usina Hidrelétrica de Tucuruí

A Hidrovia Tocantins-Araguaia tem um potencial de mais de 2.500 km de águas navegáveis e sua completa operacionalização trará profundos impactos econômicos e sociais para uma extensa área entre as regiões Centro-Oeste e Norte. Porém, como acontece com grande parte dos corpos d’água naturais, serão necessárias várias obras para melhorar a navegação em alguns trechos e, no caso do Pedral do Lourenço, realizar a abertura de um canal de navegação. 

É difícil se falar do rio Tocantins sem lembrar da construção da Usina Hidrelétrica de Tucuruí na década de 1980 e dos profundos impactos ambientais, além de econômicos e sociais, que ela causou em um grande trecho do rio. E como um dos principais objetivos deste blog é falar sobre educação ambiental e recursos hídricos, precisamos fazer, pelo menos, um resumo dos impactos ambientais criados pela construção de Tucuruí. 

Como imagino ser do conhecimento de todos, qualquer obra que tenha potencial de causar impactos significativos ao meio ambiente, de postos de gasolina a usinas hidrelétricas e nucleares, precisa passar por um processo de Licenciamento Ambiental junto aos órgãos ambientais competentes. Os estudos de impacto ao meio ambiente e o licenciamento ambiental foram estabelecidos pela resolução número 001 do CONAMA –Conselho Nacional do Meio Ambiente, em 1986. As obras de construção da Usina Hidrelétrica de Tucuruí foram concluídas em 1984, em pleno regime militar e antes da criação do processo de licenciamento ambiental, numa época em que “valia tudo”. Não é difícil de se imaginar que antes, durante e depois da construção de Tucuruí, os impactos ambientais e sociais foram deixados em um plano muito, muito secundário. Aliás, é importante lembrar que o Banco Mundial recusou financiar as obras da Usina devido à falta de estudos de impactos ambientais

A construção da Usina Hidrelétrica de Tucuruí começou em novembro de 1975, com o início da escavação do canal de desvio do rio Tocantins, obra concluída em outubro de 1976. Todos os estudos ambientais realizados tinham como foco os problemas que poderiam afetar o funcionamento da Usina, sem que se levasse em conta os impactos que a obra poderia causar ao meio ambiente e às populações ribeirinhas. Nenhum estudo prévio sobre os impactos do represamento do rio e a formação do lago, a abertura de estradas de acesso, instalação de linhas de transmissão, remoção de comunidades ribeirinhas ou perdas de recursos minerais sob a área alagada foi realizado.  

Um conjunto de estudos bastante limitados, incluindo-se os riscos de salinização do estuário do rio Tocantins e da água usada no abastecimento da cidade de Belém, foram realizados à véspera da inauguração de Tucuruí, com o objetivo explícito de conter a pressão da opinião pública. Atualmente, para que você tenha uma ideia da complexidade do processo de licenciamento de uma obra deste porte, são necessários aproximadamente cinco anos de estudos para a liberação da construção de uma usina hidrelétrica e, ainda assim, gerando muitos problemas sociais, ambientais e econômicos. 

Um dos problemas ambientais mais graves da obra foi o fechamento das comportas e o enchimento do lago da represa sem que a retirada da vegetação fosse concluída. Conforme comentado em postagem anterior, a vegetação submersa apodrece e torna as águas ácidas e anôxicas (com baixos níveis de oxigênio), o que compromete a qualidade das águas e impede a sobrevivência de peixes e de outros seres aquáticos. 

Estudos realizados durante a fase de projeto de Tucuruí recomendavam a remoção de 85% da vegetação na área que seria inundada. Apesar desta recomendação, a Eletronorte, estatal responsável pela obra, definiu um plano para a remoção de apenas 30% desta vegetação, priorizando o corte de madeiras com alto valor comercial. A concessão dos serviços de supressão vegetal e exploração comercial das madeiras desta área florestal coube, “inexplicavelmente”, à CAPEMI – Caixa de Pecúnio dos Militares. Sem qualquer experiência neste tipo de atividade empresarial, a CAPEMI só conseguiu realizar o desmatamento de aproximadamente 100 km², o que equivale a apenas 5% da supressão vegetal recomendada inicialmente. A CAPEMI, inclusive, faliu em 1983 após a descoberta de uma enorme fraude financeira, o que, ao lado da incompetência empresarial, foi um dos motivos para a não conclusão do corte da vegetação. Ordens vindas dos mais altos escalões do Governo levaram ao fechamento das comportas da represa, mesmo com a maior parte da mata ainda em pé. 

Uma outra controvérsia envolvendo a supressão vegetal na área alagada diz respeito ao uso do Agente Laranja, um desfolhante químico de uso militar altamente tóxico, pela Capemi durante os trabalhos de corte da vegetação. O Agente Laranja, para citar um único exemplo, foi usado durante a Guerra do Vietnã (1959-1975), por tropas dos Estados Unidos, com o objetivo de desfolhar extensas áreas florestais naquele país onde, supostamente, tropas inimigas estavam escondidas. Pessoas expostas ao Agente Laranja apresentam inúmeros problemas neurológicos e propensão ao desenvolvimento de câncer. Em 1983, uma inspeção feita por consultores independentes em um dos acampamentos da obra encontrou 373 barris vazios do produto. As autoridades sempre negaram o fato e as supostas provas dos acontecimentos, simplesmente sumiram, o que nunca foi algo anormal no período dos Governos Militares

Outro conjunto altamente relevante de problemas gerados pela construção de Tucuruí foram os impactos aos ecossistemas aquáticos, que começam pela não inclusão de uma “escada para peixes” no escopo da obra. Devido aos altos custos e a “pouca relevância da questão”, não foram realizados estudos sobre a diversidade e os impactos das obras para as espécies aquáticas no rio Tocantins. Estudos feitos anteriormente pelo INPA –Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia, haviam identificado cerca de 350 espécies de peixes no rio Tocantins. Após o enchimento do lago de Tucuruí, o número de espécies encontradas foi muito pequeno, dominado por umas poucas espécies de predadores. Nos três primeiros anos da formação do lago, as piranhas eram os peixes encontrados com maior frequência nas águas (representavam entre 40% a 70% das espécies capturadas em redes experimentais do INPA), o que mostra o grau dos impactos nos ecossistemas aquáticos. Com o passar do tempo, houve a recuperação das populações de outras espécies e redução da população de piranhas. 

Além destes problemas de maior impacto ambiental, existiram outros, de ordem social, também muito importantes. A remoção compulsória de populações é um deles. Famílias que moravam a inúmeras gerações nas áreas ribeirinhas, foram transferidas a força para outras áreas, sem qualquer margem para negociação ou discussão. Obras do patrimônio histórico e cultural destas comunidades foram encobertas silenciosamente pelas águas da represa. Eu destaco nesta lista um patrimônio imaterial e sentimental que não tem preço para estas pessoas – os campos santos, pequenos cemitérios destas comunidades, onde seus ancestrais foram enterrados. Também são relevantes os locais considerados “sagrados” por comunidades indígenas, onde acreditavam viver os espíritos dos seus antepassados. Naqueles “anos de chumbo”, contestar qualquer uma das decisões do Regime Militar podia resultar numa sentença de prisão nos muitos porões da ditadura. 

Em resumo – a forma como foi construída a Usina Hidrelétrica de Tucuruí será sempre um exemplo de como as coisas não devem ser feitas, especialmente na região da Floresta Amazônica. 

TINHA UMA PEDRA NO CAMINHO DA HIDROVIA, NO CAMINHO DA HIDROVIA TINHA UM PEDRAL

Eclusa de Tucuruí

Publicado pela primeira vez em 1928 na Revista de Antropofagia, o poema “No meio do caminho“, de Carlos Drummond de Andrade, virou alvo dos linguistas e gramáticos de todo o país, que reclamavam da redundância dos versos: 

“No meio do Caminho tinha uma pedra 

tinha uma pedra no meio do caminho 

tinha uma pedra 

no meio do caminho tinha uma pedra.” 

Dos dez versos do poema, em sete foi usada a expressão “tinha uma pedra”. De acordo com estudiosos da língua portuguesa, Drummond usava a palavra pedra repetidamente como uma referência aos problemas que surgem sucessivamente em nossas vidas. Usei os versos do poeta como inspiração para o título desta postagem porque, em se falando de pedras num caminho, o Pedral do Lourenço, no rio Tocantins, seria a síntese de todas elas. A grande formação rochosa, que se transformou num ponto de visitação turística da região, se estende por um trecho de 43 km do rio Tocantins, formando um gigantesco obstáculo para a navegação. A formação geológica é apontada como o maior obstáculo para o pleno funcionamento da Hidrovia Tocantins-Araguaia

O Pedral do Lourenço ou do Lourenção, como chamam alguns locais, fica nas proximidades da cidade de Itupiranga, no Sul do Estado do Pará. Itupiranga, na língua dos índios tupi, significa “cachoeira vermelha”, um topônimo bastante adequado para definir esse conjunto de corredeiras. Contam os antigos do local que Lourenço era um homem um tanto recluso, que todos os dias ia pescar em uma das pedras da formação – certo dia, ele escorregou nas pedras e se afogou nas águas turbulentas do rio. A pedra onde este homem pescava acabou recebendo seu nome, que depois acabou sendo usado para designar toda a formação rochosa – Pedral do Lourenço. 

Essa singular formação, entretanto, não cria obstáculos apenas para os homens com suas embarcações. A cerca de 2 milhões de anos, um grupo de botos-cor-de-rosa (Inia geoffrensis), espécie de cetáceo comum nos rios da bacia amazônica, ficou presa ao Sul do Pedral do Lourenço, permanecendo completamente isolados dos demais botos. Esse grupo de botos acabou evoluindo isoladamente, criando uma nova subespécie, batizada como boto do Araguaia (Inia araguaiensis). Essa descoberta só foi possível a partir de estudos genéticos e de anatomia, onde foram comprovadas inúmeras diferenças entre as duas espécies. Apesar de ser uma espécie “recém descoberta”, os botos do Araguaia correm sérios riscos de extinção por causa da pesca e da caça predatória (os pescadores atiram nos botos que tentam roubar os peixes de suas redes).  

Mesmo antes da construção da barragem da Usina Hidrelétrica de Tucuruí, concluída em 1984, o Pedral do Lourenço já era um obstáculo difícil de ser superado pelas embarcações maiores, que só conseguiam atravessar a formação na época das cheias, ainda assim correndo riscos de naufrágios. De acordo com o relado de antigos moradores da região, foram inúmeros os acidentes de percurso, muito dos quais resultaram na morte de tripulantes e passageiros. 

Tucuruí foi uma das últimas grandes obras do chamado período dos Governos Militares  (1964-1985) e se transformou numa espécie de símbolo do descaso dessas “otoridades” com o meio ambiente. À época, eu lembro de ter escrito um trabalho para a faculdade sobre a obra, onde foquei nos problemas criados pela formação da represa, que inundou uma grande área de floresta. Usualmente, as áreas que serão alagadas pelo enchimento de represas passam por um processo de desflorestamento e corte da vegetação – isso é feito para evitar que a vegetação submersa apodreça e provoque a oxidação das águas. Na pressa em concluir as obras, os responsáveis simplesmente pularam essa etapa. Uma outra curiosidade sobre Tucuruí é que, mesmo sendo uma das maiores geradoras de energia elétrica do país, inúmeras comunidades da região ficaram sem o abastecimento de eletricidade até poucos anos atrás. 

A “excepcional” visão estratégica de longo prazo dos planejadores nacionais, que sempre foi motivo de orgulho nas propagandas oficiais do antigo regime, não foi suficientemente longa para incluir uma eclusa para tráfego de embarcações no projeto da barragem, possibilitando a futura criação de uma Hidrovia. A eclusa que se encontra na barragem hoje (vide foto), considerada a maior do mundo, levou décadas para ser concluída, custando a “bagatela” de R$ 1,6 bilhão. Apesar do altíssimo investimento, a eclusa é considerada um elefante branco – os operadores afirmam que o tráfego de embarcações atinge apenas 5% do potencial de tráfego previsto no projeto (estima-se que a eclusa tem potencial para atender o tráfego de até 20 milhões de toneladas/ano em cargas) – o grande obstáculo para o aumento no número de embarcações e cargas trafegando na região é a existência do Pedral do Lourenço. 

Depois de vários anos de indefinições e inúmeros problemas internos de gestão, o Ministério dos Transportes concluiu no final de 2017 o processo de licitação para a contratação de uma empresa de engenharia, que será responsável pela abertura de um canal de navegação no Pedral do Lourenço. Com a conclusão desta obra, que poderá se estender por muitos e muitos anos a depender da eficiência dos gestores públicos, será criado um canal de navegação com o objetivo de permitir a navegação através da formação, especialmente nos períodos de seca, quando o rebaixamento das águas expõe as rochas em toda a sua grandeza. No geral, respeitadas as normas ambientais, a maior parte do Pedral do Lourenço permanecerá intacta e continuará a ser uma das grandes paisagens do rio Tocantins. 

Em condições normais, a realização de uma obra deste tipo causaria inúmeros impactos ambientais e problemas para a ictiofauna do trecho alto do rio, pois o novo canal alteraria substancialmente a velocidade das águas e eliminaria o obstáculo físico que separou comunidades de animais há muitos milhões de anos, como aconteceu com os grupos de botos-cor-de-rosa. Nesse caso em particular, a desastrosa construção da barragem de Tucuruí, que foi feita praticamente sem nenhuma preocupação ambiental, vai continuar realizando essa função de isolamento das espécies. Conforme comentado em postagem anterior, a construção de barragens cria inúmeros problemas para a migração de peixes, mamíferos e outras espécies  aquáticas e deveria, obrigatoriamente, se prever nos projetos a construção de “degraus para peixes”, dispositivos que permitem que os animais consigam migrar correnteza acima – infelizmente, isso não é feito na maioria das obras hidráulicas. 

Uma das cidades que deverá ser diretamente beneficiada pela construção do canal no Pedral do Lourenço é Marabá, uma das cidades que mais crescem no Brasil. Com cerca de 200 indústrias, grande parte de pequeno porte ligadas à produção de ferro gusa, Marabá poderá receber inúmeros projetos industriais que, há vários anos, encontram-se em regime de espera devido as indefinições da Hidrovia Tocantins-Araguaia. A Hidrovia aumentará substancialmente as opções de transporte na região, que atualmente é muito dependente da Ferrovia dos Carajás e dos caros transportes rodoviários pelas precárias rodovias da região. 

Faço votos que a remoção deste “pedral” que está no caminho da Hidrovia Tocantins-Araguaia não se transforme em uma verdadeira pedra no sapato de muita gente, especialmente no que diz respeito a impactos ambientais. 

A HIDROVIA TOCANTINS-ARAGUAIA

Pedral do Lourenço

Nesta série de postagens, onde estamos enfocando o uso das águas dos rios para o transporte de cargas e de passageiros, já falamos das Hidrovias Tietê-Paraná, Paraguai-Paraná e do rio São Francisco. Em cada um desses conjuntos de importantes corpos hídricos, destacamos o potencial de navegação e também os muitos problemas existentes. Vamos falar a partir desta postagem da prometida Hidrovia Tocantins-Araguaia, uma via navegável com grande potencial para o transporte de cargas e passageiros entre o Planalto Central e a foz do Rio Amazonas, mas que em grande parte ainda está semi-transitável por obras não concluídas e por problemas ambientais nos rios Tocantins e Araguaia. 

O rio Tocantins tem aproximadamente 2.400 km de extensão, sendo considerado o segundo maior rio totalmente brasileiro, perdendo apenas para o nosso bom e velho rio São Francisco. Ele nasce na Serra Dourada, no Estado de Goiás, e segue rumo ao Norte, atravessando o Tocantins, Maranhão e Pará, onde tem a sua foz nas proximidades da Ilha do Marajó. Na época das cheias, é possível navegar até 2.000 km pelas águas do rio Tocantins, saindo da cidade de Belém do Pará e chegando a Lajeado, no Estado do Tocantins – é importante lembrar que, a embarcação que fizer este trajeto, irá utilizar uma eclusa existente na barragem da Usina Hidrelétrica de Tucuruí. Na época da seca, essa longa viagem não é possível – subindo o rio a partir do lago de Tucuruí, a embarcação vai se deparar com o Pedral do Lourenço (vide foto), um trecho de 43 km de afloramentos rochosos, onde apenas canoas conseguem navegar, com muito custo, no período da seca. Vencendo este trecho complicadíssimo, os problemas ficarão concentrados nos imensos bancos de areia e de entulhos, que em vários trechos reduzem a profundidade a menos de um metro. 

O outro rio deste sistema fluvial é o Araguaia, que nasce na Serra do Caiapó, em Goiás, e que corre rumo ao Norte por 2.115 km até desaguar no rio Tocantins. Neste longo percurso, o rio Araguaia faz a divisa natural entre os Estados de Goiás, Mato Grosso, Tocantins e Pará. Uma curiosidade do rio Araguaia é que, a certa altura do seu curso, ele se divide ao meio, formando por um lado o rio Araguaia e do outro o rio Javaés – no meio, surge a Ilha do Bananal, a maior ilha fluvial do mundo. Assim como em grande parte do curso do rio Tocantins, o Araguaia também vem sofrendo cada vez mais com a presença dos gigantescos bancos de areia nos períodos de seca. Vamos tratar desta questão em futuras postagens. 

A Hidrovia Tocantins-Araguaia tem potencial para se transformar, rapidamente, numa das mais importantes vias de águas navegáveis do Brasil. Encravada por um lado no coração do Cerrado, a maior região produtora de grãos do país, e ligada por outro ao rio Amazonas, o maior e mais importante rio da gigantesca Bacia Amazônica, essa Hidrovia apresenta ilimitadas possibilidades para o transporte de toda uma gama de cargas e de pessoas. E ainda toco num ponto polêmico: há um projeto antigo, imaginado ainda no tempo do regime militar, e que está sendo retomado por alguns parlamentares federais, com vistas à construção de um sistema de transposição entre as bacias hidrográficas dos rios Tocantins e São Francisco.  

Esse sistema teria a função de reforçar os caudais do rio São Francisco com águas do Tocantins. Como já comentamos em postagem anterior, os caudais do Velho Chico estão sendo reduzidos, ano após ano, devido a todo um conjunto de agressões ambientais, que se espalham por toda a sua bacia hidrográfica. É um projeto complicado, mas possível de ser realizado – essa ideia se tornaria mais interessante se o sistema permitisse a integração da navegação de comboios de barcaças de carga entre a Hidrovia do Rio São Francisco (que é isolada) e a Hidrovia Tocantins-Araguaia: algo a se pensar com muito carinho

Desconsiderando temporariamente os grandes problemas existentes hoje em toda a extensão da Hidrovia Tocantins-Araguaia, vamos analisar os tipos de carga que poderão ser transportadas com grande eficiência e economia: 

Grãos: Conforme já comentado, o Cerrado é atualmente a região brasileira que mais produz grãos, especialmente soja e milho. Toda essa produção, especialmente a soja, esbarra em problemas logísticos para o transporte até os portos marítimos, haja visto que os maiores mercados consumidores são a China e alguns países da Europa como a Alemanha. Conseguir transportar parte dessa produção até os portos marítimos do Pará  por via fluvial representaria um enorme ganho econômico para os produtores; 

Fertilizantes e insumos agrícolas: Os solos do Cerrado são ácidos e exigem o uso de corretivos como o calcário. Também se faz necessário o uso de fertilizantes, herbicidas, fungicidas, pesticidas, máquinas agrícolas e toda uma gama de implementos usados para a preparação dos solos, para semear e colher. Grande parte desses insumos e materiais são produzidos em outras regiões e até mesmo em outros países. As mesmas barcaças que descem os rios carregadas de grãos, podem voltar carregadas com esses materiais e equipamentos; 

Minérios: Pará e Maranhão são importantes províncias minerais, produtoras de uma enorme gama de produtos: minério de ferro, manganês, níquel, cobre, bauxita, caulim entre outros. Esses minerais tanto podem ser encaminhados para processamento e exportação em unidades industriais e portos na Região Norte, quanto “exportados” para a Região Sudeste, grande consumidora destes minerais. 

Carvão: Para processar minerais metálicos como o minério de ferro, níquel ou cobre, as empresas siderúrgicas necessitam de carvão mineral. Conforme comentado em postagem anterior, o Brasil é muito pobre em reservas de carvão – uma das poucas regiões produtoras deste insumo fica no Sul do Estado de Santa Catarina. A maior parte do carvão mineral usado no país é importado. A Hidrovia é uma excelente opção para o transporte de cargas de carvão desde os portos marítimos da Região Norte até os pólos siderúrgicos; 

Transporte de animais vivos, de carnes e outros produtos de origem animal: As Regiões Centro-Oeste e Norte possuem áreas de grande destaque em pecuária e criação de animais. A Hidrovia Tocantins-Araguaia cria toda uma gama de opções para o transporte de produtos de origem animal (carnes, embutidos, leite e derivados, couros, ovos etc), animais vivos (bovinos, equinos, suínos, ovinos e caprinos, aves, peixes, entre outros) desde as regiões produtoras até os grandes centros consumidores, unidades processadoras ou terminais de cargas para exportação. 

Frutas: O Brasil é um dos grandes produtores mundiais de frutas e, ao mesmo tempo, é campeão em desperdício dessas culturas. Frutas em geral são produtos delicados, que exigem boas embalagens e proteções, além de prescindirem de grande velocidade para o transporte entre os produtores e consumidores. Cito como exemplo frutas da Região Amazônica, como a graviola, o açaí, o bacuri, o araçá-boi, o buriti, o cupuaçu, o tucumã, entre outras, que encontrariam grandes mercados consumidores nas regiões Centro-Oeste, Sudeste e Sul, caso se contasse com a agilidade e com os baixos custos de transporte por uma Hidrovia. 

Em épocas de fortes chuvas, quando os níveis dos rios permitem a superação dos obstáculos naturais, o transporte de todos esses itens e produtos já se torna possível pela Hidrovia Tocantins-Araguaia. Mas existe muito a se melhorar para permitir a navegação durante todo o ano e usando comboios de cargas cada vez maiores. 

Vamos continuar explorando estes temas em nossas próximas postagens.