BARÃO DE COCAIS: PARTE DO TALUDE DA MINA GONGO SECO SE DESPRENDEU SEM CAUSAR MAIORES DANOS

Barão de Cocais

A tensão vivida pela população de Barão de Cocais diminuiu um pouco esta manhã – uma parte do talude da Mina Gongo Seco, que ameaçava desmoronar abruptamente e tinha potencial para romper uma barragem de rejeitos, se despendeu nessa madrugada, sem causar maiores danos. De acordo com nota emitida pela Vale do Rio Doce, empresa mineradora responsável pelo empreendimento, “o material está deslizando de forma gradual, o que até o momento corrobora as estimativas de que o desprendimento do talude deverá ocorrer sem maiores consequências”, informou a mineradora em nota oficial. A Vale disse ainda que a barragem segue com monitoramento 24 horas por dia com uso de radar e estação robótica capazes de detectar movimentações milimétricas”

O drama na cidade de Barão de Cocais teve início no mês de fevereiro, quando os funcionários da Mina Gongo Seco passaram a observar uma aceleração abrupta no deslocamento de um grande bloco do talude, que nada mais é que um paredão rochoso. A queda abrupta desse bloco, com mais de 80 metros de altura e com centenas de toneladas de peso, poderia desencadear uma grande onda de choque, com potencial para desestabilizar uma barragem de rejeitos da mesma mina, localizada a cerca de 1,5 km. A eventual onda de lama e de rejeitos minerais liberadas pela barragem poderia atingir partes da cidade Barão de Cocais em pouco mais de 1 hora, o que foi suficiente para colocar toda a cidade em estágio de alerta. 

Conforme comentamos em postagem anterior, a ansiedade criada na população pela espera do desastre criou uma série de problemas, que foram da paralização do comércio na cidade ao aumento do número de pessoas que passaram a buscar atendimento psiquiátrico e psicológico. Moradores dos pontos mais críticos foram retirados de suas casas e hospedados em hotéis; rotas de fuga e pontos de encontro foram sinalizados; trechos de calçadas foram pintados na cor laranja, sinalizando os locais que poderiam ser atingidos pela lama, entre outras medidas preventivas. 

Felizmente, ao que tudo indica, a vida poderá começar a voltar à normalidade em Barão de Cocais. 

Torçamos todos pela continuidade dessa “queda gradativa” do talude e que lições sejam tiradas dessa “quase” tragédia. 

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1 MILHÃO DE ESPÉCIES ANIMAIS E VEGETAIS ESTÃO AMEAÇADAS DE EXTINÇÃO, SEGUNDO RELATÓRIO DA ONU

Underwater rare encounter with Critically Endangered Hawksbill Sea Turtle (Eretmochelys imbricata)

Um amplo estudo elaborado pela IPBES – Plataforma Intergovernamental Político-Científica sobre Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos, na sigla em inglês, entidade ligada a ONU – Organização das Nações Unidas, foi divulgado nesse mês de maio, dimensionando as consequências da devastação ambiental em todo o planeta. O relatório dá um destaque especial aos fatos ocorridos nos últimos 50 anos e mostra que a situação atual é dramática. 

Esse estudo foi elaborado ao longo de três anos por 145 especialistas de 50 países, com a colaboração de outros 310 especialistas. No total, o relatório contém 1.500 páginas com dados e registros de mudanças ocorridas nas últimas cinco décadas. A publicação integral será divulgada a partir do meio do ano. De acordo com comentário de Audrey Azoulay, diretora geral da UNESCO – Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura, “ninguém poderá dizer que não sabemos que estamos dilapidando nosso patrimônio mundial comum”. 

Segundo o Relatório, as principais causas dessa tragédia ambiental são: as alterações no uso dos solos e dos oceanos, que enfrentam problemas como a poluição; a exploração intensa dos recursos naturais, que tem como uma de suas consequências o desmatamento; inserção de espécies exóticas e de alto valor comercial em habitats, criando todos os tipos de impactos e desequilíbrios; e as mudanças climáticas globais, que já provocaram um aumento de 1° C na temperatura do mundo desde a Revolução Industrial

Alguns dados alarmantes do Relatório: 

  • 75% do território da Terra foi severamente alterado por atividades humanas; 
  • 66% das áreas marinhas foram afetadas;
  • US$ 60 bilhões em recursos naturais são extraídos do meio ambiente a cada ano; 
  • 30% dos habitas foram reduzidos; 
  • 47% dos mamíferos terrestres foram impactados direta e indiretamente; 
  • 40% dos anfíbios podem desaparecer; 
  • 33% dos corais, tubarões e mamíferos marinhos estão ameaçados; 
  • 9% das espécies terrestres correm o risco de desaparecer nas próximas décadas se não forem restaurados os seus habitats; 

No Brasil, mais de 3 mil espécies estão ameaçadas. Entre elas o peixe-boi da Amazônia, o boto-cor-de-rosa e a onça pintada. A derruba de matas nativas em biomas como o Cerrado e a Floresta Amazônica para o avanço das frentes agrícolas e pecuárias lideram as agressões ambientais no Brasil.

Um exemplo das consequências da perda de espécies é o desaparecimento acentuado de populações de abelhas, fenômeno observado hoje em todo o mundo.  A importância das abelhas vai muito além da produção do mel e da cera, produtos largamente utilizados pela humanidade. Esses insetos são responsáveis pela polinização de mais de 70% das plantas do mundo, especialmente as diversas espécies de frutas e grãos usados como alimentos pela humanidade. Estudos recentes indicam que os sistemas de telefonia celular estão entre os principais vilões desse desaparecimento das abelhas – as ondas eletromagnéticas geradas pelos equipamentos desnorteiam os insetos e causam alterações em seu comportamento. O uso intensivo de agrotóxicos nas lavouras também faz sua cota de estragos nas comunidades de abelhas

Josef Settele, um dos principais autores do estudo, afirmou que “tanto os ecossistemas, as espécies, as populações selvagens, as variedades locais e as espécies de plantas e animais domésticos estão se reduzindo, deteriorando ou desaparecendo”. Ele acredita que esta perda está relacionada diretamente com a atividade humana, o que num futuro próximo poderá afetar o bem-estar em todas as regiões do planeta. 

Apesar da situação caótica, ainda é possível se encontrar soluções. O estudo ressalta que para conseguir os objetivos sugeridos para 2030, é necessário transformar a economia, a sociedade, a política e a tecnologia. Os especialistas defendem a importância de mudar todo o modo de desenvolvimento. O administrador do Programa de Desenvolvimento da ONU, Achim Steiner, afirmou que “nosso saber local, indígena e científico está demonstrando que temos soluções, assim que basta de desculpas, temos que viver de maneira diferente na Terra”, afirmou. 

OCDE – Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento, também comentou o estudo, e adverte que esta extinção massiva pode ser um dos grandes riscos para este século. A OCDE lembra os países que para garantir a segurança alimentar, a redução de pobreza e o desenvolvimento equitativo é necessário atuar a favor da biodiversidade. 

Na contramão de tudo isso, estamos observando uma série de movimentos do Governo Federal no sentido de flexibilizar as regras da Política Ambiental. Um decreto assinado pelo Presidente Jair Bolsonaro na noite da última terça-feira, dia 28 de maio, reduziu a composição do CONAMA – Conselho Nacional do Meio Ambiente, de 100 para apenas 23 membros. De acordo com assessores do Governo Federal, a medida “busca tornas as decisões do CONAMA mais céleres”. 

Relembrando, o CONAMA foi criado em 1981, com o objetivo de ser uma das pedras angulares da Política Nacional do Meio Ambiente, que foi criada em 1986. Entre suas principais responsabilidades estão a criação de normas para o licenciamento ambiental e para a realização de estudos de estudos de impacto ao meio ambiente em projetos públicos e privados, a avaliação da execução da Política Nacional do Meio Ambiente, entre outras atribuições. 

Outro movimento preocupante, também capitaneado pelo Governo Federal, é um projeto que propõe a transformação da Costa Verde, um dos mais belos e bem preservados trechos do litoral brasileiro entre o Norte do Estado de São Paulo e a Ilha Grande, no Rio de Janeiro, numa espécie de Cancún brasileira. A justificativa é a ampliação do número de turistas e, consequentemente, de recursos estrangeiros que entram no país (especialmente no combalido Estado do Rio de Janeiro), a exemplo do famoso balneário mexicano que, segundo os governistas, “recebe perto de 7 milhões de visitantes ao ano”. 

Um dos “pequenos obstáculos” existentes para a implementação desse projeto é a existência da Estação Ecológica de Tamoios, formada por 29 ilhas, lajes e rochedos da Baía da Ilha Grande. O entorno marinho num raio de 1 km ao redor dessas formações oceânicas é de acesso proibido, com o objetivo de proteger as espécies marinhas (vide foto). O Governo Federal fala abertamente em revogar o Decreto que criou a Estação Ecológica de Tamoios. 

Diante do cenário apocalíptico apresentado pelo Relatório ambiental da ONU, parece que as autoridades políticas de nosso país estão vivendo em uma espécie de universo paralelo. Infelizmente, nossos políticos não aparecem na lista das espécies ameaçadas…

ALGUNS COMENTÁRIOS SOBRE A DEGRADAÇÃO AMBIENTAL NO RIO SÃO FRANCISCO

Benajmim Guimarâes Rio São Francisco

Rios não são eternos. 

Começar uma postagem com uma afirmação tão forte quanto essa pode deixar muita gente preocupada. Infelizmente, isso é uma grande verdade – deixem-me citar um exemplo extremo: o rio Nilo. 

Famoso por ter abrigado uma das mais importantes civilizações do passado, o rio Nilo é uma verdadeira artéria que dá vida ao Egito, país do Norte da África que tem perto de 95% de seu território formado por desertos de areias escaldantes. É bastante difícil imaginar o país sem seu famoso rio e sem suas margens verdejantes, que garantem pastagens e campos agricultáveis para sustentar uma população de mais de 150 milhões de habitantes. Mas, acredite se quiser, até algo como 7 ou 8 mil anos atrás, o rio Nilo não cruzava o Egito como vemos hoje. 

A partir de suas diversas nascentes – a mais distante fica no Burundi, o rio Nilo seguia primeiro para o Norte e depois virava para o Leste, atravessando toda a região onde encontramos hoje o Deserto do Saara, até atingir a sua foz, que naqueles tempos ficava no Oceano Atlântico. Naqueles tempos, o clima do Norte da África era bem mais chuvoso e a região era coberta com uma vegetação de Savana. Ao longo das margens do antigo rio Nilo se encontravam matas de galeria, campos alagáveis, pântanos e outras formações vegetais importantes. A região pulsava de vida, com grandes rebanhos de zebras, antílopes, girafas, gnus, elefantes, rinocerontes e outros animais típicos da fauna africana. Pinturas rupestres que encontramos atualmente em cavernas e formações rochosas por todo o Deserto do Saara mostram imagens com todos esses animais. 

Em algum momento desse período, movimentos de placas tectônicas provocaram uma mudança brusca no curso do rio Nilo, que passou a seguir somente para a direção Norte, passando a ter sua foz no Mar Mediterrâneo. Para piorar a situação, alterações climáticas regionais mudaram a zona de chuvas alguns graus para o Sul, transformando todo o Norte da África na sucessão de áreas desérticas e semiáridas que vemos hoje. O Lago Chade é um resquício dessa época. Praticamente seco nos dias atuais, esse lago já foi gigantesco – relatos romanos da época de Jesus Cristo afirmavam que o Chade ocupava uma área do tamanho da Alemanha. A abundância de água do passado virou, literalmente, areia. 

No caso do rio São Francisco, acredito que não corremos riscos imediatos de uma mudança tão brusca como a que ocorreu com o rio Nilo – o Brasil está localizado no centro da Placa Tectônica Sul Americana e a atividade sísmica por aqui é relativamente pequena. Por outro lado, as ações antrópicas, ou seja, as ações e atividades humanas, já fizeram um estrago considerável na bacia hidrográfica do Velho Chico. Vamos começar falando dos sucessivos barramentos de usinas hidrelétricas nos últimos 70 anos. 

O rio São Francisco possui atualmente 9 usinas hidrelétricas instaladas em sua calha, a saber: Paulo Afonso I, II, III e IV, Sobradinho, Luiz Gonzaga, Moxotó, Xingó e Três Marias. A imensa maioria desses empreendimentos é anterior a 1986, ano em que foi implantada a Política de Meio Ambiente brasileira e a partir da qual começaram a ser exigidos estudos prévios de impacto ambiental. A cada barragem construída, um trecho do rio foi isolado, matas ciliares e de galeria foram suprimidas, espécies animais perderam seus habitats, milhares de pessoas que viviam nas áreas sujeitas ao alagamento tiveram de ser realojadas, a dinâmica das águas do rio foi alterada, entre outros problemas. E, justamente pela falta de uma política ambiental válida na época das obras, esses empreendimentos não foram obrigados a realizar compensações ambientais pelos estragos que provocaram no rio São Francisco. 

Outro gravíssimo problema é o intenso assoreamento e entulhamento das calhas de todos os rios da bacia hidrográfica. O começo desse problema remonta ao século XVII, quando teve início a exploração e a mineração desenfreada do ouro. Pode-se especular que cada metro quadrado da calha dos rios, especialmente na região das Geraes, foi revirado por aventureiros de todos os tipos na busca do ouro de aluvião. Esgotadas essas reservas, a exploração passou a se concentrar as margens e barrancos dos rios, onde toda a vegetação foi suprimida. Sem a proteção das matas, as chuvas passaram a carrear milhões de metros cúbicos de sedimentos de todos os tipos para a calha dos rios. Em épocas mais recente, foram os grandes projetos de mineração que fizeram seus estragos, aumentando ainda mais o açoreamento nos rios. 

A mineração em larga escala criou um outro problema – a derrubada intensiva de matas para a produção de carvão vegetal. A produção e o processamento de metais como o ferro e o aço requer imensas quantidades de energia térmica, o que, na maior parte dos grandes países industrializados, é gerada a partir da queima do carvão de origem mineral. O Brasil é extremamente pobre em reservas de carvão, quando comparado a outros países, reservas essas concentradas nos Estados da Região Sul, especialmente em Santa Catarina. Na falta desse importante insumo, as empresas passaram a se valer do carvão vegetal. Extensas áreas de matas foram derrubadas e a madeira ardeu primeiro nos improvisados fornos de barro, onde era intenso o emprego de mão-de-obra infantil, e depois nos altos-fornos das siderúrgicas. 

Em décadas mais recentes, esse desmatamento foi reforçado pela abertura de novas frentes agrícolas. Com o desenvolvimento de técnicas para a correção da forte acidez dos solos do Cerrado e com a criação de variedades de cultivares adaptadas ao clima e aos solos do bioma, especialmente grãos como a soja e o milho, grandes extensões de matas nativas passaram a sumir do mapa, surgindo em seu lugar gigantescas plantações. O principal impacto desse avanço da agricultura sobre áreas do Cerrado se dá na forma de redução dos caudais dos inúmeros tributários do rio São Francisco com nascentes no bioma. A vazão média na foz do São Francisco era, décadas atrás, de cerca de 3 mil metros cúbicos por segundo. Em anos recentes, essa vazão chegou a cair para apenas 1/6 desse volume em períodos de seca

Todo esse conjunto de agressões ambientais sistemáticas no rio São Francisco resultaram, entre outros males, na perda de biodiversidade da fauna aquática e na destruição da navegação em importantes trechos do rio. Um dos peixes mais famosos do rio, o surubim, é cada vez mais raro e corre risco iminente de extinção. Na navegação, um importante trecho com mais de 1.200 km entre Pirapora, no Norte de Minas Gerais, e as cidades de Juazeiro, na Bahia, e Petrolina, em Pernambuco, há muito deixou de ser viável tecnicamente para embarcações maiores. A redução dos caudais do rio expôs inúmeras formações rochosas na superfície e passaram a surgir inúmeros bancos de areia ao longo desse trecho, criando todo tipo de riscos para a navegação. 

No baixo curso do São Francisco, a redução progressiva dos caudais tem facilitado a intrusão de água salgada do mar, o que tem prejudicado o abastecimento de inúmeras cidades e inviabilizado o uso da água em projetos de irrigação. A navegação nesse trecho do rio, que sempre foi importante para muitas cidades de Alagoas e de Sergipe, ficou muito arriscada devido aos baixos níveis do rio, o que criou inúmeros trechos com corredeiras e afloramentos rochosos. 

Enfim, apesar de não haver riscos ou ameaças naturais à existência do rio São Francisco, os seres humanos tem se “esforçado” muito para transformá-lo em um leito seco e sem vida.  

Desgraçadamente, é capaz de conseguirmos lograr êxito nesta empreitada… 

A USINA HIDRELÉTRICA LUIZ GONZAGA E OS NOVOS TEMPOS NAS RELAÇÕES SOCIAIS

UHE Itaparica

A última hidrelétrica do rio São Francisco sobre a qual precisamos falar nessa série de postagens é a Usina Hidrelétrica de Itaparica, que teve seu nome mudado para Luiz Gonzaga (1912-1989) – o cantor, compositor e “Rei do Baião”, que representou como ninguém antes as belezas do sertão nordestino e as dores do seu povo. Relembrando, o rio São Francisco possui um total de 9 empreendimentos hidrelétricos em sua calha – além da Usina Hidrelétrica Luiz Gonzaga, temos Paulo Afonso I, II, II e IV, SobradinhoMoxotó, Xingó e Três Marias

A Usina Hidrelétrica Luiz Gonzaga fica localizada no município de Petrolândia, em Pernambuco, a 312 km da foz do rio São Francisco e a cerca de 50 km a montante (correnteza acima) do Complexo Hidrelétrico de Paulo Afonso. A barragem da represa da Usina atinge uma altura de 105 metros e suas águas movimentam 6 grupos geradores, que atingem uma potência total de cerca de 1,48 mil MW. Além de gerar energia elétrica, a Usina Luiz Gonzaga também atua na regularização das vazões do rio São Francisco que seguem na direção do complexo de Paulo Afonso.

Os estudos técnicos de viabilidade para a construção da hidrelétrica começaram em 1968, mas o projeto técnico do empreendimento e o cálculo da área do represamento só foram concluídos em 1975, mesmo ano em que foram iniciadas as obras. A previsão da conclusão das obras era o ano de 1981, porém, devido à sucessivos cortes no orçamento, a inauguração da Hidrelétrica se deu apenas em 1988. O lago formado inundou uma área total de 828 km², dos quais cerca de 165 km² eram de áreas produtivas. Isso forçou o reassentamento de aproximadamente 10,5 mil famílias, sendo 4,6 mil moradores de áreas urbanas e 5,9 mil de áreas rurais. Também foram reassentadas 211 famílias indígenas da tribo Tuxá.

O enchimento do lago da Hidrelétrica Luiz Gonzaga inundou áreas dos municípios de Abaré, Chorrochó, Glória e Rodelas, no Estado da Bahia, e de Belém do São Francisco, Floresta, Itacuruba e Petrolândia, em Pernambuco. As sedes dos municípios de Itacuruba, Petrolândia e de Rodelas, além do povoado de Barra do Tarrachil no município de Chorrochó, que ficavam dentro de áreas que foram inundadas, tiveram de ser reconstruídas em outros locais. No total, cerca de 36 mil pessoas foram impactadas direta e indiretamente pela construção da Usina Hidrelétrica.

Apesar da grande quantidade de pessoas deslocadas pelas obras da Usina Luiz Gonzaga, os problemas e as repercussões sociais do processo foram muito menores do que aqueles vividos pelos desalojados de outras hidrelétricas, como a de Sobradinho. A CHESF – Companhia Hidrelétrica do São Francisco, se valendo de suas experiências anteriores na construção de usinas hidrelétricas, desta vez elaborou Planos de Reassentamento e de Desocupação. Esses Planos previam todas as condições necessárias para a construção de casas e prédios, além da implantação de infraestruturas de saneamento básico, eletricidade, escolas e postos de saúde. Além de garantir a reposição dos imóveis desapropriados, os Planos asseguravam que as condições das novas construções e de infraestruturas seriam melhores que as existentes anteriormente. No caso das propriedades rurais, além de repor a terra, a empresa teria de garantir os meios de produção para os agricultores.

Existe aqui um pequeno detalhe, que demonstra que essa mudança de atitude da CHESF não foi tão gratuita quanto parece – os Planos de Reassentamento e de Desocupação da empresa incorporaram várias das diretrizes da Política de Reassentamento Involuntário do Banco Mundial, instituição que financiou o empreendimento e que vinculou a liberação dos recursos à implementação dessas diretrizes.

Entre os anos de 1987 e 1989, foram construídas aproximadamente 4 mil habitações e 540 prédios comerciais nas novas sedes urbanas de Petrolândia e Itacurubá, em Pernambuco, e de Rodelas e do povoado de Barra do Tarrachil no município de Chorrochó, na Bahia. Também foram construídos os prédios da administração pública e de escolas e postos policiais. Somente após todas as construções e obras de infraestrutura urbanas estarem totalmente prontas, é que a população desalojada começou a ser transferida, o minimizou muito os problemas e as reclamações.

A população rural deslocada também recebeu um tratamento diferenciado e cada família foi tratada como uma “unidade produtiva”, onde além da terra, era necessário o acesso a condições de produção, principalmente o fácil acesso a água. Foram criados projetos de irrigação nos municípios de Glória, Rodelas e Curuçá, no Estado da Bahia, e em Santa Maria da Boa Vista, em Pernambuco, onde seriam implantados lotes rurais entre 1,5 e 8 hectares.

Nos municípios de Glória e Rodelas, na borda do reservatório da Hidrelétrica, foram 547 lotes entre 1,5 e 6 hectares, totalizando 1.747 hectares. No Projeto Pedra Branca no município de Curuçá, foram 706 lotes entre 1,5 e 6 hectares, além de 19 agrovilas, totalizando 2.466 hectares. No Projeto Jusante do município de Glória, uma área de 1.600 hectares foi parcelada em 580 lotes. Todos esses reassentamentos ficam no Estado da Bahia.

Na borda do reservatório do lado pernambucano, foram implantados 429 lotes entre 1,5 e 6 hectares, totalizando 5.712 hectares. No Projeto Especial Brígida em Santa Maria da Boa Vista, foram 1603 lotes entre 1,5 e 6 hectares e 10 agrovilas, totalizando 5.605 hectares. No Projeto Especial Caraíbas, também no município de Santa Maria da Boa Vista, foram 1603 lotes entre 1,5 e 6 hectares e 47 agrovilas, totalizando 5.605 hectares. Finalmente, no Projeto Especial Apolônio Salles no município de Petrolândia, foram 101 lotes de 8 hectares, totalizando 808 hectares.

Para o reassentamento dos indígenas Tuxá, a CHESF firmou convênios com a FUNAI – Fundação Nacional do Índio, onde foram definidos os locais e as condições de moradia e de infraestrutura, além dos serviços de apoio social aos índios. Parte dos indígenas da comunidade, 94 famílias, optou pela transferência para o município baiano de Ibotirama; a outra parte do grupo, 105 famílias, escolheu um aldeamento nas proximidades da cidade de Rodelas, também no Estado da Bahia. Finalizando, 9 famílias pediram para ir para o município de Inajá, em Pernambuco. Em 1993, os indígenas solicitaram apoio da Procuradoria Geral da República para resolver alguns problemas ligados à irrigação de áreas agrícolas, o que levou a um novo acordo com a CHESF. Em 2004, foi firmado um TAC – Termo de Ajuste de Conduta, onde a CHESF se obrigou ao pagamento de uma indenização de R$ 31 mil a cada família Tuxá atingida pela construção da Hidrelétrica, além do pagamento de R$ 461,00 por mês a cada família.

Todo esse processo de desapropriação e deslocamento das famílias atingidas pelas obras foi lento e difícil, como sempre acontece em obras de grande porte, porém, como se observa nos detalhes do texto, foi muito mais justo e organizado do que em outras obras. No caso da vizinha Usina Hidrelétrica de Sobradinho, foram cerca de 70 mil pessoas deslocadas, a grande maioria de pequenos produtores rurais. Essa população foi dispersa pelos quatro cantos do sertão nordestino e muita gente reclama até hoje da baixa qualidade das terras das novas propriedades. No caso da Usina Hidrelétrica Luiz Gonzaga, se observa que os moradores das áreas rurais inundadas pelo lago foram reassentados em lotes rurais na mesma região com acesso a sistemas de irrigação, detalhes que fazem toda a diferença.

Apesar de serem fundamentais para a vida moderna, a construção de usinas hidrelétricas gera todo tipo de impactos ambientais e sociais, que vão da destruição de matas e habitats até o deslocamento de populações urbanas e rurais. E já que são um “mal” necessário, que suas construções, pelo menos, hajam com justiça durante o processo de desapropriação. A Usina Hidrelétrica Luiz Gonzaga deu o primeiro exemplo.

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REPRESA DE TRÊS MARIAS: ONDE AS TRAGÉDIAS AMBIENTAIS CRIADAS PELA SOJA E PELOS ACIDENTES DA MINERAÇÃO SE ENCONTRAM

Rio Paraopeba

Nesses últimos dias, vem sendo grande a expectativa de milhares de famílias mineiras de Barão de Cocais e de cidades próximas quanto ao iminente rompimento de um talude rochoso da Mina Gongo Seco. O grande temor da população são as prováveis consequências desse desabamento – a onda de choque poderá desestabilizar uma barragem de rejeitos e liberar milhões de metros cúbicos de lama e rejeitos minerais nas águas de quatro córregos da região, atingindo depois os rios Santa Bárbara e Piracicaba. Por uma terrível coincidência, o rio Piracicaba é um afluente do rio Doce, corpo d’água que foi, literalmente, destruído em 2015 pelo rompimento da Barragem de Fundão, na cidade de Mariana. 

Em um outro desastre ambiental bem recente, o rompimento de uma barragem de rejeitos de mineração na cidade de Brumadinho, também em Minas Gerais, liberou um grande volume de lama e rejeitos, calculado em cerca de 3 milhões de metros cúbicos, que atingiram primeiro o Ribeirão Ferro-Carvão e depois o rio Paraopeba. Já foram confirmadas mais de 240 mortes e 27 vítimas seguem desaparecidas. Na tragédia de Mariana, o número de vítimas fatais foi de 19. 

O rio Paraopeba (vide foto), impactado pelos rejeitos de mineração e lama da Mina do Córrego do Feijão, tem sua foz na Represa de Três Marias, colocando as águas do rio São Francisco como mais uma vítima desse desastre ambiental. O volume de rejeitos que está chegando até a represa, felizmente, ainda é pequeno – a barragem da Usina Hidrelétrica de Retiro Baixo, no baixo curso do rio Paraopeba, está retendo o grosso da poluição. 

E o que a soja tem a ver com tudo isso? 

O rio São Francisco tem suas nascentes na Serra da Canastra, uma região fincada dentro dos domínios do Bioma Cerrado. Ao longo do seu curso de mais de 2.800 km, o rio São Francisco recebe contribuições de 168 afluentes, a maioria com nascentes em áreas do Cerrado. No total, as águas da bacia hidrográfica do Rio São Francisco servem 521 municípios em 6 Estados da Federação: Goiás, Minas Gerais, Bahia, Pernambuco, Sergipe e Alagoas, além do Distrito Federal. Após a conclusão de todas as obras do Sistema de Transposição, as águas do Rio São Francisco que já estão chegando ao Estado da Paraíba, chegarão também aos sofridos sertões do Ceará e do Rio Grande do Norte.Cerca de 15 milhões de pessoas vivem na área da bacia hidrográfica do rio São Francisco

Ocupando uma área equivalente a um quarto do território brasileiro, o Cerrado possui um clima com uma marcante estação de chuvas, além de solos altamente porosos e adequados para o armazenamento de grandes volumes de águas em seus aquíferos. A combinação de todas estas características resulta nas fecundas nascentes de águas de importantes rios que formam 8 grandes bacias hidrográficas brasileiras: Paraguai, Paraná, Parnaíba, São Francisco, Tocantins/Araguaia, Atlântico Leste, Atlântico Nordeste Ocidental e Amazônica. Alguns dos mais importantes aquíferos brasileiros, entre eles o Guarani, o Urucuia e Bambuí, estão localizados total ou parcialmente (no caso do Aquífero Guarani) dentro dos limites do Cerrado. 

Os solos do Cerrado, extremamente ácidos, sempre foram considerados pobres e inadequados para a prática de agricultura em larga escala. Durante vários séculos, a região abrigou pequenos roçados de subsistência e pastagens para reduzidos rebanhos. A partir da década de 1950, foram desenvolvidas várias técnicas de correção de solos e, já na década de 1970, foram criadas variedades de sementes de cultivares adaptadas para solos ácidos. Com grandes incentivos do Governo Federal, um grande número de agricultores, especialmente da região Sul, foi deslocado para regiões de Cerrado em todo o Brasil. O Cerrado foi transformado na nova fronteira agrícola do país. Vastas áreas do Bioma foram substituídas por gigantescas plantações de milho e, especialmente, de soja, um grão altamente valorizado no mercado internacional. 

O Cerrado era considerado plano e com farta disponibilidade de recursos hídricos para a irrigação. Com a mudança da capital brasileira para a nova cidade de Brasília em 1960, foram feitos grandes investimentos na construção de rodovias em direção ao Planalto Central e para toda a Região Centro-Oeste, o que favorecia tanto o escoamento da produção de grãos quanto o fluxo de imigrantes de outras regiões na direção da nova fronteira agrícola. Os campos agrícolas se expandiram rapidamente na direção de Mato Grosso, que acabou dividido em Mato Grosso e Mato Grosso do Sul, Rondônia e Acre, de um lado, e Norte de Goiás, que acabou se transformando no Estado de Tocantins, Oeste da Bahia e, mais recentemente, na direção do Sul do Estado do Piauí e do Maranhão. Regiões do Cerrado nos Estados de Minas Gerais, São Paulo e Paraná, que já estavam ocupadas por cidades e plantações experimentaram saltos na produtividade. 

A vegetação nativa do Cerrado passou por um longo e intenso processo evolutivo, se adaptando ao clima e as condições de solo da região. Essa vegetação possui sistemas de raízes gigantes, próprios para captar água em grandes profundidades nos períodos de seca. São justamente essas raízes que permitem a infiltração da água das chuvas nos aquíferos profundos. Com a derrubada da vegetação nativa para a formação dos campos agricultáveis, essa permeabilidade do solo fica altamente prejudicada e a recarga dos aquíferos e lençóis subterrâneos de água diminuiu consideravelmente.  

Atualmente, os antigos domínios do Cerrado concentram 36% de todo o rebanho bovino – 30% do Cerrado foi transformado em pastagens para boiadas, e 63% da produção de grãos. No Cerrado, a soja representa 90% (15,6 milhões de hectares) da agricultura do bioma. Para se ter uma dimensão dos impactos, mais da metade (52%) da soja cultivada no Brasil nas últimas safras estava concentrada em áreas do Cerrado.  

Nos últimos dez anos, o Cerrado foi o bioma brasileiro que sofreu a maior perda de área nativa – 50 mil km², área maior do que o território do Estado do Rio de Janeiro. A região conhecida como Matopiba, que incorpora áreas dos Estados do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia, é a maior fronteira agrícola atual de expansão da cultura da soja e apresenta as maiores perdas de vegetação e de espécies animais nativas do Cerrado. Toda essa expansão de campos agrícolas e de pastagens em áreas de Cerrado teve um alto custo ambiental, que se traduz na redução dos caudais das bacias hidrográficas com nascentes no bioma – o Rio São Francisco vem sendo uma das maiores vítimas dessa redução dos caudais.  

A Represa de Três Marias pode ser usada como uma espécie de medidor dessa redução dos caudais do rio São Francisco. Na forte seca que atingiu grandes áreas do Brasil Central há cerca de sete anos atrás, o volume da Represa de Três Marias chegou a cair ao nível de 2,57%. Lembrando que essa represa foi idealizada originalmente para regular os caudais do rio São Francisco e, de quebra, gerar energia elétrica, com esse baixíssimo volume de águas ela perdeu completamente a sua utilidade. Mesmo com fim da seca e com a volta das chuvas, a represa está se recuperando lentamente e no início desse ano atingiu 70% do seu nível, o que comprova como a situação do rio está crítica. 

A chegada dos rejeitos de mineração e da lama do desastre de Brumadinho na Represa de Três Marias agrega novos problemas a já sofrida calha do rio São Francisco e comprova que a estupidez humana não tem limites. 

TRÊS MARIAS: A MAIOR REPRESA COM BARRAGEM EM ATERRO DO MUNDO DA SUA ÉPOCA

Represa de Três Marias

A Represa de Três Marias (vide foto), no Alto rio São Francisco, foi concluída em 1961 e já foi entrando para o “livro dos recordes” na época: com cerca de 2,7 km de extensão, era a represa com maior barragem do mundo construída pelo sistema de aterro. Com 76 metros de altura, a barragem formou uma represa com aproximadamente 1.100 km² e capacidade para armazenar cerca de 21 bilhões de m³ de água. Entre as principais justificativas para a construção da represa estava a regularização dos caudais do rio São Francisco nos meses de seca, o que garantiria à época a continuidade dos importantes serviços de navegação, além da operação contínua das Usinas Hidrelétricas de Paulo Afonso

Dentro do conceito de uso múltiplo das águas do rio, Três Marias também abrigava uma Usina Hidrelétrica, com capacidade inicial de geração de 65 MW e com linhas de transmissão de 300 mil Volts para o sistema elétrico da região Central de Minas Gerais e de 138 mil Volts para a região Norte do Estado, para a região de Patos e Patrocínio e, eventualmente, interligando com a linha de transmissão de Peixotos a Araxá. A potência instalada da Hidrelétrica foi sendo ampliada, atingindo uma capacidade total de 396 MW

Quando comparada a outras usinas hidrelétricas com área de lago semelhante, a produção de energia elétrica em Três Marias é considerada muito baixa. Uma comparação possível, mas não totalmente perfeita devido à diferença entre os caudais do rio Paraná em relação ao rio São Francisco, é com a Usina Hidrelétrica de Ilha Solteira, na divisa entre os Estados de São Paulo e do Mato Grosso do Sul. Essa Usina possui um lago com uma área de 1.195 km² e têm uma potência instalada total de 3,44 mil MW. No mesmo rio São Francisco, a Usina Hidrelétrica de Xingó, na divisa entre os Estados de Alagoas e de Sergipe, que tratamos na nossa última postagem, tem uma potência instalada de 3,16 mil MW, contando ainda com espaço para a instalação de novos grupos geradores e aumento da capacidade de produção.  

O empreendimento está localizado no Município de Três Marias, a cerca de 280 km da capital do Estado, Minas Gerais, uma distância considerável para a péssima qualidade das estradas na época da construção. Contam as histórias do lugar que havia uma hospedaria familiar próxima ao rio São Francisco, que era administrada por três irmãs: Maria Francisca, Maria das Dores e Maria Geralda. O local era conhecido popularmente com a Hospedaria das Três Marias. Certo dia, as três irmãs foram nadar no rio, sendo surpreendidas por uma repentina “cabeça de enchente”, que chegou aumentando bruscamente a correnteza e o volume das águas do São Francisco. A três irmãs acabaram morrendo afogadas e toda a região passou a ser conhecida pelo nome de Três Marias

O rio São Francisco, como já comentamos em diversas postagens anteriores, têm suas nascentes localizadas, majoritariamente, em áreas de Cerrado, um bioma que apresenta apenas duas estações distintas – um período de seca e outro de fortes chuvas. Na época das chuvas, esses rios apresentam caudais substanciais, que lançam grandes volumes de água na calha do rio São Francisco, que tem seu nível fortemente elevado. Quando chega o período da seca, os afluentes e rios formadores do São Francisco minguam e os caudais do rio baixam consideravelmente. Em diversos pontos, a calha do rio São Francisco passava a apresentar grandes afloramentos rochosos, como na região de Pirapora, no Norte de Minas Gerais, além de inúmeros bancos de areia. Esses obstáculos se transformavam em verdadeiras armadilhas para as embarcações. 

Um dos principais trechos navegáveis do rio São Francisco ligava as cidades de Pirapora, no Norte de Minas Gerais, a Juazeiro, no Norte da Bahia, e Petrolina, em Pernambuco, um caminho de águas com mais de 1.350 km de extensão. Antes da abertura de grandes rodovias e da popularização dos transportes rodoviários, o Velho Chico ou, o “rio da integração nacional”, era uma importante via para o transporte de cargas e de passageiros, com inúmeras empresas e embarcações operando no rio. Um dos símbolos mais contemporâneos dessa fase é o navio vapor Benjamin Guimarães que, ao longo de grande parte do século XX operou nesse trecho do São Francisco. O lendário vapor, tombado pelo Patrimônio Histórico e Cultural do Estado de Minas Gerais, hoje jaz ancorado em um estaleiro aguardando uma reforma e melhorias nos caudais do rio São Francisco. 

Grupos políticos de Minas Gerais e da Bahia, preocupados com os problemas criados no período da seca e com as profundas repercussões econômicas desencadeadas em toda a calha do rio São Francisco, trabalharam fortemente junto à CVSF – Comissão do Vale do São Francisco, uma autarquia criada em 1948 para tratar de questões para o desenvolvimento da região. Também houve um forte lobby junto ao Governo Federal, que na época do início da construção da Represa de Três Marias – 1957, estava nas mãos do mineiro Juscelino Kubitschek. Essa combinação de esforços resultou num projeto que atendia tanto as necessidades de regularização das vazões do rio São Francisco quanto a necessidade de geração de energia elétrica para um país em forte desenvolvimento econômico no período. 

A construção de Três Marias foi fruto de um acordo entre a CEMIG – Centrais Elétricas de Minas Gerais, que depois teve seu nome alterado para Companhia Energética de Minas Gerais, e da CVSF. A energia elétrica produzida na Usina Hidrelétrica seria direcionada principalmente para empresas do setor metalúrgico de Minas Gerais, em especial, as empresas Companhia Siderúrgica Belgo Mineira, Companhia Siderúrgica Mannesmann e USIMINAS, além de outras empresas menores dos setores de alumínio e zinco. Além dos benefícios diretos criados pela energia elétrica gerada em Três Marias, os defensores da obra fizeram um grande trabalho de divulgação junto aos seus eleitores sobre os benefícios criados pelo controle das vazões do rio São Francisco no combate às secas frequentes na Região Norte de Minas Gerais e no sertão Nordestino. Com a estabilidade dos caudais do rio, grandes projetos de irrigação poderiam ser desenvolvidos em todo o semiárido brasileiro. A navegação também estava garantida. 

Para a realização desse verdadeiro “mega projeto” na época, foram mobilizados cerca de 3.500 trabalhadores, organizados em dois turnos de dez horas, e 500 técnicos especializados, onde se incluíam engenheiros, capatazes e pessoal administrativo. Para comportar tanta gente em uma região tão isolada, foi construída uma cidade temporária para acomodar cerca de 10 mil habitantes. Essa estrutura era dotada de diversos serviços públicos como escolas e hospital, além de centro comercial e clube. Contava também com 26 grandes alojamentos para solteiros, 122 residências e 2 centros administrativos. Foi criada também uma vila com 650 casas para trabalhadores casados, que se tornaria o embrião da cidade de Três Marias. Como é comum nesse tipo de empreendimento, trabalhadores de todo o país foram atraídos para a obra e, grande parte, acabou fixando residência na região depois de concluídos os trabalhos. 

Já na década de 1970, com a construção de inúmeras rodovias e com a popularização dos transportes de carga por caminhão e de passageiros por meio de ônibus, a navegação nas águas do rio São Francisco perdeu relevância. A construção de usinas hidrelétricas em outros grandes rios brasileiros, pouco a pouco também passou a ofuscar a importância da Usina Hidrelétrica de Três Marias. Por fim, o avanço das frentes agrícolas pelo Cerrado comprometeu imensamente os caudais do rio São Francisco – na forte seca que atingiu grandes áreas do Brasil Central há poucos anos atrás, o volume da Represa de Três Marias chegou a cair ao nível de 2,57%. Felizmente, a represa está se recuperando bem e já supera o nível de 70% este ano

Enfim, Três Marias é um símbolo da grandiosidade de outrora e da decadência atual do nosso Velho Chico. Lamentável.

Ver também:

CEMIG ANUNCIA A ABERTURA DAS COMPORTAS DA REPRESA DE TRÊS MARIAS E DEPOIS RECUA

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A USINA HIDRELÉTRICA DE XINGÓ E SEUS IMPACTOS SOCIAIS E AMBIENTAIS

UHE Xingó

A famosa Cachoeira de Paulo Afonso, onde foi construído o Complexo Hidrelétrico homônimo e sobre o qual tratamos em postagem anterior, marca o início do trecho final do rio, conhecido como Baixo São Francisco. A região da Cachoeira também marca o início de um longo trecho onde o rio se afunila em um profundo e extenso cânion, com mais de 60 km de extensão. A Usina Hidrelétrica de Xingó, localizada entre os Estados de Alagoas e de Sergipe a cerca de 65 km a jusante da Cachoeira de Paulo Afonso, foi idealizada de forma a se aproveitar dessa extensa formação geológica para a inserção de seu lago. 

A barragem da hidrelétrica de Xingó tem uma altura máxima de 140 metros e forma um reservatório de águas profundas ao longo de grande parte do cânion. A formação do reservatório de Xingó transformou esse trecho do rio São Francisco num dos mais extensos cânions navegáveis do mundo. Essa característica transformou a região num importante centro turístico regional, com empresas oferendo variados pacotes de passeios de barco, com direito a mergulhos nas águas do Velho Chico. 

A potência instalada atual da hidrelétrica de Xingó totaliza 3.162 MW, o que a coloca na lista das maiores unidades geradoras do Brasil. A usina possui 6 grupos geradores e possui a previsão para a instalação de mais 4 grupos. A hidrelétrica é operada pela CHESF – Companhia Hidrelétrica do rio São Francisco e seu primeiro grupo gerador iniciou suas operações em 1994. Xingó é responsável por cerca de 30% da energia elétrica gerada na Região Nordeste e já foi considerada uma das mais modernas e eficientes usinas hidrelétricas do mundo

Apesar da sua inquestionável importância estratégica, que garantiu a autossuficiência na geração de energia elétrica da Região Nordeste, a construção de uma usina do porte de Xingó gerou inúmeros impactos sociais e ambientais. Além da desapropriação de centenas de pequenas propriedades rurais, a construção de Xingó provocou a demolição da Velha Canindé, um vilarejo com cerca de 130 residências, onde a maior parte das construções eram feitas de taipa e barro batido. Grande parte dos habitantes da cidade foram transferidos para a vizinha Canindé do São Francisco

Uma das características do Baixo rio São Francisco era a existência de ciclos de cheia nos períodos de chuva, quando as águas avançavam pelas margens e formavam uma extensa planície alagável. Essas planícies eram fertilizadas naturalmente com os sedimentos carreados pelas águas do rio e formavam áreas de extrema fertilidade. As populações ribeirinhas se valiam dessa “dádiva da natureza” para o cultivo de culturas de subsistência como milho, abóbora, feijão-de-corda, melancia, tomate, coentro, fava, quiabo e, principalmente, arroz. A produção nestas áreas não dependia de chuvas e ótimos índices de produtividade eram possíveis até em anos de forte seca

O ciclo de cheias do rio São Francisco se iniciava no final de novembro e se estendia até o final do mês de março, quando tinha o início do plantio do arroz e das demais culturas associadas. Os ribeirinhos preparavam a terra para o plantio antes do início das cheias – com a inundação, a terra era adubada naturalmente pelas águas do rio. Assim que as águas baixavam, os ribeirinhos realizavam o plantio das mudas de arroz e de outras culturas, preparadas previamente em canteiros localizados junto às suas residências. Esse sistema de produção cíclica se repetiu durante várias décadas até que, com a construção de sucessivas barragens de usinas hidrelétricas ao longo da calha do rio São Francisco, as cheias anuais passaram a diminuir gradativamente. Após a construção da Usina Hidrelétrica de Xingó, as cheias praticamente desapareceram. 

A vazão média histórica das águas do Rio São Francisco na foz no Oceano Atlântico era de 2.943 metros cúbicos por segundo, o que assegurava ao rio uma extraordinária energia para empurrar e manter as águas salgadas do mar distantes da calha do Velho Chico. As sucessivas agressões ambientais, ao longo de séculos de ocupação das margens de todos os rios que formam a bacia hidrográfica, tiveram como consequência uma redução gradual dos caudais, o que gradativamente se refletiu na redução do volume e na energia das águas que chegam na foz do Rio. Em anos recentes, em função da forte seca que assolou várias regiões do Brasil, a vazão média do rio chegou a cair para 600 metros cúbicos por segundo devido ao controle de vazão das usinas hidrelétricas. Ao longo de todo o século XX, especialmente devido à construção de diversas barragens de usinas hidrelétricas, a redução dos caudais aumentou significativamente, tornando ainda mais crítica a luta das águas do Velho Chico contra o avanço contínuo das águas do mar

Com o fim das planícies alagáveis no Baixo rio São Francisco, a cultura de arroz nessas lavouras de subsistência praticamente desapareceu, afetando a vida de milhares de ribeirinhos. Com o fim das cheias anuais, a produção do cereal passou a depender do uso de sistemas de irrigação, um luxo inalcançável para a grande maioria dos agricultores pobres. Para complicar ainda mais a situação, o controle das vazões do rio São Francisco nas barragens das usinas hidrelétricas deu início a ciclos de intrusão salina na calha do rio, especialmente nas regiões mais próximas da foz. Conforme já comentamos em postagens anteriores, os fortes caudais do rio São Francisco no passado podiam ser detectados até a 4 km mar adentro. Sem a força dessa forte correnteza devido ao controle da vazão do rio, a água do mar passou a entrar pela calha do São Francisco. 

Um sintoma visível dessa salinização das águas do baixo Rio São Francisco são os relatos cada vez mais frequentes, feitos por ribeirinhos e pescadores, que tratam do avistamento e captura de tubarões em trechos do rio cada vez mais distantes da foz. A alta salinidade da água que permite a sobrevivência de tubarões, é fatal para os seres humanos. A água doce ou potável que todos nós consumimos diariamente é aquela que apresenta uma concentração máxima de sal de 0,5 gramas por litro – já a água salgada ou dos oceanos, apresenta níveis de concentração de sal superiores a 30 gramas por litro; as águas que apresentam níveis de sal intermediários, acima de 0,5 gramas/litro e abaixo de 30 gramas / litro, são chamadas de águas salobras, justamente a classificação em que se encontram as águas do Rio São Francisco em trechos próximos da foz. O consumo de água salobra pelos habitantes da região tem afetado a saúde de muita gente. 

No povoado de Potengy, que pertence ao município de Piaçabuçu em Alagoas, temos um exemplo desses problemas: pesquisa realizada por agentes de saúde da comunidade constatou que houve um aumento de 36% no número de moradores hipertensos acompanhados pelas autoridades de saúde. A água captada pela empresa de abastecimento local é retirada diretamente do Rio São Francisco e os processos de tratamento utilizados não conseguem retirar o excesso de sal da água – esse mesmo problema afeta dezenas de cidades nas margens do baixo Rio São Francisco. Para conseguir água fresca, muitos moradores do povoado são obrigados a se deslocar por 7 quilômetros para retirar água de uma cacimba (espécie de poço aberto no solo). A salinidade das águas do Rio São Francisco está afetando gradativamente os aquíferos locais, que produzem água cada vez mais salobra. 

Até uma das atividades femininas mais típicas das mulheres ribeirinhas da região – a lavagem de roupas nas águas do rio, cada vez mais é uma coisa do passado: as roupas ficam mal lavadas e o sal estraga os tecidos, dizem elas. Para os moradores locais, é cada vez mais revoltante ver águas tão importantes se tornando cada vez mais “imprestáveis” para os usos mais comuns do seu dia a dia. 

Quando as águas de um grande trecho de um dos rios mais importantes do país não se prestam nem para lavar roupa, é sinal que há muita coisa errada. Isso acontece hoje no rio São Francisco e a Usina Hidrelétrica de Xingó, infelizmente, deu sua contribuição em mais essa tragédia social e ambiental. 

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JUQUITIBA E BARÃO DE COCAIS: DUAS PEQUENAS CIDADES E OS DRAMAS CRIADOS PELOS RISCOS DE ROMPIMENTO DE BARRAGENS

Barão de Cocais

Nas últimas semanas temos falando sobre as relações, nem sempre cordiais, entre os recursos hídricos e a geração de energia elétrica. Vamos fazer uma pequena pausa nessa temática para falar de um problema que tem tirado o sono de muita gente nesses últimos dias – o risco de rompimento de barragens em duas pequenas cidades do interior. 

Juquitiba é uma cidade com pouco mais de 30 mil habitantes, localizada a cerca de 70 km do centro da cidade de São Paulo. O município fica localizado nas bordas da Serra do Mar e é coberto por Mata Atlântica, oferendo ótimas atrações para o turismo de lazer e para o ecoturismo, além de abrigar inúmeras chácaras de fim de semana de famílias paulistanas. Quando adolescente, eu era membro de um clube de escoteiros e acampei diversas vezes em sítios em Juquitiba. O nome do município, aliás, é um topônimo de origem tupi guarani, que significa “terra de muitas águas”, numa alusão ao grande número de nascentes e rios da região. 

Nesse último fim de semana, o risco de rompimento da barragem de uma represa de um “pesque e pague” no município, deixou muita gente apavorada. Localizada em um dos muitos vales de Juquitiba, a barragem sob risco era a mais alta de uma série de quatro represas – caso essa barragem se rompesse, o fluxo de água poderia provocar o rompimento das demais barragens em “cascata”. A situação poderia se tornar catastrófica pois, sabe-se lá porquê, uma escola pública foi construída as margens da represa mais baixa e seria atingida em cheio pelas águas. Para completar o quadro, a eventual onda de entulhos que seria gerada pelo acidente chegaria até as pistas da Rodovia Régis Bittencourt, que liga a cidade de São Paulo a Curitiba, no Paraná, e é uma das estradas mais movimentadas do país. 

Por razões óbvias de segurança, as aulas da escola foram suspensas. Técnicos do DAEE – Departamento de Águas e Energia Elétrica, uma autarquia do Governo Estadual responsável pelo gerenciamento e fiscalização de reservatórios de água, passaram a fazer vistorias na barragem e perceberam, rapidamente, que a altura do barramento estava bem acima do que havia sido autorizado. A causa do problema só foi identificada dois dias depois – por falta de manutenção, a tubulação do “ladrão” estava entupida e a água excedente do reservatório estava escorrendo por uma fresta na barragem, fresta essa que começou a crescer e abriu uma grande cratera no aterro. Felizmente, uma tragédia maior pode ser evitada, pelo menos por enquanto. 

Já em Barão de Cocais, uma cidade com uma população de pouco mais de 32 mil habitantes e localizada a cerca de 90 km de Belo Horizonte, o rompimento iminente de uma barragem de rejeitos da Mina de Gongo Seco está deixando muita gente a “beira de um ataque de nervos”. Um grande bloco rochoso do talude da antiga área de mineração está se movimentando entre 6 e 10 centímetros por dia, e corre o risco de cair a qualquer momento na área da cava da mina, que tem aproximadamente 100 metros de profundidade. A onda de choque criada pelo desabamento poderá provocar o rompimento de uma barragem de rejeitos localizada a cerca de 1 km, criando assim uma onda de lama e de minerais que seguirá na direção da cidade. Desde o dia 22 de março, toda a cidade está em estado de alerta para o risco de rompimento da barragem. 

De acordo com informações da ANM – Agência Nacional de Mineração, o monitoramento desse talude vinha indicando a ocorrência de um deslocamento de cerca de 10 cm por ano desde 2012. A partir do último mês de abril, a velocidade da movimentação do talude aumentou substancialmente e os riscos de rompimento da barragem passaram a ser significativos. De acordo com laudos técnicos em posse do Ministério Público de Minas Gerais, o rompimento e a queda do talude rochoso deverão acontecer até o próximo sábado, dia 25 de maio. As chances da barragem de rejeitos se romper são calculadas entre 10 e 15%

As projeções indicam que, em caso de rompimento da barragem, a onda de lama e rejeitos deverá atingir o centro de Barão de Cocais em pouco mais de uma hora, atingindo diretamente cerca de 9 mil moradores. Diversos exercícios simulados para evacuação da população já foram feitos, placas de sinalização indicando as rotas de fuga já foram instaladas (vide foto) e até pinturas já foram feitas no meio fio e nas calçadas, indicando os locais que poderão ser atingidos pelos detritos. Cerca de 400 moradores de áreas críticas já foram remanejadas para acomodações em hotéis nos pontos mais altos de Barão de Cocais. A iminência da tragédia e a lembrança dos acidentes com as barragens de rejeitos em Mariana e em Brumadinho, tem tirado o sono de muita gente e não há preparativos ou treinamentos que façam as pessoas relaxarem. 

Segundo informações dos serviços médicos da cidade, a ansiedade e o medo criado pela eventual tragédia estão afetando a saúde da população – houve um aumento substancial nas consultas com psicólogos e psiquiatras. Mas os problemas não param aqui – de acordo com a Defesa Civil do Estado de Minas Gerais, os acessos à única unidade de saúde da cidade, o Hospital Municipal Waldemar das Dores, poderão ficar bloqueados pela lama e os acesso só poderá ser feito de helicóptero.

A proprietária da Mina de Gongo Seco, a Vale do Rio Doce, que coincidentemente também é a responsável pelas barragens de Mariana e de Brumadinho, afirma estar tomando medidas para a contenção da onda de lama e de rejeitos minerais no caso do rompimento da barragem. A empresa está construindo uma barreira de concreto a 6 km da barragem. Telas metálicas e blocos de granito também estão sendo instalados, com o objetivo de reduzir a velocidade da eventual onda de rejeitos.  Diferente das outras tragédias, que segundo a empresa ocorreram de forma “inesperada e acidental”, a de Barão de Cocais tem, praticamente, data e hora para acontecer.

Esperemos todos que, a exemplo da barragem da represa de Juquitiba, a tragédia anunciada de Barão de Cocais não aconteça e que a vida possa voltar ao normal. Torçamos também para que as autoridades “competentes” desse país finalmente comecem a fiscalizar e a punir exemplarmente as empresas de mineração pelos feitos e mal-feitos em suas atividades.

Não dá para as coisas ontinuarem do jeito que estão.

OS GIGANTESCOS IMPACTOS SOCIAIS CRIADOS PELAS OBRAS DA USINA HIDRELÉTRICA DE SOBRADINHO

Pilão Arcado

Durante os primeiros três séculos da história oficial do Brasil, a Região Nordeste foi a mais explorada economicamente do país e forneceu gigantescos volumes de produtos de alto valor comercial para a nossa antiga Metrópole, o Reino de Portugal. O principal produto de exportação de nossa economia colonial era o açúcar, cujo principal centro produtor se localizava na faixa costeira do Nordeste, entre a Bahia e o Rio Grande do Norte. Para a produção do açúcar, o trecho Nordeste da Mata Atlântica foi impiedosamente destruído, liberando terras para o plantio da cana e fornecendo a lenha usada nos engenhos de produção do açúcar. Em menor escala, a região também produzia aguardente e fumo, produtos que eram usados na troca por negros escravizados no continente africano. 

Enquanto os engenhos e as plantações de cana-de-açúcar floresciam no litoral, os criadores de gado e suas boiadas foram expulsos e buscaram refúgio nos sertões. A região do Semiárido Nordestino, quando comparada a exuberância da Mata Atlântica, apresenta uma série de limites físicos para sustentar grandes rebanhos animais, especialmente quando concentrados em áreas muito pequenas. Os sistemas florestais nativos da Região formam um verdadeiro mosaico, com os mais diversos tipos de vegetação, que, tradicionalmente, são agrupados em três grandes grupos – o Agreste, a Caatinga e o Alto Sertão, com plantas adaptadas ao clima e aos baixos volumes de água disponíveis. Para sustentar seus rebanhos, os criadores passaram a queimar a vegetação nativa, forçando assim a expansão artificial das áreas de pastagens para os rebanhos. 

Esses ciclos de forte exploração dos recursos ambientais na Região Nordeste no passado estão na raiz da pobreza social e na limitada capacidade de produção econômica que encontramos nos sertões nordestinos hoje – a super exploração dos recursos naturais no passado cobra hoje o seu preço. O ciclo de instalação de grandes usinas hidrelétricas na região, iniciado com a construção das usinas do Complexo Hidrelétrico de Paulo Afonso ainda no final da década de 1940, foi, na minha opinião, uma forma de ajudar a Região Nordeste a iniciar um processo de recuperação econômica e social em relação às regiões mais desenvolvidas do país. Os bons níveis de crescimento econômico da Região nas últimas décadas provam que as escolhas foram acertadas. Infelizmente, como todos sabemos, a construção de grandes usinas hidrelétricas gera inúmeros problemas sociais e ambientais – Sobradinho é um grande exemplo disso. 

A construção da Usina Hidrelétrica de Sobradinho na década de 1970 foi decidida, junto com tantas outras grandes obras de infraestrutura, nos gabinetes do Governo Militar, sem consultar o povo, sem maiores preocupações com meio ambiente ou com os impactos negativos que o represamento do Rio São Francisco poderia produzir no futuro. Sobrava dinheiro no mercado internacional para empréstimos para os países em desenvolvimento e os planejadores oficiais da pátria tinham centenas de projetos faraônicos prontos para serem colocados em prática.  Alguma autoridade com o peito cheio de medalhas tomou a decisão e disse “faça-se”. Ninguém questionava uma ordem dessas naquela época. 

Calcula-se que 12 mil famílias, o que corresponde a aproximadamente 70 mil pessoas, tiveram de ser removidas das áreas que seriam alagadas após a formação do Lago de Sobradinho. Essa população foi remanejada para outras regiões do semiárido baiano e pernambucano. Quatro cidades localizadas dentro da área de inundação da represa – RemansoSento-Sé, Casa Nova e Pilão Arcado (vide foto), tiveram as suas áreas urbanas transferidas para outras regiões – as ruínas das antigas casas, igrejas, mercados e demais construções sumiram sob as águas quando o lago encheu.  

A propaganda oficial da época enalteceu a capacidade das empresas de engenharia brasileiras, falou dos milhares de Mega Watts de energia elétrica que seriam gerados em prol do desenvolvimento da Região Nordeste e outras coisas na linha da “patriotada”. Eu era adolescente na época e, sinceramente, não lembro de ter ouvido falar do drama social de dezenas de milhares de pessoas que, de uma hora para outra, tiveram de abandonar as suas terras e casas, para dar lugar as águas de uma represa. 

Os cantores Sá e Guarabyra lançaram na época uma música de protesto contra a construção da represa, que falava da expulsão dos moradores e da destruição das cidades. O nome da música, bastante oportuno aliás, é Sobradinho – um pequeno trecho: 

Adeus Remanso, Casa Nova, Sento Sé 
Adeus Pilão Arcado, vem o rio te engolir 
Debaixo d’água lá se vai a vida inteira 
Por cima da cachoeira o Gaiola vai subir 
Vai ter barragem no salto do Sobradinho 
E o povo vai se embora com medo de se afogar 
O sertão vai virar mar… 

Eu já trabalhei em algumas obras viárias e de saneamento básico, onde o projeto exigia a desapropriação de imóveis dentro da área urbana – este é um processo lento, burocrático e cheio de idas e vindas, que normalmente é feito por pessoas e empresas especializadas no assunto. Sempre que surge a notícia de desapropriação de imóveis para uma obra pública, os preços dos imóveis no local aumentam de preço de maneira “milagrosa”, surgem escritórios de advocacia especializados para defender o direito dos moradores, entre outros percalços. Às vezes, alguns projetos acabam sendo mudados de forma a se fugir de alguma desapropriação difícil. Em áreas rurais as negociações costumam ser um pouco mais fáceis. Na década de 1970, em pleno regime militar, não havia tempo para muita conversa – se foi decidido que a obra seria feita naquele lugar, o mais sensato era arrumar as malas e aceitar os termos do acordo. O progresso e o bem-estar da nação estavam em primeiro lugar. 

Nos sertões da Bahia e de Pernambuco, longe dos olhos do grande público, a máquina governamental usou de toda a sua força (além das falcatruas privadas sobre as quais comentei na minha última postagem), para expulsar milhares de pequenos agricultores de suas terras (calcula-se que 80% dos desapropriadas eram de áreas rurais). Esses agricultores acabaram dispersos por todo o semiárido, instalados em terras de qualidade muito inferiores às margens férteis do Rio São Francisco. Nas áreas urbanas que seriam alagadas, os planejadores construíram novos imóveis em terrenos mais altos e transferiram os moradores – se havia alguma relevância histórica, artística ou arquitetônica nas antigas cidades, azar delas. Passados quase quarenta anos da conclusão das obras da barragem de Sobradinho, ainda existe muita mágoa, tristeza e luta por compensações morais e econômicas por parte desses antigos moradores, organizados em diversos movimentos sociais. 

Existe um outro lado nesta história, comum a outras barragens construídas em todos os cantos do país – quem tem acesso privilegiado e antecipado a informações sobre uma obra de barragem, além de saber quais serão as áreas que serão inundadas, sabe também quais serão as terras que, após a formação do lago, terão localização e vista privilegiada com a frente voltada para as águas. Pequenas propriedades em zonas áridas e distantes do Rio São Francisco foram arrematadas por baixos preços por “empreendedores” com bons amigos no governo – após o enchimento do lago, as áreas agora supervalorizadas pelo fácil acesso as águas, foram transformadas em plantações irrigadas, fazendas de lazer, pesqueiros, hotéis fazendas, marinas entre outras ocupações privilegiadas. Quem tem bons amigos, tem “tudo”. 

Quando falamos em Sustentabilidade, não há como separar os problemas ambientais, sociais e econômicos – Sobradinho que o diga. 

O SALTO DO SOBRADINHO E A CONSTRUÇÃO DE UMA DAS MAIS POLÊMICAS USINAS HIDRELÉTRICAS DO BRASIL

Sobradinho

Euclides da Cunha (1866-1909), foi militar, jornalista e escritor. Em 1897, ele foi enviado para os sertões da Bahia para cobrir, como correspondente de guerra, o conflito entre os sertanejos liderados por Antônio Conselheiro contra as forças militares do Governo Federal. Esse conflito passou para a história com o nome de Guerra de Canudos e foi imortalizado nas páginas do grande clássico de nossa literatura – Os Sertões, obra-prima de Euclides da Cunha. O livro narra detalhadamente todas as etapas do conflito, assim como a vida e o sofrimento do povo esquecido dos sertões do Nordeste. 

Em vários trechos do seu livro, Euclides da Cunha se foca em detalhes da geografia física e humana dos sertões, que em grande parte eram desconhecidos das populações do restante do Brasil e também de muitos cientistas e geógrafos da época. Muitos desses trechos são dedicados a belíssimas descrições do São Francisco, o rio mais importante da região Nordeste. Falando do Salto do Sobradinho, localizado no rio nas proximidades das cidades de Juazeiro na Bahia e Petrolina em Pernambuco, Euclides da Cunha o descreve como o início de um trecho de corredeiras, que impedia a navegação por um longo trecho do São Francisco. 

A história de Sobradinho começa no final da década de 1960, época em que o Governo Militar criou a ideologia do “Brasil Grande” e elaborou projetos de grandes obras e empreendimentos bilionários, que prometiam transformar o nosso país em uma das grandes potências mundiais. Entre rodovias, pontes e portos, os planejadores federais criaram planos para a construção de grandes usinas hidrelétricas, que forneceriam a energia necessária para o “país do futuro”. Com a construção da Usina Hidrelétrica de Sobradinho, a região Nordeste se tornaria autossuficiente em energia elétrica e teria condições plenas para o seu desenvolvimento econômico..  

Inicialmente, a ideia era a construção de uma barragem para armazenamento de água, que tinha como objetivo apenas o aumento e a regularização das vazões do rio São Francisco no período da seca, garantindo assim a geração contínua de eletricidade nas usinas do Complexo Hidrelétrico de Paulo Afonso. Um exemplo do uso dessa técnica foi a construção da Represa de Guarapiranga, na Zona Sul da cidade de São Paulo, com o objetivo de regularizar as vazões do rio Tietê e garantir o funcionamento contínuo da Usina Hidrelétrica de Parnahyba, a primeira hidrelétrica com reservatório do Brasil, inaugurada em 1901. Depois, os planos mudaram e optou-se pela construção de uma usina hidrelétrica no local. 

Sobradinho começou a ser construída em 1973, num trecho do rio São Francisco a 40 km a jusante das cidades de Juazeiro, no Estado da Bahia, e de Petrolina, em Pernambuco. A Usina foi projetada para gerar 1.050 MW de energia elétrica a partir de 6 unidades geradoras com potência unitária de 175.050 KW. A barragem teria um comprimento total de 12,5 km, com uma altura máxima de 41 metros. A usina entrou em operação em 1979

O lago formado a partir da construção da barragem de Sobradinho possui uma capacidade de armazenamento total de 34 bilhões de metros cúbicos de água, com um espelho d’água máximo de 4.214 km². É o maior lago artificial do Brasil em área ocupada e o segundo do mundo, só ficando atrás do Lago Volta na África. Quando o Lago atinge a sua cota máxima de armazenamento, o espelho d’água atinge um comprimento de 350 km e uma largura entre 10 e 40 km. Muitos sertanejos costumam lembrar da profecia de Antônio Conselheiro (1830-1897), que dizia que “o sertão vai virar mar e mar vai virar sertão” ao se referir ao Lago de Sobradinho.  

Diferentemente dos trechos encachoeirados e de cânion do rio onde foram construídas as Usinas Hidrelétricas de Paulo Afonso I, II, III e IV, além da Usina de Moxotó, onde poucos ribeirinhos foram impactados pelas obras, a construção da barragem e a formação do grande Lago de Sobradinho impactaria na inundação de extensas áreas ocupadas por pequenas propriedades rurais e também trechos urbano e até mesmo cidades inteiras. 

De acordo com informações do Movimento Nacional dos Atingidos por Barragem (MAB), foram retirados das áreas alagadas cerca de 70 mil habitantes, sendo aproximadamente 80% deste grupo formado por pequenos produtores rurais e seus familiares. Sete municípios tiveram áreas inundadas: Casa Nova, Sento-Sé, Pilão Arcado e Remanso, que tiveram as suas sedes transferidas e foram bastante afetados; e mais Juazeiro, Xique-Xique e Barra, que sofreram menores impactos.  

Esses pequenos produtores ocupavam as férteis planícies ao longo das margens e ilhas, adubadas naturalmente pelas cheias anuais do rio São Francisco. Após a desapropriação compulsória, muitos desses antigos produtores foram reassentados em áreas da caatinga e com condições muito menos favoráveis para a produção agrícola. 

Além de todo o drama de abandonar suas terras ancestrais e ter de recomeçar a vida em outras localidades, muitos sertanejos ainda foram enganados por espertalhões com “bons contatos no Governo e na CHESF”. Com acesso a informações privilegiadas, especialmente as áreas que seriam alagadas e quais os valores que seriam pagos em indenizações, esses verdadeiros vigaristas se travestiam de “corretores de imóveis” e aplicavam “golpes” nos sertanejos. Com muita conversa fiada, eles informavam que esses sertanejos seriam desapropriados sem receber nenhuma indenização pelas suas terras e os convenciam a vendê-las por valores irrisórios. De posse da documentação das terras, esses corretores de imóveis” procuravam a CHESF e conseguiam receber o valor integral das indenizações. Muita gente ficou milionária aplicando esse tipo de golpe nos sertões. 

Uma das grandes reclamações dos desalojados pela construção da Usina Hidrelétrica de Sobradinho é qualidade dos solos das terras que compraram após serem desapropriados. Diferente dos solos aluviais das margens do rio São Francisco, enriquecidos por sucessivas camadas de sedimentos depositados pelas sucessivas enchentes, muitos desses sertanejos acabaram comprando terras baratas em áreas de solo empobrecido das Caatinga, onde se trabalha muito para colher quase nada. 

O drama desses sertanejos foi imortalizado pela música de Sá & Guarabyra – Sobradinho, lançada em 1977 no período da construção da hidrelétrica: 

O homem chega, já desfaz a natureza 
Tira gente, põe represa, diz que tudo vai mudar 
O São Francisco lá pra cima da Bahia 
Diz que dia menos dia vai subir bem devagar 
E passo a passo vai cumprindo a profecia do beato que dizia que o Sertão ia alagar 

O sertão vai virar mar, dá no coração 
O medo que algum dia o mar também vire sertão 

Adeus Remanso, Casa Nova, Sento-Sé 
Adeus Pilão Arcado vem o rio te engolir 
Debaixo d’água lá se vai a vida inteira 
Por cima da cachoeira o gaiola vai subir 
Vai ter barragem no salto do Sobradinho 
E o povo vai-se embora com medo de se afogar. 

Remanso, Casa Nova, Sento-Sé 
Pilão Arcado, Sobradinho 
Adeus, Adeus 

O grande sucesso dessa música de protesto, em pleno Regime Militar, chamou a atenção de todos para as obras e ajudou a popularizar, mais para o lado negativo, a Usina Hidrelétrica de Sobradinho.