HAITI: O PAÍS MAIS POBRE E DESMATADO DAS AMÉRICAS

Terremoto do Haiti 2010

Começo contando uma das minhas histórias favoritas:

Uma das maiores criações dos povos caribenhos foi o rum, uma bebida forte destilada do melaço da cana fermentado. A bebida começou a ser produzida em todo o Caribe a partir do século XVII, quando era considerada um remédio “capaz de exorcizar todos os demônios do corpo”. O rum tem um teor alcoólico entre 40 e 55° GL e ganhou uma enorme popularidade entre os antigos marinheiros, que recebiam parte do seu soldo em garrafas da bebida. 

Uma das melhores marcas de rum há época da colonização do Caribe era produzida na então próspera colônia francesa do Haiti – Aux Cayes (No Cais). Naqueles memoráveis tempos, o Haiti era conhecido como “a pérola do Caribe”. Entre os maiores apreciadores da bebida haitiana se encontravam os marinheiros ingleses, que com o seu sotaque a chamavam “Oh Key”. Segundo alguns linguistas, essa é considerada uma das possíveis origens da palavra inglesa OK, uma das expressões mais usadas em todo o mundo. Esses bons e prósperos tempos do Haiti, infelizmente, são coisas de um passado já bem distante. 

Ocupando uma área com pouco mais de 27 mil km² e com uma população próxima aos 11 milhões de habitantes, o Haiti ou Repiblik Ayiti, em créole haitiano, é o país mais pobre das Américas e também o mais desmatado: mais de 98% das matas nativas locais já foram derrubadas. Além da destruição histórica das matas para a abertura de campos agricultáveis para o plantio da cana, grande parte desse desflorestamento se deveu ao uso de lenha como combustível e de madeira para a construção civil. 

Conforme já comentamos em postagem anterior, o nascimento oficial da Colônia Francesa do Haiti teve início em 1697, quando diversas nações assinaram o Tratado de Ryswick, pondo fim a uma série de disputas territoriais na Europa e em outras partes do mundo. Como parte do acordo, a Espanha cedeu a faixa Oeste da Ilha Hispaniola para a França, que desde 1695 já enviava seus cidadãos como imigrantes para a região. 

Ao longo do século  XVIII, o Haiti se consolidou como a mais próspera colônia da França nas Américas. Junto com o famoso rum, outro importante produto da colônia era o açúcar, uma mercadoria de luxo e extremamente valorizada há época. Além de possuir um grande mercado cativo na França, os engenhos do Haiti eram bastante eficientes e as correntes marítimas e o regime de ventos do Oceano Atlântico Norte favoreciam as viagens das embarcações entre a Europa e o Caribe, e vice-versa.  

A soma de todos esses fatores tornava o produto haitiano bem mais competitivo que o açúcar português produzido no Brasil. Outras colônias da Espanha, da Inglaterra e da Holanda no Caribe também conseguiam produzir grandes volumes de açúcar em condições competitivas, uma situação que produziu uma imensa crise na indústria açucareira do Brasil há época.  

Essa situação só não foi mais crítica devido a uma coincidência histórica – a partir da descoberta das minas de ouro na região das Geraes nos últimos anos do século XVII (1693), a atenção dos portugueses gradativamente foi se voltando para a mineração, com a produção do açúcar sendo abandonada. O auge da mineração do ouro no Brasil se deu ao longo do século XVIII. 

Os rumos do Haiti começaram a mudar nos últimos anos do século XVIII, quando uma revolta dos escravos levou a abolição da escravidão do país em 1794. Depois de dez anos de lutas, os haitianos conseguiram a independência da França em 1804. Essa “aparente” vitória do povo do Haiti acabaria se transformando no começo da decadência da próspera ex-colônia – a França e os Estados Unidos, países até então fortemente escravagistas, criaram um forte bloqueio comercial ao país. 

Foi somente em 1825, já durante a presidência de Jean Pierre Boyer, que o Haiti conseguiu assinar um acordo com a França, pondo fim ao bloqueio comercial. Pelos termos do acordo, o Haiti deveria pagar uma indenização de 150 milhões de francos à antiga Metrópole, valor que acabou sendo reduzido a 90 milhões de francos. Esse acordo não foi espontâneo – o país estava cercado por uma poderosa frota naval da França e não teve outra alternativa. O pagamento dessa indenização exauriu a já combalida economia do país

A decadência econômica foi seguida pelo caos político – ao longo da segunda metade do século XIX, o Haiti teve um total de 20 governantes, sendo que 16 deles acabaram depostos ou assassinados. Essa instabilidade política continuou nos primeiros anos do século XX. Em 1915, sob o velho pretexto de proteger seus interesses no país, os Estados Unidos ocuparam o Haiti, onde permaneceriam até 1934

Mesmo após a saída dos norte-americanos do país, as forças políticas do Haiti não conseguiram atingir a tão esperada estabilidade. Foi então que, em 1957, o médico François Duvalier, mais conhecido como Papa Doc, foi eleito Presidente com apoio dos Estados Unidos. Aproveitando-se do clima conturbado da Guerra Fria vivida entre norte-americanos e russos, Papa Doc impantou uma ditadura sanguinária, que se estenderia até 1986, quando o país já era governado por seu filho Jean-Claude Duvalier, o Baby Doc

Os Duvaliers exploravam todo o misticismo do vudu, uma religião de origem africana popular no Haiti, para subjugar a população. A parte mais visível dessa face do terror eram os tontons macoutes, ou os bichos-papões em creóle, os policiais da guarda pessoal do Presidente. Esses “policiais” eliminavam opositores, prendiam e torturavam jornalistas, padres, professores e quem mais ousasse se opor ao regime. Essa longa ditadura ajudou a consolidar o Haiti na posição de país mais pobre e miserável das Américas. 

O reestabelecimento da democracia após a queda da ditadura dos Duvaliers não foi suficiente para colocar o Haiti dentro das mínimas condições de governabilidade e de desenvolvimento econômico. O exemplo mais dramático da incapacidade do Governo foi demonstrado após o forte terremoto que assolou o país em 2010. Epicentro do cismo, a capital do país, Porto Príncipe, teve cerca de 80% de suas construções destruídas ou seriamente danificadas. As estimativas falam de um total entre 220 mil e 300 mil mortos, 300 mil feridos e perto 1,5 milhão de desabrigados. Mesmo contando com ajuda internacional, o país até hoje não superou a tragédia (vide foto). 

Entre 2004 e 2017, tropas do Exército do Brasil participaram de uma missão de paz internacional da ONU – Organização das Nações Unidas, para restaurar a ordem e ajudar a estabilizar a situação política do Haiti. Além de conter a violência entre os diferentes grupos políticos, os efetivos militares dessa missão de paz foram fundamentais para o socorro e atendimento da população após o terremoto de 2010.

Com um histórico dos mais complicados dos pontos de vista social e econômico, a situação do meio ambiente no Haiti é simplesmente caótica. Restam menos de 2% da cobertura vegetal original do país, o que comprometeu a maioria dos rios e corpos d’água e tem afetado profundamente o abastecimento das populações. Solos perderam a fertilidade e o país precisa importar a maior parte dos laimentos consumidos pela população. A imensa maioria dos haitianos depende da coleta de lenha para cozinhar, o que vem impedindo qualquer recuperação da vegetação – as novas árvores mal atingem um metro de altura e já são cortadas para uso como lenha. 

Nas áreas urbanas, os problemas se multiplicam – à carência de água potável se somam esgotos correndo a céu aberto, falta de coleta de lixo, habitações precárias e falta dos mais elementares serviços públicos como saúde, educação e segurança pública. A situação da população só não é mais crítica devido à criação de postos de trabalho temporários na vizinha República Dominicana há época do corte da cana de açúcar.  

Centenas de milhares de haitianos migram nesse período para o país vizinho, onde se submetem a longas e pesadas jornadas de trabalho no corte e transporte da cana de açúcar, recebendo em troca salários miseráveis. Ao final da colheita da cana, esses trabalhadores voltam para o Haiti (os dominicanos discriminam fortemente os haitianos), onde conseguirão se manter precariamente até a chegada da próxima safra de cana. 

Um resumo da situação ambiental do Haiti pode ser visto na Península de San Nicolás, no Norte do país. A destruição da cobertura vegetal criou o maior “deserto” de todas as ilhas do Caribe, que não para de crescer. Se nada for feito para frear ou reverter essa situação, o Haiti, palavra que na antiga língua dos índios arahuacas significa “terra de montanhas”, em breve poderá ser chamado de terra dos desertos

REPÚBLICA DOMINICANA: A ECONOMIA MAIS DINÂMICA DO CARIBE E SEUS MUITOS PROBLEMAS AMBIENTAIS

Punta Cana

A República Dominicana ocupa a maior parte da Ilha de São Domingo (ou Santo Domingo), com uma área total de 48,4 mil km² e com uma população de 10 milhões de habitantes. Aproximadamente 1 milhão de habitantes vivem na capital do país, Santo Domingo. Conforme comentamos na postagem anterior, a Ilha de São Domingo ou Hispaniola foi o berço da colonização das Américas. 

Santo Domingo foi a primeira cidade com ocupação permanente a ser fundada no Continente Americano em 1496. Entre as décadas de 1520 e 1530, a cidade assistiu à construção da Catedral de Santa Maria la Menor, a primeira das Américas, e também a inauguração da primeira universidade americana – Santo Tomás de Aquino, em 1538. Ao longo de todo o século XVI, Santo Domingo e a Ilha Hispaniola gozaram de grande prestígio econômico e político.  

Porém, já no início do século XVII, a Ilha acabou eclipsada pelas grandes conquistas espanholas no continente, perdendo grande parte da sua população e sendo relegada a um segundo plano. Em 1697, como extensão do Tratado de Ryswick e que envolvia diversas potências da época, as Coroas da Espanha e da França chegaram a um acordo para a cessão de toda a faixa Oeste da Ilha Hispaniola para os franceses. A França criou na região o Haiti, uma das mais importantes colônias do Caribe ao longo do século XVIII. 

A República Dominicana só voltou a ganhar relevância em 1804, quando o Haiti se tornou independente. Diferentes grupos políticos locais passaram a lutar pelo poder, com alguns querendo uma união com o Haiti e outros querendo simplesmente a independência da Espanha. O país conquistou a independência em 1844, porém, a Espanha voltou a dominar o país em 1861 e foi somente em 1865 que a República Dominicana consolidou em definitivo a sua autonomia política. 

A história econômica do país pós-independência não mudou muito em relação aos tempos de colônia: o país continuou essencialmente agrícola, com a cana e o açúcar sendo os produtos mais importantes, acompanhados de perto pela produção e processamento de café e tabaco. Politicamente, o país passou a assistir a uma sucessão de ditaduras e de intervenções militares apoiadas pelos Estados Unidos. Entre 1916 e 1924,  inclusive, os Estados Unidos ocuparam e interviram diretamente no país.

Uma das mais longevas ditaduras da República Dominicana foi a de Rafael Leónidas Trujilo, que dirigiu o país com mão de ferro entre 1930 e 1961. Como todo bom ditador latino americano, Trujilo perseguiu e assassinou opositores, prendeu jornalistas, impediu a formação de partidos de oposição, entre outras “maldades”. Ao longo de seu governo, Trujilo se apossou de perto de 70% das terras cultiváveis do país e dominava 90% das indústrias.  

Rafael Trujilo foi assassinado em 1961 e muitos historiadores locais afirmam que a CIA – Central de Inteligência Americana, foi a responsável. Uma junta militar, apoiada pelos Estados Unidos é claro, assumiu o Governo do país até 1966, quando Joaquim Balaguer assumiu a presidência, com um governo autoritário que se extendeu até 1978. Foi somente nas últimas décadas que a República Dominicana conheceu a democracia e a estabilidade econômica.

O país deixou de depender da exportação do açúcar e de outros produtos agrícolas bem recentemente, passando a assistir uma importante diversificação econômica. O setor de serviços, especialmente o turismo, passou a responder por mais de 60% do PIB – Produto Interno Bruto, e por mais de 62% da ocupação de mão de obra na República Dominicana

Entre 2010 e 2018, a República Dominicana foi o principal destino dos investimentos no Caribe, recebendo perto de metade de todos os investimentos estrangeiros diretos da região. Desse total, cerca de 18% dos investimentos se deram em setores ligados ao turismo. O país recebe atualmente perto de 20 milhões de turistas a cada ano, principalmente norte-americanos, canadenses e latino-americanos. Punta Cana (vide foto), no extremo Leste da Ilha de Santo Domingo, é o principal destino turístico dominicano.

O Governo dominicano também criou, há cerca de vinte anos, uma zona franca, que reúne mais de 75 grupos industriais internacionais. Essas indústrias geram cerca de 170 mil empregos diretos e mais de 200 mil indiretos, respondendo atualmente por mais de 30% do PIB dominicano e pela segunda posição de maior empregador de mão de obra do país. O principal destino da produção local é o mercado norte-americano.

Apesar dos recentes bons ventos na economia dominicana, os cinco séculos de monocultura da cana de açúcar deixaram profundas marcas na sociedade e no meio ambiente do país. De acordo com o jornalista e ecologista dominicano Nelson Reyes Estrella, a destruição das florestas está na raiz dos problemas ambientais da República Dominicana. As estimativas mais recentes afirmam que perto de 70% da cobertura vegetal original do país sucumbiu diante do avanço da agric. Essa destruição das matas se reflete em graves problemas de escassez de água e de erosão de solos por toda a ilha (no lado haitiano, esses problemas são ainda mais graves)

Nas últimas décadas, o país passou a fazer grandes esforços para a preservação dos remanescentes florestais – foram criados 74 parques e reservas florestais, com área total equivalente a aproximadamente 30% da superfície do país. Todo esse esforço tardio visa proteger o que restou dos combalidos recursos hídricos do país: 108 rios, cerca de 100 lagoas e um grande lago. Todos esses corpos d’água sofrem com a redução dos caudais, destruição e desmoronamento de margens e com intenso assoreamento

Outro grave problema ambiental apontado por Reyes Estrella é a falta de uma legislação de ordenamento territorial na República Dominicana. Sem um zoneamento ecológico econômico adequado e sem uma fiscalização rígida, é impossível impedir os avanços pontuais de desmatamentos, que ainda ocorrem por todo o país. Além das tradicionais atividades ligadas a agricultura e pecuária, as atividades mineradoras, especialmente de níquel, de ferro e de ouro, crescem sem qualquer controle. 

Por fim, e não menos importante, temos o crescimento desordenado de cidades por toda a ilha. A mudança no perfil econômico do país se refletiu em uma intensa migração de populações das áreas rurais para os centros urbanos. Cerca de 2/3 dos dominicanos vivem atualmente em cidades e convivem com toda uma série de problemas ambientais que conhecemos bem: falta de acesso a redes de abastecimento de água e esgotos, geração de resíduos sólidos e grandes dificuldades para a sua coleta e disposição final, transportes deficientes, entre muitos outros.  

O desemprego é outro gravíssimo problema social que acaba se voltando contra o meio ambiente. Estima-se que 14% da população economicamente ativa do país (números anteriores à pandemia da Covid-19) esteja desempregada. Sem dinheiro para pagar aluguel, essas populações costumam ocupar áreas de encostas de morros, margens de rios e córregos, manguezais e matas ao redor das cidades, nada muito diferente do vemos em grandes cidades brasileiras. Essa massa também se volta contra os remanescentes florestais em busca de madeira e outros materiais para a construção de suas casas, além de depender de lenha para cozinhar.

A maioria dos turistas que visitam a República Dominicana são levados do aeroporto diretamente para os grandes complexos hoteleiros na costa, que funcionam como uma espécie de “ilha da fantasia”. Esses hotéis e resorts foram projetados para mostrar o que há de melhor no Caribe – as maravilhosas praias de águas transparentes, e ficam muito distantes da realidade da população e dos gravíssimos problemas ambientais do país. 

E como diz um velho ditado, o que os olhos não veem, o coração não sente.

ILHA HISPANIOLA: O BERÇO DA COLONIZAÇÃO DO NOVO MUNDO

Fronteira Haiti-República Dominicana

Na última postagem falamos sobre a chegada da cana de açúcar nas ilhas do Mar do Caribe, uma cultura agrícola que modelou os países e os povos da região nos últimos cinco séculos. Um personagem importante dessa saga foi o polêmico navegador Cristóvão Colombo – ele comandou a expedição espanhola que chegou ao Novo Mundo em 1492, ao mesmo tempo em que foi um grande incentivador do plantio da cana e da produção do açúcar, cultura responsável pela devastação ambiental das ilhas.

Em tempos do “politicamente correto” e do revisionismo histórico, a imagem de descobrir da América e fundador do Novo Mundo está sendo cada vez mais relacionada ao holocausto de milhões de indígenas e também como um incentivador da escravidão de negros africanos, que foram trazidos aos milhares para trabalhar nos canaviais das ilhas caribenhas. Polêmicas à parte, vamos entender a história da Ilha Hispaniola.

A Ilha de São Domingos, que no passado foi chamada de Hispaniola, é a segunda maior ilha do Mar do Caribe com uma superfície total de 76 mil km². A ilha abriga dois países – a República Dominicana, que ocupa uma superfície de mais de 48 mil km² das áreas Central e Leste da Ilha. O Haiti, considerado o país mais pobre das Américas, ocupa a faixa Oeste da Ilha, com uma área total de pouco menos de 28 mil km². A população atual da Ilha de São Domingos é de aproximadamente 20 milhões de habitantes, divididos igualmente entre a República Dominicana e o Haiti.

O primeiro assentamento de europeus nas Américas foi o Forte La Navidad, ou Natal, construído em 1492 pela expedição de Cristovão Colombo no Norte do atual Haiti. Meses depois, quando Colombo retornou à Espanha, ele deixou uma pequena guarnição de soldados ocupando esses forte. Em 1493, quando retornou na sua Segunda Expedição, Colombo encontrou o forte completamente destruído após um ataque de indígenas e com todos os seus homens mortos.

Buscando uma localidade mais segura, os espanhóis se dirigiram ao outro lado da ilha, que até então era chamada de Quiqueya pelos indígenas, onde foi fundada a vila La Isabela, que acabou destruída por um furacão em 1496.  A cidade foi reconstruída do outro lado do rio Ozama e recebeu o nome de Nova Isabela, embrião da cidade de Santo Domingo. Os espanhóis batizaram a ilha com o nome de Hispaniola ou Espanhola em português.

Quando os primeiros espanhóis desembarcaram no Novo Mundo, estima-se que haviam perto de 250 mil indígenas, principalmente da tribo dos tainos, vivendo na Ilha Hispaniola. Em 1517, devido a intensa mortandade de nativos devido a epidemias e doenças trazidas pelos europeus e sobre as quais os indígenas não possuíam nenhuma imunidade, esse número estava reduzido a cerca de 14 mil indivíduos. Para suprir a falta de mão de obra para a mineração e para os trabalhos na agricultura, os espanhóis passaram a “importar” escravos africanos a partir de 1501.

A mineração do ouro foi a primeira grande atividade econômica desenvolvida pelos espanhóis na ilha. A produção de açúcar, um produto que era bastante valioso há época e que começou com o desembarque das primeiras mudas de cana de açúcar em 1493, era considera uma espécie de “atividade econômica acessória”. As sucessivas notícias de conquistas de reinos e captura de grandes tesouros metálicos na forma de ouro e prata, especialmente no Império Asteca, no México, e no Império Inca, no Vice-reino do Peru, desestimulavam cada vez mais a economia da Ilha Hispaniola.

A produção de açúcar na Ilha, que no início do século XVI chegou a abrigar cerca de 40 engenhos e teve alguma relevância, ao final desse mesmo século estava praticamente abandonada. Parte considerável dos colonos de origem europeia abandonou Hispaniola e foi tentar a sorte nas Capitanias e Vice-reinos do Continente. A situação de abandono na Ilha Hispaniola chegou a tal ponto que, em 1606, chegou uma ordem do Rei da Espanha para que se evacuasse todos os habitantes da ilha para a cidade de Santo Domingo.

As partes Oeste e Norte da Ilha Hispaniola passaram a ser frequentadas e ocupadas por franceses, ingleses e holandeses, onde foram criadas verdadeiras bases para piratas. Conforme comentamos em postagem anterior, as correntes marítimas e os ventos do Mar do Caribe proporcionavam viagens mais rápidas e fáceis para a Europa, o que levou a Cora da Espanha a concentrar o tráfego de galeões transportadores de ouro e prata expropriados dos indígenas nessas águas. Essa intensa movimentação de riquezas soava como “música” para os ouvidos dos piratas e corsários (que nada mais eram que piratas a serviço de algum reino).

Buscando colocar alguma ordem na situação caótica em que se encontrava a Ilha Hispaniola, a Espanha fez um acordo com a França em 1697 para a cessão da parte Oeste da Ilha. Esse acordo fazia parte do Tratado de Rijswijk, um acordo que envolvia diversas nações e buscava resolver diversos problemas territoriais na Europa e em outras partes do mundo. Esse acordo também oficializava a imigração francesa para a Ilha Hispaniola que vinha ocorrendo sistematicamente desde 1695. Os franceses passaram a chamar a região Oeste da Ilha de Saint-Domingue, nome que depois foi mudado para Haiti.

Ao longo de todo o século XVIII, o Haiti se transformou na mais próspera colônia francesa das Américas e num importante centro produtor de açúcar e de rum. O lado espanhol da Ilha Hispaniola, onde encontramos a atual República Dominicana, ficou praticamente abandonado até o início do século XIX. Após a independência do Haiti em 1804, a República Dominicana passou por um longo período de lutas políticas entre diferentes grupos, ora com alguns tentando uma unificação com o Haiti, ora com grupos lutando pela independência da Espanha, o que só foi conseguido em 1865. Detalharemos a história e os problemas ambientais dos dois países em outras postagens.

Atualmente, a República Dominicana apresenta a maior economia entre todos os países do Mar do Caribe, apesar de ser um país cheio de problemas. A economia dominicana é, aproximadamente, 800% maior que a do Haiti, país que ocupa a última posição entre os países das três Américas. Após cinco séculos da monocultura da cana de açúcar, a Ilha de São Domingos perdeu perto de 70% de sua cobertura vegetal original.

A situação é particularmente caótica no Haiti, onde restam menos de 2% da vegetação nativa. Na República Dominicana, os remanescentes florestais correspondem a cerca de 30% da cobertura nativa original. A foto que ilustra essa postagem mostra a surreal fronteira entre os dois países: do lado esquerdo, o devastado Haiti – na direita, a República Dominicana.

Uma das maiores causas recentes da devastação das florestas na Ilha é a retirada de lenha para uso como fonte de energia, especialmente para as populações cozinharem. O Governo da República Dominicana tem feito grandes esforços para a importação e popularização do uso de GLP – Gás Liquefeito de Petróleo, o que vem contribuindo para uma gradativa redução da pressão sobre as áreas florestais. No Haiti, país que foi devastado por um fortíssimo terremoto em 2010, a situação segue se qualquer controle.

A degradação das áreas florestais está na raiz dos principais problemas ambientais das duas nações que ocupam a Ilha de São Domingos. O principal deles é a destruição de fontes de água e o assoreamento dos corpos d’água, o que tem resultado em escassez de água em muitas regiões e erosão de solos. Um exemplo extremo da situação ambiental na Ilha é Península de San Nicolás, no Haiti, onde a destruição da cobertura florestal e a degradação dos solos criou o maior “deserto” de todas as ilhas do Caribe.

Continuaremos na próxima postagem.

A CHEGADA DA CANA DE AÇÚCAR NAS ILHAS E TERRAS DO MAR DO CARIBE

Colheita de cana em Cuba

A cana e o açúcar são velhos conhecidos aqui das páginas do blog. A cana de açúcar (saccharum officinarum) é originária da Índia e resulta da hibridização de diversas espécies nativas do Sudeste asiático, incluindo espécies da própria Índia, da China, Nova Guiné, Filipinas, Malásia entre outras. Foram os indianos que desenvolveram o processo de produção e refino do açúcar, um produto que ganhou o mundo através de inúmeras gerações de mercadores. Ao longo dos séculos a planta foi disseminada pela Ásia Central, Oriente Médio e Norte da África.

A cana de açúcar chegou na Europa pelas mãos dos árabes, que formaram as primeiras plantações no Sul da Espanha no ano de 711 e depois na Sicília em 827. Em terras portuguesas, os registros falam da existência de canaviais na região do Algarve no século XII. A partir do aperfeiçoamento da navegação marítima, a cana de açúcar passou a ser plantada nas ilhas oceânicas recém descobertas por portugueses e espanhóis no Oceano Atlântico.

A cana chegou na Ilha da Madeira em 1426, no Arquipélago dos Açores em 1460, nas Ilhas Canárias em 1490 e em São Tomé e Príncipe em 1493. Essas ilhas se transformaram em importantes centros produtores de açúcar e, depois, em distribuidores de mudas de cana para as colônias do Novo Mundo.

Uma dos mais importantes comercializadoras de açúcar na Europa no século XV era a poderosa família Centurione de Gênova, na Itália. Em 1478, um dos navios dessa família foi enviado para a Ilha da Madeira com a missão de buscar um grande carregamento de açúcar. No comando do navio estava um jovem capitão italiano, que poucos anos mais tarde mudaria os destinos da humanidade – seu nome era Cristóvão Colombo. O jovem capitão acabou indo morar na Ilha da Madeira e trabalhou por vários anos em navios de transporte de açúcar.

Em 1492, Colombo comandaria uma pequena esquadra de naus espanholas numa perigosa viagem em busca de um caminho alternativo para a Índia e acabaria por descobrir a América. Em sua segunda expedição ao Caribe em 1493, Colombo trouxe as primeiras mudas de cana de açúcar, uma cultura que ele já conhecia bem desde os tempos em que viveu na Ilha da Madeira.

Critovão Colombo enviou uma carta em 1494 a Dom Fernando de Aragão e Dona Isabel de Castela, os Reis Católicos da Espanha, informando que havia plantado a cana de açúcar na Ilha Hispaniola e solicitava aos soberanos o envio de mais mudas desde a Ilha da Madeira. Segundo documentos del Archivo de Indias, as canas “medraram tão bem, que, poucos anos depois, já havoravam ali 40 engenhos”.

Em 1511, as primeiras mudas de cana de açúcar foram levadas para a Ilha de Cuba e em 1526 chegaram ao México recém conquistado pelos conquistadores espanhóis. Em poucos anos, praticamente todas as ilhas do Mar do Caribe e feitorias espanholas na América Central continental já possuíam suas plantações de cana de açúcar e engenhos.

Há um detalhe importante aqui – os nobres espanhóis que vinham para o Novo Mundo não estavam preocupados em se dedicar ao trabalho em fazendas. Um exemplo que gosto de citar é Hernan Cortés, o grande conquistador do Império Asteca de Montezuma. Certa feita, Cortés afirmou: “eu vim ao Novo Mundo para juntar dinheiro, não para lavrar a terra como um camponês!”.

Durante muito tempo, os espanhóis ficaram completamente obstinados com as notícias de riquezas na forma de metais preciosos como o ouro e a prata, não se esforçando quase nada para gerar riquezas com a produção de açúcar. Por todos os lados se organizavam expedições que partiriam em busca desses tesouros no continente – um dos principais objetivos era se encontrar a lendária El Dorado, uma cidade feita inteiramente de ouro. Quem efetivamente iniciou a produção de cana e de açúcar em larga escala no Caribe foram os ingleses, franceses e holandeses em suas colônias.

Quando os primeiros espanhóis chegaram ao Novo Mundo, encontraram as Ilhas do Mar do Caribe já povoadas por inúmeras tribos indígenas. Esses nativos foram denominados erroneamente de “índios” por Cristóvão Colombo, que àquela altura imaginava ter conseguido dar a volta ao mundo e chegado na Índia. As principais tribos locais eram os tainosgalibsigneris e os guanahatabeys, além dos temidos karibs, guerreiros navegadores e canibais que assolavam as principais ilhas e que deram seu nome ao Mar do Caribe. O povoamento das ilhas por essas tribos começou por volta do ano 5 mil a.C.

Segundo historiadores, a exploração dos nativos começou já a partir da segunda expedição de Colombo para o Novo Mundo. Indicado Governador, Colombo passou a cobrar tributos dos indígenas da Ilha Hispaniola – todo taino com idade acima de 14 anos era obrigado a entregar uma porção de ouro a cada 3 meses às autoridades espanholas. Caso não tivesse ouro, o tributo poderia ser pago com 25 kg de algodão.

De acordo relatos do Frei Bartolomé de las Casas, um frade dominicano que se notabilizou como um grande defensor dos indígenas, “quem não pagasse o tributo tinha as mãos cortadas e era deixado a sangrar até morrer”. De las Casas era famoso por exagerar em suas observações e crônicas, o que deixa margens de dúvidas sobre a existência de tais atos.

Como aconteceu em outras partes das Américas, o contato dos europeus com tribos indígenas que estavam vivendo isoladas há milhares de anos nas Ilhas do Caribe resultou em diversos surtos de doenças epidêmicas como a varíola, a gripe, o sarampo e o tifo. Uma outra doença infectocontagiosa que merece destaque é a sífilis. Uma antiga máxima, que não consegui encontrar o autor, afirmava que “a civilização das Américas trouxe a sifilização dos índios”. Estudos médicos recentes colocam em dúvida o sentido da contaminação da sífilis e afirmam que a doença pode ter sido trazida das Américas para a Europa.

Esse conjunto de enfermidades atingiu em cheio as populações locais – em apenas 30 anos, entre oitenta e noventa por cento dos indígenas tainos da Ilha Hispaniola morreram vítimas dessas doenças e epidemias. Esse índice de mortalidade se repetiu entre todas as populações indígenas das ilhas caribenhas e do trecho continental da América Central. A solução encontrada por todas as nações colonialistas da região foi a importação de escravos africanos para suprir as carências de mão de obra nas plantações de cana de açúcar.

Um dos principais centros produtores de açúcar do Mar do Caribe foi o Haiti, uma colônia da França que surgiu a partir de um acordo de cessão da parte ocidental da Ilha Hispaniola pela Coroa da Espanha em 1697. Ao longo de todo o século XVIII, o Haiti foi a colônia francesa mais próspera das Américas. Além do açúcar, o Haiti ganhou fama mundial com a produção do rum, uma bebida típica do Caribe destilada do melaço da cana de açúcar.

Uma das marcas de rum haitiano mais famosas entre os marinheiros há época – Aux Cayes (No Cais), soava com o som “Oh Key” para os ouvidos dos marinheiros ingleses e  esses palavras passaram a representar uma coisa “muito boa ou perfeita”. Alguns linguistas afirmam que essa pode ser a origem de OK, considerada uma das palavras mais usadas em todo o mundo.

Dois outros importantes centros produtores de açúcar e de rum no Mar do Caribe foram a Jamaica e Cuba. Até 1655, a Jamaica pertencia à Espanha e era chamada de Ilha Santiago, quando então passou ao domínio dos britânicos e passou a ser conhecida como Jamaica. A Ilha de Cuba, que por um curto período chegou a ser dominada pelos ingleses, voltou para o controle dos espanhóis em 1761 e também se consolidou como um importante centro produtor de açúcar.

O avanço da produção do açúcar nas Ilhas do Mar do Caribe, associada à facilidade e menores custos de transporte para a Europa, pouco a pouco foram criando uma pesada concorrência com outros centros produtores como o Brasil, a grande colônia portuguesa, que por muito tempo dominou esse mercado e que já em meados do século XVIII perdeu completamente a competitividade.

A produção do açúcar e do rum, a cultura e os ritmos trazidos pelos escravos africanos e, principalmente, a enorme desigualdade social, se transformariam em marcas registradas dos povos e países do Caribe, males que se perpetuam até os nossos dias.

AS ILHAS, OS VENTOS E AS CORRENTES MARÍTIMAS DO MAR DAS CARAÍBAS

Galeões espanhóis

A América Central é composta por duas áreas distintas – uma massa continental que forma uma espécie de “ponte de terra” entre as Américas do Norte e do Sul, onde encontramos sete países: Panamá, Costa Rica, Nicarágua, Honduras, El Salvador, Guatemala e Belize. Essa região compreende territórios com uma área total de pouco mais de 522 mil km². 

A segunda área da América Central é insular, onde se encontram 12 países e 22 territórios ilhéus no Mar do Caribe, também chamado de Mar das Caraíbas (em português de Portugal) e Mar das Antilhas. Esse mar ocupa uma área total com mais de 2,75 milhões de km². O mar do Caribe surgiu entre 160 e 180 milhões de anos atrás como consequência da fragmentação dos antigos continentes da Laurasia e Gondwana, quando surgiram as grandes massas de terra que formariam as Américas do Norte e do Sul. 

A região onde se encontra o Mar do Caribe é o ponto de encontro de diversas placas tectônicas. A Placa do Caribe, a principal da região e que conta com cerca de 3,2 milhões de km² de área, é cercada pelas Placas Sul-americana, Norte-americana, Norte dos Andes, do Panamá e dos Cocos, além de um pequeno trecho da Placa de Nasca. Esse encontro de diversas placas tectônicas resultou em uma intensa atividade vulcânica ao longo das áreas e teve como consequência a formação de inúmeras ilhas. 

Essa característica geológica também torna a região sujeita a frequentes abalos sísmicos. Em 2010, citando um exemplo, um catrastófico terremoto atingiu o Haiti, deixando entre 100 e 316 mil mortos,  360 mil feridos e mais de 1,5 milhão de desabrigados. Hoje, por infeliz coincidência, um terremoto com intensidade de 7,4 graus na escala Richter atingiu o Sul do México, no Estados de Oaxaca.

Como normalmente acontece com as ilhas de origem vulcânica, seus solos eram originalmente completamente rochosos. Com o passar do tempo, forças erosivas de chuvas e ventos, além do sol, resultaram em processos de degradação dessas rochas e início a formação dos solos férteis. Sementes de árvores e de plantas de todos os tipos começaram a chegar a essas ilhas carregadas pelos ventos. Esses ventos também carregaram diversas espécies de insetos, principalmente os voadores. Inúmeras espécies de aves das áreas continentais do entorno também acabaram por se estabelecer nas ilhas. 

Correntes marinhas combinadas com a força dos ventos arrastaram troncos de árvores, frutas, sementes e vegetação flutuante para as ilhas, permitindo assim uma lenta colonização dos novos territórios por essas espécies. Essas verdadeiras “jangadas flutuantes” também transportaram como passageiros clandestinos répteis, anfíbios, insetos, vermes e mamíferos, entre outros seres, que, pouco a pouco, passaram a colonizar essas ilhas. 

As diversas oscilações do nível do mar também deram a sua colaboração para a colonização das Ilhas do Caribe com as mais diferentes formas de vida animal e vegetal. Nos períodos de recuo dos oceanos (na última Era do Gelo, o nível dos oceanos sofreu uma baixa de 160 metros), surgiram diversas “pontes” de terra interligando algumas dessas ilhas, o que permitiu a migração de espécies entre os diferentes territórios. Com a subida do nível dos oceanos, essas ilhas voltaram a ficar isoladas e muitas espécies começaram a evoluir de forma independente, criando todo um mosaico de espécies endêmicas. 

A flora atual das Ilhas do Caribe tem cerca de 13 mil espécies de plantas, sendo que mais de 6,5 mil são endêmicas das ilhas. As ilhas abrigam cerca de 500 espécies de répteis, sendo que 94% dessas espécies são endêmicas. Também são encontradas cerca de 170 espécies de anfíbios e cerca de 90 espécies de mamíferos, grande parte delas endêmicas das diferentes ilhas. Influenciadas por diferentes correntes marinhas, as águas do Mar do Caribe abrigam 450 espécies de peixes, sendo 42% delas endêmicas

Além dos inúmeros aspectos ecológicos individuais de cada uma das ilhas, a colonização  humana e a história dos territórios insulares do Mar do Caribe foram influenciadas por características muitos particulares das correntes oceânicas, como a famosa Corrente do Golfo do México, e também das correntes de ventos. A combinação dessas características tornava a navegação a vela entre a América Central e a Europa mais fácil e bem mais rápida do que a mesma navegação entre a América do Sul, em particular o Brasil, e a Europa. 

Os ventos dominantes no Oceano Atlântico são divididos em dois grandes sistemas: o Sistema  Anticiclônico do Atlântico Norte, mais conhecido como Anticiclone dos Açores, e o Sistema Anticiclônico do Atlântico Sul, também conhecido como Anticiclone de Santa Helena. Todos os oceanos são caracterizados por sistemas semelhantes, onde a partir de um centro de alta pressão formam-se movimentos circulares de ventos e de correntes marítimas.  Sem entrar em maiores detalhes, essas diferentes correntes marinhas e de ventos facilitava a navegação a vela entre a Europa e as ilhas do Mar do Caribe e apresentava muito menos dificuldades do que a navegação para a América do Sul.

Exemplificando as diferenças de navegação entre as duas regiões: um galeão espanhol carregado com as riquezas expropriadas do Império Inca e que foram transportadas desde o Peru até o Panamá por via marítima e terrestre, gastava de dois a três meses para navegar até o Porto de Cádiz, no Sul da Espanha. Um mesmo modelo de galeão que saísse de Buenos Aires, na Província de La Plata – atual Argentina, carregado com a prata das Minas de Potosi, gastaria de oito meses a um ano, conforme as condições climáticas, para chegar ao mesmo porto na Espanha.  

Há relatos de galeões que foram danificados em tempestades no Atlântico Sul e que precisaram fazer escalas na costa da África para reparos, tendo levado perto de um ano e meio para completar essa viagem. Devido a essa dificuldade logística, a Coroa de Espanha passou a priorizar o transporte da prata de Potosi usando tropas de mulas através da Cordilheira dos Andes desde a Bolívia até o Vice-Reino do Peru, depois embarcando em navios no Oceano Pacífico até o Panamá, fazendo a travessia por terra até a costa do Mar do Caribe.

Frotas de galões fortemente protegidas por navios de escolta seguiam então do Panamá para a Espanha (vide imagem). Por razões de segurança, os espanhóis costumavam realizar apenas duas viagens dessas frotas a cada ano. Essa grande concentração de embarcações espanholas carregadas com ouro e prata transformou as águas do Mar do Caribe num verdadeiro “paraíso” para os piratas.

Essa facilidade logística nas navegações nessa região logo chamou a atenção de outras potências da Europa, especialmente a Inglaterra, a França e a Holanda, que não pouparam recursos e esforços para tomar parte das ilhas do Caribe dos espanhóis. Como a Coroa da Espanha estava mais preocupada com o saque de tesouros dos Astecas e dos Maias naqueles tempos, ela acabou não gastando recursos para reaver esses territórios perdidos para a “concorrência”. 

Esses territórios conquistados, e depois vários outros pertencentes à Espanha, foram transformados em centros produtores de açúcar, um produto altamente valorizado na Europa naqueles tempos. A história do açúcar nas ilhas do Mar do Caribe será contada na nossa próxima postagem. Como faziam os portugueses em seu extenso território na América do Sul, esses outros reinos europeus também passaram a se valer do tráfico de escravos africanos para suprir seus territórios insulares com a mão de obra necessária para o plantio da cana e a produção do açúcar. 

Os desmatamentos para a abertura de campos para a produção de cana de açúcar estão na raiz dos problemas ambientais das ilhas e também na base da formação das sociedades de praticamente todas as nações e territórios das Caraíbas. Em muitos casos, as ilhas tiveram praticamente toda a sua cobertura vegetal substituída por plantações, o que levou dezenas de espécies animais a extinção. Populações indígenas, como os temidos karibs ou caraíbas e os tainos, foram literalmente varridas do mapa.  

Em Cuba, citando um único exemplo, praticamente não restou nenhum vestígio dos antigos indígenas, a não ser na miscigenação de parte da população. Eu estive na ilha há alguns anos atrás e um dos únicos sinais da existência desses antigos nativos que encontrei foi a marca de uma cerveja local – Hatuey, nome de um antigo cacique dos índios tainos. Já as referências africanas, essas estão por todos os lados da ilha. 

Nas próximas postagens vamos explorar alguns dos graves problemas ambientais desse verdadeiro mosaico de povos e países insulares. 

O RISCO DE EXTINÇÃO DO QUETZAL, A AVE SÍMBOLO DA AMÉRICA CENTRAL

Quetzal

quetzal é uma das mais belas aves do mundo. O nome quetzal é uma derivação de quetzalli, uma antiga palavra dos indigenas Náuatles ou nahuatl que viviam em algumas regiões do México e das altas planícies da América Central, e significa “bela pluma brihante”, ou, segundo outras fontes, “pena de cauda grande e brilhante”. Esses indígenas não poderiam ter escolhido uma palavra melhor para definir essa maravilhosa ave. 

A coloração das penas da ave é predominantemente verde-emeralda, com reflexos dourados, possuindo longas penas na cauda, que ondulam durante os seus voos. A ave é nativa de florestas do Sul do México, Honduras, Belize e da Guatemala, cuja moeda, não por acaso, é o Quetzal. Devido aos seus hábitos migratórios, existem populações de quetzal espalhadas por toda a América Central e a ave acabou sendo transformada em um símbolo dos povos centro-americanos.  

Para as antigas civilizações Maias, Toltecas e Astecas, o quetzal era uma criatura sagrada. Um dos principais deuses desses povos era o quetzalcoatl, a “serpente emplumada”, metade quetzal, metade serpente, considerado o deus da fertilidade. Somente os mais altos sacerdotes podiam usar adornos feitos com as penas da ave – as longas penas da cauda só poderiam ser usadas pelo imperador. Montezuma, o último grande imperador dos Astecas, usava uma espécie de cocar composto por 160 penas de quetzal.  

Segundo contam lendas dos indígenas do México, logo depois do assassinato de Montezuma por um soldado asteca (o imperador foi deposto por um conselho de líderes e seu irmão, Cuiltlahuac, foi eleito imperador), um quetzal desceu dos céus e absorveu o sangue do imperador morto. De acordo com essa lenda, é por isso que o quetzal tem as penas do ventre na cor de um vermelho vivo (vide foto). A lenda demonstra a importância cultural das aves entre os povos indígenas do México e de toda América Central. 

Naqueles tempos antigos, a retirada de penas das aves só podia ser feita a pedido dos sacerdotes e deveria ser realizada com extremo cuidado. Os animais capturados deveriam retornar às matas sãos e salvos logo depois da retirada das penas. Qualquer pessoa que matasse ou machucasse um quetzal seria condenada imediatamente à morte. 

A espécie mais conhecida é o quetzal-resplandecente (Pharomachrus mocinn). Essa ave tem um corpo com comprimento de 36 cm e penas de cauda que podem ter mais de 60 cm nos machos da espécie. A família das aves possui também as espécies quetzal-de-crista, quetzal-de-cabeça-dourada, quetzal-de-pontas-brancas e quetzal-pavão. O quetzal possui uma espécie de ave aparentada aqui no Brasil – sucuruá. Os quetzais têm um modo de vida solitário, só formando casais na época do acasalamento. As aves se alimentam de frutos e insetos, o que pressupõe a necessidade de matas e florestas bem conservadas. 

As aves vivem em regiões florestais com altitudes entre 1.000 e 3.000 metros, onde costumam procurar os galhos mais baixos, de onde pode localizar e predar insetos rasteiros. Na época do acasalamento, os casais de aves buscam ocos de árvores para construir seu ninho. Macho e fêmea se alternam em turnos no trabalho de cuidar do ninho e dos ovos. Uma característica única do quetzal macho no momento da incubação dos ovos é que a ave senta no ninho de forma que as longas penas da cauda pendam para o lado de fora.

Os tempos em que o quetzal era considerada uma ave sagrada e que deveria ser protegida por todos, infelizmente, já se foram há muito tempo. A ave está em situação crítica e corre sérios riscos de extinção.

Os maiores predadores do quetzal na natureza são as corujas e também aves de rapina como águias e falcões. Os filhotes e os ovos da espécie costumam ser atacados por esquilos, répteis e alguns mamíferos de hábitos noturnos, o que exige a proteção dos ninhos pelos pais em tempo integral. Aves oportunistas como os tucanos também podem se valer do descuido dos pais para predar ovos e filhotes. 

O grande predador do quetzal, entretanto, é o ser humano, que vem encurralando as aves em duas frentes. A primeira delas é a intensa devastação de áreas florestais em toda a América Central, o que vem reduzindo e restringindo cada vez mais os habitats das aves.  

Conforme comentamos em diversas postagens anteriores, as florestas tropicais da América Central continental estão entre as mais ameaçadas do mundo. Foram séculos de derrubadas de matas para abertura de campos agrícolas e pastagens para animais, projetos de mineração e realização de grandes obras de infraestrutura. 

Em países como El Salvador e Honduras restam menos de 30% das florestas nativas, espalhadas na forma de pequenas manchas de fragmentos florestais. Na Costa Rica e em Belize, países em melhor situação ambiental na região, as florestas ainda ocupam metade dos seus territórios.  

No Sul do México, já na América do Norte, as antigas e exuberantes florestas que formavam grande parte dos habitats dos quetzais estão reduzidas a pouco mais de 20% de suas áreas originais. No México, aliás, 90% das matas nativas já foram devastadas. Estudos indicam que cerca de 70% dos antigos habitats do quetzal no país foram destruídos. 

Outra ameaça à sobrevivência das aves é a caça predatória – as exuberantes penas dos animais, principalmente as longas penas das caudas dos machos, são extremamente cobiçadas e valorizadas pelo mercado da moda. Muitas aves são mortas pelos caçadores nas tentativas de captura. Muitas dessas aves capturadas são vendidas como animais de estimação após a remoção das penas da cauda. Normalmente, os quetzais não se adaptam a uma vida em cativeiro – há inúmeros relatos de aves que se recusam a comer e que acabam morrendo de fome. 

Existem diversas iniciativas governamentais e privativas em toda a América Central para recuperar populações e habitats da ave. Um dos destaques é o Centro de Educação e Pesquisa do Quetzal na Costa Rica. No início da década de 1980, um pesquisador norte-americano – Leo Finkenbinder, identificou uma grande população das aves vivendo nas matas da Cordilheira de Talamanca, na Costa Rica. As densas matas da região ainda abrigavam dezenas de espécies animais da fauna do país que também se encontravam em situação de vulnerabilidade. 

O Centro de Educação e Pesquisa do Quetzal surgiu a partir dos esforços combinados do Governo da Costa Rica, da SNU – Southern Nazarene University, de Oklahoma nos Estados Unidos, do Governo da Espanha e da ONU – Organização das Nações Unidas. A região foi primeiro transformada em um centro de pesquisas e estudos para alunos de biologia e, depois, foi elevada à categoria de reserva ambiental e convertida num importante centro de visitação, que passou a receber turistas de todo o mundo. A Southern Nazarene University criou um campus na região, onde promove a biodiversidade, a sustentabilidade e a responsabilidade social. O estudo e a preservação do quetzal é uma das atividades de destaque da instituição. 

Além do famoso quetzal, a lista de espécies da fauna ameaçadas em toda a América Central incluiu milhares de animais, onde estão mamíferos, répteis, aves, anfíbios, peixes e insetos. Também não é nada desprezível o número de espécies vegetais ameaçadas de desaparecimento devido a destruição e fragmentação de florestas e matas em todos os países da região. 

Já que os homens não tem conseguido proteger os importantes biomas centro-americanos, roguemos aos antigos “deuses” indígenas pedindo proteção ao quetzal e aos seus habitats. 

A FRAGMENTAÇÃO E A REDUÇÃO DE HABITATS, OU POR QUE TANTA PREOCUPAÇÃO COM AS FLORESTAS DA AMÉRICA CENTRAL?

Corredor de biodiversidade

Nas últimas postagens aqui do blog, apresentamos um quadro bastante preocupante da conservação ambiental nos países que formam a América Central. Depois de séculos de derrubada de matas para a criação de campos agrícolas e pastagens, a região apresenta hoje um quadro caótico no que diz respeito à conservação de suas florestas. 

Conforme comentamos no início dessa sequência de postagens, a história natural da América Central sofreu uma completa reviravolta após a formação do Istmo do Panamá, uma ponte de terra seca que uniu as duas grandes massas de terras das Américas do Norte e do Sul. Espécies animais e vegetais (sementes e frutos transportados por animais) dos dois lados dessa “ponte” passaram a se deslocar através desse corredor de biodiversidade, criando novos e riquíssimos biomas.  

A floresta tropical que se formou nas terras mais baixas é uma espécie de extensão da Floresta Amazônica, que com o passar do tempo desenvolveu novas espécies vegetais e criou habitats para uma infinidade de seres vivos. Nas terras mais altas, florestas de coníferas e pinheiros, típicas do hemisfério Norte, se expandiram e se adaptaram a novos climas e terrenos. 

Com o “descobrimento” e conquista das Américas, toda a região centro-americana passou a receber grandes contingentes de imigrantes, assistindo a formação de novas populações e o nascimento de inúmeras cidades. As matas passaram a ser derrubadas, tendo início um processo contínuo de fragmentação e redução de florestas e de habitats para a vida selvagem. 

E o que isso tem de tão problemático? 

Em primeiro lugar, a perda de cobertura florestal de uma região terá reflexos diretos na disponibilidade de água. As árvores são fundamentais para a infiltração da água das chuvas nos solos, algo essencial para a recarga dos lençóis subterrâneos e aquíferos que alimentam as nascentes de córregos e rios. Outro ponto são os solos férteis das florestas tropicais, que costumam ser rasos e são formados por uma camada de matéria orgânica resultante da decomposição de restos de galhos, folhas e de animais mortos da própria floresta.  

Com a destruição da cobertura vegetal, essa camada de matéria orgânica se perde rapidamente, com o complicador criado pelo carreamento de solos e sedimentos para a calha de rios e lagos. Esse assoreamento dos corpos d’água vai criar problemas na drenagem das águas pluviais da região e resultar em enchentes e destruição de margens. Esses dois problemas são recorrentemente citados em nossas postagens. 

Existe também um grande número de problemas criados para a vida animal dessas florestas, sobre os quais costumamos falar pouco e que hoje gostaríamos de tratar com maiores detalhes. Falo aqui da fragmentação e diminuição dos habitats, que no curto e médio prazo implicam na perda de espécies animais, mas que no longo prazo implicam na destruição da própria floresta. 

Podemos definir habitats como ambientes físicos ou ecológicos onde diferentes espécies – animais, vegetais, fungos, bactérias e vírus, vivem em equilíbrio. Também é importante citarmos que existe uma interdependência entre as espécies. Um exemplo são as plantas que produzem flores como parte de seu sistema de reprodução e que dependem de insetos, aves e outros animais como morcegos para realizarem a polinização.

Em alguns casos de extrema especialização, existe um único inseto ou ave que faz essa polinização – se esse polinizador desaparecer, por extinção por exemplo, a espécie vegetal também estará condenada. Essa regra também vale para os predadores especializados, que controlam as populações de outras espécies e mantém o meio ambiente em equilíbrio.

Sempre que analisamos a ecologia de uma floresta, precisamos nos preocupar tanto com a área de solos ocupados pela vegetação quanto com os diferentes “níveis” entre os solos e a copa das árvores ou dossel. A distribuição de espécies segue uma espécie de padrões “por andares”. Existem espécies que vivem no solo e subsolo, e que variam conforme a localização e o tipo desses solos. Aqui podemos citar os insetos, vermes e outros invertebrados, assim como animais terrestres como mamíferos, répteis, anfíbios e aves, entre outros. 

Essa distribuição ecológica também se dá nos “andares superiores” da floresta. Conforme vai se subindo nas árvores, diferentes espécies habitam diferentes níveis. Cito como exemplo algumas espécies de rãs que vivem dentro de pequenas porções de água acumuladas entre as folhas de algumas espécies de bromélias a dezenas de metros do solo. Essas rãs se adaptaram para uma vida em um ambiente completamente diferente do seu ambiente natural em rios e lagos. Posso citar também inúmeras espécies de macacos que vivem no dossel das árvores, onde encontram alimento e abrigo, e que nunca precisam descer até o nível do solo. Frequentemente, esses macacos consomem a águas das bromélias que citei.

Imagine agora que essa floresta foi dividida ao meio por uma inocente ferrovia ou rodovia, onde a construção exigiu a remoção de uma faixa contínua de mata. Para muitos animais terrestres maiores como mamíferos, essa perda de mata não é  tão significativa e eles conseguem atravessar, correndo algum risco, de um lado da mata para outro, sem maiores dificuldades. Outros animais como cobras, anfíbios, aves terrestres e pequenos mamíferos até poderão tentar atravessar essa faixa sem cobertura vegetal, mas ficarão expostos ao ataque de inúmeros predadores – por essa razão, muitos vão desistir da travessia.

Já para os macacos que vivem no dossel das árvores, essa faixa sem vegetação forma uma borda intransponível e as populações desses animais vão ficar “ilhadas” em cada um dos fragmentos da floresta. Essas populações isoladas vão perder diversidade genética ao longo do tempo, o que é uma espécie de meio caminho para a extinção dos animais no longo prazo. Essa barreira que se criou na mata e que impede a livre circulação das espécies é o que se chama na biologia da conservação de Efeito de Borda.

Agora peço que você imagine uma situação mais complexa como a que foi criada pela construção do Canal do Panamá, onde além da derrubada de uma extensa faixa da floresta, foi escavado um canal de navegação no solo. Alguns animais como onças, chamadas de jaguar na América Central, bichos-preguiça e capivaras, entre outros, são excelentes nadadores e não terão dificuldades em continuar circulando pelos seus antigos territórios. Para a imensa maioria das espécies animais, uma obra como essa cria uma barreira intransponível. 

Além de espécies animais, inúmeras plantas e árvores também ficarão restritas a territórios isolados, passando a correr riscos de desparecimento no longo prazo. Frutas e frutos com sementes são consumidos por aves, mamíferos, répteis e peixes, entre outros animais. Essas sementes são transportadas no estomago e intestinos desses animais até serem expelidas nas fezes, quando vão ganhar a oportunidade de germinar e formar novos indivíduos.  

Outros tipos de sementes, como os carrapichos, grudam nos pelos de animais e assim são também transportadas por longas distâncias. Com a fragmentação dos habitats, muitos desses animais têm suas migrações ou andanças pelas matas interrompidas, deixando assim de cumprir o seu papel biológico de dispersores de sementes e frutos. 

Esses processos, onde também se incluem as derrubadas de matas para a formação de campos para agricultura e pastos para animais, além de atividades mineradoras, construção de rodovias e represas, entre outras obras de infraestrutura, resultam no retalhamento de grandes áreas florestais, formando ilhas de vegetação e onde uma infinidade de espécies de animais vão acabar ficando confinadas. Esses processos de devastação florestal se multiplicaram ao longo dos séculos, em maior ou menor grau, por todos os países da América Central e hoje ameaçam a sobrevivência de inúmeras espécies animais e vegetais. 

Quando os primeiros exploradores europeus chegaram ao Novo Mundo nos últimos anos do século XV, as florestas tropicais da América Central se estendiam de forma contínua desde os sopés dos Andes na Colômbia até o Sul do México, cobrindo mais de 600 mil km². Se você pegar um mapa da região nos dias de hoje, o máximo que você vai encontrar serão pequenas manchas verdes, algumas menores e outras maiores, dos inúmeros fragmentos florestais remanescentes espalhados pelos países da região. Na Costa Rica e em Belize, países que adotaram políticas mais arrojadas para proteção e recuperação das áreas naturais, essas manchas são bem maiores. 

Como é virtualmente impossível se pensar em políticas de reflorestamento em grande escala na maioria dos países da América Central, é importante que se criem, com extrema urgência, corredores biológicos ou faixas de vegetação para a ligação desses fragmentos ou ilhas de vegetação, permitindo assim a livre circulação das espécies (vide foto). Isso não vai resolver o problema, mas pelo menos evitará que muitas espécies animais e vegetais entrem em extinção, o que é um caminho sem volta. 

Como eu sempre costumo comentar aqui no blog, há gente demais preocupada em salvar a Floresta Amazônica e gente de menos ocupada com os graves problemas de outras florestas tropicais em risco em todo o mundo. As florestas tropicais da América Central são um desses casos.

PS: Para você que se interessou pelo assunto, apresentado aqui de forma ultra resumida, recomendo o excelente livro Biologia da Conservação de Richard B. Primack e Efraim Rodrigues. 

COSTA RICA: UM VERDADEIRO PARAÍSO CENTRO-AMERICANO PARA OS ECOTURISTAS

Parque Nacional Tortuguero

Até meados do século XX, a Costa Rica era uma das muitas Repúblicas de Bananas da América Central. Controlados política e economicamente por empresas norte-americanas produtoras de frutas tropicais, como era o caso da United Fruits Company, esses países normalmente eram dirigidos por chefes oligárquicos ou por militares “de confiança dos Estados Unidos”. Uma das imagens mais arquetípicas dos presidentes centro-americanos que encontramos nos livros de história mostra um militar fardado com dezenas de medalhas penduradas no peito e até na barriga. 

Até 1821, praticamente toda a América Central estava reunida em um único território – a Capitania-geral da Guatemala, uma possessão da Coroa da Espanha. A partir da proclamação da independência, os diversos grupos políticos regionais entraram em conflito, o que resultou na fragmentação do antigo território e na formação dos diferentes países que compõem o mapa da América Central que conhecemos hoje. Como consequência da instabilidade política da região, todos os países centro-americanos sempre destinaram partes substanciais de seus orçamentos para a manutenção e equipamento de grandes contingentes de forças militares. 

Em 1948, graças a uma decisão do então Presidente José Figueres – mais conhecido entre os costarriquenhos como “Don Pepe” Figueres, a Costa Rica se tornou um dos primeiros países do mundo a abolir as suas forças armadas. No ano seguinte, a decisão foi incluída na Constituição do país, se tornando uma das “cláusulas pétreas” da legislação local e mudando os rumos do desenvolvimento econômico, social e ambiental do país. 

Estudos recentes indicam que, a partir da desmilitarização do país, a Costa Rica aumentou seus investimentos em educação de 15% para 35% do PIB – Produto Interno Bruto. Os recursos destinados à saúde foram elevados para 29% do PIB e os recursos destinados à seguridade social foram triplicados. Os estudos também demonstraram que as taxas de crescimento médio da economia do país também aumentaram.  

Até 1949, a taxa anual média de crescimento da Costa Rica era da ordem de 1,33% – a partir de 1950, esse crescimento passou a uma taxa de 2,44% ao ano. Depois de décadas de pesados investimentos em saúde e educação, a atual expectativa de vida dos costarriquenhos é de 78 anos e a taxa de alfabetização é de 96,3%, valores de dar inveja a qualquer país latino-americano e similares a de países nórdicos

Essa “reinvenção” da Costa Rica também se refletiu em mudanças na estrutura econômica. A agricultura sempre esteve na base da produção econômica do país onde, além de frutas tropicais como as bananas, o café era um dos grandes destaques. Até o início da década de 1980, depois de séculos de desmatamentos, os remanescentes florestais da Costa Rica cobriam apenas 1/4 da área territorial do país. 

Data dessa época o início de um processo de valorização do patrimônio natural e de mudanças na estrutura produtiva, onde o Governo passou a coibir o avanço dos desmatamentos. Em 1996, o Governo da Costa Rica criou uma política de pagamento por serviços ambientais – agricultores que preservassem as matas nativas em suas propriedades e que realizassem a recomposição de áreas florestais degradadas passariam a receber compensações financeiras.  

Em menos de 20 anos, essa política resultou na duplicação da cobertura florestal, saltando de 26% para 52,4% da superfície do país. A Costa Rica se transformou numa referência mundial em preservação e recuperação ambiental. O país também se transformou numa espécie de “Meca” do ecoturismo na América Central, atraindo cada vez mais multidões de amantes da natureza. 

De acordo com dados da DGME – Direção Geral de Migração e Estrangeiros da Costa Rica, o pequeno país de 51 mil km² recebeu nada menos que 3,1 milhões de turistas em 2019, o significou um crescimento de mais de 4% em relação aos números de 2018, sendo o dobro da taxa de crescimento do turismo nas Américas. Esse impressionante número de visitantes é praticamente a metade do número de turistas que desembarcaram no Brasil no mesmo período. Aqui não custa lembrar que o território brasileiro tem mais de 8,5 milhões de km². 

E o que é que a Costa Rica tem de tão especial para atrair tantos visitantes? 

A resposta é simples: muita natureza bem preservada. O país conta atualmente com mais de 100 áreas de preservação ambiental, 35 parques nacionais e 8 reservas biológicas. Além de possuir duas fachadas oceânicas, uma no Oceano Pacífico a Oeste e outra no Mar do Caribe a Leste, a Costa Rica possui nada menos que 112 vulcões e guarda em suas matas cerca de 6% da biodiversidade mundial

Entre os vulcões do país, destacam-se o Arenal, o mais famoso de todos, e o Poás. Entre os parques, um dos grandes destaques é o Parque Nacional Tortuguero, que fica na costa do Mar do Caribe e onde uma das principais atrações turísticas é a desova das tartarugas marinhas, que acontece sempre entre os meses de junho e julho. Esse evento atrai milhares de turistas todos os anos (vide foto). 

Os pacotes turísticos oferecidos aos visitantes, normalmente, incluem um roteiro de “costa a costa”, onde são visitados os principais parques nacionais e atrações turísticas da Costa Rica. Além dos ambientes naturais, esses roteiros turísticos costumam incorporar atividades de esporte de aventura, uma modalidade que faz muito sucesso entre os visitantes mais jovens. Destacam-se aqui o arvorismo; bungee jump, rapel e tirolesa; canoagem, stand up paddle e rafting; balonismo, surf e mergulho, entre muitas outras atividades. 

A partir de 1995, o turismo passou a representar a principal fonte de receitas em moeda estrangeira da Costa Rica. Em 1999, essas receitas superaram a soma das exportações de café, abacaxis e bananas, os tradicionais e principais produtos da pauta de exportações do país.  

De acordo com dados disponíveis de 2008, as atividades ligadas ao turismo respondiam na época a 7,2% do PIB do país e geravam 13,3% dos empregos diretos e indiretos – esses números, muito provavelmente, melhoraram ainda mais nos últimos anos. Apesar de todas essas boas notícias, cerca de 20% da população ainda vive no limite da pobreza, o que mostra que ainda há para se melhorar na Costa Rica. 

Dentro de uma abordagem geopolítica clássica, um país pequeno e pobre como a Costa Rica, sem contar com um grande aparato de forças militares para proteger o seu território, teria sido facilmente conquistado por nações mais poderosas da vizinhança e teria a sua população oprimida e explorada por forças estrangeiras.  

Contrariando todas essas probabilidades, aconteceu justamente o contrário – o país passou a contar com mais recursos financeiros para investimentos em saúde, educação e desenvolvimento sustentável. Comparado aos demais países da América Central continental e das ilhas do Mar do Caribe, a Costa Rica é hoje uma verdadeira “Suíça centro-americana”. 

Para você pensar na cama: um país tão grande como o nosso, com mais de 7 mil km de praias e biomas tão diversificados como a Amazônia, Cerrado, Caatinga e Pantanal, não poderia também passar a incentivar a preservação ambiental e faturar alto e a longo prazo com o ecoturismo? 

Ou será que nós ganharemos mais destruindo nossos biomas para plantar a soja e o milho, que exportamos para países estrangeiros usarem na produção de ração para engorda de porcos e galinhas?

A ELOGIÁVEL CONSERVAÇÃO DAS FLORESTAS PRIMÁRIAS EM BELIZE

Ecoturismo em Belize

Nas últimas postagens publicadas aqui no blog, foi possível demonstrar que a situação ambiental na maioria dos países que formam a América Central continental não é das melhores. Atividades agrícolas, mineradoras e também grandes obras de infraestrutura como o Canal do Panamá, destruíram e fragmentaram a outrora exuberante floresta tropical, que se estendia desde os sopés da Cordilheira dos Andes na Colômbia até a Península de Iucatã (ou Yucatán em espanhol) no Sul do México.

A formação dessa importante floresta, com sua complexa vida animal e vegetal, foi o resultado da formação do Istmo do Panamá, uma ponte de terra que ligou as grandes massas de terra da América do Norte e do Sul há mais de 2 milhões de anos atrás. O resultado final foi a formação de um importante corredor biológico que permitiu a migração bidirecional (tanto ao Norte quanto ao Sul) de espécies animais e vegetais dos dois continentes, formando um meio ambiente único. Grande parte desse patrimônio biológico e ambiental, desgraçadamente, já foi perdido.

Felizmente, ainda há o que se comemorar – como exceção à regra, Belize e Costa Rica promoveram uma verdadeira guinada em suas políticas ambientais e vem dando um ótimo exemplo ao mundo em termos de recuperação e/ou conservação de áreas florestais e, melhor de tudo, ainda ganhando dinheiro com o ecoturismo. Hoje falaremos um pouco sobre Belize.

Belize ocupa uma área de 22,9 mil km², o que corresponde à metade do território do Estado do Rio de Janeiro. Com cerca de 400 mil habitantes, é o país com a menor densidade populacional da América Central. Diferentemente dos demais países da região, Belize foi uma colônia da Inglaterra, uma característica que ajudou a mudar a sua trajetória histórica.

O território de Belize se estende entre o Sul da Península de Iucatã e a Guatemala, tendo sido uma parte importante do Império Maia. Os primeiros europeus a desembarcar nesse território eram conquistadores espanhóis, mas foram exploradores ingleses que ocuparam o litoral da região ainda no século XVII. Os ingleses criaram diversas feitorias ao longo do litoral com o objetivo de explorar o campeche ou pau-campeche (Haermatoxylon campechianum), uma árvore que produz uma madeira dura e pesada, de onde se extrai um corante vermelho muito similar ao do nosso pau-brasil (Caesalpinia echinata).

A partir do final do século XVIII, com a invenção de corantes artificiais como as anilinas, o foco da exploração colonial em Belize foi concentrado na extração de madeiras como o mogno e algumas espécies de pinheiro. A agricultura e a pecuária praticadas na região sempre tiveram como objetivo a produção de subsistência para o sustento da pequena população, o serviu como um “freio” para uma devastação em maior escala das áreas florestais.

A faixa costeira de Belize é formada por planícies costeiras planas e pantanosas, com formações florestais densas em alguns pontos. Cerca de metade do território do país é coberto por florestas, com espécies tropicais nos terrenos mais baixos e coníferas nos terrenos mais altos. Pelo menos metade do território de Belize ainda preserva a sua cobertura florestal original – algumas fontes afirmam que esse índice de conservação é superior a 60%.

Com o avanço do movimento ambientalista entre os anos de 1960 e 1970, muitos proprietários de terras do país passaram a criar o que se convencionou chamar de RPPN – Reservas Particulares do Patrimônio Natural. Devido à origem britânica de muitos desses proprietários, vários grupos ambientalistas da Inglaterra e dos Estados Unidos, além de um grande número de colabores privados, passaram a reverter doações em dinheiro para viabilizar diversas dessas reservas naturais.

Nos últimos anos, essas reservas florestais particulares foram transformadas em importantes destinos turísticos. Existem também áreas onde o principal objetivo foi a conservação de espécies como o Community Baboon Sanctuary, que foi criado em 1985. Esse santuário surgiu a partir de um acordo entre 12 proprietários de terras que buscavam preservar o habitat de uma espécie local de bugio (Alouatta pigra). Atualmente, mais de 2 mil macacos dessa espécie vivem no santuário.

A maior reserva florestal particular de Belize é a Área de Conservação e Manejo do Rio Bravo, que ocupa uma área de 97 mil hectares. Essa área foi criada a partir da contribuição de milhares de cidadãos dos Estados Unidos e Inglaterra, além de contribuições de fundações ligadas a grandes empresas desses países como a Coca-Cola, Fundação MacArthurUsaid Massachusetts Audubom Society, entre outras. O slogan usado na coleta de doações foi “adote um acre”. Acre é uma unidade de medida de terras usada em países anglo-saxões que equivale a 4.042 m².

Outra reserva natural importante é a Tapir Mountain Nature Reserve que tem 2.728 hectares. A reserva foi criada em 1975, quando o proprietário doou as terras para o Governo de Belize, que depois arrendou a área aos antigos proprietários sob a condição de um adequado manejo ambiental e desenvolvimento de programas que beneficiassem as comunidades vizinhas.

Os esforços ambientalistas de Belize não param por aí – em 1996 foi criado o PACT – Fundo Fiduciário para a Conservação de Áreas Protegidas, na sigla em inglês. Uma taxa de US$ 3,75 é cobrada junto com a taxa de embarque de cada turista que visita o país. No caso dos navios de cruzeiro com destino e/ou escala em Belize, um imposto de 20% é cobrado no valor das passagens. Todos os recursos arrecadados são revertidos em programas de conservação ambiental.

Uma outra solução encontrada pelo país para garantir a preservação e a boa gestão de áreas naturais foi a delegação da administração de alguns parques nacionais e sítios arqueológicos para organizações não-governamentais. Entre essas organizações se destacam a Monkey Bay Wildlife Society, a Forest and Marine Reserve Association of Caye Caulker, a Friends of Nature e, principalmente, a Belize Audubon Society. Essas organizações contam com milhares de membros colaboradores, que fiscalizam “com lupa” os cuidados dispensados às áreas protegidas.

Esse ano, o Governo local anunciou a proibição total do uso de plásticos descartáveis e de produtos com espuma de poliestireno no país. A nova legislação em vigor regulamenta a importação e a produção de plásticos e espumas através de um rigoroso processo de licenciamento ambiental junto ao Departamento de Meio Ambiente de Belize.

Essas restrições, que vão de sacolas plásticas de supermercados até embalagens de produtos eletrônicos, visam impedir que cenas como as da ilha de plástico da costa de Honduras se repitam no litoral de Belize, que é justamente uma das grandes atrações turísticas do país. De acordo com dados do Banco Mundial, mais de 300 mil toneladas de lixo plástico são produzidas anualmente no Caribe e na América Central, sendo que uma parte considerável desses resíduos é descartada de forma irregular.

De acordo com estatísticas do BTB – Escritório de Turismo de Belize, na sigla em inglês, o país recebeu um total de 503 mil turistas em 2019. Falamos aqui de turistas “5 estrelas” com alto poder aquisitivo e grande consciência em prol da conservação ambiental. O turismo se transformou na principal atividade econômica do país e também em uma importante empregadora da mão de obra local. O ecoturismo e as atividades ligadas à esportes na natureza (canoagem e raftingtrekking, escaladas e mergulho, entre outras) lideram a preferência dos visitantes.

O “uso sustentável” que o pequeno Belize encontrou para suas praias e florestas é um exemplo que precisa ser seguido pelos vizinhos da América Central enquanto ainda dá tempo.

A CRESCENTE ESCASSEZ DE ÁGUA EM EL SALVADOR, O PAÍS MAIS DESMATADO DA AMÉRICA CENTRAL CONTINENTAL

Cascata de Los Tercios

Ocupando uma área que tem praticamente o mesmo tamanho do Estado brasileiro de Sergipe, El Salvador tem pouco mais de 21 mil km² e é o menor país da América Central continental. Contando com uma população de pouco mais de 6 milhões de habitantes, o país foi, durante muito tempo, altamente dependente da agricultura. No início do século XX, perto de 90% da economia de El Salvador dependia da produção e exportação do café.  

Com o passar do tempo, a produção agrícola foi diversificada, passando a incluir a cana de açúcar, arroz, milho, feijão, sementes oleaginosas e tabaco. Nas últimas décadas, a indústria começou a ganhar algum destaque, especialmente nos setores de processamento de alimentos, bebidas, petróleo, têxteis, móveis e cimento. 

A expansão da agricultura em um país com território tão pequeno resultou numa enorme perda da cobertura vegetal natural – conforme a fonte consultada, essa perda se situa entre 80 e 94%. Esses números colocam El Salvador na segunda posição entre os países das Américas com a maior perda florestal, só ficando atrás do Haiti. Segundo estudos realizados em 2017 pela FAO – Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura, El Salvador perdeu 30% de sua cobertura vegetal nos últimos 25 anos

De acordo com estudos do Centro Humboldt de El Salvador, esse intenso desmatamento está na raiz dos principais problemas ambientais do país, sendo a principal causa de enchentes, erosão de solos, assoreamento e contaminação das fontes de água do país. Os problemas, infelizmente, são ainda mais graves: a oferta ou disponibilidade atual de água no país está muito próxima da demanda para consumo da população, agricultura e indústria

Além de cada vez mais escassa, a água do país apresenta uma qualidade que vai de mal a pior. De acordo com estimativas do Ministério do Meio Ambiente e Recursos Naturais de El Salvador, cerca de 90% das fontes de água do país estão contaminadas com esgotos domésticos, resíduos de mineração e metais pesados, lixo e efluentes industriais, entre outros contaminantes, uma situação insustentável

A escassez de água afeta atualmente ¼ da população do país. Nas áreas rurais, mais de 600 mil pessoas não tem acesso a água potável e outras centenas de milhares tem acesso limitado ou intermitente a fontes de água. Nos últimos anos, os aquíferos das regiões do litoral e do centro do país sofreram um rebaixamento de 4 metros, o que, nas palavras da Ministra do Meio Ambiente Lina Pohl, é “extremamente alarmante”. A foto que ilustra essa postagem resume o drama vivido pelo país: ela mostra as pedras da famosa Cascata de Los Tercios, na região de Suchitoto, que nos últimos anos só tem água nos meses de chuva.

Nas áreas rurais, os habitantes de muitas vilas já se habituaram a acordar no meio da madrugada para retirar água dos poços – quem esperar o sol nascer poderá passar o dia com baldes e panelas secas. Nas cidades, o maior problema está na baixa produção de água potável nas estações de tratamento. Como as fontes de água estão muito contaminadas, o simples tratamento convencional com filtração e cloração não está sendo eficaz na potabilização da água. Essas estações estão sendo obrigadas a realizar um tratamento cada vez mais complexo da água e, por falta de infraestrutura, a produção é muito pequena.  

A América Central é uma região do mundo que sempre contou com grande disponibilidade de água. A crise que vem sendo enfrentada por El Salvador é recente e está ligada diretamente a má gestão dos recursos hídricos do país. Além dos desmatamentos e mal uso dos solos em atividades agrícolas, o país sempre foi extremamente conivente com o garimpo de ouro e outras atividades mineradoras.  

Conforme já tratamos em inúmeras postagens anteriores, os resíduos da mineração são extremamente danosos aos recursos hídricos. Expostos às fortes chuvas tropicais, resíduos de metais pesados como chumbo, cádmio, zinco e arsênico são lixiviados e arrastados pelas enxurradas para a calha de riachos e rios. 

No caso dos garimpos de ouro, os problemas são agravados pelo uso de mercúrio nos processos de separação do ouro de outros minerais. O mercúrio, que é um metal em estado líquido, é misturado com os sedimentos e se liga aos fragmentos de ouro, formando uma amálgama. Essa amálgama depois é exposta ao calor de um maçarico, que evapora o mercúrio e deixa apenas o ouro. De acordo com estudos recentes, para se produzir 1 kg de ouro nos garimpos é necessário, na média, o uso de 1,32 kg de mercúrio

Quando a amálgama é queimada pelos garimpeiros, o mercúrio evapora rapidamente e entre 65 e 83% desse vapor é lançado na atmosfera e espalhado pelos ventos, caindo sobre os solos junto com as chuvas. Entre 2 e 7% do mercúrio permanece ligado ao ouro, só sendo eliminado no processo de purificação do metal em fornos de altas temperaturas. O restante do mercúrio volta ao estado líquido, caindo diretamente sobre solos na forma de micro gotículas.

Com a chegada do período das chuvas, todos esses resíduos de mercúrio são arrastados para as calhas dos rios e contaminam as águas. O consumo de água contaminada por mercúrio é prejudicial à saúde humana – o metal se acumula no organismo e pode provocar danos graves no sistema nervoso central, normalmente irreversíveis, que compromentem os sistemas sensoriais e motores.

Para tentar controlar parte desse grande problema, El Salvador se transformou no primeiro país do mundo a proibir a mineração do ouro e de outros metais. Essa medida foi votada e aprovada no Congresso Federal do país em 2017, obtendo 69 votos de um total de 84, com apoio de todos os partidos. Foram quase dez anos de discussões e forte pressão popular. A medida passou a proibir tanto as atividades de mineração de grande porte realizadas por empresas quanto a mineração artesanal dos garimpeiros. 

Uma mudança tão radical na política de um país não ocorre sem se enfrentar grandes problemas. A mineradora multinacional Oceana Gold, que havia ganho uma concessão para exploração de ouro no país, moveu uma ação judicial contra o Governo de El Salvador pedindo uma indenização milionária. Depois de vários anos de embates nos tribunais do país, a Suprema Corte deu ganho de causa ao Governo de El Salvador e a Oceana Gold teve de pagar US$ 8 milhões em despesas judiciais do processo. 

A situação de El Salvador, que já é complicada, poderá ficar ainda pior – projeções indicam que a América Central será uma das regiões mais vulneráveis a eventos climáticos extremos nos próximos anos. Formada por uma faixa estreita de terra seca entre o Oceano Pacífico e o Mar do Caribe, a América Central já é frequentemente assolada por fortes tempestades e furacões. Como resultado das mudanças climáticas que estão em andamento em todo o mundo, a região também poderá ficar sujeita a reduções do volume de chuvas, especialmente por conta de fenômenos como o El Niño

A polêmica proibição das atividades mineradoras no país foi um grande passo, mas muito mais precisará ser feito e rapidamente. É preciso regulamentar adequadamente o uso dos recursos hídricos, investir em sistemas de coleta e tratamento de esgotos, na coleta e destinação dos resíduos sólidos urbanos e industriais, além de se fazer pesados investimentos em programas de reflorestamento e de conservação dos poucos remanescentes florestais que sobraram no país. 

Sabemos que é muita coisa para um país pequeno e pobre fazer, porém, são ações inevitáveis e inadiáveis. A escassez do recurso de hoje poderá se transformar em falta generalizada de água dentro de poucos anos.