O fabuloso Mar de Aral, na Ásia Central, já foi o quarto maior lago do mundo. Algumas poucas décadas atrás, seu espelho d’água cobria uma área total de 68 mil km², o que corresponde a uma vez e meia a área do Estado do Rio de Janeiro ou o equivalente a 165 vezes a área da Baía da Guanabara.
Infelizmente, a construção de uma infinidade de canais de irrigação pela antiga URSS – União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, passou a desviar a maior parte dos caudais dos rios Amu Daria e Syr Daria para uso em projetos agrícolas, o que fez o lago praticamente desaparecer.
Cerca de 90% da área que era ocupada pelo Mar de Aral, onde a profundidade das águas chegava a superar os 30 metros, acabou sendo transformada em um grande deserto de areias salgadas – o Aralkum. Um pequeno trecho de águas conseguiu sobreviver na faixa Norte e passou a ser conhecido como o Pequeno Mar de Aral.
O destino de todo o Mar de Aral, que parecia ser o de se transformar num grande deserto, mudou radicalmente quando o Banco Mundial entrou em cena no final da década de 1990 e concedeu um empréstimo de US$ 87 milhões ao Governo do Cazaquistão, que tinha na época um projeto para revitalizar o que restou do Mar de Aral em seu território.
O projeto do Governo cazaque consistia na construção de uma barragem com cerca de 13 km de extensão e cerca de 4 metros de altura num trecho onde as águas remanescentes formavam um longo canal. Essa barragem, batizada de Kokaral (vide foto), foi concluída em 2005. O Governo local também realizou uma série de melhorias nos canais de irrigação alimentados pelo rio Syr Daria, reduzindo substancialmente as perdas de água e aumentando os caudais que chegavam ao Pequeno Mar de Aral.
Com a conclusão de todo esse conjunto de obras, os cazaques imaginavam que, em cerca de 10 anos, esse trecho represado do Pequeno Mar de Aral poderia acumular uma lâmina de água com aproximadamente 3,3 metros de profundidade. Para surpresa de todos, essa cota acabou sendo atingida em apenas sete meses e o lago “renascido” passou a ser chamado de Mar do Norte de Aral.
Com a estabilização do volume de águas no lago, diversas espécies de peixes do rio Syr Daria voltaram a recolonizar o Mar do Norte de Aral. Já em 2006, a indústria pesqueira foi retomada e a produção totalizou cerca de 1.360 toneladas. Em 2016, os dados da Unidade de Inspeção de Peixes do Porto de Aralsk contabilizaram 7.106 toneladas de pescados, principalmente o lúcio, uma espécie muito apreciada pelos locais, além de sargos e bagres.
Existem planos para aumentar a altura da barragem de Kokaral em mais 4 metros, o que resultaria em um aumento de 50% na área ocupada pelo espelho d’água em prazo de 5 anos. Esse projeto ainda está em discussão entre o Banco Mundial e o Governo do Cazaquistão. Todos os anos, cerca de 2,7 bilhões de m³ de água “sangram” através da barragem rumo ao trecho Sul do lago e se perde em grande parte por evaporação, o que demonstra viabilidade do projeto.
Enquanto esse pequeno trecho do espelho d’água, que corresponde a cerca de 10% do antigo Mar de Aral, foi salvo e abriu a possibilidade de milhares de cazaques retomarem as antigas tradições do trabalho com a pesca de seus pais e avós, o trecho uzbeque continua desoladamente seco como nas últimas décadas. Assim como fez com o Governo do Cazaquistão, o Banco Mundial se propôs a financiar obras de revitalização de alguns trechos do Aral no Uzbequistão, porém, não teve a mesma receptividade.
Assim como acontecia no trecho Norte, alguns pequenos resquícios de água sobreviveram na faixa Sul do Mar de Aral – um desses locais era o Lago Sudoche. Com a realização de obras de barragens e melhorias nos sistemas de drenagem dos canais de irrigação do rio Amu Daria, além do aproveitamento dos excedentes de águas do Mar do Norte de Aral, seria possível a revitalização de parte do Aral no Sul.
Apesar dos bem intencionados objetivos do Banco Mundial e do grande sucesso da revitalização do Mar do Norte de Aral pelo Cazaquistão, o Governo do Uzbequistão não esboçou maiores simpatias pelo projeto. As principais razões para isso são geográficas – enquanto o Cazaquistão tem um território com mais de 2,7 milhões de km², onde se encontram grandes riquezas naturais e ainda possui uma fachada “oceânica” para o Mar Cáspio, o Uzbequistão tem apenas 447 mil km² de um território cercado por estepes áridas e semiáridas, com volumes de recursos naturais muito menores.
Com a construção dos canais de irrigação no rio Amu Daria a partir dos tempos do regime comunista da antiga URSS, o Uzbequistão se tornou um grande produtor de algodão, produto que se transformou em uma das maiores riquezas do país e um grande gerador de ocupação da mão de obra. Nos dias atuais, o Uzbequistão ocupa o quinto lugar no ranking dos maiores exportadores mundiais de algodão, só ficando atrás das grandes potências mundiais do setor: Estados Unidos, Índia, Brasil e Austrália. As exportações de produtos agrícolas, especialmente do algodão, são responsáveis por 14% das riquezas do país.
O comodismo do Governo do Uzbequistão em manter as coisas como estão, sem abrir mão dos caudais do rio Amu Daria para uso na agricultura irrigada, está causando prejuízos ambientais cada vez maiores. O antigo fundo arenoso do Mar de Aral possui uma espessa camada com bilhões de toneladas de sal, acumulada ao longo de milhões de anos. Sem a presença da água, esse fundo passou a ficar exposto aos fortes ventos das estepes, que passou a espalhar perto de 75 milhões de toneladas de sal a cada ano. Resíduos de produtos químicos da agricultura, especialmente pesticidas e fertilizantes, carreados após o uso intensivo da irrigação, também são espalhados pelos ventos.
De acordo com estudos da Academia de Ciências do Uzbequistão, essa camada de pó branco tóxico cobriu, até o ano de 2005, uma área de 5 milhões de hectares a Sul e a Leste da região do Mar de Aral dentro do território do país. Extensas áreas do Karakum (Deserto Negro) e Kyzlkum (Deserto Vermelho), perderam as cores que deram origem aos seus nomes e agora estão incrustradas com um pó branco. Os ventos também carregam grandes quantidades de sal tóxico para as áreas de agricultura irrigada, prejudicando cada vez mais a produção do valioso algodão.
Estudos clínicos têm encontrado altíssimos níveis de anemia e um aumento exponencial das doenças respiratórias em moradores que permaneceram nas regiões atingidas por essa nuvem de sal, com forte incidência de alguns tipos de câncer, além de aumento na mortalidade infantil. O desaparecimento da maior parte do espelho d’água do Mar de Aral também provocou uma alteração no clima regional, que apresenta verões cada vez mais secos e quentes, com temperaturas chegando próximo dos 50° C e invernos mais longos e frios, com temperaturas de até -40° C.
É essa a situação contrastante dos dois lados do Aral – enquanto no trecho Norte a situação ambiental se estabilizou e, gradualmente, parte do que havia sido perdido pode ser recuperado, a situação no Sul do Mar de Aral descambou para a mais completa e absoluta tragédia. Os últimos resquícios de água do Mar de Aral que ainda persistiam no Uzbequistão desapareceram em 2015.
Essa saga ainda não terminou – os rios Amu Daria e Syr Daria têm suas nascentes em glaciares no alto das Montanhas Himalaias. O aquecimento global está ameaçando cada vez mais a existência dessas geleiras e, dentro de poucas décadas, as tão disputadas águas poderão simplesmente desaparecer da Ásia Central.
Quando isso acontecer, toda a humanidade poderá ficar feliz com a conclusão da sua grande obra!