O RENASCIMENTO DO MAR DO NORTE DE ARAL

Barragem de Kokaral

O fabuloso Mar de Aral, na Ásia Central, já foi o quarto maior lago do mundo. Algumas poucas décadas atrás, seu espelho d’água cobria uma área total de 68 mil km², o que corresponde a uma vez e meia a área do Estado do Rio de Janeiro ou o equivalente a 165 vezes a área da Baía da Guanabara.  

Infelizmente, a construção de uma infinidade de canais de irrigação pela antiga URSS – União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, passou a desviar a maior parte dos caudais dos rios Amu Daria e Syr Daria para uso em projetos agrícolas, o que fez o lago praticamente desaparecer

Cerca de 90% da área que era ocupada pelo Mar de Aral, onde a profundidade das águas chegava a superar os 30 metros, acabou sendo transformada em um grande deserto de areias salgadas – o Aralkum. Um pequeno trecho de águas conseguiu sobreviver na faixa Norte e passou a ser conhecido como o Pequeno Mar de Aral. 

O destino de todo o Mar de Aral, que parecia ser o de se transformar num grande deserto, mudou radicalmente quando o Banco Mundial entrou em cena no final da década de 1990 e concedeu um empréstimo de US$ 87 milhões ao Governo do Cazaquistão, que tinha na época um projeto para revitalizar o que restou do Mar de Aral em seu território

O projeto do Governo cazaque consistia na construção de uma barragem com cerca de 13 km de extensão e cerca de 4 metros de altura num trecho onde as águas remanescentes formavam um longo canal. Essa barragem, batizada de Kokaral (vide foto), foi concluída em 2005. O Governo local também realizou uma série de melhorias nos canais de irrigação alimentados pelo rio Syr Daria, reduzindo substancialmente as perdas de água e aumentando os caudais que chegavam ao Pequeno Mar de Aral. 

Com a conclusão de todo esse conjunto de obras, os cazaques imaginavam que, em cerca de 10 anos, esse trecho represado do Pequeno Mar de Aral poderia acumular uma lâmina de água com aproximadamente 3,3 metros de profundidade. Para surpresa de todos, essa cota acabou sendo atingida em apenas sete meses e o lago “renascido” passou a ser chamado de Mar do Norte de Aral

Com a estabilização do volume de águas no lago, diversas espécies de peixes do rio Syr Daria voltaram a recolonizar o Mar do Norte de Aral. Já em 2006, a indústria pesqueira foi retomada e a produção totalizou cerca de 1.360 toneladas. Em 2016, os dados da Unidade de Inspeção de Peixes do Porto de Aralsk contabilizaram 7.106 toneladas de pescados, principalmente o lúcio, uma espécie muito apreciada pelos locais, além de sargos e bagres. 

Existem planos para aumentar a altura da barragem de Kokaral em mais 4 metros, o que resultaria em um aumento de 50% na área ocupada pelo espelho d’água em prazo de 5 anos. Esse projeto ainda está em discussão entre o Banco Mundial e o Governo do Cazaquistão. Todos os anos, cerca de 2,7 bilhões de m³ de água “sangram” através da barragem rumo ao trecho Sul do lago e se perde em grande parte por evaporação, o que demonstra viabilidade do projeto. 

Enquanto esse pequeno trecho do espelho d’água, que corresponde a cerca de 10% do antigo Mar de Aral, foi salvo e abriu a possibilidade de milhares de cazaques retomarem as antigas tradições do trabalho com a pesca de seus pais e avós, o trecho uzbeque continua desoladamente seco como nas últimas décadas. Assim como fez com o Governo do Cazaquistão, o Banco Mundial se propôs a financiar obras de revitalização de alguns trechos do Aral no Uzbequistão, porém, não teve a mesma receptividade. 

Assim como acontecia no trecho Norte, alguns pequenos resquícios de água sobreviveram na faixa Sul do Mar de Aral – um desses locais era o Lago Sudoche. Com a realização de obras de barragens e melhorias nos sistemas de drenagem dos canais de irrigação do rio Amu Daria, além do aproveitamento dos excedentes de águas do Mar do Norte de Aral, seria possível a revitalização de parte do Aral no Sul. 

Apesar dos bem intencionados objetivos do Banco Mundial e do grande sucesso da revitalização do Mar do Norte de Aral pelo Cazaquistão, o Governo do Uzbequistão não esboçou maiores simpatias pelo projeto. As principais razões para isso são geográficas – enquanto o Cazaquistão tem um território com mais de 2,7 milhões de km², onde se encontram grandes riquezas naturais e ainda possui uma fachada “oceânica” para o Mar Cáspio, o Uzbequistão tem apenas 447 mil km² de um território cercado por estepes áridas e semiáridas, com volumes de recursos naturais muito menores. 

Com a construção dos canais de irrigação no rio Amu Daria a partir dos tempos do regime comunista da antiga URSS, o Uzbequistão se tornou um grande produtor de algodão, produto que se transformou em uma das maiores riquezas do país e um grande gerador de ocupação da mão de obra. Nos dias atuais, o Uzbequistão ocupa o quinto lugar no ranking dos maiores exportadores mundiais de algodão, só ficando atrás das grandes potências mundiais do setor: Estados Unidos, Índia, Brasil e Austrália. As exportações de produtos agrícolas, especialmente do algodão, são responsáveis por 14% das riquezas do país

O comodismo do Governo do Uzbequistão em manter as coisas como estão, sem abrir mão dos caudais do rio Amu Daria para uso na agricultura irrigada, está causando prejuízos ambientais cada vez maiores. O antigo fundo arenoso do Mar de Aral possui uma espessa camada com bilhões de toneladas de sal, acumulada ao longo de milhões de anos. Sem a presença da água, esse fundo passou a ficar exposto aos fortes ventos das estepes, que passou a espalhar perto de 75 milhões de toneladas de sal a cada ano. Resíduos de produtos químicos da agricultura, especialmente pesticidas e fertilizantes, carreados após o uso intensivo da irrigação, também são espalhados pelos ventos

De acordo com estudos da Academia de Ciências do Uzbequistão, essa camada de pó branco tóxico cobriu, até o ano de 2005, uma área de 5 milhões de hectares a Sul e a Leste da região do Mar de Aral dentro do território do país. Extensas áreas do Karakum (Deserto Negro) e Kyzlkum (Deserto Vermelho), perderam as cores que deram origem aos seus nomes e agora estão incrustradas com um pó branco. Os ventos também carregam grandes quantidades de sal tóxico para as áreas de agricultura irrigada, prejudicando cada vez mais a produção do valioso algodão

Estudos clínicos têm encontrado altíssimos níveis de anemia e um aumento exponencial das doenças respiratórias em moradores que permaneceram nas regiões atingidas por essa nuvem de sal, com forte incidência de alguns tipos de câncer, além de aumento na mortalidade infantil. O desaparecimento da maior parte do espelho d’água do Mar de Aral também provocou uma alteração no clima regional, que apresenta verões cada vez mais secos e quentes, com temperaturas chegando próximo dos 50° C e invernos mais longos e frios, com temperaturas de até -40° C

É essa a situação contrastante dos dois lados do Aral – enquanto no trecho Norte a situação ambiental se estabilizou e, gradualmente, parte do que havia sido perdido pode ser recuperado, a situação no Sul do Mar de Aral descambou para a mais completa e absoluta tragédia. Os últimos resquícios de água do Mar de Aral que ainda persistiam no Uzbequistão desapareceram em 2015. 

Essa saga ainda não terminou – os rios Amu Daria e Syr Daria têm suas nascentes em glaciares no alto das Montanhas Himalaias. O aquecimento global está ameaçando cada vez mais a existência dessas geleiras e, dentro de poucas décadas, as tão disputadas águas poderão simplesmente desaparecer da Ásia Central. 

Quando isso acontecer, toda a humanidade poderá ficar feliz com a conclusão da sua grande obra! 

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UM DOS GRANDES CRIMES AMBIENTAIS DA ANTIGA UNIÃO SOVIÉTICA – A DESTRUIÇÃO DO MAR DE ARAL

Seca no Mar de Aral

Nessa série de postagens, estamos apresentando um pequeno resumo dos grandes problemas ambientais da Rússia atual. Essa lista não ficaria completa sem a inclusão das grandes catástrofes ambientais levadas a cabo nos tempos da URSS – União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, o grande bloco de países criado a partir da Revolução Russa ou Bolchevique de 1917 e que perdurou até 1991. A maior de todas essas catástrofes ambientais foi a destruição do Mar de Aral, na Ásia Central. 

O Mar de Aral era, até poucas décadas atrás, o quarto maior lago do mundo. Localizado entre o Cazaquistão e o Uzbequistão, na Ásia Central, costumava ocupar uma área total de 68 mil km², o que corresponde a uma vez e meia a área do Estado do Rio de Janeiro ou o equivalente a 165 vezes a área da Baía da Guanabara. Nada mal para um lago no meio de um grande deserto. Aral, nas línguas uzbeque e cazaque, significa “ilha” – haviam mais de 1.100 naquele mar. 

Esse grande espelho d’água ocupava uma grande depressão no terreno, onde formava uma bacia hidrográfica endorreica (sem saída), que recebia os caudais de dois grandes rios – o Amu Daria e o Syr Daria. Estes caudalosos rios nascem na Cordilheira do Himalaia, distante 2.000 quilômetros do lago. O grande volume de água despejado no lago compensava a evaporação de aproximadamente 10% ao ano, mantendo o nível do Aral estável por um longo período geológico e com uma profundidade máxima de 31 metros. 

Desde tempos imemoriais, o Mar de Aral era um grande oásis em meio a desertos inóspitos. As margens do Aral abrigavam diferentes grupos étnicos como tadjiques, uzbeques e cazaques, que sobreviviam como agricultores, pescadores, pastores, mercadores e artesãos numa região rica em água, plantas e vida animal. A antiga Rota da Seda, uma das ligações comerciais mais importantes da história da humanidade, cruzava as praias e deltas do Mar de Aral, situado no meio do caminho entre a Europa e a China 

Em meados do século XIX, a expansão militar do Império Russo levou à conquista da região do Mar de Aral. Navios militares e pesqueiros da Rússia foram transportados desmontados em caravanas de camelos e montados nas águas do Aral. Após a conquista, foi iniciada uma nova etapa da sua história – o Mar de Aral foi transformado numa fonte de pescados para toda a Rússia, chegando a fornecer, em meados do século XX, 1/6 do volume total dos peixes consumidos pelos povos dos países do bloco soviético

A guinada na história do Mar de Aral começou com a Revolução Bolchevique de 1917, que levou à criação da URSS, onde países da Ásia Central foram incorporados ao bloco. Dentro do sistema de planejamento central do sistema, todo o grande território da União Soviética foi dividido em função das suas potencialidades econômicas. As planícies desérticas e semidesérticas das Repúblicas da Ásia Central passaram a ser vistas como potenciais produtoras de alimentos e de algodão via sistemas de agricultura irrigada – as fontes de água seriam os caudalosos rios Amu Daria e Syr Daria. 

A partir da década de 1920, a área de agricultura irrigada na República do Turquestão foi extensivamente ampliada a fim de atender a uma proclamação de Vladimir Lenin (1870-1924) solicitando o aumento da produção do algodão. Na década de 1930, já sob o comando de Joseph Stálin (1878-1953), o Ministério da Água iniciou a implantação de gigantescos projetos de construção de canais de irrigação no Uzbequistão, Cazaquistão e Turcomenistão, com o objetivo de transformar suas estepes nos celeiros da União Soviética, alcançando a autossuficiência na produção de trigo, cevada, arroz, milho e algodão. O primeiro grande canal de irrigação foi concluído em 1939 no Vale de Ferghana no Uzbequistão; no final da década de 1940 foram concluídos canais em Kizil-Orda no Cazaquistão e na região de Taskent no Uzbequistão. 

Após a morte de Stálin em 1953, os novos dirigentes da União Soviética – Nikita Khushchev (1894-1971) e Leonid Breznev (1906-1982), mantiveram a política de produção agrícola nas Repúblicas da Ásia Central, expandindo ainda mais a construção dos grandes canais de irrigação e convertendo ainda mais áreas de estepes para a produção de algodão. Foram construídos o Qara-Qum, um canal com 800 km de extensão entre o rio Amu Daria e Ashkhadab, o sistema de irrigação de Mirzachol Sahra, o canal Chu no Quirguistão e o Reservatório de Bahr-i Tajik no Tadjiquistão.  

A partir do final da década de 1950, Moscou decidiu que toda a região irrigada da Ásia Central passaria a se ocupar exclusivamente com a monocultura do algodão – “quando o branco da neve cobre Moscou, o ouro branco do algodão cobre as Repúblicas Soviéticas da Ásia Central”: essa frase passou a ser uma espécie de mantra no Kremlin

Os planos dos burocratas de Moscou lograram espantosos êxitos, com recordes de produção quebrados sucessivamente ano após ano, porém, com terríveis custos sociais e ambientais. A sangria de recursos hídricos dos rios Amu Daria e Syr Daria para uso em sistemas de irrigação fez cair em 90% o volume de água que chegava ao Mar de Aral. A monocultura do algodão destruiu as tradições culturais dos povos nômades da Ásia Central, sobretudo os cazaques, um povo sem qualquer tradição em agricultura e que não aceitou o programa de propriedade coletiva dos soviéticos – calcula-se que mais de um milhão de pessoas morreram ou abandonaram a região, migrando para outros países. 

Em 1960, o nível do Mar de Aral estava cerca de 2 metros mais baixo e a área ocupada pelo seu espelho d’água foi reduzida em 6.000 km². Cinco anos depois, o nível baixou mais 3 metros e o espelho d’água diminuiu outros 5.000 km². Passados dez anos, o nível das águas baixou mais 14 metros e o Mar de Aral ficou reduzido a um terço da sua área original, com um grande aumento da salinidade das suas águas e intensa mortandade de peixes. O porto de Aralsk, onde o lago tinha uma profundidade média de 13 metros, agora estava distante 70 km da margem das águas remanescentes – o colapso do Mar de Aral estava consolidado e a vida de 50 milhões de pessoas teria um futuro incerto. 

Um pequeno trecho do lago ao Norte, batizado de Pequeno Aral, conseguiu manter parte de suas águas graças a uma pequena contribuição mantida pelo rio Syr Daria. Com financiamento do Banco Mundial, o Governo do Cazaquistão construiu uma barragem com extensão de 13 km, permitindo a estabilização da profundidade deste trecho remanescente do lago em 4 metros. Esse trecho, mais conhecido como Mar do Norte de Aral, corresponde atualmente a apenas 10% da área original do corpo d’água – todo o restante da área ocupada originalmente pelo lago acabou transformada em desertos de areias salgadas

Bastaram pouco mais de 50 anos de obras inconsequentes planejadas por burocratas do Kremlin para destruir um dos mais fascinantes lagos do mundo. Esses burocratas seguiam apenas as suas planilhas com as metas de produção, sem ouvir nenhum especialista em recursos hídricos. Consta que, na década de 1940, um alto funcionário do Ministério da Água, respondendo aos questionamentos de um grupo de cientistas preocupados com as consequências dos programas de irrigação na Ásia Central, respondeu: 

“- O Mar de Aral precisa morrer como um soldado na Guerra! ” 

Demorou, mas enfim a morte chegou… 

OS ESFORÇOS DA RÚSSIA PARA A EXPLORAÇÃO DE PETRÓLEO E GÁS NO ÁRTICO, OU FALANDO DO PROJETO ICEBERG

Urso polar

Em 1871 foi perfurado o primeiro poço de petróleo na região do Mar Cáspio, mais precisamente no Azerbaijão. Essa descoberta coincidiu com a expansão territorial do Império Russo naquele momento e, décadas depois, esse domínio regional foi consolidado com a anexação de países do Cáucaso e da Ásia Central à URSS – União das Repúblicas Socialistas Soviéticas. A região foi transformada nas décadas seguintes em uma importante fornecedora de petróleo e gás para todo o bloco socialista.

Antes do colapso da URSS – União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, em 1991, a Rússia continuava controlando importantes reservas de petróleo e gás no Mar Cáspio e em países como o Azerbaijão, Turcomenistão, Uzbequistão e Cazaquistão. Com o fim da URSS, esses países passaram a ter liberdade de negociar suas riquezas naturais com outros países, o que forçou os russos a se voltarem para seu próprio território, especialmente para a Sibéria.

As estimativas atuais afirmam que as reservas de petróleo no Mar Cáspio e na Ásia Central são de 50 bilhões de barris e as de gás são da ordem de 9,1 trilhões de m³, valores que correspondem a cerca de 5% das reservas mundiais. Atualmente, entre os grandes compradores desses recursos, estão os países da Europa, Estados Unidos e, cada vez mais, a China – a Rússia acabou relegada à “segunda divisão”.

Dentro do território russo, conforme comentamos na última postagem, a Sibéria – mais especificamente o Planalto Siberiano, se transformou na grande fonte de recursos energéticos do país. A região concentra 80% das reservas de petróleo, 85% do gás e 80% do carvão russo. O Governo da Rússia, entretanto, quer aumentar as suas reservas estratégicas, aumentando assim o seu capital político. Cada vez mais, os russos tem voltado seus olhos para as reversas de hidrocarbonetos escondidas sob o Mar Ártico, uma atividade que pode comprometer um dos mais importantes ecossistemas do planeta.

A Rússia vem pleiteando há vários anos uma expansão do seu território submarino na região do Ártico junto à Comissão dos Limites da Plataforma Continental da ONU – Organização das Nações Unidas. Em 2013, a Rússia teve sucesso junto a essa Comissão na ampliação dos seus direitos territoriais no Mar de Okhotsk, na região do Oceano Pacífico, e imagina que isso é um bom precedente para as suas reinvindicações no Ártico. Outros países como o Canadá também fazem a mesma solicitação.

O Oceano Ártico apresenta profundidades de até 5 mil metros, o que, por si só já se apresenta como um grande desafio para a exploração de petróleo e gás. Aqui vale lembrar que o Brasil vem explorando petróleo em águas profundas na região conhecida como Pré-Sal no Oceano Atlântico. As profundidades nessa região chegam a 7 mil metros, sem contar com uma espessa camada de sal no fundo marinho que pode chegar a 2 mil metros. A Petrobras – Petróleo Brasileiro S.A., foi obrigada a desenvolver tecnologias especiais para conseguir realizar com sucesso as explorações nessas condições.

Porém, ao contrário do clima tropical da costa brasileira, o clima do Ártico é inóspito e o Oceano passa grande parte do ano coberto por uma grossa camada de gelo. Para vencer essas dificuldades e se tornar a primeira nação do mundo a fazer explorações bem sucedidas na região, a Rússia criou há vários anos o Projeto Iceberg, onde os principais objetivos são o desenvolvimento de novas tecnologias e o aperfeiçoamento de equipamentos para operação em condições de frio extremo. Entre os principais destaques tecnológicos dos russos estão os robôs submarinos e os submarinos não tripulados.

Uma das principais peças do sistema de exploração de águas profundas da Rússia é o Belgorod, o maior submarino nuclear já construído. Com 182 metros de comprimento, esse submarino vai operar como uma espécie de “nave-mãe” para uma frota de submarinos menores, tripulados e não tripulados. A embarcação também será usada na realização de análises submarinas e na instalação de cabos e outros equipamentos subaquáticos.

Um outro equipamento que já se encontra em fase de testes é o Harpischord-2R-PM AUV, um veículo submersível com 2 toneladas de peso e 6 metros de comprimento, desenvolvido especialmente para o Projeto Iceberg. Esse veículo tem o formato de um torpedo e está em testes no Mar Negro. O equipamento já foi usado em missões para a localização de destroços de aeronaves acidentadas no mar.

Os russos trabalham com a expectativa de automatizar ao máximo e controlar à distância os processos produtivos através do uso de novas tecnologias e, consequentemente, reduzindo ao mínimo a necessidade de uso de mão de obra humana in loco. Muitas das grandes potências mundiais observam com restrições o andamento do projeto da Rússia, colocando dúvidas na viabilidade práticas dessas tecnologias.

Entre outros equipamentos, os russos pretendem instalar um reator nuclear autônomo de 24 MW no fundo do mar, que servirá como um ponto de recarga para os robôs e submarinos autônomos que estarão trabalhando nas operações de prospecção, perfuração e extração de petróleo e gás no Ártico. Esse é um dos pontos que mais gera preocupações na comunidade internacional – a Rússia tem um longo histórico de acidentes nucleares.

O maior e mais grave acidente nuclear da história aconteceu em Chernobyl, na então República Socialista Soviética da Ucrânia, em 1986. Um teste de segurança desastroso desencadeou uma série de falhas em equipamentos e em procedimentos de operação da usina nuclear. Houve uma grande explosão de vapor, o que expôs os elementos radioativos do núcleo e liberou grandes quantidades de urânio na atmosfera. Os russos esconderam essa informação da comunidade internacional por vários dias, o que agravou as consequências do desastre.

Os russos também contabilizam inúmeros acidentes com embarcações militares com propulsão nuclear. Desde 1961, até onde se conhece, a Marinha Soviética perdeu sete submarinos nucleares, além de diversos acidentes graves com os reatores nucleares de navios militares. Esses números podem ser maiores: a União Soviética não poupava esforços para esconder do mundo os seus fracassos. Um dos grandes acidentes com um submarino russo foi o Kursk, no ano 2000 já na era pós-URSS, causando a morte dos seus 118 tripulantes. Os orgulhosos russos se negaram a receber ajuda dos Estados Unidos, que possuía submarinos de resgate para uso nesse tipo de acidente.

Além dos temores relativos a eventuais falhas nos reatores nucleares de diversos equipamentos que virão a ser usados nas instalações de exploração de petróleo e gás, a comunidade internacional também se preocupa com as consequências de um possível acidente com petróleo na Região do Ártico. Existem fortes razões para esses temores – o acidente com o superpetroleiro Exxon Valdez no Alasca em 1989 deu uma grande demonstração dos impactos ambientais criados por um grande derrame de petróleo no Ártico. De acordo com estimativas oficiais, a tragédia provocou a morte de mais de 260 mil aves marinhas, 2.800 lontras-marinhas, 250 águias e 22 orcas, além de dezenas de milhares de peixes, crustáceos e moluscos marinhos.

O Ártico está entre as regiões do mundo que mais sofrem com os efeitos do Aquecimento Global. As temperaturas médias na região estão aumentando progressivamente, o que tem levado à perda de grandes volumes de gelo. Pesquisas recentes indicam que a camada de gelo que cobre o Ártico ficou até 40% mais fina e houve uma redução de cerca de 15% em sua área total. Diversos animais estão sendo fortemente ameaçados com essas mudanças no seu habitat, onde destacamos os carismáticos ursos polares, uma das espécies mais representativas do Ártico.

Expor uma região já criticamente ameaçada pelos efeitos do Aquecimento Global a riscos de acidentes com petróleo parece fugir completamente do razoável. Agora, qual país teria “peito” para encarar uma potência nuclear como é a Rússia para impedir que avancem com seus projetos?

A PREDATÓRIA EXPLORAÇÃO DE PETRÓLEO, GÁS E OUTROS RECURSOS NATURAIS NA SIBÉRIA

Tigre siberiano

Imagine um lugar inóspito, pouco habitado, gelado na maior parte do ano, longe de tudo e que dava arrepios na espinha daqueles que ouviam seu nome: Sibéria. Até algumas poucas décadas atrás, essa era a imagem dessa extensa região do Leste da Rússia, que nos tempos “áureos” do regime comunista era o paraíso dos gulags, os campos de prisioneiros e de dissidentes políticos do regime. A Sibéria responde por 77% do território da Rússia, o que corresponde a 13 milhões de km². 

Nos últimos anos, porém, as temidas estepes geladas da Sibéria foram transformadas na redenção da Rússia. Após o colapso da URSS – União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, os russos perderam ou passaram a ter acesso limitado aos recursos naturais de seus antigos países satélites. Foi então que a Sibéria entrou definitivamente no mapa da Rússia – a região concentra 80% das reservas de petróleo, 85% do gás, 80% do carvão, além de possuir impressionantes reservas de minerais e a maior parte das florestas do país. 

Essas grandes reservas de matérias primas e recursos energéticos colocaram a Rússia como um dos grandes players do mundo atual. Os países que formam a União Europeia, citando um exemplo, se transformaram em grandes dependentes de recursos energéticos da Rússia – 70% do petróleo e 65% do gás consumido por esses europeus são comprados dos russos. Um outro grande mercado para os recursos naturais e energéticos da Rússia é a China, país que fica muito próximo da região da Sibéria e que já é o destino final de diversos oleodutos, gasodutos e rodovias russas. 

A proximidade com a China, aliás, se tornou um dos grandes atrativos da até então “distante Sibéria”. De acordo com as informações usadas e divulgadas pelo Governo da Rússia nas estratégias de marketing dos recursos siberianos, o tempo de transporte de uma carga para Xangai a partir do porto de Vânino na Sibéria é de apenas 4 dias. Essa mesma carga levaria 35 dias de viagem a partir do Brasil, 20 dias a partir da África do Sul e 14 dias a partir da Austrália. Além do menor tempo de transporte e facilidades logísticas, os custos com os fretes são muito mais baixos.

Até meados do século XVI, a Sibéria era uma espécie de “terra de ninguém”, habitada por inúmeros povos nômades e independentes de qualquer grande potência. Foi no reinado do czar Ivan IV da Rússia (1530-1584), mais conhecido entre nós como “Ivan, o Terrível“, que teve início a partir de 1555 um grande processo de exploração e colonização da Sibéria pela Rússia. Gradativamente, todos os territórios a Leste dos Montes Urais foram incorporados ao Império Rússo. Essa expansão, inclusive, atravessou o Estreito de Bering, chegando até o Alasca, um território que em 1867 seria vendido aos Estados Unidos. 

Um dos mais importantes recursos naturais explorados na Sibéria nessa época eram as peles de animais como tigres siberianos (vide foto), lobos, ursos e raposas, que eram encontrados em grandes quantidades nas florestas de taiga e nas estepes. Entre os séculos XIII e XVII, a Europa passou por um período de esfriamento, conhecido entre os climatologistas como Pequena Era do Gelo. As temperaturas caíram fortemente no continente, com algumas regiões da Escandinávia, Islândia e Groenlândia sendo abandonadas pelas populações devido ao frio extremo.  

Nesse período, o mercado de peles de animais para a confecção de casacos para os mais endinheirados da Europa cresceu muito, o que tornou as regiões mais selvagens do continente num grande atrativo para os caçadores. O czar Ivan IV enxergou nesse mercado uma grande oportunidade para a venda de peles da Rússia e estimulou a caça na Sibéria. Milhares de aventureiros se deslocaram para o grande Leste da Rússia, o que estimulou a expansão da população e a anexação dessa extensa região pelos russos.  

Muitos dos povos dessa região acabaram se transformando em fornecedores de peles, o que facilitou sua gradual integração social e econômica à Rússia – outros povos, mais aguerridos, acabaram sendo dominados com o uso da força pelas tropas imperiais. Gradativamente, a Sibéria foi se transformando em uma grande e importante fornecedora de carvão, madeiras, minérios e outras matérias primas essenciais para os sucessivos czares russos. 

Após a Revolução Comunista de 1917 e com a formação de um grande bloco de países, a União Soviética passou a contar com importantes fontes de petróleo, gás e carvão na região do Mar Cáspio e nas Repúblicas Socialistas da Ásia Central – a região da Sibéria voltou a ser colocada em um segundo plano, só voltando a ser lembrada pelos invernos rigorosos e como um local de punição para os presos políticos. Foi somente após o colapso da União Soviética em 1991 e perda de acesso dos russos aos recursos naturais da Ásia Central, que a Sibéria voltou a “entrar” no mapa da Rússia mais uma vez. 

A exploração em larga escala dos cobiçados recursos naturais da Sibéria está criando uma série de impactos ao meio ambiente. Vamos começar falando dos desmatamentos em grandes extensões da taiga, a floresta boreal ou das coníferas. Esse grande sistema florestal, o maior do mundo, cobre uma área total de 15 milhões de km² em países como a Escócia, Noruega, Suécia, Finlândia, Rússia, partes do Cazaquistão e da Mongólia, Norte do Japão, Alasca – território dos Estados Unidos, Canadá e Groenlândia

A maior parte da vegetação da taiga, cerca de 12 milhões de km², se encontra dentro do território da Rússia, principalmente na região da Sibéria. Essa impressionante floresta russa tem mais de duas vezes o tamanho da Floresta Amazônica e sofre dos mesmos males: desmatamentos (muitos deles ilegais) e queimadas. Durante o verão de 2019, mais de 100 mil km² de florestas de taiga foram destruídos por incêndios, grande parte provocados por fenômenos naturais. 

Os desmatamentos na taiga são realizados por empresas produtoras de papel e celulose e também para a exploração de madeira, principalmente uma espécie local de cedro de grande valor comercial. O grande comprador de madeiras da Rússia é a China, destino de 2/3 das exportações russas. Estima-se que entre 15 e 30% desses desmatamentos sejam ilegais. O avanço sobre essas florestas ameaça inúmeras espécies animais locais como o tigre, lobos, raposas e linces, entre outras, além de comprometer a estabilidade do clima global

A exploração de minerais e carvão na região também é uma grande fonte de problemas para o meio ambiente. Conforme comentamos em postagem anterior, os efeitos da mineração selvagem na Sibéria têm comprometido uma série de cursos e corpos d’água como o grande Lago Baikal. Resíduos tóxicos de metais pesados presentes em depósitos de rejeitos minerais têm sido carreados para inúmeros rios que desaguam nesse Lago e o efeito mais visível da poluição é a morte de grandes quantidades de focas, animal símbolo do Baikal

A exploração de petróleo e gás também dá a sua contribuição para os grandes problemas ambientais da Sibéria. Longe dos olhos da maior parte da população do país, as empresas desse setor costumam fazer vista grossa para os procedimentos de segurança e de proteção ao meio ambiente, o que tem resultado em inúmeros acidentes na perfuração, armazenamento e transporte, com vazamento de grandes quantidades de petróleo.  

Petróleo e gás ocupam uma posição de destaque na economia da Rússia e o Governo Central do país faz todo um esforço para minimizar a importância e a intensidade de qualquer notícia de vazamentos de petróleo e/ou gás na Sibéria. O grande poderio militar da Rússia, que conta com um fabuloso arsenal de armas nucleares, e a dependência de grande parte da Europa pelo fornecimento de petróleo e do gás russo, ajuda a calar a maior parte dos ambientalistas, que raramente se atrevem a falar dos problemas enfrentados pela Sibéria de Vladimir Putin

Diante do silêncio do mundo, a exploração selvagem dos recursos naturais está a custar muito caro para a distante Sibéria.

OS PROBLEMAS AMBIENTAIS DECORRENTES DO ACIDENTE NUCLEAR DE CHERNOBYL

Lobos de Chernobyl

Desde a década de 1940, quando se multiplicaram os estudos e experimentos com elementos radioativos – principalmente no campo do desenvolvimento e construção de armas nucleares, teve início um processo de poluição do ar, dos solos e das águas com substâncias radioativas – os nuclídeos. Essas substâncias se formam a partir da recombinação dos átomos de plutônio, entre outros elementos radioativos, “destruídos” durante a fissão nuclear. Os nuclídeos mais conhecidos, e, portanto, os que causam maiores impactos ao meio ambiente, são o césio-137 e o estrôncio-90

primeiro teste com uma arma nuclear ocorreu em 16 de julho de 1945, no Novo México – Estados Unidos, dentro dos esforços do Projeto Manhattan. Os norte-americanos corriam contra o tempo para vencer os cientistas da Alemanha nazista, que já estavam bastante adiantados no projeto de uma bomba atômica. A explosão dessa primeira bomba liberou uma quantidade de energia equivalente a 18,6 mil toneladas do explosivo TNT (Trinitrotolueno) e demonstrou que a tecnologia era viável. Nos dias 6 e 9 de agosto, respectivamente, bombardeiros norte-americanos lançaram as bombas atômicas Litle Boy e Fat Man sobre as cidades de Hiroshima Nagasaki, no Japão, encerrando assim a II Guerra Mundial. A Alemanha havia se rendido pouco antes. 

A partir dessas primeiras explosões na década de 1940, calcula-se que cerca de 2 mil bombas atômicas diferentes já foram testadas em todo o mundo. Os países líderes em testes nucleares foram os Estados Unidos e a URSS – União das Repúblicas Socialistas Soviéticas. Também entram nesse seleto grupo a Inglaterra, França, China, Índia e Paquistão. Existem evidências de um teste nuclear clandestino feito por Israel em 1979. A África do Sul desenvolveu um programa nuclear completo, que culminou com a fabricação de bombas atômicas, porém, o país desistiu do projeto e desmontou todo o seu arsenal nuclear. 

Além de todas as explosões atômicas com fins militares, ocorreram também cerca de 200 acidentes “civis” envolvendo materiais radioativos. Aqui no Brasil, citando um exemplo, houve o caso do césio-137 em Goiânia no ano de 1987. Sucateiros encontraram um equipamento de radioterapia abandonado e abriram o invólucro onde se encontrava o césio-137. O processo de contaminação atingiu cerca de 1.600 pessoas, com 4 mortes. 

Como resultado de todas essas explosões, testes e acidentes de todos os tipos, grandes quantidades de diferentes elementos radioativos foram liberadas na atmosfera, atingindo solos e águas de todo o mundo. Pode-se afirmar que não existe ambiente algum da superfície terrestre que não apresente pequenas quantidades de materiais radioativos liberados por esses eventos. 

O gravíssimo acidente com a Usina Nuclear de Chernobyl ocorrido em 1986 e sobre o qual tratamos na última postagem, não poderia ficar fora dessa lista. O acidente teve início durante um desastroso teste de segurança, desencadeando uma sucessão de falhas em equipamentos e nos procedimentos operacionais do reator. Uma violenta explosão de vapor expôs os elementos radioativos do núcleo, o que levou ao derretimento nuclear, explosões e incêndio. Calcula-se que até 30% das 190 toneladas métricas de urânio de Chernobyl foram lançadas na atmosfera, atingindo extensas áreas da Europa e da Eurásia

Logo após o acidente, toda a vegetação existente dentro de um raio de 10 km de Chernobyl passou a apresentar folhas com coloração marrom-avermelhada. Essa área passou a ser chamada de “Floresta Vermelha”. Com o passar do tempo, todas as árvores e plantas da área morreram devido a absorção de elevadas doses de radiação. Todos os seres vivos da área – aves, mamíferos, répteis, anfíbios, vermes e insetos, entre outros, tiveram o mesmo fim. Os efeitos da radiação se reduziram gradativamente conforme a distância de Chernobyl foi aumentando. 

As estimativas mais recentes indicam que perto de 100 mil km² de solos, matas e águas da Ucrânia, Bielorrússia e Rússia foram contaminadas com “cinzas” e elementos radioativos de Chernobyl e ficarão imprestáveis para usos agrícolas e pastoris por cerca de 24 mil anos. Essa contaminação é cerca de 400 vezes maior do que a que foi criada com a explosão da bomba atômica de Hiroshima em 1945. Essa área, para efeito de comparação, é maior que a soma dos territórios dos Estados do Rio de Janeiro e do Espírito Santo. Perto de 350 mil pessoas que viviam nessas áreas tiveram de ser deslocadas para outras regiões desses países. 

Sem a presença dos seres humanos, houve uma espécie de “renaturalização”  dessas áreas, com expansão de áreas ocupadas por florestas e por vida animal. É claro que todas essas formas de vida estão sendo afetadas pelos efeitos da radiação. Estudos científicos feitos em aves e mamíferos capturados nessas áreas encontraram grandes percentuais de animais com cataratas nos olhos e com cérebros menores. Muitas das aves estudadas apresentavam má formação nos espermas. Cerca de 40% dos pássaros machos estudados eram completamente estéreis, sem produção de esperma ou apresentando pequenas quantidades de esperma morto em seus tratos reprodutivos

Estudos das populações de seres vivos encontrados nas áreas contaminadas por material radioativo indicaram que todos os grupos populacionais eram menores que aqueles encontrados em áreas naturais limpas. Esse levantamento incluiu aves, borboletas, libélulas, abelhas, gafanhotos, aranhas e também grandes e pequenos mamíferos. Também foram encontradas grandes anormalidades nos desenvolvimentos de algumas plantas e insetos. 

Como exceção a essas observações, as populações selvagens de animais como lobos (vide foto), javalis, alces e de algumas espécies de aves, entre outras, passaram a se apresentar iguais ou até maiores do que a de outras áreas. Sem a presença dos seus grandes predadores, os seres humanos, essas espécies passaram a encontrar maiores estoques de alimentos e uma menor competição com outras espécies. Apesar dessa aparente prosperidade, esses animais apresentam uma série de lesões graves em seus organismos como decorrência da exposição contínua à radiação. 

Além de comprometer as populações e a saúde dos seres vivos remanescentes, a radiação existente nessas áreas está provocando danos genéticos e altas taxas de mutação nos seres vivos locais. Já foram observados declínios em populações de insetos como as borboletas, onde a causa é o acúmulo de mutações genéticas danosas às espécies ao longo de várias gerações. Em condições evolutivas normais, os seres vivos que melhor se adaptam ao meio ambiente são os que têm maiores chances de sobreviver – o que tem sido observado na região do acidente de Chernobyl é justamente o contrário: as novas gerações de algumas espécies de insetos estão “desevoluindo”. 

Apesar de todos os esforços já feitos e em andamento para isolar e afastar as populações das áreas contaminadas, restringir os contaminantes radioativos é uma tarefa praticamente impossível. As águas das chuvas e do degelo (o inverno nessa região é bastante rigoroso) carreiam grandes quantidades de resíduos radioativos para os cursos d’água, o que pode espalhar esses elementos na direção de localidades a centenas de quilômetros. Essas águas também provocam a infiltração desses resíduos na direção de lençóis freáticos e aquíferos subterrâneos, comprometendo o abastecimento de populações residentes fora dessa área de exclusão. 

As fortes correntes de ventos também contribuem para a dispersão de partículas de materiais radioativos, podendo transportá-los a distâncias de milhares de quilômetros, com consequências ainda não determinadas pela ciência. Serão necessárias ainda muitas décadas de estudos e observações para que se tenha uma noção exata de todos os efeitos e impactos ao meio ambiente e populações causados pelo acidente nuclear de Chernobyl

Para você pensar na cama: existem perto de 17 mil armas nucleares no mundo, principalmente nas mãos de norte-americanos e russos. Cerca de 400 reatores nucleares estão em operação em todo o mundo, com outros 65 em construção e pelo menos 165 em projeto. Se um único desastre com um reator nuclear pode causar o volume de estragos de Chernobyl, imaginem o que todo esse “arsenal” nuclear poderá causar para a humanidade… 

O ACIDENTE NUCLEAR DE CHERNOBYL

Chernobyl

Na noite entre os dias 25 e 26 de abril de 1986, durante um desastrado teste de segurança, o reator número 4 da Usina Nuclear de Chernobyl explodiu e criou o maior acidente deste tipo na história. Além de contaminar imediatamente centenas de pessoas e provocar a morte de algumas pessoas, a radiação e os materiais radioativos liberados na atmosfera contaminaram centenas de milhares de pessoas que viviam dentro de uma vasta região da Ucrânia, então uma das Repúblicas da União Soviética e sede da Usina, além de atingir áreas da Bielorrússia e da Rússia. 

Os ventos espalharam material radioativo para a Escandinávia e diversos países do Leste da Europa. O Governo Central soviético escondeu o acidente do resto do mundo por vários dias, porém, os países vizinhos começaram a detectar níveis de radiação anormais no ar e nos solos, o que forçou os russos a finalmente admitir o acidente. Alegando razões de segurança, os russos não permitiram o acesso imediato de especialistas internacionais e nem aceitaram ajuda de países estrangeiros. Até os dias de hoje existem inúmeras perguntas sem respostas sobre o que realmente aconteceu naquela noite. 

O programa nuclear soviético foi iniciado em 1943 e tinha como principal objetivo o desenvolvimento de uma bomba atômica para uso na Segunda Guerra Mundial. Assim como os americanos, os serviços de inteligência soviéticos já sabiam da existência do programa nuclear da Alemanha nazista. Os cientistas alemães chegaram muito próximos de concluir seus objetivos – alguns especialistas afirmam que ao terminar a Guerra, os alemães estavam a apenas seis meses de concluir sua bomba atômica, o teria mudado completamente os rumos do mundo. Com a derrota da Alemanha, muitos cientistas alemães foram capturados pelos russos e “convidados” a trabalhar em seus próprios projetos. 

O “Laboratório n° 2”, que em 1960 passou a ser conhecido como Instituto Kurtchátov, foi o berço de inúmeros avanços na área da energia nuclear da União Soviética: em 1944, construiu o primeiro ciclotron do país e em 1946 inaugurou o primeiro reator nuclear da Europa. Em 1949, construiu a primeira bomba termonuclear e também a primeira usina nuclear do mundo – Obninsk, em 1954. Nos anos seguintes desenvolveu pequenos reatores nucleares para uso em navios e submarinos da esquadra soviética. 

A Usina Nuclear de Obninsk, cidade localizada a 100 km de Moscou, foi transformada pela gigantesca máquina de propaganda soviética num dos maiores triunfos da URSS – União das Repúblicas Socialistas Soviéticas. O tipo de reator usado nessa usina, RBMK – Reator Canalizado de Alta potência na sigla em russo, utilizava um sistema de refrigeração a água, que circulava através de canaletas dentro de blocos de grafite. Apesar de funcional, esse modelo de reator nuclear apresenta uma série de problemas de segurança, especialmente de instabilidade quando opera com baixos níveis de energia. O reator que explodiu na Usina Nuclear de Chernobyl era derivado desse projeto. 

O Complexo Nuclear Vladimir Ilich Ulianov – nome completo do grande líder russo Vladimir Lenin, mais conhecido no mundo como Usina Nuclear de Chernobyl, começou a ser construído nessa localidade da Ucrânia em 1972. Em função da construção da Usina, foi iniciada a construção da cidade de Pripyat nas proximidades, com o objetivo de alojar os trabalhadores e seus familiares. O primeiro reator nuclear começou a operar comercialmente em 1978. Os reatores nucleares 2, 3 e 4 iniciaram suas operações, respectivamente, em 1979, 1981 e 1983. O projeto original previa a construção de 12 reatores nucleares até o ano de 2010. Até 1986, ano em que ocorreu o acidente, a Usina tinha uma capacidade de produção de 1 mil MW e respondia por 10% da geração de energia elétrica da Ucrânia. 

Há um detalhe bastante importante – a decisão pela construção da Usina Nuclear nessa localidade da Ucrânia partiu dos planejadores estatais do Kremlin, que se baseavam em aspectos puramente econômicos e geográficos. Nenhum ucraniano foi consultado sobre o projeto ou qualquer estudo de impacto ambiental sequer chegou a ser cogitado. O Estado soviético precisava de recursos energéticos para o seu funcionamento e a República Socialista da Ucrânia “sentia-se honrada” em contribuir, cedendo “espontaneamente” seu território para a Mãe Rússia. Era mais ou menos assim que as coisas funcionavam dentro da chamada “Cortina de Ferro”. 

Falando de uma forma muito, mas muito simplificada, as usinas nucleares funcionam a partir de um processo de destruição controlada de elementos radioativos como o urânio. Esse processo, chamado de “fissão nuclear”, libera grandes quantidades calor, que é usado na geração de vapor de água. Por fim, esse vapor aciona turbinas onde estão ligados os geradores elétricos. Todo esse processo depende de um sem número de dispositivos de segurança e controle, sistemas que evitam a ocorrência de uma catástrofe nuclear semelhante a explosão de uma bomba atômica. 

No modelo de reator nuclear usado na Usina de Chernobyl, o principal dispositivo de segurança era o sistema de circulação de água para o resfriamento das células de combustível, onde era necessária a circulação de 28 toneladas métricas de água a cada hora. As bombas que realizavam a circulação da água eram alimentadas pela energia elétrica gerada pelo próprio reator nuclear. Em caso de falha no funcionamento do reator, dois geradores diesel elétricos deveriam entrar em funcionamento, garantindo assim o resfriamento contínuo das células de combustível. 

Desde a inauguração do primeiro reator nuclear em 1979, os técnicos e engenheiros da Usina tinham dúvidas sobre o tempo de acionamento desses geradores diesel elétricos e a continuidade do bombeamento da água para refrigeração do reator. Foi justamente durante a realização de um teste nesse sistema em 1986, que houve uma falha geral no sistema de resfriamento do reator, levando a uma grande explosão. Essas falhas envolveram tanto erros no projeto dos equipamentos quanto nos procedimentos operacionais dos técnicos da Usina. 

As consequências do desastre de Chernobyl poderiam ter sido menores caso não tivessem acontecido atrasos na comunicação às autoridades superiores. O diretor da Usina demorou para notificar seu superior em Moscou, que por sua vez demorou a informar ao Conselho de Energia Nuclear Soviético. Esse último, por sua vez, adiou enquanto pode a comunicação ao supremo líder Mikhail Gorbatchov. Somente 36 horas após a explosão do reator é que foi dada a ordem de evacuação dos 50 mil moradores que viviam num raio de 10 km da Usina.  

Com as dificuldades para o controle do incêndio do reator, outras 68 mil pessoas que moravam num raio de 30 km de Chernobyl também tiveram de ser evacuadas. Com a dispersão de materiais radioativos pelos ventos, outras 135 mil pessoas tiveram de ser evacuadas ao longo de um ano. Até o ano 2000, cerca de 350 mil pessoas já haviam sido evacuadas de áreas contaminadas por radiação e reassentadas em outras regiões. A imagem que ilustra essa postagem, feita recentemente pelo fotógrafo Andrew Leatherbarrow nas ruinas de uma escola em Pripyat, mostra o acidente na visão de uma criança.

De acordo com informações oficiais, não muito confiáveis na minha opinião, 237 pessoas foram expostas a grave radiação por causa do acidente, sendo que 31 morreram nos primeiros três meses. Estimativas extra oficiais calculam que cerca de 4 mil dos 500 mil moradores que residiam nas áreas atingidas pela nuvem de radiação podem ter desenvolvido câncer. Estudos realizados pela ONU – Organização das Nações Unidas, estimam o número de mortes ligadas ao acidente entre 9 mil e 16 mil

Os trabalhos de evacuação de moradores, isolamento da usina e descontaminação de áreas envolveram mais de 500 mil trabalhadores, principalmente das forças armadas, e tiveram um custo de 18 bilhões de rublos soviéticos. Muitos analistas políticos internacionais afirmam que o acidente com a Usina Nuclear de Chernobyl ajudou a acelerar o desmoronamento da União Soviética. 

Cerca de 100 mil km² de solos da Ucrânia, Bielorrússia e Rússia foram contaminados com “cinzas nucleares” de Chernobyl e ficarão imprestáveis para usos agrícolas e pastoris por milhares de anos. Níveis bem menores de radiação atingiram toda a Europa, a exceção de Portugal e Espanha. Eu lembro de notícias da época que falavam de traços de radioatividade encontrados em pacotes de leite em pó importados da Holanda e vendidos em supermercados aqui no Brasil logo após esse acidente. Isso nos dá uma ideia dos impactos da radiação no meio ambiente no médio e longo prazo. 

Continuaremos na próxima postagem. 

AS “MISTERIOSAS” MORTES DE FOCAS NO LAGO BAIKAL

Foca do Baikal

O Lago Baikal fica no Sul da Sibéria, na Rússia, uma das regiões mais geladas do planeta. É considerado o segundo maior lago de água doce do mundo e o dono do maior volume de água armazenada. O lago tem cerca de 636 km de comprimento e 80 km de largura na média, o que resulta em uma área total de pouco mais de 31 mil km². As profundidades do Lago Baikal chegam a impressionantes 1.680 metros, o que o coloca como o mais profundo do planeta.

O volume de água armazenada no Lago Baikal é maior do que o acumulado nos Grandes Lagos da América do Norte. De acordo com informações de cientistas, se todos os rios do mundo passassem a despejar suas águas num reservatório com um volume equivalente ao do Baikal, seria necessário cerca de um ano para enche-lo – é muita água. Em 1996, a UNESCO – Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura, elevou o Lago Baikal a condição de Patrimônio Mundial da Humanidade.

A formação do Lago Baikal ocorreu há cerca de 25 milhões de anos atrás, quando o movimento de placas tectônicas fechou uma ligação que existia com o Oceano Pacífico. Um fato curioso que derivou dessa movimentação dos solos foi o isolamento de uma população de focas marinhas, que acabaram ficando presas no Lago Baikal. Essas focas passaram a evoluir isoladas em um lago de águas doces e deram origem a uma espécie diferente – a nerpa ou foca-do-Baikal (Pusa sibirica).

As nerpas são as únicas focas que vivem exclusivamente em água doce. Esses animais são os menores da espécie, atingindo um comprimento máximo de 1,65 metro e um peso entre 60 e 130 kg. Possuem uma grossa camada de gordura sob a pele e o corpo coberto por uma pelagem curta e grossa, o que mantém os animais aquecidos mesmo quando mergulhados nas águas geladas do lago. As nerpas podem passar até 40 minutos em mergulhos – os animais possuem fortes garras para escavar a cobertura de gelo que se forma rapidamente sobre a água durante o período do inverno siberiano.

A caça das nerpas é proibida, porém, há uma tolerância em relação às populações tradicionais que vivem nas margens do Baikal desde tempos imemoriais. Essas populações vivem em cidades pequenas como IrkutskAngarsk e Bratsk, entre outras pequenas vilas. Essa caça se destina exclusivamente para complementar a alimentação das famílias e para retirada das peles, que são usadas na produção de roupas, calçados e utilidades domésticas.

Feitas as devidas apresentações do Lago e de suas focas, vamos aos fatos – a frequência com que tem sido encontradas grandes quantidades de focas mortas nas margens do Baikal está causando grandes preocupações entre os ambientalistas da Rússia. Numa das últimas ocorrências divulgadas pela imprensa, cerca de 130 animais foram encontrados mortos em um trecho das margens do Lago Baikal. Como esse animal ocupa o topo da cadeia alimentar do ecossistema, há riscos para outras espécies de plantas e animais endêmicos dessas águas.

As autoridades ambientais da Sibéria ainda não podem afirmar qual é a causa dessa mortandade de animais, mas as suspeitas recaem sobre as atividades mineradores nessa região remota do país. Conforme comentamos na última postagem, falta muita seriedade na fiscalização das mineradoras na Rússia e existem graves catástrofes ambientais em diversas regiões do país – uma dessas tragédias, a do lago com águas verdes/azul-turquesa, também ocorre na Sibéria.

Rejeitos de mineração de um sem número de empresas são abandonados sem maiores cuidados no meio ambiente. Esses rejeitos contêm resíduos de metais pesados e tóxicos como o mercúrio, arsênico e chumbo, entre muitos outros, que acabam sendo carreados pelas chuvas e águas de degelo para o leito de rios e lagos como o Baikal. É muito provável que a morte das focas-do-Baikal esteja acontecendo devido ao acúmulo de algum desses metais pesados no seu organismo. Essa contaminação começa nos bentos, camadas de sedimentos do fundo do lago onde vivem pequenos crustáceos, vermes, moluscos e pequenas plantas, que formam a base da cadeia alimentar do ecossistema.

Já foram catalogadas cerca de 3.600 espécies de animais e vegetais nas águas do Lago Baikal. Há vários anos, a produtividade da tradicional atividade pesqueira do Baikal vem diminuindo, inclusive com a constatação do desaparecimento de diversas espécies de peixes de alto valor comercial. Também vem sendo observada a propagação exagerada de algas e a presença de fosfato na água, um sinal claro de poluição. A morte das focas indica que antigos problemas só estão chegando agora no topo da cadeia alimentar.

As focas-do-Baikal não correm riscos de extinção até esse momento. O último censo feito por pesquisadores encontrou aproximadamente 130 mil indivíduos, o que indica que a população cresceu nos últimos anos. Entretanto, todo o cuidado é pouco – como o Lago Baikal forma um ecossistema isolado, uma contaminação grave das águas poderá dizimar toda a população de focas em um curto espaço de tempo. Amostras de tecidos retirados de animais mortos foram encaminhadas para diversos institutos de pesquisa da Rússia para uma análise mais detalhada.

A situação do Lago Baikal se tornou tão preocupante que o Presidente da Rússia – Vladimir Putin, solicitou à Procuradoria-Geral do país uma investigação completa sobre as atividades ilegais que podem estar por trás dessa tragédia ambiental. Normalmente, o Governo da Rússia costuma fazer “vista grossa” às agressões ambientais provocadas pelas atividades econômicas, especialmente quando ligadas à exploração de petróleo e gás, as maiores fontes de riqueza da Rússia, assim como na área da mineração.

Putin foi muito além: ele solicitou também a elaboração de um plano completo para a despoluição das águas do Lago Baikal assim que as fontes de poluição forem identificadas. Entre outras instruções, o Presidente ordenou que todas as instalações industriais localizadas dentro da bacia hidrográfica do Lago Baikal sejam examinadas e que sejam implantados modernos sistemas de tratamento e filtragem de efluentes nessas instalações. Essa postura é absolutamente surpreendente e só reforça a importância ecológica e econômica do impressionante Baikal.

Para que todos tenham uma ideia do valor estratégico de uma fonte de águas cristalinas como sempre foi o Baikal, a fronteira entre a Rússia e a China fica muito próxima ao Lago. A China, conforme comentamos recentemente em uma postagem, tem enorme carência de fontes de água. Imagine o quanto os russos poderão faturar em um futuro muito próximo exportando água mineral do Lago Baikal para a crescente classe média chinesa.

A morte das focas e os visíveis sinais de contaminação podem destruir essa futura fonte de recursos financeiros da Rússia – a poluição pode transformar esse “grande reservatório de água mineral” com alto valor agregado em um lago de águas poluídas sem valor algum. Simples assim.

A Rússia tem um longo histórico de destruição de fontes de água – um dos casos mais recentes foi a destruição quase completa do Mar de Aral, que desde a década de 1930 passou a sofrer fortemente com os projetos de irrigação agrícola criados pelos planejadores do Kremlin. O foco principal desses mega projetos foram as águas dos rios Amu Daria e Syr Daria na Ásia Central, os principais tributários do Mar de Aral.

Evitar que o Lago Baikal tenha um fim semelhante ao do Mar de Aral é um bom sinal e pode demonstrar que as coisas estão começando a mudar na Rússia.

AS CORES DAS ÁGUAS NA RÚSSIA: NEGRAS EM MOSCOU, VERMELHAS EM NORILSK E VERDE/AZUL-TURQUESA EM NOVOSIBIRSK

Rio Daldykan

Uma leitura desatenta do título dessa postagem poderá até passar a impressão que estamos falando de pontos turísticos da Rússia. Infelizmente, não se trata de nada disso – as cores estão associadas diretamente a diferentes fontes de poluição, onde efluentes domésticos, industriais, poluentes e produtos químicos despejados em rios e lagos produzem cores surreais nas águas. 

Começamos a falar desse problema indiretamente na última postagem, quando tratamos dos graves problemas na disposição dos resíduos sólidos produzidos pelas cidades da Rússia. Sem contar com uma sólida política de gerenciamento dos resíduos domiciliares, as Prefeituras das cidades do país, inclusive da capital Moscou, se limitam a recolher os materiais de porta em porta, para simplesmente os depositarem em lixões a céu aberto em terrenos nas regiões mais periféricas

Na Região Metropolitana de Moscou, onde vivem perto de 25 milhões de pessoas, existiam cerca de 40 grandes lixões ao redor da mancha urbana. Com o crescimento das cidades ao longo das últimas décadas, muitos desses lixões acabaram sendo envolvidos por bairros residenciais. Nos últimos anos, cerca de 24 desses antigos lixões foram abandonados após atingirem a saturação, mas os problemas foram deixados para trás. São grandes emissões de gases tóxicos, percolação de chorume e outros líquidos “venenosos”, nuvens de material particulado espalhadas pelos ventos, entre outros problemas. 

As fontes e corpos de água que se localizam nas proximidades desses lixões, que já costumam ser o destino de esgotos domésticos, também acabam transformadas em receptoras da maior parte dos efluentes líquidos que emanam desses depósitos de lixo. Combinadas com diversos outros problemas criados por efluentes de indústrias e resíduos carreados por águas pluviais, as águas de muitos rios da Região Metropolitana de Moscou e de outras grandes cidades da Rússia estão se tornando cada vez mais negras com o passar dos anos. 

Toda essa carga de poluentes, mais cedo ou mais tarde, acaba chegando a grandes rios como Volga, o maior rio da Rússia. Com quase 3.700 km de extensão, o Volga é o maior rio da Europa e também o dono da maior bacia hidrográfica – 1,36 milhão de km². Também é o rio com o maior volume de água do continente. 

Cerca de 3.200 km do rio são navegáveis e existem cerca de 900 portos nas suas margens. Em meados do século XX, o Governo Soviético construiu um canal de interligação entre os rios Volga e Don, possibilitando a integração hidroviária dos dois rios e também a navegação entre o Mar Cáspio e o Mar Negro.   

Grande parte da população russa vive em áreas da bacia hidrográfica do rio Volga, que também concentra a maior parte da produção agropecuária e industrial do país. Todo esse conjunto de populações e atividades econômicas transformaram o rio num grande esgoto a céu aberto. Além de comprometer o abastecimento de inúmeras cidades, toda essa poluição ameaça dezenas de espécies de peixes que vivem nas águas da bacia hidrográfica, em especial o esturjão, peixe responsável pela produção do valioso caviar russo

Outra grande fonte de ameaça para os rios da Rússia são as atividades mineradoras, espalhadas por todos os cantos desse grande país, que ocupa uma área duas vezes maior que o Brasil. Ainda se valendo do total descontrole e da política do “vale tudo” dos tempos da antiga URSS – União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, tanto as empresas mineradoras quanto as autoridades responsáveis pela fiscalização dessas atividades costumam “deixar barato” para uma infinidade de agressões ambientais. 

Conforme já tratamos exaustivamente em postagens anteriores, a mineração é uma das atividades econômicas que mais degrada os recursos hídricos de uma região. Os problemas começam com a supressão da vegetação nativa para a abertura das cavas. Espécies animais e vegetais rapidamente perdem seus espaços para máquinas e mineiros. Outro gravíssimo problema são os rejeitos minerais – para cada tonelada de minério extraído dos solos, várias toneladas de rejeitos minerais (impurezas que não tem valor comercial) são abandonadas nas proximidades das minas. 

Grande parte dos rejeitos minerais é formado por rochas inertes, que no máximo poderão provocar o assoreamento de riachos, riachos e lagos próximos. Entretanto, é comum a existência de pequenas quantidades de metais altamente tóxicos no meio dessas rochas como mercúrio, arsênico, cromo e chumbo, entre muitos outros. Com a chegada das chuvas ou da primavera, quando tem início o degelo do fortíssimo inverno russo, grandes quantidades de resíduos tóxicos desses metais acabam sendo carreadas para os cursos d’água, causando inúmeros problemas de contaminação

Um caso que vem tendo muita repercussão no mundo é o do rio Daldykan, no Norte da Rússia, que de tempos em tempos vem apresentado águas totalmente vermelhas. Esse rio atravessa a longínqua cidade de Norilsk, que surgiu em 1935 junto com um gulag (campo de prisioneiros) implantado na região pelo Governo russo. Essa cidade é famosa na Rússia por seus invernos super rigorosos e pelos altíssimos níveis de poluição. 

As lentas “investigações” que estão sendo feitas pelas autoridades locais ainda não chegaram a uma conclusão final sobre o caso, mas todas as suspeitas apontam para rejeitos de mineração da empresa Norilsk Nickel, uma gigante russa da mineração. Essa empresa possui diversas minas e unidades de beneficiamento em toda a região, mas, como não poderia deixar de ser, nega qualquer tipo de irregularidade nas suas atividades. 

Um outro caso pitoresco de um corpo d’águas coloridas na Rússia é encontrado em Novosibirsk, na Sibéria. Na realidade trata-se de um grande lago artificial criado para o descarte de efluentes de uma usina termelétrica. Esse lago apresenta águas com tons entre o verde e o azul-turquesa, características que lhe deram o apelido de “Maldivas siberianas”. Fotos desse lago passaram a ser divulgadas nas redes sociais por influencers e, rapidamente, a região se transformou em um grande destino turístico. Porém, ao contrário das águas tropicais das Ilhas Maldivas, as águas desse lago são altamente tóxicas. 

Maldivas da Sibéria

As belas cores das águas são o resultado de reações químicas criadas por despejos de óxido de cálcio e metais pesados. As autoridades ambientais instalaram cartazes em todo o perímetro do lago alertando para os riscos tóxicos da água, mas os turistas insistem em entrar no lago, alguns até com lanchas e jetskis, para produzirem fotos para as suas próprias redes sociais. Sem dinheiro para viajar para as Maldivas ou outros paraísos tropicais, esses siberianos se arriscam nessas águas tóxicas para tirar suas valiosas selfs simulando viagens a países exóticos. 

Essas águas coloridas, e muitas outras espalhadas por toda a Rússia, formam uma sinistra palheta de cores, muitas herdadas dos antigos tempos do regime comunista e outras tantas criadas recentemente pelo capitalismo selvagem que tomou conta do país. Por mais belas que possam ser algumas dessas paisagens, elas são uma amostra incontestável dos gravíssimos problemas de poluição ambiental das águas do país. É necessário que as autoridades ambientais se conscientizem dos problemas e que passem a trabalhar em busca de soluções. 

OS “LIXÕES” DE MOSCOU E DE TODA A RÚSSIA

Lixões na Rússia

Até novembro de 1989, quem é um pouco mais velho se lembra bem disso, o mundo era divido em dois grandes blocos ideológicos e econômcos. O Ocidente, sob a liderança dos Estados Unidos, formava o chamado “Mundo Livre” dos capitalistas. O lado Oriental, sob o comando férreo da Rússia, formava o Bloco Comunista, também conhecido como a “Cortina de Ferro”.  

No dia 10 de novembro de 1989, um dos principais ícones do mundo comunista, o Muro de Berlim, caiu por terra. Construído às pressas em agosto de 1961, esse “muro” separou, física e metaforicamente, o mundo ao meio. Com pouco mais de 66 km de extensão entre trechos de muro e cerca metálica, essa passou a ser uma das fronteiras mais vigiadas do mundo. Além de uma altura de mais de 3 metros, o Muro de Berlim possuía 302 torres de observação, onde atiradores de elite tinham ordens para abater qualquer um que ousasse atravessar essa linha divisória do mundo. 

Com a acelerada decadência política e econômica na Rússia ao longo da década de 1980 e com os riscos cada vez menores de ocorrência da “Guerra Fria”, o Muro de Berlim passou a ser cada vez menos relevante. Pode-se até dizer que esse muro “caiu de podre” no final de 1989, quando começou um complicado e caro processo de reunificação da Alemanha. Os países “satélites” que formavam a antiga URSS – União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, também foram obrigados a se abrir para o mundo e iniciar, cada um a seu próprio modo e tempo, um processo de independência e reconstrução. 

Comecei essa postagem citando esses fatos históricos para poder analisar uma série de problemas ambientais que assolam a Rússia na atualidade. Ao longo de todo o período em que vigorou o regime comunista no país (1917-1991), os inúmeros grupos étnicos que vivem no seu extenso território aprenderam a ser “surdos, cegos e mudos” em relação a tudo o que ocorria a sua volta. Os cidadãos recebiam as tarefas designadas pelos planejadores do Estado Central e cumpriam os seus deveres, por pior que fossem, sem reclamar ou questionar qualquer coisa. 

Qualquer deslize ou pensamento diferente do era ditado pelo regime podia resultar em prisão, deportação ou desaparecimento puro e simples. Posso citar como exemplo os gulags, os grandes campos de prisioneiros nos confins das estepes russas. As estimativas falam de um total entre 3 e 10 milhões de prisioneiros entre os anos de 1930 e 1960. Algumas dessas prisões funcionaram até o colapso total da União Soviética em 1991 e dezenas de milhares de presos políticos nunca voltaram a ser vistos. 

Mesmo após a queda do regime comunista e de todas as mudanças políticas que a Rússia experimentou desde então, os “gatos escaldados” da sociedade mantiveram o mesmo comportamento de neutralidade dos velhos tempos. Sem qualquer tipo de oposição ou de protestos (o que até hoje ainda depende da solicitação de uma autorização juntos aos diversos níveis de Governo para serem realizados), os administradores públicos continuaram a executar suas atribuições à maneira que melhor lhes convinha, sem se preocupar com a vontade e os sonhos da população. 

Uma área da vida cotidiana dos russos em que essa falta de diálogo entre autoridades e cidadãos se mostra da maneira mais cruel é a coleta e a disposição dos resíduos sólidos nas cidades de toda a Rússia. Esse serviço é uma das atividades mais elementares de qualquer prefeitura pelo mundo a fora. Segundo estimativas feitas pelo Greenpeace, uma das maiores organizações ambientalistas do mundo, as cidades russas geram anualmente cerca de 70 milhões de toneladas de resíduos sólidos.

Esse volume aumentou cerca de 30% nos últimos 10 anos. Desse volume total de resíduos,  apenas 2% são incinerados e 7% passa por algum tipo de reciclagem. Todo o restante é despejado em inúmeros lixões a céu aberto espalhados pelo país. A trágica imagem que ilustra essa postagem mostra um urso polar vasculhando um lixão na Sibéria em busca de restos de comida.

Em Moscou, a maior cidade e capital do país, essa situação é trágica. São cerca de 11 milhões de toneladas po ano, o que equivale a 16% de todos os resíduos gerados na Rússia. O destino final de todo esse volume de materiais eram 40 lixões espalhados por toda a região periférica da Grande Moscou, onde os resíduos eram simplesmente jogados sem qualquer critério. Nos últimos anos, 24 desses lixões foram abandonados devido a saturação dos espaços, transformados em verdadeiras montanhas de lixo ao longo das décadas. 

Com 11 milhões de habitantes em seu território e com 16 milhões de pessoas vivendo na sua Região Metropolitana, Moscou está muito próxima em tamanho e população da Grande São Paulo. Para efeito de comparação, os paulistanos que vivem nas 39 cidades da Região Metropolitana geram cerca de 6 milhões de toneladas de resíduos por ano, onde perto de 95% tem como destino 13 aterros sanitários. Apesar de reciclarmos tão poucos resíduos como os russos, a nossa situação, muito longe da ideal é claro, é mais confortável aqui na Pauliceia do que em Moscou. 

Os problemas criados pelos lixões da Região Metropolitana de Moscou são muitos. A intoxicação de moradores que vivem nas cercanias desses lixões por gases tóxicos liberados pelos resíduos é um dos principais problemas. De acordo com reportagem publicada pela AFP – Agência France Press, cerca de 50 crianças de Volokolans, uma cidade que fica a Nordeste de Moscou, foram atendidas em um posto de saúde local em março de 2018 apresentando graves problemas de intoxicação. A causa dessa intoxicação foram as intensas emissões de gases de um grande lixão localizado nas proximidades

A mesma reportagem cita problemas semelhantes em Balashitkha, uma cidade localizada a 6 km do centro de Moscou. A comunidade sofre diariamente com o mal cheiro e com os gases gerados por um grande lixão local. Durante um programa de televisão onde o Presidente da Rússia, Vladimir Putin, estava sendo entrevistado ao vivo, alguns moradores pediram publicamente que esse aterro fosse fechado. Desde então, os protestos na região passaram a se multiplicar, mesmo esbarrando na intensa repressão da polícia, que bate, atira e prende (não necessariamente nessa ordem), para só depois perguntar algo. 

Sem conseguir continuar escondendo os gravíssimos problemas criados diariamente pelos resíduos sólidos, que literalmente estavam sendo “varridos para debaixo do tapete”, tanto o Governo Central da Rússia quanto a Prefeitura de Moscou passaram a correr atrás de soluções. A grande resposta das autoridades vem sendo o anúncio sistemático de projetos para a construção de incineradores de lixo integrados com centrais de geração de energia elétrica

Esse tipo de solução, que é uma das mais fáceis de serem implantadas e que trazem em seu bojo a ideia de “geração alternativa de energia”, não está agradando grande parte da população e tem gerado cada vez mais novos protestos. Conforme já comentamos em uma postagem anterior, a queima de resíduos sólidos gera um verdadeiro coquetel de gases tóxicos.

Entre esses gases destacam-se as dioxinas e os furanos, moléculas altamente tóxicas que se formam espontaneamente a partir da queima dos materiais. Segundo as citações de alguns especialistas, “as dioxinas são as moléculas mais tóxicas já criadas pela humanidade”. 

No Japão, um dos países mais industrializados do mundo e que há várias décadas se vale de centrais para incineração de parte dos seus resíduos sólidos, as emissões involuntárias de dioxinas e de furanos nos incineradores causam enormes preocupações na população e nas autoridades, apesar de todo o rigor nos processos e do uso de filtros nas chaminés. Agora imaginem o que poderá acontecer com incineradores de resíduos construídos e operados por russos.

Aqui não há nenhum tipo de discriminação contra os russos – muito pelo contrário, tenho profundo respeito e admiração por esse povo. A questão é de tecnologia e de um longo histórico de falhas em procedimentos operacionais, herança dos antigos tempos do regime comunista. Uma lembrança fácil é o trágico acidente com a usina nuclear de Chernobil, na Ucrânia, em 1986, onde uma sucessão de falhas em equipamento e nos procedimentos dos funcionários resultaram no maior acidente nuclear da história humana.

Enquanto as soluções não aparecem, os problemas continuam sendo “acumulados” e os moscovitas seguem sofrendo com uma infinidade de problemas ambientais. 

Continuamos na próxima postagem.

ÁGUA, VIDA & CIA – POSTAGEM N° 1.000

Água, Vida & Cia

Há cerca de quatro anos atrás, eu tinha três artigos prontos e material para preparar outros vinte textos – foi então que me arrisquei a iniciar as publicações diárias aqui em Água, Vida & Cia, um nome que surgiu de improviso na última hora. 

Acreditem ou não, esta é a milésima postagem do blog

A primeira postagem escrita especialmente para o blog – Guarapiranga, a praia de Santo Amaro, ficou, curiosamente, com 666 palavras. Imaginando que isso era um sinal  “bestial” de boa sorte, mantive esse exato tamanho de texto nas minhas primeiras 30 postagens. Com o tempo, os assuntos começaram a render e as postagens atuais têm, em média, 1200 palavras. São textos no formato de pequenos artigos e com inúmeras referências indicadas – artigos científicos, reportagens, livros, postagens anteriores, entre outras. 

A temática inicial das primeiras postagens foram os recursos hídricos e o saneamento básico com um foco na Educação Ambiental, minha área de especialização. Porém, com o passar do tempo, o leque de assuntos precisou ser ampliado e passei a falar de desmatamentos, queimadas, vazamentos de petróleo, poluição do ar e aquecimento global, entre tantos outros assuntos altamente relevantes na área de Meio Ambiente. 

Dentro do saldo positivo de todo esse trabalho, as publicações aqui do blog geraram quatro livros: A Nossa Amazônia, A Superexploração das Fontes de Água, Tópicos de Saneamento Básico – Abastecimento e Esgotos, e Tópicos de Saneamento Básico – Águas Pluviais e Resíduos Sólidos. Muitas reportagens, trabalhos escolares, TCCs (Trabalhos de Conclusão de Curso) e até material complementar para uma tese de doutorado em Saúde Pública de uma aluna na Holanda (mais especificamente, dados sobre populações que vivem e trabalham dentro de aterros sanitários como o do Jardim Gramacho, no Rio de Janeiro, e na Vila Princesa, em Rondônia), saíram das nossas páginas . Fantástico!

De acordo com os registros do WordPress, as postagens já foram acessadas por leitores de 100 países diferentes (o site possui um sistema de tradução automática). Entre os leitores estrangeiros mais assíduos destacam-se os dos Estados Unidos, de Portugal, Angola, Canadá, Moçambique, Argentina, França, Espanha, Alemanha e Holanda. Nos últimos meses, passei a perceber um aumento dos acessos a partir da China e da Índia. Entre os principais assuntos buscados pelos “gringos” estão a Amazônia e também os grandes rios brasileiros. 

Para continuar a escrever dia após dia aqui nesta página, tenho sido forçado a aprender e a reaprender muito sobre assuntos diferentes. Porém, tenho que confessar que ainda faltam muitos conhecimentos no meu repertório ambiental. Um bom exemplo: até hoje ainda não consegui decorar as cores dos contêineres de resíduos recicláveis

Isso é sinal que muitas outras páginas precisarão ser escritas e muitas coisas deverão ser aprendidas. 

Meu muito obrigado a todos os leitores! 

fernando

 

PS: para não ficar só na falação, estou republicando a postagem mais lida entre todas as que já foram publicadas aqui no blog.

 

SURUBIM: O PEIXE QUE JÁ FOI SÍMBOLO DO RIO SÃO FRANCISCO

Surubim

Postagem publicada em 8 de maio de 2017

A primeira vez que ouvi falar em surubim foi durante uma conversa em um almoço com colegas de trabalho em Recife, lá por meados dos anos de 1980. A empresa em que trabalhava na época tinha uma fábrica na capital pernambucana e, de quando em vez, era necessário fazer algum trabalho por lá. De acordo com esses colegas, verdadeiros experts no assunto, o sabor do surubim é algo incomparável. É um peixe bastante apreciado na culinária por ter muita carne e poucas espinhas.

O delicioso surubim – também é conhecido como pintado em algumas regiões, é um dos maiores peixes de água doce do Brasil, podendo atingir até 1,8 metro de comprimento e peso de até 90 kg. Para você não achar que é “conversa de pescador”, incluí uma foto do peixe publicada por uma das mais importantes revistas de pesca do país. É encontrado nas bacias hidrográficas do Rio Amazonas, do Rio da Prata e, cada vez menos, no Rio São Francisco – por isso a ironia usada no título.

O desaparecimento do peixe, que já foi um ícone da gastronomia regional em toda a bacia hidrográfica do Velho Chico, é acima de tudo um alerta da degradação ambiental das águas e da falta de condições para a sobrevivência da espécie. Outros peixes, além do surubim, também estão em situação crítica – entre os mais afetados estão as espécies migratórias como o curimatá-pacu, curimatá-pioa, dourado, matrinxã, piau-verdadeiro e o pirá. Vamos entender o que está acontecendo:

Uma quantidade enorme de espécies de peixes migra de uma região para outra na época da reprodução, num fenômeno conhecido como piracema. Estas espécies de peixes nadam correnteza acima buscando as águas calmas e límpidas das nascentes, onde a desova poderá ser feita com segurança nas águas rasas e livres de predadores, onde os seus alevinos encontrarão condições de crescer, até um tamanho que lhes proporcione maiores chances de sobrevivência, antes de se aventuram em águas mais profundas.

Existem diversas alterações ambientais que podem dificultar ou impedir a migração destes peixes: construção de barragens de usinas hidrelétricas sem “escadas” para peixes; contaminação das águas por esgotos, produtos químicos e venenos como fertilizantes e defensivos agrícolas; assoreamento e entulhamento de canais com todo o tipo de resíduos; pesca predatória e a sobrepesca (especialmente durante a época da piracema); destruição das nascentes por atividades como agricultura e mineração, entre outras causas.

Um outro problema grave é a introdução de espécies exóticas de peixes, lançados nos rios sem maiores estudos sobre os impactos e alterações ambientais que causarão no ecossistema; na bacia do Rio São Francisco foram introduzidos o bagre-africano, a carpa e o tucunaré, que ocuparam nichos ecológicos de espécies endêmicas e se tornaram verdadeiras pragas.

No Velho Chico você encontra todos estes problemas, o que afetou completamente o ciclo de vida dos peixes migratórios e destruiu aquele que já foi considerado um dos rios mais abundantes em relação a pescado no país – havia registros de 158 diferentes espécies de peixes na bacia hidrográfica, algumas endêmicas. De grandes produtoras de pescados, as cidades ribeirinhas do Velho Chico passaram a condição de importadoras do produto, especialmente da região amazônica.

Uma das espécies mais importadas é o cachara, um peixe de couro da Amazônia muito parecido com o surubim, pescado em rios do Maranhão e do Pará. Muitos restaurantes preparam tilápias criadas em cativeiro e tambaquis importados da Argentina – o bom e velho surubim do São Francisco está cada vez mais difícil de se encontrar nas casas dos moradores e nas mesas dos restaurantes ao longo dos rios da região.

Um exemplo da má gestão histórica das águas do Velho Chico foi a decisão pela construção da Usina Hidrelétrica de Sobradinho durante a época dos governos militares. O Lago de Sobradinho, formado após o fechamento das comportas, se transformou no maior espelho d’água artificial do Brasil, porém com baixas profundidades – foi justamente essa característica um dos fatores principais para a evaporação total do Lago Poopó na Bolívia, comentado em um dos posts desta série.

O Lago de Sobradinho é um campeão em perda de água por evaporação, atingindo, segundo algumas fontes, a marca de até 250 m³ por segundo – essa perda representa o volume de água necessário para o abastecimento anual de uma população de 144 milhões de habitantes. Um outro erro de projeto ou falta de preocupação com a preservação das espécies do Rio São Francisco foi a não inclusão de escadas para peixes, dispositivo que permite a passagem ou migração de espécies através das barragens.

Antes da construção da barragem da Usina Hidrelétrica de Sobradinho, existiam diversas lagoas temporárias, onde grandes cardumes de peixes migratórios se reuniam para iniciar a migração rumo as cabeceiras dos rios para a procriação.

Uma análise genética de amostras de peixes, coletadas e conservadas há quase 30 anos, foi comparada com amostras de peixes coletados recentemente, mostrando que houve uma grande redução da diversidade genética dos animais. Isso mostra que a construção da barragem do Lago de Sobradinho criou um obstáculo físico para os peixes que vem de outras regiões do médio São Francisco, impedindo a renovação dos cardumes de peixes de piracema.

A pouca diversidade genética de uma população de animais ou de plantas é, de acordo com a Biologia da Conservação, um caminho perigoso para a extinção de espécies, fato que, infelizmente, já se observa com o surubim e outras espécies de peixes do Velho Chico.

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