O POVOAMENTO E AS PROPOSTAS PARA A INTERNACIONALIZAÇÃO DA AMAZÔNIA, OU LEMBRANDO DO INSTITUTO INTERNACIONAL DA HILEIA AMAZÔNICA

Protestos Pró Amazônia

As tradicionais queimadas anuais na “Floresta Amazônica”, que nós brasileiros e vizinhos dos países amazônicos estamos tão acostumados a acompanhar nas últimas décadas, tiveram uma repercussão muito forte no mundo inteiro esse ano (vide foto). Com a popularização cada vez maior das redes sociais, especialmente adas grandes celebridades, fotos e vídeos dos incêndios florestais no Brasil – dentro e fora da Amazônia, ganharam o mundo e espaços cada vez maiores nos noticiários internacionais. Manchetes sensacionalistas como “O pulmão do mundo está queimando” ou “A Amazônia em chamas”, colocaram grande parte da opinião pública internacional contra o Brasil. 

Um dos nomes de maior destaque nesse período recente (falamos de poucas semanas atrás) foi o Presidente da França, Emmanuel Macron. Atolado em problemas internos, especialmente aqueles ligados aos sucessivos protestos dos chamados Coletes AmarelosMacron se transformou no “defensor número um” da Amazônia e passou a pregar abertamente a Internacionalização da “Nossa Amazônia” como uma das únicas alternativas para salvar a maior floresta equatorial do planeta da iminente destruição. Felizmente, o Presidente francês acabou como uma voz isolada, pelo menos por enquanto. Essa fala de Emmanuel Macron, ao contrário do que muitos possam imaginar, não é nova. 

A primeira tentativa moderna de se internacionalizar uma parte da Amazônia se deu nos últimos anos do século XIX, com a criação do Bolivian Syndicate no então disputado território do Acre. Conforme comentamos em postagens anteriores, o Acre era um território boliviano, que foi invadido por seringalistas e seringueiros brasileiros a partir da década de 1870. Sem conseguir resolver a questão por vias diplomáticas e militares, o Governo da Bolívia negociou a criação de uma companhia internacional, com capitais majoritariamente norte-americanos e também ingleses e alemães, onde cederia a exploração do Acre por 30 anos para estrangeiros. Na prática, o Acre teria sido transformado em uma colônia internacional aos moldes daquelas da África de então. Esse acordo foi denunciado por Luiz Galvez e foi um dos estopins para a Proclamação da República do Acre e da assinatura do Tratado de Petrópolis em 1903, que permitiu a anexação definitiva do território ao Brasil. 

A proposta mais explícita para uma internacionalização da Amazônia, porém, foi a sugestão da criação do IIHA – Instituto Internacional da Hileia Amazônica, em 1946. Essa proposta foi feita na primeira sessão da UNESCO – Conferência Geral das Nações Unidas para Educação, Ciência e a Cultura, pelo cientista e delegado brasileiro Paulo Estevão de Berredo Carneiro. A bem-intencionada proposta tinha como objetivo promover o desenvolvimento de pesquisas nas áreas das ciências naturais e sociais, além de determinar as possibilidades para a ocupação demográfica de toda a Amazônia

A partir de 1947, a proposta para a criação da Hileia Amazônica se tornou um dos principais projetos da UNESCO. Com a criação da CEPAL – Comissão Econômica para América Latina e o Caribe, o debate para a criação da Hileia Amazônica ganhou força. As grandes potências passaram a enxergar a internacionalização da Amazônia como uma possibilidade para o desenvolvimento dos países subdesenvolvidos da região, onde se incluíam Brasil, Bolívia, Peru, Colômbia e Venezuela (as Guianas já estavam sob controle de países estrangeiros). De quebra, essas potências teriam acesso garantido à todas as riquezas da Região Amazônica.

Essa proposta, é claro, desagradava os políticos, os militares e também a população mais esclarecida do Brasil e dos demais países amazônicos. O Governo brasileiro, que desde o início da década de 1940 já vinha implementando uma série de políticas para a ocupação de extensas áreas desabitadas do interior do país, repudiou fortemente essa ideia. Já estava em andamento nessa época a “Marcha para o Oeste”, uma política que estimulava a colonização de áreas distantes do litoral, especialmente na Região Centro-Oeste. Historicamente, a população brasileira cresceu ao longo de uma faixa de terras ao redor de 500 km a partir do litoral e eram poucas as cidades localizadas nos sertões brasileiros. Um exemplo dos vazios demográficos é o Oeste do Estado de São Paulo que, apesar de ter há época uma das regiões mais industrializados do país na sua faixa Leste, era praticamente selvagem no seu extremo Ocidental. 

Felizmente, a ideia do Instituto Internacional da Hileia Amazônica foi perdendo força ao longo dos anos e o assunto acabou temporariamente esquecido. O acirramento da Guerra Fria entre os Estados Unidos e a então URSS – União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, se tornou a grande prioridade mundial. Os fantasmas da internacionalização voltariam a assustar muita gente, especialmente da área militar, no final da década de 1950, quando foi proposto o Tratado da Antártida. Esse Tratado foi assinado inicialmente por 12 países no final de 1959, onde todas essas nações se comprometiam a suspender suas pretensões territoriais no continente gelado por um prazo indeterminado. Para muitos dos adeptos da “Teoria da Conspiração“, esse Tratado seria uma espécie de balão de ensaios para um futuro tratado para a internacionalização da Amazônia. 

O Tratado da Antártida consagrava entre seus princípios a liberdade para a pesquisa científica, a cooperação internacional e a utilização pacífica desse imenso território. A militarização da região foi expressamente proibida, assim como a sua utilização para testes com armamentos nucleares e também como depósito de lixo radioativo. Diversos países, entre eles o Brasil, aderiram a esse tratado ao longo dos anos. Em 1991, o Tratado sofreu uma revisão pelos países signatários e até 2041 a Antártida continuará sendo um patrimônio de toda a humanidade. 

A hipótese da internacionalização da Amazônia, frequentemente, é levantada por uma ou outra autoridade política das grandes potencias internacionais, dentro de contextos diferentes. Um exemplo que podemos citar se deu no início da década de 1990, quando um senador americano do Estado de WisconsinBob Kasten, disse em um discurso que “ao contrário do que pensam os brasileiros, a Amazônia não é deles, ela pertence a todos nós”. Coincidência ou não, nessa mesma época foram impressos mapas da América do Sul, onde a Região da Amazônia era mostrada como uma área internacional. Em diversas ocasiões, conversando com turistas americanos mais jovens, ouvi que muitos deles receberam essa informação nos bancos escolares. 

Quem tem acompanhado essa sequência de postagens, já deve ter percebido que o povoamento da Região Amazônica brasileira foi sendo feito na forma de ondas migratórias bem espaçadas. Um exemplo foi o que ocorreu por causa da exploração do látex – a partir de 1850, quando o uso de produtos de borracha foi ganhando força no mercado mundial, começou um processo de migração de trabalhadores em direção aos seringais da Bacia Amazônica. Essa migração ganhou muita força na década de 1870; no início da década de 1910, com o aumento da concorrência do látex do Sudeste Asiático, essa migração diminui radicalmente e ficou estagnada por praticamente 30 anos. 

Durante a II Guerra Mundial, quando os seringais do Sudeste Asiático foram tomados por forças invasoras do Japão, o mundo voltou a se lembrar do látex da Amazônia e foi criado um esforço de guerra para aumentar a sua produção e exportação – falamos do Segundo Ciclo da Borracha e dos seus famosos Soldados da Borracha. Entre 1943 e 1945, mais de 50 mil Soldados da Borracha foram recrutados, principalmente na Região Nordeste, e enviados para os “fronts” nas selvas amazônicas. Todas essas ondas migratórias para a exploração extrativista dos recursos naturais da Amazônica, até então, causaram impactos praticamente irrelevantes à ecologia da grande Floresta

Nos últimos 50 anos, porém, a ferocidade do avanço do povoamento e da devastação de grandes áreas da Floresta Amazônica têm, literalmente, fugido de qualquer controle e vem colocando a opinião pública internacional cada vez mais a favor de uma grande intervenção internacional na Amazônia. A partir das próximas postagens, vamos analisar os ingredientes e os programas governamentais que fomentaram essa ocupação “agressiva” da Amazônia. 

Para saber mais:

A NOSSA AMAZÔNIA

OS GRANDES “VAZIOS” NO MAPA DA AMAZÔNIA, OU LEMBRANDO DOS IRMÃOS VILLAS-BÔAS

Irmãos Villas-Bôas

Durante algumas poucas décadas, naqueles que foram chamados de Ciclos da Borracha, a Região Amazônica ganhou notoriedade dentro e fora do Brasil. Essa fama, porém, foi efêmera e a Região não tardou a voltar ao esquecimento por parte da maioria da população brasileira. No imaginário popular, a Amazônia continuou sendo sinônimo de mata fechada, grandes rios, índios e animais selvagens. 

Até a metade do século XX, a população da Região Amazônica era muito pequena, esparsa e muito mais pobre do que nos dias atuais. A grande concentração de seringueiras em algumas regiões, como no caso do Acre, levou a uma concentração maior de populações. No geral, porém, a maior parte dos rios e matas da grande Floresta permaneciam praticamente inexploradas e formavam grandes vazios no mapa do país. 

Ao longo de mais de quatro séculos de história, a maior parte da população brasileira se concentrava em áreas litorâneas com “vista para o mar” ou, para sermos mais precisos, ao longo de uma faixa costeira com talvez 500 km de largura. Uma das poucas grandes cidades que fugia a esta regra era Manaus, que está distante cerca de 1.300 km do Oceano Atlântico, mas que tem à sua frente uma imensidão de águas doces muito parecidas com um mar. Cidades localizadas em pontos mais distantes da costa como Cuiabá e Goiás Velho, sempre sofreram com o isolamento e com as dificuldades de comunicação com o resto do Brasil.  

Em grande parte do país, as coisas só começariam a mudar a partir do final do século XIX, quando o Exército Brasileiro passou a desenvolver trabalhos para a instalação de linhas telegráficas e a construir estradas nos confins dos sertões. Um dos nomes de maior destaque desse período foi o militar e sertanista Candido Rondon (1865-1958), que a partir de 1892 começou a trabalhar nas regiões de Goiás, Mato Grosso e Território do Guaporé, mais tarde batizado como Estado de Rondônia em sua homenagem. Os trabalhos pioneiros de Rondon e de sua equipe ajudaram a abrir muitos dos caminhos para o interior do país, uma tarefa monumental, mas que deixou muitos vazios desses sertões ainda a serem descobertos – o Sul da Amazônia era um destes “vazios”.  

Em 1943, durante o Governo de Getúlio Vargas e ainda na época dos Soldados da Borracha, foi criada uma expedição que desbravaria uma parte importante dos sertões da região Norte e que abriria as primeiras portas para o contato com inúmeras tribos indígenas isoladas e desconhecidas da Amazônia. Falamos da Expedição Roncador-Xingu, um marco na antropologia e na etnografia brasileira até hoje. A expedição foi gestada num momento onde se vivia a política da “Marcha para o Oeste“, quando o Governo Federal passou a criar incentivos para a migração de colonos e trabalhadores rurais rumo às terras desabitadas do interior do Brasil. E olhem que não estamos falando de nada tão distante assim – a região Oeste do Estado de São Paulo, citando um exemplo, era muito pouco habitada na época e um dos destinos desta ocupação pioneira.  

O nome escolhido para chefiar a expedição foi o do Coronel Flaviano de Mattos Vanique, um militar de carreira do tipo “linha dura”, que recrutou um grupo com cerca de quarenta sertanistas do Mato Grosso. O perfil ideal para a escolha destes sertanistas era “quanto mais analfabeto, melhor”. Dentro da mentalidade do Coronel Flaviano, analfabetos trabalhavam mais e não perdiam tempo fazendo perguntas. Esse “perfil” de expedicionário sem educação formal criou uma série de problemas para alguns irmãos paulistas, oriundos da classe média alta e com um alto nível educacional: Orlando, Cláudio e Leonardo Villas-Bôas (vide foto).  

Bem vestidos, barbeados e demonstrando modos refinados, os irmãos Villas-Bôas foram prontamente descartados pelo Coronel Flaviano quando tentaram ingressar na Expedição Roncador-Xingu. Obcecados com a ideia de explorar uma das regiões mais distantes e isoladas do Brasil, os Villas-Bôas não desistiram: passados alguns meses da dispensa, eles se reapresentaram barbudos, malvestidos, envergonhados e mostrando um comportamento típico dos matutos dos sertões – foi assim que conseguiram entrar para a tão sonhada Expedição. 

Trabalhando inicialmente em atividades braçais, que iam desde os trabalhos em hortas a construções, os Villas-Bôas rapidamente foram ganhando a confiança dos líderes da Expedição e passaram a ocupar postos cada vez mais importantes dentro do grupo. Em 1949, já sob o comando de Orlando Villas-Bôas, o mais velho dos irmãos, a Expedição atingiu o Alto rio Xingu e faz contato com dezessete tribos isoladas da região. Percebendo rapidamente os problemas e as consequências que o choque cultural que seria criado após o encontro entre os “brancos” (a cor tem um significado diferente aqui, o de “civilizado”) e indígenas, Orlando Villas-Bôas propõe uma mudança drástica nos objetivos da Expedição: ao invés de criar núcleos de povoamento para colonos e agricultores, ele decide desenvolver trabalhos para a manutenção da integridade dos territórios e da cultura indígena nas terras do Alto rio Xingu.  

As ideias e os trabalhos dos irmãos Villas-Bôas repercutiram fortemente nos meios acadêmicos e políticos do Brasil ao longo dos anos. Em 1961, no Governo do Presidente Jânio Quadros e com o apoio do antropólogo Darcy Ribeiro, que trabalhava na época para o Serviço de Proteção ao Índio, foi criado o Parque Nacional Indígena do Xingu, nome mudado depois para Parque Indígena do Xingu. O Parque foi a primeira área indígena homologada pelo Governo Federal. O Marechal Cândido Mariano da Silva Rondon, falecido em 1958, foi um dos maiores apoiadores do projeto dos irmãos Villas-Bôas para a criação dessa área indígena, apesar de algumas divergências pontuais. Aqui é importante comentar que Rondon era de origem indígena e que foi o mais importante estudioso e registrador das etnias indígenas do Brasil no início do século XX. Esse seu trabalho foi fundamental para a criação do Serviço de Proteção aos Índios em 1910. 

A criação do Parque Indígena do Xingu visava tanto a preservação das comunidades e culturas dos povos indígenas, quanto a preservação ambiental de uma extensa área da Amazônia. Localizado no Norte do Estado do Mato Grosso, o Parque é formado por uma área de 27 mil km², numa região de transição entre o Cerrado e a Floresta Amazônica. O rio Xingu, o principal curso d’água que atravessa a área, acabou dando nome ao Parque Indígena. Além do Xingu, o Parque conta com inúmeros dos seus afluentes: Kulene, Tanguro, Kurisevo, Ronuro, Suiá, Miçu, Maritsauá, Auiá Miçu, Uaiá Miçu e Jarina.

O trabalho pioneiro dos irmãos Villas-Bôas na criação do Parque Indígena do Xingu levaria à criação de diversas outras áreas indígenas por toda a Região Amazônica. Apesar dos inúmeros problemas enfrentados nessas áreas, onde se incluem a invasão e os desmatamentos feitos por madeireiros, grileiros e garimpeiros, essas Terras Indígenas balizaram os limites para todo um processo de colonização e povoamento que viria a ser implementado por toda a Amazônia a partir de meados da década de 1960. 

Após mais de 24 anos de trabalho, grande parte sob o comando dos irmãos Villas-Bôas, a Expedição Roncador–Xingu resultou na criação de mais de 40 cidades e 16 campos de pouso em regiões longínquas da Amazônia Legal, além é claro da criação do Parque Indígena do Xingu, que atualmente abriga mais de 6 mil índios de 16 etnias diferentes. Também permitiu o mapeamento cartográfico de uma extensa região, retirando um dos grandes vazios do mapa do país e escrevendo um importante capítulo da história da Amazônia. 

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A NOSSA AMAZÔNIA

FORDLÂNDIA: UMA UTOPIA AMERICANA NA FLORESTA AMAZÔNICA

Henry Ford

A saga da exploração do látex na Floresta Amazônica é repleto de histórias interessantes. Uma das mais intrigantes foi o projeto do norte-americano Henry Ford, o pai da fabricação de automóveis em massa, que imaginou a criação de toda uma infraestrutura para a produção de látex “em série”, aos mesmos moldes usados em suas linhas de produção de automóveis. Esse projeto, que entrou para a história com o nome de Fordlândia, se estendeu de 1928 a 1945.

O uso industrial da borracha cresceu exponencialmente a partir da criação do processo de vulcanização por Charles Goodyear em 1839. A importância dessa matéria-prima se consolidou nas últimas décadas do século XIX, quando nasceu a indústria automobilística. Originária das florestas equatoriais da Amazônia, a árvore produtora do látex – a seringueira (Hevea brasiliensis), teve suas sementes contrabandeadas para a Inglaterra em 1879 e, depois, suas mudas foram plantadas em territórios ingleses do Sudeste Asiático. De matéria-prima controlada pelos Senhores da Borracha brasileiros entre 1850 a 1912, o látex passou para o controle de empresários ingleses a partir de 1913.

A Ford Motor Company, gigante da manufatura de automóveis que foi criada por Henry Ford em 1903, era uma das maiores consumidoras mundiais de produtos fabricados a partir da borracha. Graças ao seu gigantesco volume de produção de veículos, a Ford conseguia controlar os preços e os volumes de produção de diversas matérias-primas como o das chapas de aço, as madeiras e os couros usado na fabricação dos bancos, capotas e revestimentos internos de seus carros. Já os preços e os volumes de produção das peças de borracha, esses estavam sob controle de empresas da Inglaterra, algo que incomodava fortemente os norte-americanos.

Avaliando o sucesso obtido pelos empresários ingleses na formação de seringais artificiais em territórios britânicos do Sudeste Asiático, Henry Ford imaginou que ele mesmo poderia repetir essa façanha, plantando seringais artificiais na própria Amazônia. Realizado profissionalmente e dono de uma das maiores fortunas de sua época, Henry Ford tinha em suas mãos todos os recursos financeiros necessários para levar a cabo seu sonho e, por outro lado, todo um complexo industrial ávido para consumir toda a borracha que conseguisse produzir – as contas da equação fechavam perfeitamente.

A partir de 1927, Ford iniciou negociações com políticos brasileiros em busca da concessão de terras para a implantação do seu mega-projeto. O Governo do Estado do Pará concedeu uma área com mais de 14 mil km² no município de Aveiro, às margens do rio Tapajós. Os termos do acordo de concessão, altamente favoráveis aos norte-americanos, isentavam a Ford Motor Company do pagamento de taxas de exportação de látex, borracha, peles, couros, petróleo, sementes, madeira e qualquer outros produtos e/ou matérias-primas produzidas em suas instalações. O projeto, batizado com o nome de Fordlândia, começou a ser implantado em 1928.

Henry Ford pensou grande quando imaginou seu empreendimento na Amazônia: sua empresa enviou dois grandes navios cargueiros abarrotados de materiais e equipamentos para montar rapidamente sua cidade “norte-americana” nas selvas brasileiras. Foram cerca de 2 mil casas para os trabalhadores, bem ao estilo das casas norte-americanas do Meio-Oeste; 6 escolas, 2 hospitais, 2 portos fluviais, 30 galpões, 2 unidades de beneficiamento de látex, entre outras instalações. Também foram construídas estações de captação e de tratamento de água, redes de distribuição de água e de captação de esgotos, usinas para geração de energia elétrica, estações de rádio e de telefonia, 70 km de estradas, entre outras obras de infraestrutura. Não menos importantes, foram plantadas 1,9 milhões de mudas de seringueira em Fordlândia e 3,2 milhões no distrito de Belterra.

Apesar dos investimentos maciços em infraestrutura industrial e na criação de uma confortável cidade, chamada pelos locais de Vila Americana, o projeto de Henry Ford se encontrava ilhado em meio a inúmeros problemas. Os solos da sua concessão eram pedregosos e de baixa fertilidade, o que resultou na formação de plantações de seringueiras de qualidade bastante questionável. Sem experiência com a cultura de uma árvore equatorial, os técnicos norte-americanos plantaram as mudas muitos próximas uma da outra, o que viria a favorecer o surgimento de pragas agrícolas, especialmente um micro-organismo do gênero Microcyclus, que se mostrou fatal ao longo do tempo.

Além desses problemas agrícolas, a Fordlândia também sofreria com problemas políticos: os militares brasileiros e uma grande parcela dos políticos nacionais não viam com bons olhos essa “presença” norte-americana na Amazônia. Ao longo dos 17 anos da operação do projeto, esses políticos e militares não se esforçaram para ajudá-lo em nada – ao contrário, fizeram tudo o que foi possível para atrapalhar os planos da Ford no Pará.

O relacionamento entre os gerentes norte-americanos e os trabalhadores brasileiros também não foi um dos melhores. Acostumados a uma condição de trabalho autônomo e indisciplinado, os trabalhadores não aceitavam a rígida disciplina imposta pelos “gringos”, que ia da obrigatoriedade do uso de crachás de identificação e cumprimento de horários à realização de tarefas padronizadas, que seguiam rigidamente os conceitos de produção em série usados pelas fábricas da Ford. Outro ponto de atrito frequente era a comida servida nos refeitórios, que seguia a dieta usual dos norte-americanos, com muito hambúrguer e batatas fritas. Em 1930, numa das muitas revoltas dos trabalhadores contra o establishment da Ford, o gerente local foi obrigado a requisitar um avião da empresa  Pan-Am, com o qual voltou com toda a sua família para os Estados Unidos para nunca mais voltar.

Doenças tropicais como a malária e a febre amarela também causaram seus estragos na Fordlândia. Os norte-americanos tiveram o cuidado de construir dois hospitais dentro do projeto, incluindo neles um centro de investigação de doenças tropicais – a Floresta Amazônica, porém, foi muito mais forte. Além de atingir centenas de trabalhadores brasileiros, essas doenças também vitimizaram muitos dos chefes e gerentes estrangeiros. Num dos casos mais trágicos, há o relato de um gerente norte-americano da Ford que perdeu, num curto espaço de tempo, a mulher e os três filhos, vítimas dessas terríveis doenças. O simples medo de contrair quaisquer uma dessas doenças, criava uma grande rotatividade entre os profissionais estrangeiros.

Com o início da II Guerra Mundial, tropas japonesas invadiram os territórios ingleses do Sudeste Asiático e inviabilizaram o fornecimento do látex para grande parte do mercado mundial. Mesmo com esse evento e com a “ressuscitação” da produção do látex na Amazônia com os chamados Soldados da Borracha, a Fordlândia não conseguia atingir as sua metas de produção. O sonho de Henry Ford seguia rumo ao inevitável naufrágio.

Em 1945, dois anos antes da morte de Henry Ford, seu neto Henry Ford II assumiu a presidência da Ford Motor Company e, entre seus primeiros atos, extinguiu a Fordlândia. Em um acordo firmado com o Governo brasileiro, a Ford conseguiu receber uma indenização de US$ 250 mil pelas terras, infraestruturas e equipamentos instalados no projeto. Segundo informações da empresa, a Fordlândia provocou um prejuízo total para a empresa de US$ 25 milhões, em valores da época.

A criação da borracha sintética, feita a partir de derivados do petróleo ainda durante o desenrolar da Grande Guerra Mundial, enterrou de uma vez por todas qualquer possibilidade de outro grupo empresarial assumir o projeto. A Fordlândia hoje é uma cidade fantasma, repleta de esqueletos de galpões e fábricas, além de máquinas e equipamentos enferrujados, onde muitos sonhos se transformaram em verdadeiros pesadelos.

A grande Floresta Amazônica mostrou que era muito mais forte do poderiam imaginar aqueles pobres estrangeiros.

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A NOSSA AMAZÔNIA

OS CAÇADORES DA AMAZÔNIA E O CICLO DO COURO E DAS PELES DE ANIMAIS SILVESTRES, OU FALANDO DOS SERINGUEIROS DESEMPREGADOS

Caça na Amazônia

Imagine que você foi contratado para trabalhar no meio da Floresta Amazônica. Seus contratantes lhe prometeram um salário fixo, participação nos lucros, moradia, alimentação e suporte técnico. Empolgado com as boas perspectivas profissionais, você se lança rumo ao desconhecido e, dentro de poucas semanas, já se encontrará nos confins desconhecidos da Amazônia. Aí, você descobre que tudo não passava de uma grande armação e que terá que trabalhar num regime de semiescravidão em troca de comida, além de ter contraído uma enorme dívida com seus contratantes. 

A história da imensa maioria dos seringueiros arregimentados para trabalhar na Amazônia foi mais ou menos essa. Flagelados pelas sucessivas secas no Semiárido Nordestino, centenas de milhares de sertanejos foram convencidos a migrar para a Amazônia, onde poderiam fazer fortuna em poucos anos trabalhando nos seringais, quando voltariam com muito dinheiro no bolso para as suas cidades de origem. Conforme mostramos numa série de postagens, esses trabalhadores foram enganados e depois abandonados a sua própria sorte com o fim do Primeiro Ciclo da Borracha

A partir de 1913, quando os seringais do Sudeste Asiático superaram a produção do látex da Amazônia, teve início um processo contínuo de desemprego dos seringueiros e de todos os demais profissionais que trabalhavam envolvidos com a extração do látex no meio das matas. Não existem números oficiais sobre o número real de seringueiros levados de todo o Brasil, principalmente da Região Nordeste, para a Amazônia – existem estimativas que falam de 500 a 700 mil trabalhadores. Na década de 1940, quando o látex da Amazônia voltou a ser lembrado devido a invasão dos territórios ingleses do Sudeste Asiático por tropas japonesas na II Guerra Mundial, números do Governo brasileiro falavam de 30 mil seringueiros em toda a Amazônia brasileira. 

Onde foram parar essas centenas de milhares de seringueiros, uma vez que uns poucos conseguiram voltar para suas cidades de origem? 

Uma das respostas possíveis a essa pergunta: os seringueiros desempregados se transformaram em eficientes caçadores de animais silvestres e passaram a fornecer peles e couros para o mercado da moda internacional. De acordo com estudos detalhados feitos por pesquisadores brasileiros e americanos, que tomaram como base os dados oficiais das alfândegas, entre 1904 e 1967, ano em que a caça de animais silvestres foi proibida no Brasil, cerca de 23 milhões de peles e couros de animais silvestres foram exportados pelo país. A foto que ilustra essa postagem mostra um curtume em Manaus na década de 1950, especializado no tratamento das peles e couros de animais silvestres.

A lista das espécies animais caçadas implacavelmente incluía onças-pintadas, gatos-maracajás, veados, lontras, ariranhas, peixes-boi, capivaras, antas, sucuris, jiboias, jacarés, entre outras espécies, donas de couros e pelagens consideradas exóticas e altamente valorizadas no mercado internacional. Após 1967, essa “indústria” continuou funcionando clandestinamente, com os couros e peles sendo exportados ilegalmente. A demanda por essas matérias-primas continuou até poucas décadas atrás, quando movimentos internacionais pela defesa dos animais passou a pressionar a indústria da moda, que diminui progressivamente seu uso. 

Um exemplo de animal que foi intensamente caçado nos rios da Amazônia foi o jacaré-açú (Melanosuchus niger). É o maior membro da família dos jacarés, podendo atingir um comprimento de 4,5 metros e um peso da ordem de 300 kg. Existem relatos bastante consistentes de exploradores e cientistas de tempos passados que falavam de exemplares capturados que tinham mais de 6 metros de comprimento e peso da ordem de 500 kg. O jacaré-açu é um predador de topo de cadeia alimentar, atacando praticamente tudo o que encontrar em seu caminho, o que inclui peixes, anfíbios, aves, répteis (inclusive jiboias e sucuris), mamíferos de grande porte como onças, capivaras e antas, e, é claro, seres humanos.  

De acordo com um detalhado estudo publicado por cientistas brasileiros na renomada revista Science Advances em 2016, entre 1904 e 1969, foram abatidos mais de 4,4 milhões de jacarés-açú em toda a Amazônia brasileira para aproveitamento do couro. O couro escuro do jacaré-açu, que podia cobrir uma área com até 10 m² de superfície, estava entre os mais valorizadas do mercado mundial. Sapatos, bolsas, malas, cintos, casacos e luvas feitos com esse couro eram encontrados nas lojas mais sofisticadas das grandes metrópoles mundiais e valiam uma pequena fortuna. 

Os rios e igarapés da Amazônia sempre foram os principais caminhos para o transporte de pessoas e cargas por toda a floresta e, por essa razão, os animais aquáticos e semiaquáticos sempre foram os mais perseguidos pelos caçadores. Aos números dramáticos de jacarés-açu abatidos nesse período, podemos acrescentar 100 mil peixes-boi, 386 mil ariranhas e 400 mil capivaras. Da fauna terrestre, foram 5,4 milhões de catetos, uma espécie de porco selvagem, 4 milhões de veados-mateiros, entre outras vítimas

Com a decadência da indústria do látex, centenas de milhares de seringueiros passaram a ser aliciados por comerciantes de couros e peles, sendo rapidamente transformados em mortais caçadores. O conhecimento adquirido ao longo de vários anos em caminhadas pelo meio da floresta em busca das seringueiras foi fundamental na busca e abate dos animais em seus habitats naturais. As mesmas redes de navegação que eram usadas para o escoamento das pélas de borracha, passaram a ser usadas para a venda dos couros e peles, assim como para o transporte dos produtos para as grandes cidades da Amazônia, onde se encontravam os depósitos dos grandes comerciantes internacionais. 

Cálculos atualizados afirmam que esse comércio internacional de couros e peles de animais silvestres da Amazônia movimentou aproximadamente US$ 500 milhões entre 1904 e 1969. É claro que a imensa maioria dessa fabulosa massa de recursos ficou na mão dos grandes comerciantes e intermediários – os caçadores, que faziam o trabalho sujo e insano nos confins da Floresta, ficaram com as migalhas. Passadas várias décadas dessa fase negra de nossa história, muitas das populações animais ainda não recuperaram suas antigas populações, especialmente as espécies aquáticas e semiaquáticas. Um exemplo são os jacarés-açú, que eram abundantes em todos os rios da Bacia Amazônica, e que agora só são encontrados em alguns rios e dentro de áreas indígenas e parque nacionais. 

Uma das grandes ironias do Ciclo da Borracha é que, apesar de toda a superexploração da mão-de-obra dos seringueiros, essa atividade gerou muita prosperidade econômica para muita gente sem causar prejuízos ambientais para a Floresta Amazônica. Esse ciclo das peles e dos couros, ao contrário, foi devastador para muitas espécies animais, levando algumas como o peixe-boi à beira da extinção. 

Esses eventos, tanto os positivos quanto os negativos, devem servir de exemplo para o desenvolvimento de ações de desenvolvimento sustentável em toda a Amazônia em nossos dias atuais. 

Para saber mais:

A NOSSA AMAZÔNIA

OS SOLDADOS DA BORRACHA, OU QUEM DISSE QUE O RAIO NÃO CAI DUAS VEZES NO MESMO LUGAR?

Soldados da Borracha

Relembrando o que já falamos em postagens anteriores, o Primeiro Ciclo da Borracha na Amazônia entrou em decadência a partir de 1913, ano em que a produção de látex dos seringais do Sudeste Asiático superou a produção da Amazônia. O início da I Guerra Mundial (1914-1918) deu uma sobrevida à produção do látex da Amazônia, que acabou por dar seus últimos suspiros em 1920.

Centenas de milhares de pessoas ligadas à extração e beneficiamento do látex nos confins da Bacia Amazônica, onde se incluem os seringueiros e seus familiares, tropeiros, mateiros, gerentes, jagunços, anotadores, entre outros, simplesmente foram abandonados à própria sorte no meio da mata. Sem condições de retornar aos seus locais de origem, principalmente nos sertões do Semiárido Nordestino, grande parte desses profissionais acabou cooptada pela indústria internacional das peles e dos couros – os antigos trabalhadores da indústria gomífera acabaram transformados em caçadores de animais silvestres para aproveitamentos dos couros e peles dos animais. Falaremos disso em outra postagem.

Com o início da II Guerra Mundial (1939-1945), tropas do Império Japonês passaram a avançar sobre os países e territórios da Ásia, colocando em risco os seringais ingleses nas suas colônias do Sudeste Asiático. A indústria bélica dos chamados Países Aliados não podia perder seus suprimentos de borracha, matéria-prima essencial para a fabricação de pneus, correias, mangueiras, esteiras e mais uma infinidade de componentes básicos para caminhões, carros, veículos blindados e aviões. Sem o suprimento dos seringais asiáticos, a antiga produção da Amazônia precisava ser retomada a qualquer custo.

A solução encontrada em negociações entre os Governos dos Estados Unidos e do Brasil há época, que foram chamados de Acordos de Washington, foi a criação de pelotões de soldados brasileiros especializados na extração e beneficiamento do látex. Os milhares de voluntários que se apresentaram para esse penoso trabalho passaram para a história com o nome de Soldados da Borracha. De acordo com dados oficiais, cerca de 55 mil desses soldados foram enviados para a Amazônia entre 1943 e 1945, a grande maioria recrutada mais uma vez na Região Nordeste.

O Brasil vivia nessa época sob o regime ditatorial de Getúlio Vargas (1930-1945), com um forte discurso populista e nacionalista. E foi usando justamente um discurso fortemente nacionalista, que o Governo Vargas recrutou milhares de jovens voluntários para servir nesse “exército” de seringueiros e dar a sua contribuição para vencer as chamadas Potencias do Eixo, que reuniam a Alemanha, a Itália e o Japão.

O Governo brasileiro se comprometeu a fornecer uma série de matérias-primas para o Esforço de Guerra, onde se incluíam alumínio, cobre, café e látex. Um dos acordos previa a sessão de uma área para a instalação de uma base militar americana no Brasil. Entre as contrapartidas para o Brasil havia a promessa de empréstimos para a construção da Usina Siderúrgica de Volta Redonda, no interior do Estado do Rio de Janeiro, e compra de material bélico. O Brasil assumiu o compromisso de fornecer 45 mil toneladas anuais de látex, um trabalho que exigia o trabalho de cerca de 100 mil homens.

Para estruturar os serviços de coleta e beneficiamento do látex na Amazônia, o Governo Vargas criou o SEMTA – Serviço Especial de Mobilização de Trabalhadores para a Amazônia, uma autarquia que ficaria responsável por todas as operações, desde o recrutamento dos Soldados à gestão da produção nos seringais. Do lado norte-americano, foi criada a RDC – Rubber Devepment Corporation, uma trading formada com o dinheiro de industriais e que se encarregaria do financiamento das operações. Para cada Soldado da Borracha deslocado para a Amazônia, a RDC pagava US$ 100.00 para o Governo Brasileiro.

Assim como aconteceu no chamado Primeiro Ciclo da Borracha (1850-1920), o Governo brasileiro há época se valeu de uma série de artifícios para recrutar e convencer os jovens a se alistaram no serviço. O famoso artista plástico suíço Pierre Chabloz foi contratado pelo SEMTA para fazer os cartazes de divulgação do serviço e do recrutamento. As mensagens publicitárias, que hoje seriam classificadas como propagandas enganosas, falavam das possibilidades de uma vida nova na região Amazônica, chamada de “terra da fartura”. Padres, professores, médicos e outros líderes comunitários alfabetizados, eram usados nos trabalhos de comunicação boca a boca, ajudando a explicar as condições do serviço para uma massa de analfabetos. Um dos argumentos mais usados para convencer os jovens a se alistar no serviço era a possibilidade de “ganhar dinheiro a rodo”.

O SEMTA oferecia um pequeno salário a cada Soldado da Borracha durante a viagem até a Amazônia e a promessa de uma remuneração de 60% do valor obtido com a venda do látex. Alguns veteranos sobreviventes do serviço afirmam que costumavam circular boatos entre os recrutas, onde se falava que “o seringueiro mais produtivo do ano seria premiado com a bolada de 35 mil cruzeiros“. Além desse trabalho de convencimento feito pelo SEMTA, o Governo Federal fazia uma pressão mais pesada, afirmando que os jovens poderiam ir voluntariamente “cortar seringa na Amazônia” ou serem alistados a força na FEB – Força Expedicionária Brasileira, indo servir nos fronts da guerra na Itália.

Os voluntários passavam por um minucioso exame médico, onde era verificada a aptidão física de cada um para o extenuante trabalho nos seringais. Passada essa etapa, os recrutas passavam por um treinamento militar básico – o treinamento prático para a coleta do látex nas matas e as técnicas para a defumação das pélas de borracha seria feito in loco na Floresta Amazônica. Como a imensa maioria dos recrutas era de origem nordestina, os principais alojamentos dos Soldados da Borracha ficavam na cidade de Fortaleza, capital do Estado do Ceará.

De acordo com os registros disponíveis, cada Soldado da Borracha recebia, além de um monte de promessas por parte do Governo, um uniforme e um kit básico para o trabalho nas matas: “uma calça de mescla azul, uma camisa branca de morim, um chapéu de palha, um par de alpercatas (sandálias de couro), uma mochila, um prato fundo, um conjunto de talher com garfo e colher, uma caneca de folha de flandres, uma rede e um maço de cigarros Colomy.” Munidos desse “equipamento básico”, os recrutas eram embarcados para a Bacia Amazônica e distribuídos ao longo das antigas áreas conhecidas de seringais.

Os problemas dos Soldados da Borracha começaram já na viagem de ida até a Bacia Amazônica – todo o litoral brasileiro fervilhava de submarinos alemães, que tinham ordem de afundar qualquer embarcação suspeita de transportar unidades militares ou suprimentos para os Países Aliados. Ao chegaram a seu destino final nos seringais nos confins da floresta, os Soldados já chegavam endividados, a exemplo de seus conterrâneos de gerações anteriores. A mesma antiga estrutura de funcionamento dos seringais foi mantida e os novos trabalhadores ficariam nas mãos dos seringalistas, que anotavam em uma caderneta cada centavo gasto com roupas, comida, ferramentas, remédios ou armas e munições. Como acontecia nos tempos passados, todas as mercadorias “vendidas” no barracão dos seringais era inflacionadas e os valores pagos pelo látex estavam abaixo da cotação do mercado.

Diferentemente das belas paisagens mostradas nos cartazes de recrutamento, as seringueiras reais não se encontravam perfeitamente alinhadas como numa plantação, mas sim espalhadas aleatoriamente pela floresta. Calcula-se que cerca de 31 mil Soldados da Borracha morreram na Floresta Amazônica, abatidos por doenças como a malária, febre amarela e hepatite; em ataques de animais selvagens como onças e cobras e também nas tocais feitas por indígenas selvagens. Cerca de 25 mil sobreviventes foram abandonados na Região Amazônica pelo Governo Federal após o fim da Guerra. O Governo do Presidente Getúlio Vargas terminou em 1945 e o novo Governo que assumiu entendeu que não era obrigado a honrar as promessas feitas pela ditadura que o precedeu.

Com a libertação dos territórios ocupados pelos japoneses na Ásia por tropas Aliadas, a produção dos seringais do Sudeste Asiático foi retomada, tornando irrelevante, mais uma vez, a produção do látex da Amazônia. Como parte dos Esforços de Guerra, as indústrias petroquímicas desenvolveram a borracha sintética feita a partir do petróleo, muito mais barata e de fácil produção, o que reduziu imensamente o mercado mundial do látex.

Os Soldados da Borracha sobreviventes, abandonados à própria sorte na Amazônia, somente foram reconhecidos pelo Governo Federal em 1988, quando um projeto de lei garantiu o pagamento de uma pensão vitalícia de dois salários mínimos, além do reconhecimento da sua participação na Guerra.

E esse foi o fim melancólico do Segundo Ciclo da Borracha…

Para saber mais:

A NOSSA AMAZÔNIA

OS IMPACTOS ECONÔMICOS E SOCIAIS DO DESMANTELAMENTO DA INDÚSTRIA DO LÁTEX NA AMAZÔNIA

Pélas de borracha

O Primeiro Ciclo da Borracha, que se estendeu desde meados do século XIX até 1920, colocou a Amazônia no mapa econômico do Brasil pela primeira vez. De “fim de mundo” esquecido e desprezado do país, a região passou, em um curtíssimo espaço de tempo, a gerar cerca de 20% de todas as exportações brasileiras. Cidades desconhecidas da maioria da população, como foi o caso de Manaus e Belém, se modernizaram rapidamente, recebendo melhoramentos e modernidades ainda desconhecidas das grandes cidades brasileiras da época, incluindo-se na lista iluminação pública e bondes elétricos, redes de abastecimento de água e de coleta de esgotos, grandes teatros, entre outros avanços.  

Essas cidades também abrigavam uma sofisticada elite econômica, consumidora ávida de tudo o que havia de bom e de melhor no mundo naquela época. Homem se vestiam com os mais elegantes e caros trajes ingleses e as mulheres desfilavam com a última moda francesa. Consta, inclusive, que as famílias dos grandes Senhores da Borracha não tinham qualquer preocupação com a lavagem dessas roupas – elas eram empacotadas e despachadas para as mais sofisticadas lavanderias de Paris. Navios para transportar esse tipo de carga não faltavam – havia uma forte demanda para o transporte dos grandes volumes de látex produzidos na Amazônia, que chegou a responder por 95% da produção mundial, e grandes embarcações a vapor fervilhavam em toda a calha do grande rio Amazonas

Toda essa pujança econômica foi construída com o suor e o sangue de centenas de milhares de seringueiros espalhados pelos quatro cantos da Floresta Amazônica e explorados pelos Coronéis dos Barrancos, nome mais popular dado aos grandes seringalistas. A extração e o processamento do látex foram estruturados sob um sistema semi-escravagista (em alguns lugares como no rio Putumayo, no Peru, era abertamente escravagista), onde pessoas miseráveis eram recrutadas sob a promessa de altos ganhos financeiros. Os sertões do Semiárido Nordestino forneceram a maior parte da mão-de-obra usada nos seringais da Amazônia. 

Para surpresa da grande maioria dos seringalistas e comerciantes de látex da Amazônia, que imaginavam que suas seringueiras produziriam sua seiva com exclusividade até o final dos tempos, seringais plantados em territórios do Império Britânico iniciaram sua produção já nos primeiros anos do século XX. Milhares de sementes da Hevea brasiliensis foram contrabandeadas secretamente para a Inglaterra em 1876 pelo aventureiro inglês Henry Wickham e botânicos conseguiram fazer vingar cerca de 2.900 mudas de seringueiras nas estufas de jardins botânicos como o Kew Gardens de Londres. A partir de 1894, visando atender o explosivo aumento do consumo da borracha da nascente indústria automobilística, essas mudas passaram a ser plantadas no Sudeste Asiático, mudando para sempre o mercado do látex e decretando o fim do Primeiro Ciclo da Borracha da Amazônia. 

Esse efêmero ciclo econômico, que viveu seu auge entre as décadas de 1870 e 1910, pode ser explicado facilmente pela lei “da oferta e da procura”, a mais antiga e fundamental regra do mercado – quando existe uma grande procura por um determinado produto, seu preço sobe. No caso do látex da Amazônia, o mercado surgiu em torno de uma matéria-prima nova, que de uma hora para outra ganhou uma grande importância para as indústrias, e que era produzida por um monopólio regional. Sob essas regras, os “donos” desse mercado ditavam as regras e os preços da commodity.  

Com o surgimento “inesperado” de uma região concorrente, os territórios do Império Britânico no Sudeste Asiático, o mercado passou a ser inundado com uma matéria-prima mais barata e com melhor qualidade, que além de tudo gozava de preferência de compra pelos grandes consumidores. O látex produzido na Amazônia acabou varrido do mercado mundial em um curto espaço de tempo. O Brasil perdeu 20% de suas receitas externas em menos de uma década, comprometendo perigosamente a balança comercial do país. Os estragos nas finanças nacionais aumentariam muito mais após 1929, quando uma profunda crise econômica internacional fechou o mercado mundial do café, um produto que respondia por metade das exportações do Brasil há época – tempos muito difíceis. 

Uma importante matéria-prima contemporânea está seguindo um caminho muito parecido com o do látex e pode ajudar a entender como uma crise setorial como essa pode acontecer – falamos do lítio. Esse elemento químico é fundamental para a produção de ligas metálicas e, principalmente, para a fabricação de baterias para computadores e telefones celulares. Os principais países produtores de lítio são o Chile e a Argentina – metade das reservas mundiais conhecidas desse elemento ficam na Bolívia. Essa concentração de uma importantíssima matéria-prima industrial na mão de um grupo muito pequeno de produtores, nesse caso falamos de “indígenas sul-americanos”, não agrada as grandes potências mundiais, que são obrigadas a pagar caro, além de ficaram sujeitas as cotas de produção determinadas por esses produtores.  

As grandes indústrias eletroeletrônicas internacionais têm feito pesados investimentos em pesquisa e desenvolvimento, buscando encontrar elementos químicos alternativos ao lítio – será questão de tempo até que o lítio sul-americano se torne irrelevante no mercado mundial. Como aconteceu com a indústria gomífera da Amazônia, os produtores de lítio vão acabar com um grande “mico” nas suas mãos e milhares de mineiros vão acabar perdendo seus trabalhos e sua fonte de renda. 

A imensa maioria dos grandes Senhores da Borracha da Amazônia perdeu a maior parte do seu patrimônio com o fim repentino da indústria gomífera – os mais esbanjadores de dinheiro, acabaram na miséria . As maiores vítimas, porém, foram os seringueiros e demais trabalhadores braçais que viviam nos confins das matas, próximos aos seringais. Esses trabalhadores foram lançados na mais completa miserabilidade de uma hora para outra.

Conforme comentamos em postagem anterior, esses trabalhadores eram proibidos de plantar ou de cultivar qualquer tipo de alimentos, sendo forçados a concentrar todos os seus esforços na extração da seiva e na produção das pélas de látex. Todo o precário abastecimento de alimentos e de outros gêneros de primeira necessidade era fornecido pelos barracões dos seringais, a preços exorbitantes e marcados em uma caderneta para desconto na futura produção. Esse sistema cruel mantinha os trabalhadores eternamente endividados, ao mesmo tempo que lhes garantia uma segurança alimentar mínima. A ruptura repentina do sistema levou esses trabalhadores à fome e ao desespero.  

Apesar da aparente exuberância, a vida na Floresta Amazônica exige grandes esforços e artimanhas para a obtenção de alimentos. Na época das chuvas, os peixes se dispersam nas áreas alagadas, dificultando a pesca. As cheias também forçam os animais terrestres a migrar para os terrenos mais altos, dificultando a caça. A produção de frutas e outros alimentos de origem vegetal também acompanha esse ciclo de secas e cheias dos rios. Os indígenas e as populações tradicionais da região têm suas vidas sincronizadas com esse ciclo das águas e possuem todo um conjunto de estratégias tradicionais para se alimentar em cada uma dessas épocas. Um migrante dos sertões do Semiárido Nordestino, que foi colocado “artificialmente” nesse ambiente inóspito, sofrerá muito para sobreviver com o fim súbito do fornecimento regular de alimentos pelos seringais. Milhares de pessoas, quiçá famílias inteiras, morreram de fome e à míngua com o fim brusco da extração do látex. 

Esse abandono súbito de trabalhadores, que foram convencidos a mudar para a Amazônia sob falsas promessas, se tornará uma característica da ocupação regional e se repetirá diversas vezes ao longo de todo o século XX. Um dos exemplos clássicos disso ocorrerá com os Soldados da Borracha na Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Nós falaremos disso na próxima postagem. 

Para saber mais:

A NOSSA AMAZÔNIA

O AUDACIOSO ROUBO DE SEMENTES DE SERINGUEIRAS POR HENRY WICKHAM EM 1876

Henry Wickham

A exploração intensiva do látex na Floresta Amazônica, a partir de meados do século XIX, criou uma poderosa indústria, conhecida como gomífera, e uma seleta elite equatorial. Nos áureos tempos do chamado Ciclo da Borracha, que durou aproximadamente 70 anos, essa elite dominou o mercado mundial do látex, onde o Brasil era responsável por 95% da oferta dessa matéria-prima. A partir de 1913, os seringais plantados por ingleses em territórios coloniais do Sudeste Asiático inundaram o mercado mundial com seu látex e em poucos anos quebraram o monopólio da Amazônia. Vamos entender um pouco melhor esse capítulo da história do látex e da Amazônia: 

Os indígenas das ilhas do Caribe e das Américas Central e do Sul conheciam e usavam o látex séculos antes da chegada dos primeiros exploradores europeus no século XV. Cristovão Colombo citou nativos do Haiti brincando com bolas elásticas de látex. Hernan Cortez, o conquistador do México, encontrou bolas semelhantes sendo usadas em jogos pelos indígenas, mesmo relato feito pelos primeiros religiosos que trabalharam na região da Amazônia brasileira. 

O geógrafo francês Charles-Marie de la Condamine descobriu a árvore que produzia o látex em 1743 e acompanhou indígenas da Amazônia durante os processos de extração da seiva das seringueiras e de fabricação da goma. No início da década de 1760, o botânico francês Fusée Aublet propôs a classificação científica da seringueira, que foi batizada com o nome de Hevea brasiliensis – o nome deriva da palavra hevé, nome com o qual os indígenas identificavam a árvore. 

Uma das primeiras aplicações industriais conhecidas do látex foi a fabricação de apagadores de lousa em 1772, na Inglaterra. Em 1820, o látex passou a ser usado para a fabricação de borrachas para apagar traços feitos a lápis. Outros produtos foram surgindo, apesar das limitações técnicas do látex na época – as peças ficavam grudentas em dias de muito calor e quebradiças em dias muito frios. Esse quadro mudou em 1839, quando Charles Goodyear criou o processo de vulcanização da borracha e fez explodir as suas aplicações na indústria. Para se ter uma ideia do crescimento do consumo, a Amazônia exportou 8 toneladas de látex em 1827 – em 1860, essas exportações bateram na marca de 2.673 toneladas. 

As grandes potências industriais da época, que se tornaram dependentes do látex da Amazônia e de toda uma gama de importantes produtos industriais fabricados com a borracha, não se sentiam nem um pouco confortáveis com o monopólio da produção nas mãos do Brasil e de outros países Sul-americanos. Era preciso encontrar outras fontes de produção e beneficiamento do látex, em territórios preferencialmente controlados por essas grandes potencias. Teve início assim um dos primeiros casos conhecidos de biopirataria da história, responsável pelo fim da indústria gomífera da Amazônia. 

A primeira tentativa conhecida de coleta e exportação de sementes da seringueira para a Inglaterra coube ao médico e botânico inglês Richard Spruce (1817-1893), que participou de explorações na Amazônia entre 1849 e 1866. Durante uma de suas andanças pela Floresta, Spruce conseguiu coletar uma grande quantidade de sementes da Hevea brasiliensis, que foram cuidadosamente embaladas e enviadas ao Jardim Botânico Real de Londres, o Kew Gardens. As sementes coletadas se deterioram rapidamente e não sobreviveram à longa travessia pelo Oceano Atlântico. Em diversas outras tentativas feitas por exploradores estrangeiros foi observado o mesmo problema. 

Apesar do fracasso com as sementes da seringueira, Richard Spruce coletou, classificou e estudou cerca de 30 mil espécies vegetais da Amazônia e dos Andes, tendo enviado uma grande quantidade dessas espécies para os jardins botânicos e universidades da Inglaterra. Diplomatas ingleses faziam um trabalho corpo a corpo junto às autoridades alfandegárias do Brasil e de países vizinhos, alegando que estas espécies eram de interesse científico para toda a humanidade. A figura da soberana da Inglaterra, a Rainha Vitória, era frequentemente citada por esses diplomatas e apresentada como uma “amante de plantas”. As mudas e sementes seriam cultivadas em jardins botânicos como o Kew Gardens de Londres, para o deleite da soberana. 

Em outras ocasiões, quando não podiam contar com a ajuda desses diplomatas, os exploradores buscavam alternativas bizarras para contrabandear mudas e sementes de plantas da Amazônia para a Inglaterra e outros países. Num dos casos mais interessantes, um explorador inglês enviou uma grande quantidade de sementes de seringueira dentro de dois grandes jacarés empalhados. Como era de se esperar, as sementes estavam completamente deterioradas quando chegaram ao seu destino.

Os ingleses obteriam êxito no “roubo” de sementes da seringueira somente em meados da década de 1870, pelas mãos do aventureiro Henry Wickham (1846-1928), que começou a se aventurar pelas Américas com 27 anos de idade. Buscando fazer fortuna, Wickham (vide foto) viajou primeiro pela América Central e depois pela Venezuela, onde aprendeu muito sobre a extração e o beneficiamento do látex com os indígenas. O aventureiro também aprendeu a identificar as melhores espécies de árvores produtoras do látex (a Hevea brasiliensis não é a única) e também sobre as manhas e artimanhas para a preservação das sementes oleosas. Wickham, que sabia do interesse do seu país na aquisição legal ou ilegal dessas sementes, encaminhou uma carta para o diretor do Kew Gardens, afirmando que sabia onde coletar e como enviar adequadamente esse material.  

No final de 1875, Wickham recebeu uma carta do Kew Gardens com uma proposta comercial para a realização dessa missão. Em fevereiro de 1876, Henry Wickham, que já estava morando em Santarém, viajou com a esposa e um ajudante para a casa de um norte-americano que vivia nas margens do rio Tapajós há vários anos. Foi a partir dali que ele se lançou ao trabalho e passou a coletar sementes da Hevea brasiliensis em terrenos mais altos, onde sabia se encontrarem os melhores espécimes da árvore. Ao longo de três meses de trabalho, conseguiu reunir cerca de 70 mil sementes de seringueira.

Todo esse volume de sementes, que pesava cerca de 1 tonelada, foi acondicionado em 50 cestas de palha de fabricação indígena. As sementes foram envoltas em pacotes feitos com folhas de bananeira, um truque que Wickham aprendeu com os índios da Venezuela e que evitava que as sementes se deteriorassem. 

Para a sorte de Henry Wickham e de seu projeto para o contrabando das sementes, o navio inglês SS Amazonas estava na região e se preparava para realizar a viagem de Manaus até Liverpol. O capitão do navio, num gesto de puro patriotismo, concordou em levar a preciosa carga para a Inglaterra. Diplomatas ingleses sediados em Manaus fizeram o seu “trabalho” junto aos fiscais da alfândega local, que não criaram maiores problemas para o embarque das “cestas indígenas”. 

Henry Wickhan recebeu cerca de 700 libras esterlinas como recompensa pelo seu trabalho sujo, mas não logrou êxito em sua maior ambição – chefiar a implantação dos seringais em colônias inglesas do Sudeste Asiático. Autoridades do Governo inglês e diretores do Kew Gardens o consideravam uma pessoa “não confiável” para essa missão. Anos mais tarde, ele acabou sendo agraciado com o respeitável título de Sir pela Rainha Vitória, em reconhecimento aos seus serviços pelo país. Os botânicos ingleses conseguiram produzir cerca de 2.900 mudas de seringueiras em suas estufas. Essas mudas só passaram a ser plantadas nas colônias inglesas do Sudeste Asiático em 1894, quando a demanda pela borracha passou a crescer fortemente com o início da produção em massa de automóveis. 

A produção de látex nos seringais do Oriente começou em 1900, quando foram produzidas cerca de 4 toneladas, um volume desprezível quando comparado às 26.760 toneladas exportadas pela Amazônia naquele mesmo ano. Essa produção, entretanto, foi crescendo exponencialmente e, em 1913, superou a produção do látex da Amazônia. Bastaram uns poucos anos mais para destruir, em definitivo, a indústria gomífera da Amazônia. 

Um relatório oficial da diretoria do Kew Gardens, justificando o roubo das sementes da seringueira anos mais tarde, disse que aquilo foi um ato pelo “bem da humanidade – um seringueiro bêbado, depois de uma noite de cachaça, poderia destruir todas as árvores em seu caminho”. 

Ou seja, a preocupação “hipócrita” com as queimadas na Amazônia, como se nota, ocupa os gringos há muito mais tempo do que todos nós imaginamos.

Para saber mais:

A NOSSA AMAZÔNIA

JULIO ARANÃ: O REI DO LÁTEX NA AMAZÔNIA PERUANA E SEUS MILHARES DE ESCRAVOS INDÍGENAS

Rio Putumayo

Nessa sequência de postagens, estamos mostrando algumas histórias da ocupação da Amazônia durante o Ciclo da Borracha que, entre meados do século XIX e o ano de 1920, trouxe prosperidade e muita riqueza para uma pequena elite equatorial. Para centenas de milhares de seringueiros pobres, grande parte arregimentada nas áreas mais miseráveis dos sertões do Nordeste, essa aventura nos confins da Floresta Amazônica resultou em suor, lágrimas e pobreza num “inferno verde”. 

Ao contrário do que essas histórias possam sugerir, a saga da exploração do látex não ficou limitada ao trecho brasileiro da Amazônia – essas tragédias se espalharam por toda a Bacia Amazônica; onde houvessem seringueiras, as árvores produtoras do látex, surgiriam seringalistas e seringueiros à suas sombras.  

Conforme comentamos em postagens anteriores, a seringueira, cujo nome científico é Hevea brasiliensis, é uma árvore nativa da Amazônia e, não custa lembrar, a grande Floresta se distribui entre Brasil, Bolívia, Peru, Equador, Colômbia, Venezuela, Suriname, Guiana e Guiana Francesa. Como mais de 60% da Floresta Amazônica se encontra em território brasileiro, nosso país teve todas as condições naturais para se tornar o maior produtor mundial de látex. Porém, nossos vizinhos também partilharam, em maior ou menor grau, das riquezas e das tragédias sociais geradas pela exploração, processamento e exportação do látex. No caso da região do rio Putumayo, é impossível falar desses problemas sem lembrar de Julio Araña, um personagem sui generis da história da Amazônia e que era conhecido por seus pares como o “rei do Putumayo“. 

O rio Putumayo, que no trecho final dentro do território brasileiro recebe o nome de rio Içá, é um dos grandes afluentes formadores do rio Solimões. O Putumayo nasce nos contrafortes orientais da Cordilheira dos Andes, numa região conhecida como Nudo de Los Pastos, na Colômbia. O rio tem aproximadamente 1.800 km de extensão (algumas fontes falam de 1.650 km) e ao longo do seu curso ele faz a divisa entre a Colômbia e o Equador, e depois entre a Colômbia e o Peru. Os principais rios formadores do Putumayo são Guamúrez, San Miguel e Igara Paraná. O nome Putumayo é de origem quéchua, uma importante língua indígena andina, e significa algo como “rio das vasilhas”, numa referência a uma fruta de casca dura que os indígenas usavam para fazer vasilhames, algo semelhante às nossas cabaças.

O rio Putumayo é navegável em praticamente toda a sua extensão, sendo uma importante via de transportes e comunicação para as populações das regiões Amazônicas do Equador, Peru e Colômbia, além de permitir a comunicação por via fluvial com a Amazônia brasileira. A Cordilheira dos Andes, uma imponente cadeia montanhosa que se estende por toda a face oeste da América do Sul desde a Terra do Fogo até o Norte da Colômbia, é um divisor natural entre as populações que vivem na costa do Oceano Pacífico e aquelas que vivem a Leste da Cordilheira – no nosso caso, as populações da Floresta Amazônica. Para essas regiões ao Leste da Cordilheira dos Andes, a navegação pelos rios da bacia Amazônica é uma importante atividade social e econômica, pois lhes permite uma saída para o Oceano Atlântico, em condições muito superiores às saídas existentes para o Oceano Pacífico em seus respectivos países.  

Julio César Araña del Águilamuito provavelmente, é um ilustre desconhecido para a maioria dos leitores – porém, nos áureos tempos do Ciclo da Borracha, o empreendedor e depois político peruano comandou um gigantesco império gomífero, com uma área do tamanho da Bélgica. Em 1907, para que todos tenham uma ideia do tamanho de seu patrimônio, Julio Araña registrou sua empresa em Londres, a Companhia Peruana da Amazônia, onde declarou um patrimônio de 1 milhão de libras esterlinas. A empresa tinha a sua sede em Iquitos, no Peru, e diversas associações com empresas da Europa.  

Com o passar dos anos, Julio Araña foi estendendo os seus domínios para toda a região da bacia hidrográfica do rio Putumayo, incorporando seringais na Colômbia e no Equador. Uma das alcunhas “conquistadas” por Julio Araña ao longo dos anos foi a de “el Rey del Putomayo” – ele foi, provavelmente, o maior produtor individual de látex da Amazônia. Por questões de “civilidade”, Araña enviou sua esposa e filhos para viver no Sul da França, onde professores ingleses poderiam proporcionar uma “melhor” educação para os seus herdeiros.  

Uma característica da exploração do látex em terras brasileiras, fato que teve enormes repercussões após a publicação dos relatos de Euclides da Cunha durante a Comissão Mista Brasileiro-Peruana de Reconhecimento do Alto Purus, realizada entre 1904 e 1905, foram as observações acerca do regime de semi escravidão imposto aos trabalhadores pelos seringalistas. No caso do Império de Julio Araña, a exploração do látex era feita por indígenas escravizados – a famosa foto que ilustra esta postagem, publicada por um jornal em 1913, mostra alguns dos seus “trabalhadores” indígenas acorrentados. 

As péssimas condições de vida nos seringais e as jornadas de trabalho extenuantes para se conseguir atingir as cotas de produção de látex custaram, segundo algumas fontes, a vida de 30 mil indígenas (é possível que o número de mortos tenha sido bem maior). Segundo alguns cálculos feitos por historiadores, isso significa que, para cada jogo de quatro pneus fabricado a partir do látex produzido nos seringais de Julio Arana, um indígena morreu.  

Jornais do Peru, da Colômbia e do Equador começaram a receber inúmeras denúncias sobre a tortura e a morte de trabalhadores, estupro sistemático de mulheres indígenas nos seringais e das condições de vida absolutamente insuportáveis nos centros de produção de Julio Araña. Reportagens investigativas se multiplicaram, acompanhadas de editoriais cheios de denúncias e com provas irrefutáveis de tudo o que acontecia dentro do Império de Julio Araña. “Inexplicavelmente”, nenhuma denúncia contra ele ou contra as suas empresas jamais conseguia prosperar dentro no Peru.  

Foi somente no final de 1912, depois de intensa pressão internacional, que o Congresso peruano decidiu instalar um Comitê Parlamentar para investir a procedência das acusações contra Julio Araña. Esse comitê teve duração de seis meses – Julio Araña negou ter conhecimento de qualquer uma das acusações e colocou a culpa de eventuais ocorrências em seus funcionários, afirmando inclusive que esses agiram por conta própria, sem que ele fosse consultado. De acordo com declarações registradas, Julio Araña alegou que suas empresas “estavam ajudando a civilizar regiões do interior da Floresta Amazônica“. Por “falta de provas”, o Governo do Peru não processou o empreendedor.

O Governo Britânico tentou abrir processos judiciais internacionais contra Araña, inclusive pressionando o Brasil e os Estados Unidos a colaborar nas causas. Com o início da Primeira Guerra Mundial em 1914, o assunto acabou sendo deixado de lado. As empresas de Julio Araña mantiveram as suas operações até 1920, quando a concorrência com os seringais do Sudeste Asiático inviabilizou a produção do látex na Amazônia.

Julio Araña conseguiu se manter impunemente no mundo dos negócios até 1932, quando conflitos armados entre a Colômbia e o Peru pela disputa de fronteiras fez com que ele perdesse a maior parte de suas terras e acabasse falido. O destino, porém, sorriu mais uma vez para Julio Araña – com o prestígio dos tempos de “el Rey del Putumayo” e de sua enorme popularidade, conseguiu se eleger como senador, vivendo tranquilamente com a “imunidade parlamentar” até sua confortável morte aos 88 anos, em 1952.  

Qualquer semelhança com políticos brasileiros na atualidade não é mera coincidência – tratam-se de estruturas políticas e econômicas criadas, desde sempre, em toda a América Latina para proteger e favorecer as classes ricas e poderosas. 

Para saber mais:

A NOSSA AMAZÔNIA

OS SERINGAIS, OS SERINGUEIROS E OS SERINGALISTAS DA AMAZÔNIA

Vapor amazônico

O Primeiro Ciclo da Borracha, conforme comentamos em postagens anteriores, teve início em meados do século XIX e se estendeu até 1920, quando os custos de produção, beneficiamento e exportação do látex da Amazônia perdeu completamente a competitividade no mercado mundial. Essa decadência começou em 1913, quando os seringais plantados por empresas da Inglaterra em países do Sudeste Asiático iniciaram a sua produção. O início da I Grande Guerra Mundial (1914-1918), que provocou um aumento na demanda por borracha, ajudou a dar uma sobrevida ao látex da Amazônia. 

Entre o nascer e o ocaso da indústria gomífera da Amazônia, seringalistas, grandes atacadistas e exportadores ganharam verdadeiros rios de dinheiro. Manaus, uma das sedes dessa elite equatorial, recebeu todos os melhoramentos encontrados nas cidades mais prosperas do mundo há época e era conhecida como a “Paris dos trópicos”. Por outro lado, os seringueiros e outros trabalhadores responsáveis pela extração do látex nas selvas, sobreviviam numa situação análoga à escravidão – talvez até pior, uma vez que os escravos não tinham dívidas a pagar. Vamos falar um pouco sobre esses universos tão contraditórios. 

Os seringalistas, chamados por muitos de Senhores da Borracha e também Coronéis de Barranco, eram os donos dos seringais e empregadores de todo um conjunto de trabalhadores envolvidos na extração e beneficiamento do látex. Normalmente, esses homens já estavam envolvidos em atividades comerciais e dispunham de algum capital para iniciar o seu próprio negócio na indústria gomífera. Nos primeiros tempos da exploração do látex, aventureiros montavam expedições baseadas em embarcações a vapor e se embrenhavam pelos rios da Bacia Amazônica buscando regiões com grandes concentrações de árvores seringueiras (Hevea brasiliensis). A seringueira é uma árvore típica da Floresta Amazônica e quanto maior a concentração de árvores, maior seria a produtividade do seringal. 

Um elemento importante nessas viagens exploratórias eram os jagunços, “profissionais” contratados com a missão de “limpar” os terrenos infestados com indígenas. Conforme já comentamos em outras postagens, a “limpeza de territórios” foi corriqueira desde os primeiros tempos da colonização da Amazônia. Unidades militares fortemente armadas se encarregavam de expulsar ou exterminar as tribos indígenas mais hostis – os índios mais mansos eram levados para os aldeamentos dos religiosos para a catequização. Os indígenas que conseguiam escapar desses ataques, foram se embrenhando em rios e matas cada vez mais distantes nos confins da Amazônia, onde imaginavam estar seguros – com o início da exploração dos látex, essa relativa segurança acabou. 

Uma das primeiras construções de um seringal era o barração, normalmente localizada na margem de um grande rio, estrategicamente posicionado para facilitar o embarque e o desembarque de mercadorias, ferramentas e víveres, além de permitir o fácil escoamento da produção de látex. Ao redor desse barracão eram construídas a casas do staff do seringalista, normalmente chamadas de Centros. Entre esses profissionais destacam-se os mateiros, responsável por localizar as seringueiras na mata e abrir as estradas de acesso.  

O noteiro ou aviador era o responsável pela venda de produtos aos seringueiros (alimentos, ferramentas, bebidas, etc), vendas que eram anotadas em uma caderneta e descontadas da produção do látex. Também moravam nos Centros o gerente do seringal, os jagunços e também os tropeiros ou comboeiros, encarregados pelo transporte das mercadorias e da produção. Os seringalistas, normalmente, moravam com suas famílias numa casa bastante confortável numa cidade e raramente se davam ao trabalho de visitar seus seringais nos confins das matas. 

Na base dessa estrutura encontravam-se os seringueiros, os responsáveis pelo trabalho mais difícil e insalubre dos seringais – a coleta do látex nas árvores espalhadas pela mata e a produção das pélas, grandes peças de látex defumado. Os seringueiros eram instalados em casebres de palha ao lado de uma “estrada” de seringueiras. Essas estradas eram picadas abertas no meio da mata, onde podiam ser encontradas entre 100 e 120 seringueiras. Em regiões com alta concentração de seringueiras, esse número podia chegar até 160 árvores. 

A rotina dos seringueiros costumava começar antes do nascer do sol, quando eles começavam a percorrer a sua estrada sob o facho da luz de uma lamparina presa na cabeça, a poronga. Ao encontrar as seringueiras, era feito o corte das bandeiras, incisões feitas na casca da árvore para a extração do látex. Dependendo do tamanho do tronco, cada árvore podia ter duas ou três bandeiras. O corte das árvores era feito em dias alternados, um cuidado tomado para não exaurir a capacidade de produção da árvore. Os cortes precisavam ser feitos com bastante cuidado – se fossem muito rasos, o fluxo de látex seria muito pequeno; cortes muito profundos poderiam matar a árvore. 

Após completar toda a estrada, o seringueiro refazia todo o percurso recolhendo em um balde o látex que escorreu das árvores ao longo do dia e foi acumulado em pequenas tigelas presas nos troncos. Os seringueiros sempre realizavam essas caminhadas pelas estradas armados com uma espingarda – essa era uma precaução em caso de encontro com algum índio hostil; com muita sorte, ele também poderia encontrar algum animal silvestre pelo caminho e assim poderia garantir uma proteína para o seu magro jantar. 

Quando finalmente conseguiam voltar para seus casebres, tinha início o seu “terceiro turno” de trabalho – a defumação do látex para a formação das pélas de borracha, um trabalho que só terminava depois de escurecer. Os seringueiros tinham cotas de produção a cumprir e, não raramente, eram obrigados a trabalhar por até 17 horas seguidas a cada dia. Eles sempre começam os trabalhos de madrugada para evitar as chuvas, que normalmente caiam no final da tarde e costumavam prejudicar o rendimento do trabalho. 

De acordo com os contratos de trabalho assinados com os seringalistas e também com as “normas trabalhistas” da época, os seringueiros deveriam receber 60% do preço da venda do látex. Os patrões sempre davam um jeito de pagar valores cada vez mais irrisórios, além de inflacionar os preços dos mantimentos e outros ítens vendidos nos barracões do seringal. Os seringueiros estavam sempre em dívida com os patrões e eram obrigados a trabalhar cada vez mais para atender as cotas de produção de pélas de látex. A esposa e os filhos acabavam envolvidos nesse processo e eram obrigados a trabalhar em conjunto na produção da matéria-prima

No alto dessa cadeia produtiva encontravam-se os grandes atacadistas, que circulavam em grandes embarcações a vapor pelos rios da Bacia Amazônica (vide foto) e que comprovam a produção de látex dos seringalistas. O pagamento era feito parte em dinheiro e parte em mercadorias como alimentos, roupas, ferramentas, bebidas, fumo, munição para as espingardas e também artigos de luxo para as famílias dos Coronéis dos Barrancos. 

As grandes Casas Exportadoras do látex ficavam em Manaus e em Belém, sendo as responsáveis pela exportação do valioso látex para Europa, Estados Unidos e Japão, os grandes produtores de artigos de borracha. Como seria de esperar, eram os exportadores que auferiam os maiores lucros da indústria gomífera e tinham em suas mãos o controle dos preços e dos volumes exportados. Quando essas empresas perceberam que o látex da Amazônia deixou de ser competitivo no mercado internacional, elas fecharam suas portas e largaram seringalistas e seringueiros com montanhas de pélas de látex sem valor. 

Seringalistas que haviam guardado algum recurso para um “dia de chuva”, ainda conseguiram reorganizar suas vidas e partir para outros negócios mundo afora. Já os seringueiros, esses foram largados no meio das matas e sujeitos à sua própria sorte. 

A lei da selva, onde o mais forte sobrevive, nunca foi tão cruel. 

Para saber mais:

A NOSSA AMAZÔNIA

A CONSTRUÇÃO DA FERROVIA MADEIRA-MAMORÉ EM RONDÔNIA

Ferrovia Madeira-Mamoré

A exploração do látex da Amazônia, a partir de meados do século XIX, colocou a maior floresta equatorial no mapa do mundo e foi um dos mais importantes fatores para impulsionar a colonização da Bacia Amazônica. A força da indústria gomífera na região pode ser comprovada pela saga do Acre, um antigo território da Bolívia, que foi invadido por seringalistas e seringueiros brasileiros, quase provocando uma guerra de grandes proporções entre os dois países. Grupos revoltosos brasileiros declararam a Independência do Acre em três ocasiões diferentes entre 1899 e 1903, o que forçou o Governo do Brasil a negociar a compra do território do Acre junto ao Governo Boliviano, acordo que culminou com a assinatura do Tratado de Petrópolis em 17 de novembro de 1903. 

Entre outras condições, o Tratado de Petrópolis estabeleceu o compromisso do Governo brasileiro em levar a cabo a construção de uma ferrovia de interligação entre os rios Mamoré, na divisa entre o Brasil e a Bolívia, e o trecho navegável do rio Madeira, a partir da Cachoeira de Santo Antônio, nas proximidades da cidade de Porto Velho. O trecho inicial do rio Madeira, que nasce a partir da junção das águas dos rios Guaporé, Mamoré e Beni, é repleto de afloramentos rochosos, corredeiras e cachoeiras, o que impedia o transporte fluvial e a exportação do látex e de outros produtos bolivianos a partir dessa via. Os rios Purus e Juruá, dois importantes afluentes do rio Solimões com cabeceiras no território do Acre, eram as vias navegáveis que permitiam uma saída da Bolívia em direção ao Oceano Atlântico, mas foram perdidas após a cessão daquele território ao Brasil. 

O território da Bolívia sempre foi um dos mais isolados da América do Sul, cercado pela Cordilheira dos Andes a Oeste, pela Floresta Amazônica ao Norte e em grande parte do Leste, além de possuir áreas úmidas no Gran Chaco ao Sul e no Pantanal de Mato Grosso a Leste. A situação de isolamento do país se complicou ainda mais a partir de 1879, quando estourou a Guerra do Pacífico – Bolívia, Chile e Peru disputavam o controle do Porto Cobija, atual Antofagasta. Essa região pertencia originalmente à Bolívia e sempre foi cobiçada pelos outros países por causa das suas reservas de nitrato. A Bolívia saiu derrotada do conflito em 1883 e perdeu sua saída para o Oceano Pacífico, que passou a fazer parte do território do Chile. A construção da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré era vital para a isolada economia da Bolívia

A primeira citação ao uso dos rios Mamoré e Madeira para a exportação de produtos bolivianos rumo ao Oceano Atlântico data de 1846 e foi feita pelo engenheiro boliviano José Augustin Palácios. Exploradores que percorreram a região a partir de 1850 confirmaram essa hipótese, afirmando, porém, que seriam necessárias obras para a construção de eclusas e barragens para vencer os desníveis do rio Madeira. Um desses exploradores, Lardner Gibbon, tenente da Marinha dos Estados Unidos, sugeriu a construção de uma estrada e o uso de tropas de mulas para transportar as mercadorias entre as cidades de Guajará-Mirim e Santo Antônio. 

O primeiro estudo que recomendava a construção de uma ferrovia data de 1861, quando foi realizada uma expedição comandada pelo coronel boliviano Quentín Quevedo e pelo engenheiro brasileiro João Martins da Silva Coutinho. De acordo com esses estudos, essa ligação terrestre poderia ser feita por uma linha férrea de pouco mais de 350 km, que seguiria através de terrenos com uma suave declividade entre Guajará-Mirim, na divisa com a Bolívia, e a região da Vila de Santo Antônio, no rio Madeira.  

Em atendimento a cláusulas do Tratado de Ayacucho, assinado entre o Brasil e a Bolívia em 1867, e onde foram estabelecidas as bases para a futura demarcação da fronteira entre os dois países, o Governo brasileiro contratou os engenheiros alemães Joseph e Franz Keller para a realização de estudos mais detalhados dessa ligação. Esses engenheiros passaram todo o ano de 1868 percorrendo a região e fazendo estudos topográficos detalhados. No início de 1869, esses profissionais viajaram até o Rio de Janeiro, onde apresentaram três propostas ao Governo Imperial – a construção de um sistema de barragens e eclusas para a operação de uma hidrovia no rio Madeira, a construção de canais de navegação em planos inclinados e a construção de uma ferrovia, a alternativa mais cara para o empreendimento. 

A primeira concessão para a construção e concessão da ferrovia data de 1870, quando o Imperador brasileiro Dom Pedro II publicou um decreto em nome do engenheiro americano Coronel George Earl Church. Desde 1867, o Coronel Church vinha negociando a realização dessa obra com o Ministro Plenipotenciário da Bolívia, Quentín Azevedo. Após obter a concessão, o Coronel Church viajou para os Estados Unidos, onde levantou fundos para a criação de uma empresa de navegação a vapor, a National Bolivian Navigation Company, fundada ainda em 1870. A seguir, Church viajou para a Inglaterra, onde teve grandes dificuldades para obter financiamento para a construção da ferrovia. Em março de 1871, foi criada a Madeira and Mamoré Railway Company, Limited, uma subsidiária da National Bolivian Navigation Company

Os engenheiros ingleses responsáveis pela construção chegaram na Vila de Santo Antônio em meados de 1872. Depois de vários meses de trabalhos, esses engenheiros emitiram um laudo informando que a construção da ferrovia era inviável tecnicamente. O Coronel Church concluiu que a construtora inglesa tinha sabotado seu projeto e lutou durante cinco nos tribunais ingleses até sua derrota final numa apelação à Casa dos Lordes da Inglaterra. Atendendo aos interesses políticos do Brasil, a Princesa Isabel prorrogou o prazo para a conclusão das obras até 1884. 

Em 1877, o Coronel Church contratou uma construtora norte-americana, que retomou as obras no início de 1878. Trabalhando sob condições adversas, onde se incluem doenças tropicais, matas fechadas, inundações e ataques de índios, o que custou a vida de centenas de trabalhadores da obra, um pequeno trecho de ferrovia operando com uma única locomotiva foi inaugurado em meados de 1878. As obras prosseguiram lentamente até agosto de 1879, quando estourou a Guerra do Pacífico e a construção foi abandonada. 

Após a assinatura do Tratado de Petrópolis em 1903, o Governo brasileiro retomou os trabalhos para a construção da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré e abriu uma nova licitação internacional para a concessão da obra. Essa nova concessão foi vencida pelo engenheiro norte-americano Percival Farquhar. No final do ano de 1906, foi criada nos Estados Unidos a Madeira-Mamoré Railway Co; as obras de construção foram iniciadas no princípio de 1908. 

Em abril de 1910 foi inaugurado um trecho com 90 km de trilhos, ligando a cidade de Porto Velho a Jaci-Paraná. O trecho final da ferrovia foi inaugurado em abril de 1912, totalizando 366 km de extensão e interligando as cidades de Porto Velho e Guajará-Mirim. Cerca de 20 mil trabalhadores foram empregados na construção da ferrovia – 1.552 desses morreram durante as obras, principalmente vitimados pela malária. Por uma infeliz coincidência, a data de conclusão da ferrovia coincidiu com a entrada do látex produzido no Sudeste Asiático pelos seringais plantados pelos ingleses, evento que marcou o início do declínio da indústria gomífera da Amazônia. Ao longo de toda a sua operação, a Estrada de Ferro Madeira-Mamoré sempre foi deficitária. A Ferrovia operou continuamente até 1972, quando foi desativada pelo Governo Federal.

Após a desativação, todo o patrimônio da Madeira-Mamoré foi sendo degradado pelo tempo e depredado sistematicamente pela população. Pedaços de trilhos da ferrovia podem ser vistos por todos os lugares formando cercas, colunas e estruturas de telhados, portões e escoras de barrancos. As antigas pontes metálicas foram reformadas e passaram a ser usadas pela rodovia que atualmente liga as cidades de Porto Velho e Guajará-Mirim. Dezenas de locomotivas a vapor e vagões podem ser vistos apodrecendo no meio da mata.

Uma única locomotiva escapou do sucateamento e um trecho com apenas 20 km de trilhos da ferrovia foi preservado. Teimosamente, esse pequeno fragmento do que foi a Estrada de Ferro Madeira-Mamoré segue contando uma parte importante dessa grandiosa saga amazônica. 

Para saber mais:

A NOSSA AMAZÔNIA