UMA QUESTÃO “HIPOTÉTICA”: COMO FICARIA O ABASTECIMENTO DE ÁGUA NA REGIÃO METROPOLITANA DO RIO DE JANEIRO SEM AS ÁGUAS DO RIO PARAÍBA DO SUL?

Ao longo dessa semana, as postagens aqui do blog mostraram a situação complicada do abastecimento de água na Região Metropolitana do Rio de Janeiro. O maior manancial de abastecimento da Região, o rio Guandu, sofre com a intensa poluição em suas águas e os sistemas da ETA – Estação de Tratamento de Água, Guandu não têm sido eficientes o bastante para garantir o fornecimento de uma água de boa qualidade para a população. 

A poluição das águas, entretanto, representa apena uma parte do problema. Existem algumas “bombas relógios” armadas e que estão apenas esperando a hora certa para criarem verdadeiros desastres ambientais na calha do rio Paraíba do Sul e, por extensão, no próprio rio Guandu. Conforme apresentado na última postagem, existem dezenas de barragens de rejeitos de mineração instaladas dentro da bacia hidrográfica do rio Paraíba do Sul, algumas já classificadas com alto grau de insegurança por órgãos ambientais. Falamos também das grandes montanhas de rejeitos minerais da CSN – Companhia Siderúrgica Nacional, em Volta Redonda. 

Imaginemos, por exemplo, o rompimento de uma grande barragem de contenção de rejeitos da mineração. Segundo informações de um estudo de 2013 do INEA – Instituto Estadual do Ambiente, órgão do Governo fluminense, existem cerca de 300 barragens de rejeitos minerais inseridas na bacia hidrográfica do rio Paraíba do Sul. A maior parte dessas barragens fica dentro do território de Minas Gerais. Foram identificados riscos de acidentes em 12 dessas barragens, onde estão armazenados cerca de 22 bilhões de litros de resíduos minerais.   

Só para refrescar a memória dos leitores: ocorreram dois grandes acidentes desse tipo aqui no Brasil nos últimos anos – em 2015, a barragem de rejeitos do Fundão em Mariana, Minas Gerais, rompeu e vazaram 62 milhões de m³ de lama e rejeitos, provocando um grande desastre ambiental nas águas do rio Doce (vide foto). O rastro de destruição deixou 18 mortos e 1 desaparecido. Já se passaram quase seis anos e as águas do rio ainda apresentam graves problemas de contaminação. 

Em 2019, um novo acidente – a barragem da Mina do Córrego do Feijão em Brumadinho, também em Minas Gerais, ruiu e despejou 180 mil m³ de lama e rejeitos minerais nas águas do rio Paraopebas, além de causar a morte de 267 pessoas. Essa barragem era classificada como “de baixo risco”. 

Nesses dois casos, a onda de lama e rejeitos minerais atingiu primeiro riachos e rios pequenos antes de atingir a calha de um rio maior. No caso do rio Doce, um detalhe interessante é que a tragédia foi minimizada pela barragem da Usina Hidrelétrica Risoleta Neves, instalada na calha do rio Doce, que conseguiu reter a maior parte da lama e dos rejeitos minerais. Mesmo assim, enormes volumes de rejeitos conseguiram atravessar essa barreira e se espalharam até a foz do rio em Linhares, no Espírito Santo. 

A situação do rio Paraíba do Sul guarda uma semelhança com o rio Doce – na altura da cidade de Barra de Piraí, no Estado do Rio de Janeiro, existe uma grande barragem na calha do rio – a Barragem de Santa Cecília. Concluída em 1952, essa barragem possui 15 metros de altura e foi concebida para permitir o desvio de até 60% dos caudais do rio Paraíba do Sul na direção dos sistemas de geração de energia elétrica da Light. Assim como aconteceu com a barragem da Usina Hidrelétrica Risoleta Neves, a Barragem de Santa Cecília provocaria a retenção de grande parte de uma eventual onda de lama e rejeitos. 

É aqui que começariam os problemas para o abastecimento de água na Região Metropolitana do Rio de Janeiro – o bombeamento de água na Usina Elevatória de Santa Cecília precisaria ser suspenso, o que criaria problemas tanto para a geração de energia elétrica quanto para o fornecimento de água para a bacia hidrográfica do rio Guandu. 

Sem o bombeamento das águas do rio Paraíba do Sul, o sistema de geração elétrica da Light só poderia contar com as águas da Represa do Ribeirão das Lages e do Reservatório de Tocos, o que reduziria muito a capacidade geradora do sistema e, principalmente, teria um forte impacto no volume dos caudais que são despejados na direção do rio Guandu, o principal manancial de abastecimento da cidade do Rio de Janeiro e de boa parte da Baixada Fluminense. 

As águas do rio Paraíba do Sul garantem o abastecimento de aproximadamente 8 milhões de pessoas na Região Metropolitana do Rio de Janeiro e de, pelo menos, mais 4 milhões de habitantes de cidades do interior fluminense. Existem, é claro, outros mananciais e sistemas produtores de água tratada tanto na Região Metropolitana quanto no interior do Estado – o grande problema é que se somarmos todas as demais fontes de água, chegaremos a apenas uma parte do que é fornecido pelo rio Paraíba do Sul. 

E o que poderia ser feito para garantir o abastecimento das populações numa situação extrema como essa? 

De imediato, seria necessário reduzir o volume de água fornecido à população em, pelo menos, 80%, o que não seria uma tarefa nada fácil. Entre 2014 e 2016, a Região Metropolitana de São Paulo foi obrigada a reduzir o seu consumo de água em 50%. Para os que não lembram, houve uma forte seca há época na região onde fica o Sistema Cantareira, manancial que respondia por mais de 60% do abastecimento de água dos paulistanos.  

O tamanho inicial do impacto foi equivalente à perda das águas do rio Paraíba do Sul para cariocas e fluminenses. Entretanto, ao contrário da Região Metropolitana do Rio de Janeiro, São Paulo possuía outras fontes de água para o abastecimento emergencial. Esse foi o caso da pequena Represa Guarapiranga, localizada na Zona Sul da cidade de São Paulo, que chegou a responder por 50% da água fornecida para a população no auge da crise.  

Enquanto isso, grandes obras emergenciais para a construção de tubulações de transporte de água de outros reservatórios para as estações de tratamento de água foram feitas, permitindo assim aumentar gradativamente a oferta de água potável pelo sistema. Foram tempos muito complicados, mas ninguém morreu de sede. No caso da Região Metropolitana do Rio de Janeiro, existem poucas fontes alternativas que poderiam ser usadas no fornecimento emergencial. 

Uma dessas fontes é o Aquífero Piranema, uma reserva subterrânea de água que ocupa uma área de aproximadamente 180 km² (algumas fontes chegam a falar de 500 km²) entre os municípios de Itaguaí, Queimados, Japeri e Seropédica. Esse aquífero tem capacidade de fornecer até 1,6 m³ de água por segundo para o abastecimento de populações. Porém, existem alguns problemas. 

Já faz muito tempo que essa reserva vem sendo ameaçada pela extração de areia no Distrito Areeiro Seropédica-Itaguaí. Com a abertura das cavas para extração de areia, grandes volumes de água contaminada infiltram no solo e prejudicam a qualidade do Aquífero. Outra fonte de problemas é o Aterro Sanitário de Seropédica.  

Esse aterro foi inaugurado em 2011, com o objetivo de substituir o famoso Lixão do Jardim Gramacho, em Duque de Caxias, e foi construído em um terreno com área total de 2 milhões de metros quadrados. Atualmente, o aterro sanitário recebe 10 milhões de toneladas diárias de resíduos sólidos gerados pelas cidades de Seropédica, Itaguaí e Rio de Janeiro. O que ninguém explica é por que as autoridades ambientais fluminenses autorizaram a construção de um aterro sanitário exatamente em cima do Aquífero Piranema. 

Outra medida importante seria a de se reduzir as perdas de água na rede de distribuição da Região Metropolitana, que hoje estão na casa dos 40%, o que permitiria maximizar o uso da pouca água disponível. Acredito também que haveria uma corrida desenfreada para a perfuração de poços artesianos. Por fim, imagino que uma boa solução seria a construção de uma grande usina para dessalinização da água do mar, o que resolveria grande parte do problema.

A grande questão seria o tempo necessário para se realizar todas essas obras – por quanto tempo a população Metropolitana conseguiria viver com um mínimo de água potável para uso no seu dia a dia? Quanto tempo essas reservas de água emergenciais poderiam ser usadas antes de se exaurirem? 

No atual e confuso cenário político/administrativo em que se encontra o Estado do Rio de Janeiro, acho que ninguém parou para pensar nisso e/ou elaborou um plano emergencial para uma situação dessas. Felizmente, falamos aqui apenas de uma hipótese, que vai se manter assim até que uma tragédia ambiental real aconteça no rio Paraíba do Sul. Que Deus nos proteja!

OS RISCOS PARA A ÁGUA CONSUMIDA POR CARIOCAS E FLUMINENSES NA REGIÃO METROPOLITANA DO RIO DE JANEIRO

Nas postagens anteriores mostramos o quadro preocupante do abastecimento de água na Região Metropolitana do Rio de Janeiro. Nas últimas semanas, centenas de milhares de moradores de bairros da cidade do Rio de Janeiro e de municípios da Baixada Fluminense tem reclamado da aparência e do gosto da água fornecida pela CEDAE – Companhia Estadual de Águas e Esgotos

O problema atual parece uma repetição do ocorreu há exato um ano atrás quando as águas do rio Guandu, principal manancial de abastecimento da Região Metropolitana, foram tomadas por cianobactérias. Esses organismos liberavam grandes quantidades de geosmina, um composto orgânico a base de hidrogênio, oxigênio e carbono – essa substância dava a água uma cor, um cheiro e um sabor nada agradáveis. A ETA – Estação de Tratamento de Água, Guandu foi obrigada a utilizar grandes quantidades de carvão ativado em seus processos de tratamento para controlar a presença da geosmina na água. 

Os problemas no rio Guandu estão ligados diretamente ao alto grau de poluição em suas águas. Esses problemas começam na bacia hidrográfica do rio Paraíba do Sul, rio que vem sofrendo há décadas com o lançamento de esgotos domésticos e industriais, lançamento de resíduos sólidos, extração de areia e riscos de contaminação por resíduos da mineração. Cerca de 60% do volume de águas do rio Paraíba do Sul são transpostos na direção da bacia hidrográfica do rio Guandu pelos sistemas de geração de energia elétrica da Light. 

Essas águas, que já não tem uma qualidade das melhores, recebem despejos de esgotos de todos os tipos e lançamento de resíduos sólidos gerados pelos munícipios da sua bacia hidrográfica, deteriorando ainda mais a sua qualidade. A ETA Guandu, que responde por 85% da água fornecida para a população da cidade do Rio de Janeiro e por 70% do abastecimento de municípios da Baixada Fluminense, é obrigada a realizar verdadeiros “milagres” para potabilizar essa água. A unidade consome 210 toneladas de produtos químicos a cada dia

Infelizmente, os riscos para as águas que abastecem milhões de cariocas e fluminenses não param por aí – existem verdadeiras “bombas relógios” prestes a explodir, e que podem inclusive inviabilizar o uso das águas do rio Guandu como manancial de abastecimento. 

Um dos casos mais gritantes são as montanhas de rejeitos minerais gerados pela CSN – Companhia Siderúrgica Nacional, em Volta Redondo, no Sul do Estado do Rio de Janeiro. Esses rejeitos contêm em sua composição metais pesados, que são substâncias tóxicas à saúde humana como manganês, zinco, cádmio, cromo, níquel e chumbo, entre muitas outras. A empresa possui uma área para depósito desses rejeitos, onde há uma movimentação diária de até 100 caminhões com novos descartes. A altura das montanhas de rejeitos já supera a marca dos 20 metros de altura (vide foto). 

Ao redor da área de depósito desses rejeitos vivem perto de 15 mil habitantes em seis bairros, que reclamam da intensa nuvem de pó que recobre suas casas e quintais, e que satura todo o ar com partículas muito finas de poeira. Muitos desses moradores apontam problemas respiratórios em crianças e idosos de suas famílias. Apesar dos problemas criados, a CSN afirma que os rejeitos minerais não são nocivos à saúde humana. Existem inúmeros processos judiciais movidos pelas comunidades da região e órgãos ambientais contra a CSN. 

Além do problema localizado, as montanhas de rejeitos em Volta Redonda representam uma grande ameaça para o rio Paraíba do Sul, que tem sua calha a passando exatamente em frente ao terreno do depósito. Com as fortes chuvas desses meses de verão, grandes volumes de água se infiltram nos rejeitos e carreiam importantes volumes de metais pesados para a calha do rio.  

O risco maior, entretanto, fica por conta da possibilidade da ocorrência de um ciclo de chuvas torrenciais na região, o que poderia saturar as montanhas de rejeitos com água, levando a um processo de escorrimento de lama na direção do rio como os que já ocorreram no rompimento de represas de rejeitos minerais. Basta lembrar aqui dos acidentes com a barragem de rejeitos de Mariana em 2015 e de Brumadinho em 2019, ambas em Minas Gerais. 

Outra fonte importante de problemas é criada pela mineração da areia, tanto na calha quanto nas margens de rios das bacias hidrográficas do Paraíba do Sul e do Guandu. Essas atividades destroem as matas ciliares que ainda existem nas margens dos rios, intensificando processos erosivos e a destruição de nascentes. Sedimentos em suspensão são arrastados a longas distâncias e acabam se acumulando ao longo da calha dos rios e reduzindo a profundidade dos corpos d’água. 

Um exemplo de local onde a exploração de areia segue descontrolada fica na região entre os municípios de Itaguaí e Seropédica, dentro da bacia hidrográfica do rio Gaundu. Localizados a cerca de 60 km do centro da cidade do Rio de Janeiro, esses dois municípios abrigam o Distrito Areeiro de Seropédica-Itaguaí, que ocupa uma área com aproximadamente 50 km², onde operam cerca de 100 empresas mineradoras que fornecem quase 90% da areia e da brita usada pela construção civil da Região Metropolitana do Rio de Janeiro. 

Parte importante dessas empresas operam na clandestinidade e sem respeitar as mais elementares normas ambientais e de segurança no trabalho. Além dos graves danos que provocam na qualidade das águas do rio Guandu, essas atividades ameaçam o Aquífero Piranema. Essa reserva subterrânea de água ocupa uma área de aproximadamente 180 km² (algumas fontes chegam a falar de 500 km²) entre os municípios de Itaguaí, Queimados, Japeri e Seropédica. Esse aquífero tem capacidade de fornecer até 1,6 m³ de água por segundo para o abastecimento de populações. 

Por fim e não menos importante, existem os riscos potenciais criados por atividades de mineração. De acordo com estudos feitos em 2013 pelo INEA – Instituto Estadual do Ambiente, órgão do Governo fluminense, existem cerca de 300 barragens de rejeitos minerais inseridas dentro da bacia hidrográfica do rio Paraíba do Sul. A maior parte dessas barragens fica dentro do território de Minas Gerais. Foram identificados riscos de acidentes em 12 dessas barragens, onde estão armazenados cerca de 22 bilhões de litros de resíduos minerais.   

Vejam uma pequena lista de acidentes que já ocorreram nessas áreas de mineração: 

Em 1982, houve um vazamento na barragem de rejeitos da empresa Paraibuna Metais e mais de 18 milhões de litros de lama contaminada com mercúrio e cádmio atingiram primeiro o rio Paraibuna, em Minas Gerais, e depois seguiram para o rio Paraíba do Sul, criando uma mancha de poluição de 300 km; 

Em 2006, após o rompimento de uma barragem da mineradora Rio Pomba Cataguases no Município de Miraí, na região da Zona da Mata Mineira, houve o vazamento de 400 milhões de litros de rejeitos de bauxita, água e lama primeiro no rio Muriaé e que depois chegou ao rio Paraíba do Sul; 

Em 2007, ocorreu um novo rompimento em uma outra barragem de rejeitos de mineração da mesma empresa, o que resultou no vazamento de mais de 2 bilhões de litros de lama misturada com bauxita e sulfato de alumínio nas águas dos rios Muriaé e Paraíba do Sul. 

Felizmente, esses “acidentes”, entre muitos outros, ocorreram em áreas a jusante (correnteza abaixo) dos pontos onde ocorre a transposição das águas do rio Paraíba do Sul para os sistemas de geração de energia elétrica da Light, e que depois são despejadas na direção da bacia hidrográfica do rio Guandu. 

Eu vejo a situação do abastecimento da população da Região Metropolitana do Rio de Janeiro como uma roleta russa – as coisas vão acontecendo e ninguém toma providências para garantir a segurança hídrica de todo esse povo. Uma hora dessas vamos ver acontecer um “acidente” fatal nessas águas e vamos assistir milhões de pessoas sem água em suas torneiras. 

Como diz um velho ditado “quem avisa, amigo é”. 

A GERAÇÃO DE ENERGIA ELÉTRICA NO ESTADO DO RIO DE JANEIRO E A TRANSFORMAÇÃO DO RIO GUANDU EM MANANCIAL DE ABASTECIMENTO

Na última postagem apresentamos um rápido quadro histórico da carência crônica de água na cidade do Rio de Janeiro e em municípios da Baixada Fluminense. Sem contar com grandes rios, a região sempre dependeu de pequenos cursos d’água com nascentes nos morros e serras próximas. Em períodos de seca, quando as chuvas tinham forte redução, os volumes de água nesses cursos diminuía muito, o que comprometia o abastecimento das populações. 

A solução definitiva para o problema de abastecimento de água nessa grande e importante região só começou a ser desenhado a partir do início do século XX, quando grandes sistemas hidrelétricos começaram a ser construídos no interior do Estado do Rio de Janeiro. Grande parte da água utilizada para movimentar as turbinas dessas hidrelétricas passou a ser retirada da bacia hidrográfica do rio Paraíba do Sul, sendo transposta primeiro na direção das represas desses sistemas e, depois da geração, eram despejadas na direção da bacia hidrográfica do rio Guandu. A geração de energia elétrica acabou se transformando na solução para a falta de recursos hídricos na Região Metropolitana do Rio de Janeiro.

As primeiras experiências na geração de energia elétrica na cidade do Rio de Janeiro datam da última década do século XIX. Em 1891 foi inaugurada uma linha de bondes elétricos entre a região do Largo do Machado e o bairro do Flamengo. A energia elétrica era gerada em uma central térmica a carvão mineral. Os altos custos do combustível e a falta de capitais levaram a empresa operadora à falência pouco tempo depois. 

Em 1895, a empresa belga SAG – Société Anonyme du Gaz, obteve a primeira concessão para exploração da eletricidade na iluminação pública, mas a distribuição da energia elétrica produzida a partir de usinas térmicas a carvão só terá seu início em escala comercial nos primeiros anos do século XX pela CBEE – Companhia Brasileira de Energia Elétrica, criada pelos empresários Cândido Graffrée e Eduardo Palassim Guinle. 

A consolidação do uso da eletricidade em larga escala no Rio de Janeiro e região seria iniciada em 1905, quando a empresa canadense Light and Power Company ganhou a concessão para operar na região. Desde 1903, a Light já desenvolvia estudos para a construção de usinas hidrelétricas no Estado e, após a concessão do serviço, iniciou a construção da Represa de Ribeirão das Lages e da Usina de Fontes, inauguradas em 1908. Uma parte importante da água armazenada na Represa de Ribeirão das Lages era bombeada do rio Paraíba do Sul através de uma estação elevatória. 

Em 1924, a empresa concluiu a construção da Usina Hidrelétrica Ilha dos Pombos, que foi a primeira a ser construída no rio Paraíba do Sul, em Carmo, no interior do Estado do Rio de Janeiro. Essa usina utilizou um projeto técnico bastante inovador para a época, ampliando a capacidade do sistema gerador da Light em 187 MW. A Usina do Funil em Itatiaia (vide foto), foi concebida no início da década de 1930, com o objetivo de permitir a eletrificação de estradas de ferro nos Estados do Rio de Janeiro, Minas Gerais e São Paulo. As obras, porém, acabaram adiadas em cerca de 30 anos e a usina só iniciou suas operações em 1969, com uma capacidade instalada de 219 MW. 

Uma das mais importantes obras de engenharia feitas pela Light e que teve grande impacto nos volumes de água do rio Guandu foi a construção da Barragem de Santa Cecília, concluída em 1952 e cujo objetivo foi permitir a reversão do curso do rio Piraí e o desvio de parte das águas do rio Paraíba do Sul (aproximadamente 109 m³ por segundo) na direção do Complexo de Lajes, aumentando a capacidade de geração do sistema.  Ao lado dessa Barragem foram construídas estações elevatórias que permitem o bombeamento da água do rio Paraíba do Sul para a Represa de Santana, no rio Piraí. A Estação Elevatória do Vigário bombeia a água da Represa de Santana em direção a Represa do Vigário e a partir daí a água passa a ser utilizada para a geração de energia elétrica.

Além dessas usinas, a Light também construiu as Hidrelétricas Nilo Peçanha, Fontes Nova e Pereira Passos, além da PCH – Pequena Central Elétrica, Pacambi. As estruturas hidráulicas que permitiram a transposição das águas do rio Paraíba do Sul na direção desse conjunto de usinas hidrelétricas incluem reservatórios, estações elevatórias e túneis. De acordo com informações da ANA – Agência Nacional de Águas, até 60% das águas da bacia hidrográfica do rio Paraíba do Sul são transpostas na direção do rio Guandu pelos sistemas da Light

A construção e operação das usinas hidrelétricas da Light transformaram o rio Guandu no principal manancial de abastecimento da Região Metropolitana do Rio de Janeiro. A vazão histórica do rio Guandu, que era de 25 m³/s, foi sendo aumentada sucessivamente em função das obras para ampliação da capacidade de geração do Sistema Light, até atingir um volume de 160 m³/s.  Considerando que aproximadamente 30 m³/s de água precisam chegar até na foz do rio Guandu na Baía de Sepetiba para conter a intrusão de água salina na calha do rio, ainda sobrava um volume considerável de água para garantir o abastecimento da população na Região Metropolitana.

Em 1955, foi inaugurada a primeira etapa da construção da ETA – Estação de Tratamento de Água, do Guandu, em Nova Iguaçu, região da Baixada Fluminense. Essa unidade seria a redenção definitiva para o abastecimento de água de toda a Região Metropolitana. A ETA passou por ampliações em 1962, 1963 e em 1982, quando atingiu uma capacidade de produção de 43 mil litros de água potável por segundo, sendo considerada a maior unidade do tipo em operação no mundo.  

A ETA Guandu tem capacidade para atender uma população de até 9 milhões de habitantes. A unidade responde por aproximadamente 85% do fornecimento de água para a população da cidade do Rio de Janeiro e 70% do abastecimento dos municípios de Nilópolis, Nova Iguaçu, Duque de Caxias, Belford Roxo, São João de Meriti, Itaguaí e Queimados. 

Apesar do volume de água na bacia hidrográfica do rio Guandu ter sido elevado substancialmente e ser grande o suficiente para atender as necessidades de consumo de grande parte da população da Região Metropolitana do Rio de Janeiro, a crescente degradação da qualidade das águas se transformou em um grande desafio. Conforme comentamos em uma postagem anterior, a ETA Guandu gasta mais de 210 toneladas de produtos químicos a cada dia nos processos de tratamento, o que não tem sido suficiente para garantir uma boa qualidade da água fornecida para a população

Além da baixa qualidade da água bruta retirada do rio Guandu, o sistema de distribuição de água “tratada” na Região Metropolitana do Rio de Janeiro tem um volume de perdas altíssimo. De acordo com dados do PERHI – Programa Estadual de Recursos Hídricos do Rio de Janeiro, essas perdas chegam na casa dos 40% e são provocadas por vazamentos nas tubulações das redes de distribuição e também por desvios de água – as famosas ligações clandestinas ou os populares “gatos”

Se esse nível de perdas de água no sistema fosse reduzido em 10%, se aproximando da média de perdas no Brasil, a água economizada seria suficiente para atender uma população de mais de 1,5 milhão de habitantes, o que é praticamente a soma de toda a população de Nova Iguaçu e de Duque de Caxias, dois dos mais populosos municípios da Baixada Fluminense. 

Como fica bem fácil de se perceber, o verdadeiro “milagre das águas” proporcionado pela criação do sistema gerador de energia elétrica da Light no Estado do Rio de Janeiro garantiu um aumento substancial dos volumes de água para o abastecimento da população da Região Metropolitana a partir do rio Guandu. Esse “milagre”, porém, não está sendo grande o suficiente – a crescente poluição no manancial está afetando a qualidade da água fornecida à população. 

Sem investimentos pesados em sistemas de coleta e tratamento de esgotos nas bacias hidrográficas dos rios Paraíba do Sul e Guandu, e também na renovação, manutenção e fiscalização da rede de distribuição de água, fluminense e cariocas vão continuar tendo dificuldades no acesso a água potável e de boa qualidade, mesmo contando com a aparente abundância do recurso no seu principal manancial. 

OS PROBLEMAS NO ABASTECIMENTO DE ÁGUA NA CIDADE DO RIO DE JANEIRO AO LONGO DA HISTÓRIA

A expedição portuguesa de reconhecimento e exploração da costa brasileira comandada por Gaspar de Lemos entrou na Baía da Guanabara em 1° de janeiro de 1502. Segundo algumas fontes históricas, os exploradores imaginaram inicialmente que a baía era a foz de um grande rio e, por causa disso, a região foi batizada com o nome de Rio de Janeiro. A ótima profundidade e a excelente proteção contra o vento e as ondas do oceano tornavam a Baía da Guanabara um dos melhores lugares da costa brasileira para a construção de um grande porto. Isso atraiu primeiro os invasores franceses que, em 1555, fundaram a França Antártica. A cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro só seria fundada por Estácio de Sá em 1565, e os franceses só seriam expulsos em definitivo em 1570.

Sendo verdadeira ou não, a história da escolha do nome do Rio de Janeiro carrega uma grande ironia – não existem grandes rios desaguando na Baía da Guanabara, mas sim uma infinidade de pequenos cursos de água com nascentes nas encostas dos grandes morros e serras ao redor. Há época da seca, esses cursos d’água apresentavam uma forte redução nos seus volumes, um problema que se refletia no abastecimento de água para a população da cidade do Rio de Janeiro e de outros núcleos que se formaram na região. 

Um dos marcos arquitetônicos mais conhecidos da cidade do Rio de Janeiro, os Arcos da Lapa (vide foto), que também já foi conhecido como Aqueduto da Carioca, está relacionado diretamente aos antigos problemas de abastecimento de água da população. Construído entre 1725 e 1744 por ordem do Governador Gomes Freire de Andrade, o aqueduto permitia o transporte de água desde a nascente do rio Carioca até fontes públicas no centro da cidade, regularizando assim o fornecimento. A fonte mais importante ficava no Largo da Carioca. Nos bairros mais distantes da área central da cidade, o problema persistia. 

Um fator que contribuiu muito para a redução gradativa dos volumes de água dos riachos e ribeirões que existiam na região foram os desmatamentos para a abertura de campos para o cultivo da cana de açúcar, principalmente na Baixada Fluminense, uma atividade que vinha crescendo desde meados do século XVII. Em 1763, com a transferência da capital da Colônia de Salvador para a cidade do Rio de Janeiro, a população da cidade passou a crescer mais rapidamente e os problemas no abastecimento de água só aumentaram. 

O caótico abastecimento de água no Rio de Janeiro passou para um novo patamar a partir de 1808, ano em que a Família Real portuguesa fugiu das tropas de Napoleão Bonaparte e veio se buscar refúgio na Capital da sua grande Colônia sul-americana. Junto com a nobreza, desembarcaram na cidade praticamente todos os membros da elite econômica, intelectual e cultural do Reino de Portugal, em um número estimado entre 15 e 20 mil pessoas. O Rio de Janeiro, que já era há época a maior cidade brasileira com cerca de 30 mil habitantes, viu sua população praticamente duplicar em um curtíssimo espaço de tempo. 

A chegada de toda essa massa de gente abastada criou uma forte demanda por mão de obra, onde se incluem escravos para os trabalhos domésticos, de construção civil e os prestadores de serviços, entre muitos outros. Também havia a necessidade de muitos braços para os trabalhos na agricultura, na criação de animais, no transporte de lenha e alimentos para os mercados, entre outros serviços pesados. Quando mais a população crescia, maior era a pressão por maiores volumes de água. 

Merece destaque aqui o aumento dos desmatamentos para a criação de novas áreas de produção agropecuária e também para o fornecimento de madeira para a construção civil e de lenha para as cozinhas. A Tijuca, região onde ficavam as nascentes do rio da Carioca, foi uma das mais impactadas por esses desmatamentos. E como consequência direta, a vazão do rio passou a sofrer uma redução gradativa dos seus volumes e a área central da cidade, onde vivia a elite do Rio de Janeiro, passou a enfrentar uma escassez ainda maior de água. As reclamações junto ao Rei e as mais altas autoridades da Corte não paravam de aumentar. 

Ao longo das décadas de 1820 e 1830, a cidade do Rio de Janeiro enfrentou vários períodos de seca prolongada, com grande escassez de água potável e grandes problemas para a dispersão do esgoto residencial que se acumulava nos canais. As reclamações que antes ficavam restritas à elite econômica agora envolviam toda a opinião pública da cidade, com uma forte pressão sobre os Governantes para a adoção de políticas para o aumento da capacidade dos sistemas produtores de água.  

Data dessa época a decisão de se desapropriar as primeiras terras na Tijuca para reflorestar as áreas das nascentes de água potável, cada vez mais escassas. Acreditava-se, de forma empírica, que o reflorestamento aumentaria o volume dos riachos. E foi revegetando as encostas da Tijuca que se reparou, em parte, os danos causados pela exploração indiscriminada de toda a sua vegetação para se produzir, sucessivamente, cana-de-açúcar, café, lenha e carvão vegetal e, finalmente, abrigar a produção de alimentos e criação de animais destinados ao consumo da crescente população. 

A partir de 1845 inicia-se, de fato, o trabalho sistemático de recomposição florestal das encostas. As primeiras experiências de reflorestamento haviam apresentado ótimos resultados e partia-se, agora, para um aumento na escala nas intervenções florestais. A partir de 1861, por ordem direta do Imperador Dom Pedro II, grandes fazendas na região da Tijuca foram desapropriadas e iniciou-se um processo contínuo de reflorestamento em grande escala.  

A realização deste trabalho foi confiada ao Major Manuel Gomes Archer que, de forma totalmente amadorista e sem nenhum critério científico, iniciou os trabalhos de plantio de árvores. Contando com uma pequena equipe de trabalhadores, entre escravos e assalariados, foram plantadas ao longo de 13 anos mais de 100 mil mudas de árvores, especialmente mudas de espécies da Mata Atlântica que ainda resistiam em pequenos fragmentos florestais. Na região ressurgiu uma magnifica mata, conhecida atualmente como Floresta da Tijuca.

Ao longo de várias décadas, os trabalhos de reflorestamento foram sendo ampliados e a oferta de água potável se estabilizou. A partir do final do século XIX, novas fontes de água passaram a ser incorporadas ao sistema produtor de água potável, o que garantiu uma relativa estabilidade no fornecimento de água para a população. Em 1900, a população da cidade do Rio de Janeiro já superava a marca dos 800 mil habitantes, o que nos dá uma ideia dos volumes de água que já se faziam necessários. 

O ponto de inflexão na história do abastecimento de água na Região Metropolitana do Rio de Janeiro teve seu início em 1905, quando a empresa de geração e de distribuição de energia eletrica canadense Light and Power Company ganhou a concessão para operar na região. Nesse mesmo ano a empresa iniciou a construção da Represa de Ribeirão das Lages e da Usina Hidrelétrica de Fontes, obras concluídas em 1908. Esse sistema captava águas na bacia hidrográfica do rio Paraíba do Sul e, através de estações de bombeamento, levava a água até os reservatórios da Light. Depois de passar pelos grupos geradores de eletricidade, essas águas eram lançadas na direção do rio Guandu

O rio Guandu, que até então era um pequeno ribeirão com nascentes nas encostas da Serra do Mar, teve sua vazão aumentada de 25 m³/s para até 160 m³/s após sucessivas obras de ampliação do sistema gerador da Light. Rapidamente, o rio Guandu deixou de ser apenas um riachão que atravessava a Baixada Fluminense em direção a sua foz na Baía de Sepetiba e se transformou no maior e mais importante manancial de abastecimento de água da Região Metropolitana do Rio de Janeiro. 

Falaremos mais sobre a saga do rio Guandu na próxima postagem. 

MAIS UMA CRISE NO SISTEMA DE ABASTECIMENTO DE ÁGUA DA REGIÃO METROPOLITANA DO RIO DE JANEIRO

De acordo com o pensamento filosófico de muita gente, o tempo é uma linha contínua, onde os acontecimentos se sucedem e não voltam mais a se repetir. Para outros, esse contínuo de acontecimentos se apresenta na forma de uma curva e, de tempos em tempos, alguns eventos voltam se repetir. A questão do abastecimento de água na Região Metropolitana do Rio de Janeiro parece pertencer a essa segunda linha de pensamento filosófico – estamos assistindo, mais uma vez, problemas com a qualidade da água “tratada” que é fornecida à população. 

Vamos “recontar” a história: 

Desde o último dia 19 de janeiro, moradores de 50 bairros da cidade do Rio de Janeiro e de outros 7 municípios da Baixada Fluminense têm reclamado da qualidade da água que está chegando nas torneiras de suas casas. A água “tratada” fornecida pela CEDAE – Companhia Estadual de Águas e Esgotos do Rio de Janeiro, apresenta um aspecto turvo, com gosto de terra e um cheiro ruim (vide foto).  

Há exatamente um ano atrás, os mesmos bairros e os mesmos moradores passaram por um problema semelhante. Estudos feitos pelos técnicos da CEDAE há época atribuíram o problema à geosmina, um composto orgânico formado por carbono, hidrogênio e oxigênio, que é liberado por colônias de cianobactérias presentes na água bruta. O principal manancial de abastecimento da Região Metropolitana do Rio de Janeiro é o rio Guandu, um corpo d’água que recebe quantidades enormes de esgotos sanitários, despejos industriais e muito lixo ao longo de seu curso. 

Sem confirmar se o problema é novamente a presença de geosmina nas águas, a CEDAE aumentou o volume de carvão ativado aplicado na água, produto que consegue reter as impurezas da água bruta, melhorando o resultado final do processo de tratamento. 

A ETA – Estação de Tratamento de Água, do Guandu é considerada a maior unidade do tipo em operação no mundo e possui uma capacidade de produção de 43 mil litros de água tratada por segundo, o que é suficiente para abastecer uma população de até 9 milhões de pessoas. A Unidade responde por mais de 85% da água consumida pela população da Cidade do Rio de Janeiro, além de atender cerca de 70% do abastecimento de cidades da Região da Baixada Fluminense

Conforme já comentamos em diversas postagens anteriores, a região onde se encontra a cidade do Rio de Janeiro e municípios vizinhos carece de grandes rios e, desde os primeiros tempos da fundação das cidades, as populações sofrem com problemas cíclicos de falta de água potável. 

O principal manancial local de abastecimento de água é o rio Guandu, um curso d’água que desde as primeiras décadas do século XX passou a receber águas transpostas a partir da bacia hidrográfica do rio Paraíba do Sul. Essas águas são utilizadas para a geração de energia em várias usinas hidrelétricas instaladas no interior do Estado do Rio de Janeiro e são “reaproveitadas” para o abastecimento das populações da Região Metropolitana. 

Os fabulosos sistemas de engenharia que foram usados para a transposição das águas entre as bacias hidrográficas dos rios Paraíba do Sul e Guandu, entretanto, nada podem fazer em relação à qualidade das águas. O rio Paraíba do Sul é considerado o 5° rio mais poluído do Brasil e enfrenta problemas ligados à lançamentos de esgotos domésticos e industriais em suas águas, extração de areia em sua calha, desmatamentos e projetos de mineração em áreas de nascentes, depósitos de rejeitos industriais e de mineração, despejos de lixo, entre muitos outros. 

Essa água com qualidade já comprometida é desviada e bombeada por uma série de dispositivos hidráulicos na direção das usinas hidrelétricas do Sistema Light e, depois, são despejadas na direção da calha do rio Guandu. Nos municípios que formam a bacia hidrográfica do rio Guandu, o tratamento que a água recebe não é muito diferente e novos volumes de esgotos de todos os tipos, lixo e resíduos sólidos chegam nas águas do rio. 

A matéria orgânica dos esgotos atua como um fertilizante nas águas, estimulando o crescimento de algas de todos os tipos, que por sua vez liberam compostos orgânicos como a geosmina nas águas. Esse processo ocorre de forma contínua durante todo o ano, mas, nos dias quentes do verão do Rio de Janeiro, há um aumento na proliferação de algas nas águas – está criado o enredo para mais uma crise no abastecimento de cariocas e fluminenses. 

Para tratar e tornar essa água potável, a ETA Guandu gasta cerca de 210 toneladas de produtos químicos a cada dia. São cerca de 140 toneladas de Sulfato de Alumínio, 20 toneladas de Cloreto Férrico, 15 toneladas de Cloro, 25 toneladas de Cal Virgem, 10 toneladas de Ácido Fluossilícico (o famoso flúor), além de volumes cada vez maiores de carvão ativado e outros produtos químicos. Ao que tudo indica, esse verdadeiro coquetel de produtos químicos não está sendo suficientemente poderoso para tratar as águas cada vez mais poluídas do rio Guandu. 

A repetição dos mesmos problemas ligados à qualidade da água fornecida à população da Região Metropolitana do Rio de Janeiro esconde um problema muito maior – a população é refém do rio Guandu e não existem fontes alternativas com volumes de água suficientemente grandes para garantir o abastecimento em caso de emergência

Uma questão hipotética que eu já levantei em postagens anteriores – imaginem um acidente com uma barragem de rejeitos de mineração na bacia hidrográfica do rio Paraíba do Sul como os que ocorreram no rio Doce em 2015 ou no rio Paraopebas em 2019, ambos os casos ocorridos em Minas Gerais. De onde é que sairia a água para abastecer a população caso isso venha a ocorrer? 

Isso talvez soe como paranoia para muitos dos leitores, porém, acidentes semelhantes já ocorreram no rio Paraíba do Sul, felizmente a jusante (correnteza abaixo) dos pontos onde as águas do rio são transpostas na direção do rio Guandu. Cito um exemplo: em 2003, a barragem de uma indústria de celulose em Cataguases, Minas Gerais, rompeu e vazaram cerca de 1,4 bilhão de litros de lixívia ou licor negro, um rejeito altamente tóxico gerado no processo de produção da celulose. 

O vazamento atingiu primeiro o córrego do Cágado, atingindo na sequência os rios Pomba e Paraíba do Sul, provocando fortes danos ao meio ambiente e causando muitos prejuízos para as cidades e populações que vivem às margens desses rios. A contaminação química da água foi tão grande que as autoridades ambientais proibiram a captação das águas do Rio Paraíba do Sul para abastecimento, deixando 600 mil pessoas sem água nas suas torneiras em cidades do Leste do Estado de Minas Gerais e Norte do Rio de Janeiro. 

Existem dezenas de barragens de rejeitos minerais instaladas dentro da bacia hidrográfica do rio Paraíba do Sul, algumas em estado bastante crítico – todos devem ter sempre na lembrança o tamanho do estrago que o rompimento de uma dessas barragens pode fazer nas águas de um rio. 

Essa preocupação pode até parecer um grande exagero da minha parte, mas vou usar como exemplo a tragédia da falta de oxigênio hospitalar que está se abatendo sobre a cidade de Manaus nesse momento – as autoridades do município, do Estado e do Governo Federal sabiam que isso poderia acontecer e não tomaram providências antes. Precisou o caos se instalar e muita gente começar a morrer nos hospitais para os responsáveis correrem atrás de soluções para o problema. 

Falaremos mais sobre a questão do abastecimento de água na Região Metropolitana do Rio de Janeiro nas próximas postagens. 

AMAZÔNIA SUSTENTÁVEL: OS MITOS E AS ENCANTARIAS DAS MARGENS DOS RIOS DA BACIA AMAZÔNICA

A Amazônia é um tema recorrente aqui nas páginas do blog desde que começamos a fazer publicações em 2016. Os motivos para isso não são difíceis de explicar: a região ocupa cerca de 40% do território brasileiro e detém aproximadamente 20% de toda a água doce superficial do planeta. 

Nesse início de 2021, reservamos as primeiras postagens da temporada para falar um pouco sobre as opções para o desenvolvimento sustentável da Amazônia. E não é que surgiu a crise da falta de oxigênio nos hospitais de Manaus por causa da epidemia da Covid-19, colocando mais uma vez a Região Amazônica nas manchetes dos jornais e sites de notícias de todo o mundo. Para variar, essas manchetes exploraram o lado negativo da Amazônia e, como sempre, deram um jeito de ligar a tragédia humanitária à suposta destruição da Floresta. 

Segundo os dados divulgados pelos Governos da Amazônia e de Manaus, o consumo de oxigênio hospitalar superou em várias vezes a oferta do produto fabricado localmente, levando ao desabastecimento dos hospitais, o que colocou a vida de muitos pacientes em risco. Pelas dificuldades logísticas no acesso a Manaus, tanques de oxigênio passaram a ser transportados por aviões cargueiros civis e militares.  

Ontem foi divulgada a notícia do deslocamento de um comboio de carretas carregando mais de 100 mil m³ de oxigênio pela BR-319, rodovia que liga Porto Velho a Manaus. Devido às péssimas condições da rodovia, que tem grande parte de seu pavimento em terra, esse comboio está sendo escoltado por equipes de manutenção e por tratores, numa verdadeira operação de guerra. 

Deixando essa questão trágica um pouco de lado, gostaria de encerrar essa série de publicações falando de uma particularidade muito importante da Região Amazônica: os mitos e as encantarias populares, que estão presentes em praticamente tudo o que se faz por lá e que precisam ser levadas em consideração em qualquer projeto ou atividade que se queira desenvolver nos domínios da Floresta Amazônica. 

Como exemplo, vou começar falando de um produto tipicamente amazônico, que conquistou apreciadores em todo o mundo: o guaraná (vide foto). Para nós, trata-se de um refrigerante gasoso e adocicado preparado a partir do pó da semente do guaranazeiro (Paullinia cupana), uma planta arbustiva da Amazônia, sendo encontrado no Brasil, Peru, Colômbia e Venezuela. A produção do guaraná é uma típica atividade da agricultura familiar e é uma importante fonte de renda para uma parcela importante da população ribeirinha da Amazônia. 

Os antigos indígenas da Amazônia descobriram as propriedades estimulantes do guaraná há milhares de anos e, desde então, vem usando a semente e o seu pó em tratamentos médicos. A planta possui altos níveis de cafeína e tem efeitos rápidos no combate à fadiga e ao cansaço, propriedades que os pajés consideravam mágicas. 

Entre nós “brancos” (uso aspas por que essa é uma definição sociocultural e não étnica), o guaraná começou a ganhar fama na década de 1920, quando uma empresa de bebidas lançou o famoso Guaraná Antarctica. Com o sucesso da bebida, outros fabricantes começaram a lançar bebidas similares com outras marcas. Atualmente, a centenária bebida se encontra entre as 15 marcas de refrigerantes mais vendidas em todo o mundo. 

Esse é o lado da história que encontramos nas principais fontes de pesquisa. Agora vejam o lado amazônico do fruto e da bebida. Essa é uma das muitas lendas indígenas sobre a origem do guaraná: 

“As tribos de Munducurucânia eram as mais prósperas dos índios. Venciam todas as guerras, as pescas eram ótimas, os peixes, os melhores e a doença era rara. Tudo isso por causa de um curumim (menino) que, há alguns anos, nascera naquela tribo. 

Ele era o mais protegido de todos. Nas pescas, era acompanhado por muitos – os pescadores desviavam dos rios as piranhas, jacarés ou qualquer outro perigo. Mas, certo dia, toda a segurança foi embora: o Gênio do Mal apareceu em forma de cascavel e feriu o garoto. A tribo entrou em lamentação e em desespero. 

Tupã, o Deus dos índios, atendeu a todo aquele lamento e disse: 

– Tirem os olhos do curumim e plantem-no na terra firme, reguem-no com lágrimas durante 4 luas e ali nascerá a “planta da vida”, ela dará força aos jovens e revigorará os velhos. 

Os pajés (feiticeiros) não duvidaram, arrancaram e plantaram os olhos do curumim e regaram com lágrimas durante quatro luas. 

Nasceu ali uma nova planta, travessa como as crianças, com hastes escuras e sulcadas como os músculos dos guerreiros da tribo. E quando ela frutificou, seus frutos de negro azeviche, envoltos de um arilo branco com duas cápsulas de cor vermelho-vivo. Diziam os índios: 

– É a multiplicação dos olhos do príncipe! 

E o fruto trouxe progresso da tribo. Ajudou os velhos e deu mais força aos guerreiros.” 

O povo brasileiro, segundo as descrições do antropólogo Darcy Ribeiro, foi formado a partir da mistura de três matrizes étnicas: a dos brancos europeus, a dos negros africanos e a dos indígenas. Essa mistura se deu tanto na formação étnica da população quanto na formação da cultura brasileira. Nas regiões Sul e em parte do Sudeste, por exemplo, há uma predominância da matriz branca. Nas antigas áreas de produção de cana de açúcar e da mineração do ouro, a matriz africana se manifesta com mais força. Nas áreas interioranas do país e, principalmente, na Região Amazônica, os elementos culturais e étnicos da matriz indígena se sobressaem sobre os demais. 

Dentro do universo místico derivado dessa forte influência dos indígenas amazônicos na formação das populações da Região Norte, a curva de um rio pode não ser apenas um acidente geográfico, mas o resultado da luta de um antigo guerreiro com uma criatura das águas. Uma formação rochosa não é apenas o resquício de um antigo derramamento vulcânico, mas sim a moradia de entidades mágicas. Uma árvore é um ser sagrado

Por menos importante que isso possa parecer para você que vive em outras regiões do país e do mundo, esses elementos míticos são fundamentais para essas populações. E sempre que uma obra ou qualquer outro empreendimento venha a ser realizado em terras amazônicas, todos esses elementos intangíveis precisam ser incluídos nos estudos de impacto ambiental, algo que normalmente não acontece

Vou citar um exemplo: o rio Tocantins nasce em terras do Cerrado em Goiás e tem sua foz na baía de Guajará, bem próximo da cidade de Belém, no Pará. A montante da Usina Hidrelétrica de Tucuruí, nas proximidades da cidade de Marabá, o rio Tocantins apresenta um trecho muito pedregoso com 43 km de extensão, onde a navegação é extremamente perigosa. Os locais chamam esse trecho de Pedral do Lourenço

Como é típico na Amazônia, as histórias locais contam que Lourenço era um antigo morador da região e que tinha por hábito ir até as pedras do rio para pescar todo final de tarde. Certo dia, sabe-se lá por qual motivo, Lourenço escorregou, caiu no rio e se afogou na forte correnteza. Desde então, o lugar passou a ser chamado de Pedral do Lourenço. 

Ninguém da região tem certeza se existiu mesmo um Lourenço e que tenha morado por ali ou se essa história é derivada de alguma lenda indígena local, que foi simplesmente adaptada para ser recontada para os “brancos”. Todos ali conhecem essa história e sabem apontar exatamente de qual pedra o dito Lourenço caiu. 

Pois bem – existe um projeto do Governo Federal para o derrocamento (obras para a remoção das pedras) e construção de um canal de navegação através do Pedral do Lourenço, criando assim uma via de navegação fluvial segura nesse trecho do rio Tocantins. Essa obra é considerada prioritária para o Governo Federal para viabilizar a Hidrovia Tocantins/Araguaia e ainda está enfrentando alguns problemas para a liberação da licença ambiental. 

Aí eu faço a pergunta – no processo de licenciamento da obra, vocês acham que os “especialistas em meio ambiente” conversaram com os moradores locais sobre a lenda do Lourenço? Classificaram as ditas pedras como patrimônio imaterial da cultura local, poupando esse trecho de qualquer obra de demolição? Eu, sinceramente, não tenho certeza disso. 

O desenvolvimento sustentável da Amazônia é essencial para todos nós brasileiros, principalmente para os mais de 20 milhões de habitantes da Região Amazônica. Conforme apresentamos rapidamente em algumas postagens, existem várias alternativas econômicas para explorar adequadamente os recursos naturais da região, gerando trabalho e renda para a população e preservando o meio ambiente. Tudo o que puder ser feito nesse sentido, precisa ser feito. 

Agora, quem deve decidir sobre o que deve e pode ser feito por lá somos nós brasileiros, principalmente os nossos Amazônidas. Sendo bastante irônico, os Macrons e as Merkels da vida não podem colocar as suas colheres na nossa tigela de açaí. E se tentarem, quem deem com os búfalos n’água (brincando aqui com a expressão popular “dar com os burros n’água) e que levem um bom couro (onde eu vivo, isso significa levar uma bela surra)… 

AMAZÔNIA SUSTENTÁVEL: AS GRANDES POSSIBILIDADES PARA A EXPLORAÇÃO DO TURISMO ECOLÓGICO NA AMAZÔNIA

Uma das atividades econômicas mais prejudicadas nesse último ano pela epidemia da Covid-19 em todo o mundo foi o turismo. Tentando minimizar os riscos de contaminação das populações, Governos passaram a forçar seus cidadãos a “ficar em casa” pelo maior tempo possível. Viagens foram desaconselhadas, o que praticamente levou à interrupção das atividades de empresas de transporte terrestre, aéreo e marítimo. Países também passaram a fechar suas fronteiras para estrangeiros, buscando assim evitar a entrada de pessoas contaminadas com a doença. 

Hotéis em importantes destinos turísticos em todos os cantos do mundo ficaram praticamente às moscas, o que também levou à bancarrota restaurantes, lojas, empresas de turismo e prestadores de serviços locais, entre muitos outros. Milhões de trabalhadores dessas empresas perderam seus empregos e têm um futuro imediato bastante incerto. Enquanto essa epidemia não for controlada, as atividades turísticas não retornarão ao seu ritmo normal. 

Nas últimas semanas, diversos países iniciaram as suas campanhas de vacinação contra a doença. Aqui no Brasil, a ANVISA – Agência Nacional de Vigilância Sanitária, liberou no último dia 17 de janeiro a aplicação de duas vacinas emergenciais e cidadãos de todo o país já estão sendo imunizados. Esse será um processo lento, pois ainda não há disponibilidade de vacinas para todos, mas precisamos acreditar que, mais dia menos dia, essa crise vai passar. 

Mesmo em meio a um cenário tão complicado, precisamos falar da importância do turismo, principalmente as atividades chamadas de turismo ecológico e de aventura, para a região da Floresta Amazônica. Por definição, pessoas que fazem turismo buscam belos cenários, prazer, aventura, emoção, adrenalina, conhecimento, entre outros “sentimentos” mais intangíveis. As viagens se apresentam como uma espécie de “válvula de escape” para a rotina de suas vidas. 

Com cerca 5,5 milhões de km² de área com florestas, grandes rios, indígenas, animais exóticos, culinária diferenciada e muita história, a Amazônia é um prato cheio para os aventureiros de todas as idades. E em tempos quando muitos falam que a “Amazônia está sendo transformada em cinzas”, pode ser uma ótima oportunidade comercial receber o maior número possível de visitantes estrangeiros – quanto mais gente ver in loco que isso não é necessariamente verdadeiro, melhor.

De acordo com dados da Amazonastur – Empresa Estadual de Turismo do Amazonas, o Estado recebeu um total de 600 mil turistas no ano de 2018. Faltam dados mais precisos, mas as estimativas indicam que pouco mais de 1/3 desses visitantes, ou algo na casa dos 200 mil visitantes, eram estrangeiros. No total, o Brasil recebeu 6,6 milhões de turistas estrangeiros em 2018. Esse número de visitantes é pequeno demais para um país tão grande e com biomas e paisagens tão diversificadas como o Brasil.

Para efeito de comparação, a cidade de Paris, capital da França, recebeu sozinha 89 milhões de visitantes no mesmo período. A Espanha recebeu 82,8 milhões de turistas, a Itália 63 milhões, México 43 milhões e os Estados Unidos receberam 77 milhões de visitantes estrangeiros. Apesar dos números mostrarem como a nossa indústria turística já vinha mal mesmo antes da pandemia, precisamos enxergar o fabuloso potencial de crescimento, principalmente na região da Amazônia. 

Eu confesso que não entendo muita coisa da área de turismo, mas, pelo volume de más notícias sobre a Amazônia brasileira que tenho visto circulando por jornais e sites de notícias de todo o mundo, entendo que muitos potenciais turistas acabam sendo induzidos a evitar viagens para o nosso país. Acredito que também não estamos fazendo uma divulgação adequada de nossas riquezas naturais. 

Um exemplo: há alguns anos atrás, conversando com um jovem casal de parisienses, descobri que eles tinham acabado de voltar de sua lua de mel na Amazônia, não da brasileira, mas da equatoriana. Os jovens foram atraídos ao país pelas belezas das Ilhas Galápagos, arquipélago que pertence ao Equador, e que ganhou fama mundial após a visita do naturalista Charles Darwin na década de 1830. O estudo da fauna de Galápagos foi fundamental para a formulação da teoria da evolução das espécies proposta por Darwin. A visita a Floresta Amazônica equatoriana foi uma espécie de ‘efeito colateral” da viagem desses jovens.  

Um outro país vizinho que tem atraído muitos visitantes estrangeiros é o Peru. Um dos principais cartões de visita do país é Machu Picchu, a “cidade perdida dos incas”. Essa cidade ganhou notoriedade em todo o mundo após o lançamento de “O segredo dos incas”, filme de 1954, estrelado por Charlton Heston. De acordo com depoimentos de Steven Spielberg, o grande diretor de cinema norte-americano, foi esse filme quem o inspirou a criar o personagem Indiana Jones, o arqueólogo aventureiro da série de quatro filmes (há notícias do lançamento de um 5° filme da franquia). 

Enquanto esses países contam com essas informações e imagens positivas circulando pelo mundo, as notícias sobre a nossa Amazônia são sempre negativas: derrubada de matas, queimadas, assassinato de defensores da floresta como Chico Mendes e Dorothy Stang, chacinas de populações indígenas, avanço de plantações de soja e de rebanhos animais em áreas desmatadas da floresta, entre muitas outras. Nesses últimos dias, as notícias de destaque nos meios de comunicação internacionais mostravam o drama dos manauaras devido à falta de oxigênio nos hospitais. É o que podemos chamar de “concorrência desleal”. 

A péssima imagem internacional do turismo no Brasil teve ainda uma grande ajuda de nossos governantes. Durante décadas a fio, os cartazes e as propagandas oficiais de divulgação do turismo no país mostravam mulheres corpulentas vestidas com trajes, digamos, “sumários”, onde o objetivo era vender a ideia de “país do carnaval’. Infelizmente, esse tipo de comunicação acabou associando o país ao turismo sexual. Em diversas viagens de férias por praias da Região Nordeste, eu encontrei com grupos de estrangeiros, principalmente europeus, que vieram passar uma temporada por essas nossas bandas na companhia de garotas “nativas”. 

Completando a complicada equação, temos um Presidente que, apesar do extremo patriotismo e das melhores intenções, costuma ser bastante destemperado em suas falas. Líderes estrangeiros oportunistas como Emmanuel Macron e Angela Merkel costumam se aproveitar de muitos dos deslizes do Presidente Jair Bolsonaro, usando suas declarações para incendiar as questões ligadas aos desmatamentos na Amazônia, produção e exportação de grãos e carnes, direitos das populações indígenas, entre outras. 

As possibilidades econômicas das atividades de turismo ecológico e de aventura na Amazônia brasileira são ilimitadas, porém, não é muito difícil de se perceber que ainda teremos de enfrentar uma série de obstáculos até a consolidação do setor. Além da necessidade de grandes investimentos em educação e formação de mão de obra, com profissionais fluentes em línguas como inglês e espanhol, precisamos antes melhorar a imagem de nosso país no exterior. 

É necessário mostrar imagens mais positivas da Floresta Amazônica como o encanto de turistas nadando com os botos-cor-de-rosa do rio Negro, dos rios e igarapés de águas límpidas, das enormes extensões de matas intocadas (que representam perto de 85% da cobertura original), de pescadores “brigando” com os grandes peixes amazônicos, das comidas e culturas regionais, entre muitas outras. 

Tudo isso começa com esforços cada vez maiores na prevenção e combate aos desmatamentos clandestinos, queimadas, contrabando de madeiras, ouro e pedras preciosas extraídas ilegalmente da floresta, na proteção e defesa dos povos indígenas, na implementação de atividades econômicas que prezem pela sustentabilidade ambiental, entre muitas outras iniciativas. 

Quando enfim conseguirmos atrair grupos cada vez maiores de turistas estrangeiros para a nossa Amazônia, ganharemos ótimos “porta-vozes” para falar bem de nossa terra para seus amigos e vizinhos em suas terras natais. Aí sim as coisas vão mudar para patamares muitos melhores para todos nós. 

AMAZÔNIA SUSTENTÁVEL: AINDA FALANDO DA ZONA FRANCA DE MANAUS

Na postagem anterior fizemos um breve relato da história da criação da Zona Franca de Manaus e do seu grande sucesso para a economia e para a sustentabilidade ambiental no Estado do Amazonas. Esse sucesso econômico, entretanto, não foi seguido pelo desenvolvimento social da população. Manaus e região sofrem com o crescimento desordenado da mancha urbana, falta de infraestruturas de saneamento básico, de transportes, saúde e educação – problemas típicos das cidades grandes brasileiras. 

Com a grande oferta de trabalho nas empresas em Manaus, um grande número de trabalhadores rurais passou a migrar para a cidade grande, deixando para trás a vida de “homem do campo”. Com essa mudança, grandes áreas da Floresta Amazônica deixaram de ser derrubadas e queimadas para a abertura de novos espaços para agricultura e para pecuária. O Polo Industrial de Manaus conseguiu gerar desenvolvimento econômico sem a necessidade de destruir a Floresta Amazônica. Se olharmos os números dos desmatamentos no Amazonas, o maior Estado brasileiro, veremos que são bem menores do que os de Estados vizinhos. 

Dentro da área urbana da capital do Amazonas, os problemas sociais e ambientais são enormes. Manaus conta atualmente com uma população de 2 milhões de habitantes, grande parte deles vivendo em condições precárias. Em termos de saneamento básico, Manaus ocupa a 5° pior posição entre as grandes cidades brasileiras. Pouco mais de 10% dos esgotos gerados na cidade são coletados e, desse total, apenas 24% recebe o tratamento adequado. Os inúmeros canais e igarapés que cruzam a cidade são os receptores de todos esses esgotos

Em relação ao abastecimento de água, os números são bem melhores – 88% da população é atendida por redes de água tratada. Entretanto, os números indicam uma perda de faturamento da empresa local de saneamento da ordem de 70% – são vazamentos nas tubulações das redes e o roubo de água através de ligações clandestinas, os famosos “gatos”. 

A cidade também enfrenta enormes problemas na área de coleta e destinação dos resíduos sólidos urbanos. São mais de 72 mil toneladas geradas a cada mês e as áreas de descarte estão ficando saturadas. Existem também grandes problemas na coleta nos domicílios e grande parte do lixo gerado pela população acaba sendo despejado nos igarapés e causa grandes impactos ambientais. No quesito habitação, a situação também é dramática: perto de 350 mil famílias manauaras moram em palafitas, ocupações e loteamentos clandestinos.

Conceitos como o da Zona Franca de Manaus, devidamente ajustados e integrados ao mundo contemporâneo, podem ser uma das alternativas para gerar uma colonização racional do território da Amazônia. A ocupação da mão de obra e geração de renda permite que se alcance um desenvolvimento sustentável. Porém, como fica claro nos números apresentados, é fundamental que se busque o equilíbrio entre o desenvolvimento econômico, a justiça social e a preservação ambiental. 

Entre os inúmeros problemas enfrentados pela cidade de Manaus destaca-se o isolamento em relação ao restante do país, mal que afeta outras regiões da Amazônia como nos casos dos Estados de Roraima e Amapá. Citando um exemplo, todos devem se recordar do “apagão” sofrido pelo Amapá há poucas semanas atrás e das grandes dificuldades para o transporte de geradores elétricos e de transformadores para lá. 

No caso específico de Manaus, um dos gargalos para uma melhor integração ao restante do país, e que ficou bem claro nesses últimos dias com a falta de oxigênio hospitalar para o tratamento da Covid-19, é a falta de uma ligação terrestre por meio de uma rodovia.  

Essa ligação inclusive já existe – a BR 319, uma rodovia parcialmente pavimentada que liga Porto Velho até Manaus. Concluída no início da década de 1970, essa rodovia era totalmente pavimentada. Entretanto, grande parte do trecho da pista ficava encoberto pelas águas do rio Madeira durante o período das cheias e o revestimento asfáltico acabou sendo quase que totalmente destruído. Sem o asfalto, a rodovia fica praticamente intransitável em grande parte do ano (vide foto) e passou a ser chamada pela população local de “caminho das onças“. Uma viagem entre Manaus e Porto Velho pode durar de um dia a uma semana, isso quando é possível atravessar o percurso total de quase 900 km. O trecho mais problemático da rodovia é conhecido como “trecho do meio”, com cerca de 500 km.. 

Quando eu morei na região entre 2009 e 2010, ouvi histórias um pouco diferentes. Segundo contam os locais, foram os donos de empresas de navegação fluvial os responsáveis pela destruição do asfalto da rodovia. Essa ligação terrestre barateou muito os custos para o transporte de mercadorias por caminhão entre as duas cidades, causando enormes prejuízos para os donos de embarcações que faziam esse mesmo trajeto. Segundo esses relatos, foram usadas retroescavadeiras para arrancar o revestimento de asfalto de grandes trechos da rodovia. 

O Governo Federal está trabalhando para reconstruir essa ligação, agora elevando o nível da pista para fugir dos alagamentos anuais. Segundo está sendo divulgado, essa reconstrução da rodovia prevê a instalação de túneis e passagens aéreas para a circulação de fauna, além da criação de diversas áreas de proteção ambiental ao longo do trajeto. Se essa ligação já estivesse pronta, dezenas de caminhões poderiam estar transportando cilindros de oxigênio até Manaus nesse momento e salvando muitas vidas. 

Apesar de parecer um contrassenso ambiental, o asfaltamento dessa rodovia, e de outras que foram construídas há muito tempo atrás, com todas as garantias necessárias para a proteção ambiental das matas nas áreas lindeiras, é fundamental para as populações pobres de Manaus e de outras cidades da Amazônia. Alimentos, remédios, roupas, produtos de limpeza e higiene pessoal, além de outros itens básicos produzidos em outras regiões, que só conseguem chegar nas cidades por via aérea ou fluvial, poderão ser transportados por caminhões a preços mais baixos. 

Muita gente não sabe, mas a Amazônia brasileira abriga uma população de mais de 20 milhões de habitantes. Grande parte dessas pessoas vivem isoladas em pequenas comunidades perdidas nas margens de rios e igarapés, sem acesso aos serviços mais básicos de saúde, educação e saneamento básico. Em casos de emergência, doentes precisam ser transportados até cidades grandes como Manaus em busca de atendimento – essas viagens normalmente são feitas em pequenos barcos e duram vários dias. Acessos terrestres como a BR-319 podem encurtar, e muito, esse tempo de viagem. 

As empresas da Zona Franca de Manaus também serão beneficiadas com o asfaltamento dessas rodovias, passando a contar com mais uma opção de transporte para peças e componentes e também para o escoamento da sua produção. Quando mais forte a produção industrial no Polo Industrial, menor será a pressão por atividades agropecuárias nas áreas florestais no interior do Estado do Amazonas. 

As narrativas sobre a defesa e a proteção da Floresta Amazônica normalmente não levam em consideração essas populações, cujos ancestrais foram as populações tradicionais da floresta e os imigrantes que começaram a ser assentados na região ainda nos tempos do Ciclo da Borracha. Falar em desenvolvimento sustentável da região requer, obrigatoriamente, incluir essas populações na equação. E o exemplo do que pode ser alcançado com polos industriais como o de Manaus pode ser um ótimo caminho a ser seguido por outras cidades da Amazônia. 

A indústria, quem diria, pode ser uma forte aliada na preservação da Floresta Amazônica! 

AMAZÔNIA SUSTENTÁVEL: A CRIAÇÃO DA ZONA FRANCA DE MANAUS

Nesses últimos dias, desgraçadamente, a cidade de Manaus não sai dos noticiários. O agravamento da contaminação pela Covid-19 provocou a superlotação dos hospitais da cidade e, muito pior, desencadeou uma crise de escassez de oxigênio medicinal nos hospitais. Sem ligações terrestres adequadas com o restante do país, as cargas de oxigênio estão sendo transportadas por via aérea e fluvial. 

Para quem não conhece, Manaus é uma verdadeira ilha urbana cercada por florestas por todos os lados. A própria região onde fica a cidade é uma grande ilha – a Ilhas das Guianas, que é cercada pelos rios Negro, Amazonas e Orinoco, Canal do Cassiquiare, além das águas do Mar do Caribe e do Oceano Atlântico. E como ocorre em toda ilha, existem problemas de comunicação com “terras”vizinhas.

Manaus surgiu a partir da construção de uma fortificação portuguesa erguida por volta de 1669. A cidade só ganharia projeção nacional e mundial a partir do Ciclo da Borracha, período entre meados do século XIX e início da década de 1910, quando a Amazônia foi o principal centro produtor de látex do mundo e a cidade foi um dos polos de exportação. A riqueza e a prosperidade criada pelo látex levaram Manaus a ser chamada de a “Paris dos Trópicos”. 

Depois de décadas de ostracismo após o fim do Ciclo da Borracha, a cidade ganharia novamente uma projeção nacional em 1957, quando um decreto do Presidente Juscelino Kubitschek criou a Zona Franca de Manaus. A ideia da criação de um porto livre em Manaus data da década de 1870, quando a cidade se tornou um dos principais centros da indústria gomífera da Amazônia.  

Formalmente, foi o deputado federal Francisco Pereira da Silva que, em 1951, propôs a criação do porto livre. A proposta do deputado foi aprovada e transformada em lei, mas, como é típico aqui em nosso país, a “lei não pegou”. Em 1953, o Governo do Presidente Getúlio Vargas criou a SPVEA – Superintendência de Valorização Econômica da Amazônia, uma outra ideia que também não avançou. O Governo Vargas, que já vinha enfrentando uma profunda crise política, acabou abruptamente com o suicídio do Presidente em 1954. 

A criação da Zona Franca de Manaus permitiu a implantação de um espaço portuário de “armazenamento ou depósito e retirada de mercadorias de qualquer natureza, com armazéns e cais flutuantes na margem do rio Negro”, uma ideia muito próxima do conceito proposto pelo deputado Francisco Pereira da Silva em 1951. O Presidente Juscelino Kubitschek tinha um forte cunho desenvolvimentista e de integração nacional. Um dos destaques do seu Governo foi a criação do Plano de Rodovias que, entre outras obras, culminou com a construção da BR-364, rodovia que permitiu a ligação terrestre entre Cuiabá, no Estado de Mato Grosso, e os Territórios do Guaporé (atual Rondônia), e Acre, além de regiões do Sul do Estado da Amazônia.  

A Zona Franca de Manaus viria a dar um verdadeiro “salto” em importância em 1967, época dos chamados Governos Militares (1964-1985). Essa é uma época de forte nacionalismo, quando o mundo vivia um dos períodos mais tensos da chamada Guerra Fria, um conflito ideológico entre o bloco capitalista, comandado pelos Estados Unidos, e o bloco comunista, que tinha a liderança da URSS – União das Repúblicas Socialistas Soviéticas. Aqui na América Latina, as tensões ideológicas entre esses dois blocos resultaram no estabelecimento de inúmeros regimes de exceção, comandados por juntas militares e com apoio direto ou indireto dos Estados Unidos.  

Uma ideia que se desenrolava há muitos anos e que enchia de temores os militares brasileiros era hipótese de uma Internacionalização da Amazônia, Foi justamente após a ascensão dos militares ao poder que passaremos a assistir à criação de uma série de medidas para a integração e ocupação da Amazônia brasileira, onde destacamos a construção de grandes rodovias como a Transamazônica, a Belém-Brasília e a Cuiabá-Santarém, projetos de mineração como Carajás, entre outros. Um dos slogans governamentais desse período era “Amazônia: uma terra sem homens, para homens sem-terra” .  

Foi dentro desse contexto de defesa da Amazônia contra uma eventual ocupação estrangeira que o Presidente Castello Branco criou a SUFRAMA – Superintendência da Zona Franca de Manaus, que oficializou e ampliou a Zona Franca. A SUFRAMA passou a conceder uma série de incentivos fiscais para as empresas que se instalassem na Zona Franca – esses incentivos se estenderiam por 30 anos. A área da Zona Franca era, inicialmente, de 10 mil m², englobando Manaus e municípios vizinhos. Posteriormente, a área de abrangência foi ampliada para a Amazônia Ocidental, englobando os Estados do Amazonas, Rondônia, Acre e Roraima.  

As indústrias eletroeletrônicas estrangeiras foram as primeiras a perceber as vantagens para a instalação de unidades na Zona Franca de Manaus, se valendo primeiro dos incentivos fiscais para a importação de produtos prontos desde suas matrizes e, depois, importando componentes para a montagem in loco. Para se ter uma ideia do sucesso da Zona Franca de Manaus, apenas em 1967, foram criadas 1.339 novas empresas na região. Eu lembro claramente de uma época no início da década de 1970, quando as pessoas de classe média e média alta viajavam até Manaus para comprar produtos eletroeletrônicos como aparelhos de som, televisores, gravadores e máquinas fotográficas com “ótimos preços”.  

A Zona Franca também criou uma verdadeira “indústria de sacoleiros” por todo o país. Muita agente viajava até Manaus para comprar esses produtos, revendendo depois com um bom lucro em outras cidades do país. Em 1976, a SUFRAMA estabeleceu uma cota máxima de produtos que poderiam ser comprados e conseguiu controlar melhor essa revenda de produtos.  

Na década de 1980, o Governo Federal implementou algumas mudanças na Zona Franca de Manaus. A primeira delas foi uma alteração no prazo de validade da área, que primeiro foi estendido até 2007 e depois para 2013. Outra mudança se aplicaria na agregação de conteúdo tecnológico nacional nos produtos. Até aquele momento, as empresas multinacionais se limitavam a importar componentes desde seus países de origem e a realizar apenas a montagem dos produtos em Manaus, se aproveitando assim dos incentivos fiscais e do baixíssimo custo da mão de obra local. Essa baixa massa de salários não ajudava a fortalecer a economia local e beneficiava apenas as grandes empresas.  

Um exemplo: no final da década de 1980, eu trabalhava numa multinacional eletroeletrônica. Essa empresa estava estudando o lançamento de uma nova linha de produtos que seria montada na fábrica de Manaus. Esses produtos usavam uma tecnologia nova há época chamada SMD – Surface Mounting Device, onde os componentes eletrônicos eram montados nas placas de circuito impresso por um sistema robótico. Engenheiros da matriz na Europa fizeram uma visita de vistoria na fábrica de Manaus e chegaram a uma conclusão – a mão de obra em Manaus era tão barata que não valia a pena importar o robô de montagem de componentes. A empresa lucraria muito mais fazendo a montagem dos componentes manualmente.  

Com as mudanças realizadas pela SUFRAMA, as empresas instaladas no Polo Industrial de Manaus se viram forçadas a fazer investimentos em pesquisa e desenvolvimento. Esse conteúdo tecnológico nacional se transformou num caminho para agregar valor nacional aos produtos e melhorar os salários da mão de obra nessas empresas, que além dos simples operários da montagem, passaram a contratar engenheiros e pesquisadores de diversas áreas. Essa mudança provocaria uma elevação de patamar significativa no Parque Industrial de Manaus ao longo dos anos seguintes.  

Atualmente, o Polo Industrial de Manaus abriga cerca de 600 empresas e emprega mais de 500 mil trabalhadores diretos e indiretos. A maior parte da produção local, que vai de telefones celulares a motocicletas, é consumida no mercado brasileiro e cerca de 5% é exportada para América Latina, Estados Unidos e Europa. Em 2014, o prazo de validade da Zona Franca de Manaus foi estendido até 2073.  

Continuamos na próxima postagem.

AMAZÔNIA SUSTENTÁVEL: O COURO VEGETAL FEITO A PARTIR DO LÁTEX

O látex é uma seiva natural produzida por várias espécies de árvores e plantas, com destaque para a seringueira (Hevea brasiliensis), uma espécie nativa da Floresta Amazônica. Detentor de uma parte considerável dessa Floresta, o Brasil rapidamente despontou como o maior produtor mundial de látex

O uso do látex começou no século XVIII por indústrias do segmento de confecção, quando era pulverizado sobre capas de chuva com o objetivo de criar uma camada impermeável, que funcionava perfeitamente nos dias de chuva. Em dias de extremo calor, porém, a camada impermeável se tornava grudenta e em dias muito frios ela endurecia e se tornava quebradiça. Outros produtos há época feitos à base do látex apresentavam os mesmos problemas.  

Em 1839, o inventor norte-americano Charles Goodyear, depois de inúmeros experimentos, desenvolveu o processo da vulcanização, onde uma mistura de látex e enxofre era submetida a pressão e calor, permitindo a modelagem das peças de borracha e tornando-as resistentes ao calor e ao frio. Após a invenção deste processo, as aplicações industriais e o consumo do látex no mundo explodiram.  

A borracha passou a ser a matéria prima de uma série de produtos inovadores: correias para máquinas, sapatos, luvas, chapéus, roupas impermeáveis, flutuadores, bandas de rodagem para rodas de carroças (mais tarde substituídas por rodas com pneus), mangueiras, entre outros produtos. Nas últimas décadas do século XIX, com o uso cada vez maior da eletricidade, peças isolantes à base de borracha ganharam enorme importância no mercado mundial.  Também merece um grande destaque a nascente produção de automóveis em série.

Entre 1850 e 1920, a produção do látex foi a grande riqueza da Floresta Amazônica, o que fez a fortuna de uns poucos seringalistas e exportadores da matéria prima, e lançou milhares de seringueiros anônimos à mais completa e absoluta miséria nos confins mais distantes da Amazônia. Foi então que, a partir de 1913, seringais ingleses plantados no Sudeste Asiático com sementes de seringueira roubadas na Amazônia passaram a produzir látex em maior quantidade e com custos mais baixos que os da grande floresta sul-americana.  

Após a Primeira Guerra Mundial, as indústrias petroquímicas conseguiram desenvolver a borracha sintética a partir do petróleo – a grande saga do látex natural praticamente terminaria aqui. Houve uma efêmera tentativa de reativar a produção durante a Segunda Guerra Mundial com os lendários Soldados da Borracha, mas tanto o projeto quanto os soldados foram rapidamente abandonados. A produção do látex amazônico em grande escala perdeu completamente a sua relevância. Siga os links indicados no texto para conhecer os detalhes dessa história. 

A exploração do látex, apesar de todo o drama social que foi gerado pelo sistema de extração daquela época, é sustentável do ponto de vista ambiental. As seringueiras nativas são localizadas no meio da mata, onde é feito o corte do caule para a “sangria” do látex em pequenas quantidades (vide foto abaixo), algo que não costuma criar maiores problemas para as árvores. Já para os seringueiros, a atividade é um dos ícones máximos da exploração da mão de obra. 

Uma aplicação para o látex que vem crescendo muito nas últimas décadas é seu uso para a produção do chamado couro vegetal”. Existem referências à produção desse material na Amazônia desde 1834. Uma peça de tecido de algodão montada numa moldura é colocada sobre a saída de fumaça de um forno a lenha e passa a receber o despejo de pequenas quantidades de látex, numa forma de trabalho muito parecida com a confecção das pélas de borracha pelos seringueiros (vide foto).  

O látex gruda no tecido e vai coagulando, produzindo um efeito emborrachado, com uma aparência muito similar ao couro animal. Essa forma artesanal de produção resulta em peças com texturas e cores diferentes, que vão do castanho claro ao marrom café e que dão ao produto um charme e uma exclusividade toda especial. 

Há cerca de uns quinze anos atrás eu comprei, com alguma desconfiança, um sofá revestido com esse couro vegetal e depois acabei ficando surpreso com a qualidade do material. Produzido artesanalmente por seringueiros e indígenas da Amazônia, especialmente no Estado do Acre, o produto começou a chamar a atenção de grandes empresas, que cada vez mais têm feito investimentos na melhoria dos processos de produção dessa materia prima.

Uma iniciativa das mais interessantes é o Projeto Couro Vegetal da Amazônia, que reúne seringueiros, indígenas caxinauá, uma ONG – Organização Não Governamental, e empresários do setor. O grupo vem trabalhando desde 1991 no desenvolvimento do artesanato tradicional dos seringueiros da Amazônia no Estado do Acre. 

Com apoio das empresas, a produção das peças de couro alcançou um melhor padrão de qualidade, especialmente no tingimento. As peças são usadas na confecção de artigos de vestuário, calçados, bolsas e mochilas, tapeçaria, encadernações e em revestimentos decorativos. Com essa produção, os seringueiros e os indígenas passaram a ter um rendimento bem maior do que o que teriam com a simples extração e venda do látex. 

A partir da Floresta Amazônica, o couro vegetal começou a ganhar o mundo. Primeiro foram empresas de confecção de grandes cidades brasileiras como Rio de Janeiro e São Paulo. Em 1998, a iniciativa conseguiu fechar um contrato de 10 anos para o fornecimento de peças de couro vegetal para a tradicional grife francesa Hermès Sellier, uma empresa fundada em 1837. 

O produto artesanal da Amazônia tem um forte apelo ecológico junto aos consumidores “endinheirados”, que enxergam na iniciativa uma forma de contribuir para o desenvolvimento sustentável da Amazônia, deixando assim suas consciências mais “leves” para poder gastar o equivalente a milhares de Reais em sapatos, bolsas, e peças de vestuário da grife.. 

Existem cerca de 30 mil comunidades extrativistas em toda a Amazônia, a grande maioria formada por grupos de famílias que vivem espalhadas ao longo dos rios, onde se incluem populações ribeirinhas, muitos descendentes dos antigos seringueiros, e povos tradicionais de origem indígena.  Essas populações vivem da caça, da pesca, da produção agrícola de subsistência e da extração de produtos florestais como o látex e a castanha-do-pará. Os índices de desenvolvimento social dessas comunidades estão entre os mais baixos do Brasil. 

A produção do couro vegetal é uma ótima alternativa de trabalho e renda para essas comunidades – o produto possui um preço de venda, no mínimo, quatro vezes maior do que o látex. A produção pode ser feita na casa dos seringueiros ou nas aldeias indígenas, sem necessitar de qualquer infraestrutura adicional as já existentes. A extração do látex é totalmente sustentável e, de acordo com a legislação ambiental, essa pode ser feita em Unidades de Conservação classificadas como reservas extrativistas. Além do Acre, já existem outras iniciativas de produção de couro vegetal nos Estados do Amazonas e do Pará. 

Existem diversos problemas para a consolidação da atividade, principalmente a necessidade de criação de um sistema adequado para o escoamento da produção, onde os produtores possam receber um preço justo pelo seu produto. Lembro aqui que, com a decadência da indústria gomífera (ou do látex) na década de 1920, muitos seringueiros passaram a caçar animais da fauna nativa da Amazônia para o aproveitamento do couro e das peles, que eram vendidas a preços de “banana” para intermediários. 

Com as cautelas necessárias, a produção de couro vegetal de látex em grande escala poderá ser mais uma ótima opção para a geração de trabalho e renda para a população mais pobre da Amazônia, garantindo a conservação da floresta e um desenvolvimento sustentável sem sobressaltos para a região.