Os mosquitos têm ocupado uma boa quantidade de minutos nos principais telejornais brasileiros nestes tempos de avanço da febre amarela em diversas regiões do país. Entre todas as dúvidas surgidas com o reaparecimento da doença em áreas urbanas, muitos se perguntam sobre as providências já tomadas para conter o avanço dos diversos surtos, que tem nos mosquitos um componente importante – são estes insetos, de espécies silvestres e urbanas, os principais responsáveis pela disseminação do vírus que provoca a doença. Gostaria de me ater hoje aos famigerados mosquitos.
Os mosquitos vivem no planeta Terra a, pelo menos, 170 milhões de anos. Para efeito de comparação, o fóssil mais antigo já encontrado de um primata, a grande família composta por macacos de todos os tamanhos e seres humanos, tem aproximadamente 65 milhões de anos – o gênero Homo, a linhagem dos humanos que evoluiu a partir dos primatas, têm algo próximo a 4 milhões de anos: os mosquitos dão de goleada sobre a nossa espécie.
Você, muito provavelmente, deve ter assistido ao ótimo filme Jurassic Park. Um rápido resumo do enredo: cientistas encontraram um mosquito do Período Jurássico (entre 199 e 144 milhões de anos atrás) preservado em âmbar (vide foto), uma resina de origem vegetal solidificada. Usando técnicas altamente avançadas, estes cientistas conseguem extrair fragmentos de sangue de dinossauros, picados pelo mosquito pouco antes deste ser coberto pela mortal resina do âmbar. Manipulando os resíduos de sangue, descobre-se que seria possível isolar o DNA (código genético) dos animais extintos e, assim, abre-se o caminho para a clonagem e o renascimento destas criaturas. A ficção pode até ter sido exagerada no filme, mas a sobrevivência dos mosquitos a tantas eras é um fato – é provável que a espécie humana entre em extinção em um futuro próximo, mas os mosquitos, muito provavelmente, ainda continuarão sobrevivendo por muitas e muitas eras. Imaginar que uma provável eliminação dos mosquitos poderá conter o avanço da febre amarela é uma utopia defendida por muita gente. Vou usar como exemplo a malária, uma doença que também é transmitida por mosquitos, para explicar minha afirmação:
Apesar de ser uma doença muito comum em áreas tropicais, a malária já foi endêmica em grande parte da Europa e dos Estados Unidos. Hipócrates (460 a.C.-370 a.C.), sábio grego considerado o pai da medicina, foi o primeiro a fazer uma conexão entre água parada e a ocorrência de febres na população. Esse conhecimento foi passado aos romanos, que foram os pioneiros na drenagem de pântanos como forma de controlar as sucessivas epidemias na península itálica – além dos invasores bárbaros, foi a malária que quase provocou a queda do Império Romano em diversas ocasiões. A palavra malária deriva da expressão em italiano antigo mal aria ou ar ruim. Há relatos de grandes epidemias de malária na França, Espanha, Inglaterra, Holanda, Alemanha entre outros importantes países europeus – onde existissem pântanos e mosquitos, havia possibilidade de grandes epidemias de malária. A doença foi erradicada gradualmente a partir de melhorias na infraestrutura de saneamento das cidades e drenagem de áreas pantanosas, o que não elimina os mosquitos, mas controla a sua população. A Itália, para citar um exemplo, só conseguiu erradicar totalmente a malária em 1970.
A malária chegou aos Estados Unidos junto com os primeiros colonos, talvez passageiros do lendário navio Mayflower, muitos dos quais estavam infectados com os agentes Plasmodium vivax e Plasmodium malariae, comuns na Inglaterra. Posteriormente, com a importação dos primeiros escravos vindos do continente africano a partir de 1620, foi introduzido no país o agente Plasmodium falciparum.
As epidemias eram recorrentes nas antigas Colônias Anglo Americanas – em 1723 um colono escrevia para sua família na Escócia: “Estou sempre com febres e calafrios… este lugar só é bom para médicos e padres”. Com o avanço dos colonizadores rumo ao interior do país, a malária foi se disseminando e se tornando endêmica nas regiões Sul e Oeste. Consta que as epidemias de malária eram tão frequentes e custosas na antiga colônia francesa da Louisiane, que este foi um dos motivos que levou Napoleão Bonaparte a vender o território para os americanos em 1803, atualmente chamado de Estado da Louisiana. Nos estados do Sul dos Estados Unidos, aliás, a combinação do clima subtropical (o mesmo clima do Sul do Brasil a partir do Sul do Estado de São Paulo), da grande quantidade de áreas pantanosas e do sensível empobrecimento da região após a derrota dos Estados Confederados na Guerra Civil Americana (1861-1865), tornou a região propícia à presença de grandes populações de mosquitos e de uma alta incidência de epidemias de malária. Estudos indicam que até a década de 1930, um terço da população dos estados do Sul americano sofria de malária crônica.
O controle e a reversão das epidemias de malária nos Estados Unidos só foram possíveis a partir da massificação da infraestrutura de saneamento básico nas cidades, da aplicação de inseticidas para o controle das populações de mosquitos, da drenagem de áreas pantanosas e, principalmente, da obrigatoriedade da instalação de telas nas janelas e portas das residências. O governo americano também investiu pesadamente em campanhas educativas, mostrando à população quais eram os hábitos e os horários de maior incidência dos ataques dos mosquitos. Por volta do ano de 1950, a malária foi considerada erradicada dos Estados Unidos, restrita a alguns poucos casos anuais em regiões isoladas e densamente florestadas onde os mosquitos são e sempre farão “parte da paisagem”. É importante ressaltar que não existem vacinas homologadas contra a malária e que as medidas preventivas são as melhores alternativas para o controle da doença.
Em muitas cidades brasileiras, onde as populações estão à “beira de um ataque de nervos” com medo do surto de febre amarela, temos: serviços deficientes de coleta e destinação de resíduos sólidos, que muitas vezes acabam sendo descartados em terrenos baldios e em cursos d’água – muitos destes resíduos acumulam água e se transformam em verdadeiros criatórios de mosquitos; faltam redes coletoras e estações de tratamento de esgotos – estes problemas, associados a outros nos sistemas de águas pluviais (ou de chuva), criam empoçamentos de água que propiciam a reprodução descontrolada de mosquitos; o crescimento desordenado das cidades avança rumo aos fragmentos de vegetação e áreas florestais remanescentes, aproximando populações humanas e grupos de macacos silvestres, que podem ter algum indivíduo portador do vírus da febre amarela – neste caso, um mosquito silvestre ou urbano que picar o macaco poderá se transformar num transmissor da doença. Estas populações também ficam expostas ao contato com espécies de mosquitos silvestres, portador natural do vírus, que se somam aos inúmeros mosquitos urbanos como os da espécie Aedes aegypti, que eventualmente também podem se transformar em um portador do vírus da febre amarela – percebem a complexidade da situação?
Dito tudo isso, minha pergunta: vocês continuam acreditando que os mosquitos são os únicos responsáveis pelo avanço da febre amarela em nossas cidades?