ABASTECIMENTO DE POPULAÇÕES, GERAÇÃO DE ENERGIA ELÉTRICA E MUITA DISCÓRDIA: TRÊS DIFERENTES FACES DO RIO PARAÍBA DO SUL

Início da Transferência de Água para o Sistema Cantareira - Jaguari-Atibainha.

Em dezenas de postagens anteriores, falamos da ferrenha disputa pela água em diferentes partes do mundo: no rio Jordão no Oriente Médio; no rio Nilo, no Lago Chade  e no Delta do rio Okavango, em diferentes partes da África; nos rios Amu Daria e Syr Daria na Ásia Central; no rio Mekong no Sudeste asiático, entre muitas outras regiões pelo mundo afora. Muitas guerras que serão travadas em um futuro muito próximo, terão a disputa pela água como estopim. 

Todavia, não precisamos ir tão longe para assistir uma guerra quase silenciosa pelo controle das águas de um grande rio: essa guerra acontece há várias décadas entre os três mais importantes Estados do Brasil. Rio de Janeiro, Minas Gerais e São Paulo vem disputando as águas do rio Paraíba do Sul há bastante tempo e só a bem pouco tempo atrás chegaram a um razoável entendimento, que só foi possível após a intervenção do STF – Superior Tribunal Federal. E como estamos falando desse rio nas últimas postagens, não há como não relembrar esse assunto. 

O rio Paraíba do Sul é paulista de nascimento, porém, seu curso entra logo a seguir em terras fluminenses, e depois passa a dividir terras mineiras e fluminenses. Por ser partilhado por três diferentes Estados, o Paraíba do Sul é considerado um rio federal e suas águas deveriam ser compartilhadas igualmente por estes três entes federativos. Mas, na prática, essa conta: 1 + 1 + 1 = 3, não é tão simples quanto parece. 

De acordo com dados da ANA – Agência Nacional de Águas, o rio Paraíba do Sul responde pelo abastecimento de 14,2 milhões de pessoas (algumas fontes chegam a falar de 16 milhões de pessoas), nos Estados de São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais. Porém, a dependência do Rio de Janeiro pelas águas do rio é muito maior que nos demais Estados – 12 milhões de fluminenses dependem dessas águas para o seu abastecimento, sendo que 8 milhões desses consumidores se concentram no município do Rio de Janeiro e em áreas da Baixada Fluminense. Logo, falar em uma distribuição equitativa das águas é fugir da realidade. 

Existem quatro grandes reservatórios que armazenam e regularizam a vazão das águas do rio Paraíba do Sul. Um desses reservatórios é a represa da Usina Hidrelétrica do Funil, em Itatiaia no Estado do Rio de Janeiro, que recebe as águas do rio Paraíba do Sul através de um sistema de reversão das águas do rio Piraí. Os outros três reservatórios da bacia hidrográfica do Paraíba do Sul ficam dentro do Estado de São Paulo – são as represas das usinas hidrelétricas de Paraibuna, Santa Branca e Jaguari, sobre as quais falamos na última postagem. Juntos, esses quatro reservatórios formam o “reservatório virtual” do Sistema Hidráulico do rio Paraíba do Sul. 

Cerca de 40% da vazão total das águas do rio Paraíba do Sul é desviada para outras bacias hidrográficas do Estado do Rio de Janeiro, o que é feito através de estações elevatórias, represas e usinas de geração de energia elétrica. Essas águas são despejadas na bacia do rio Guandu e correm na direção da Região Metropolitana do Rio de Janeiro. Diferentemente de regiões do Estado de São Paulo, que apesar de problemas localizados possuem reservatórios próprios para o armazenamento de água, a Região Metropolitana do Rio de Janeiro depende quase que exclusivamente das águas do rio Paraíba do Sul e de reservatórios “externos”. 

Além dessa extrema dependência da Região Metropolitana do Rio de Janeiro em relação às águas do rio Paraíba do Sul, dezenas de pequenas e médias cidades ao longo das suas margens na região do Vale do Paraíba, no Leste do Estado de São Paulo; do Sul, Oeste e Norte fluminense, além de uma extensa faixa no Leste de Minas Gerais, são usuárias das  suas águas. Apesar de toda essa dependência, cidades, indústrias e populações rurais lançam esgotos, lixo, resíduos químicos e industriais diretamente nas águas do rio – resíduos de fertilizantes e de agrotóxicos são carreados pelas chuvas para a calha do rio. O disputado Paraíba do Sul ocupa atualmente a 5° posição entre os rios mais poluídos do Brasil. 

Além desse grupo de dependentes diretos do rio Paraíba do Sul, as Regiões Metropolitanas de São Paulo e Campinas são “players” indiretas nessa disputa. O famoso Sistema Cantareira, localizado na Região Nordeste do Estado de São Paulo, que é o responsável por grande parte do abastecimento dessas Regiões, há algum tempo não vem conseguindo dar conta da demanda e as águas da bacia hidrográfica do rio Paraíba do Sul passaram a ser cobiçadas. Em março de 2018 tiveram início as operações de bombeamento no sistema de transposição construído entre as represas Jaguari e Atibainha (vide foto). Esse sistema foi construído após a dramática crise hídrica que se abateu sobre o Sistema Cantareira entre os anos de 2014 e 2015, levando as represas ao volume morto e obrigando milhões de pessoas a entrar num regime forçado de economia de água. 

Esse sistema de transposição entre bacias hidrográficas permite a transferência de águas nos dois sentidos. Em momentos em que o Sistema Cantareira atingir o seu nível máximo, o que não acontece desde 2012, as águas excedentes poderão ser lançadas na Represa Jaguari, reforçando os estoques de água. Em momentos em que o sistema Cantareira estiver com baixos níveis, a água será retirada da Represa Jaguari e bombeada na direção da Represa do Atibainha, que faz parte do Sistema Cantareira.  

É justamente aqui que são geradas as desconfianças dos demais usuários das águas da bacia hidrográfica – como o Sistema Cantareira parece ter atingido um ponto de saturação, ele poderá se tornar mais um grande dependente das águas da bacia hidrográfica do rio Paraíba do Sul. Somadas, as populações das duas Regiões Metropolitanas paulistas têm quase 20 milhões de habitantes – se abastecidas, mesmo que parcialmente, com águas da bacia hidrográfica do rio Paraíba do Sul, o volume de água retirado poderá fazer falta entre os demais usuários. 

Muitos temem que esse desequilíbrio poderá criar problemas no acordo costurado em 2015 pelo STF – Superior Tribunal Federal, com os estados de São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais, Governo Federal e com a ANA – Agência Nacional de Águas. Naquela ocasião, foram estabelecidas as regras para a gestão compartilhada das águas do Rio Paraíba do Sul, estabelecendo vazões mínimas para os reservatórios e mudando a prioridade do uso das águas do rio para o abastecimento e não mais para a geração de energia elétrica

De acordo com dados da ONU – Organização das Nações Unidas, o consumo mundial de água teve um aumento de 2,4 vezes entre 1950 e o ano 2000 – até o ano de 2025, esse consumo aumentará 1,3 vezes mais. É esse aumento na demanda, associado à baixa disponibilidade do recurso, que tem tirado o sono de muita gente em todos os cantos do mundo e também na bacia hidrográfica do rio Paraíba do Sul – água de menos para atender gente demais.  

É por isso que a disputa ferrenha pelas águas do rio Paraíba do Sul terá, com toda a certeza, novos e emocionantes capítulos. 

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