
Uma lembrança bastante nítida, que trago da minha infância, vem do dia em que eu e alguns primos encontramos um ninho de passarinho no meio de uma plantação de amendoim no sítio de um dos meus tios. De acordo com esses primos, que moravam no sítio, era um ninho de tico-tico – havia três ovinhos com uma casca totalmente coberta por pintas marrons. Durante muito tempo fiquei imaginando o destino daquele ninho e de seus ovos: será que eles vingaram e as aves sobreviveram? Os ovos foram destruídos na colheita do amendoim? Algum dos gatos ou cachorros do sítio atacou os filhotes, ou ainda, será que um dos muitos gaviões que viviam nas redondezas fez um lanche, tendo os passarinhos como prato principal do cardápio? Preocupações de criança, porém bastante relevantes.
Essa história que eu vivi não é, nem de longe, um caso isolado – as fronteiras agrícolas avançam cada vez mais contra as áreas florestais remanescentes em todo o mundo e, com a destruição dos habitats, os animais fogem em busca de outros nichos ecológicos onde possam viver, se alimentar e se reproduzir. Cito um exemplo dessas fugas animais: poucos meses atrás, no município de Itapecerica da Serra, que faz limite com a Zona Sul da cidade de São Paulo, funcionários de uma empresa chegaram para trabalhar e encontraram uma onça parda dentro do escritório; casos semelhantes têm se multiplicado nos noticiários: são jaguatiricas, gambás, cachorros do mato, capivaras, cobras e jacarés que, “repentinamente”, resolvem se aventurar em áreas urbanas.
Muitas espécies de aves também integram essa lista – na área urbana da cidade de São Paulo, aves como garças, corujas e gaviões, entre muitas outras que havia décadas estavam desaparecidas, agora são vistas na cidade: até os tímidos carcarás, aves de rapina típicas dos sertões, podem ser encontrados hoje nas margens dos poluídos rios paulistanos. E a razão para essa súbita “migração” de animais silvestres para as áreas urbanas de todo o Brasil é bem simples: a destruição dos seus habitats nas matas e florestas, especialmente pelos avanços da agricultura e exploração de madeiras.
Um estudo recente da Bird Life Internacional, uma ONG – Organização Não Governamental britânica, intitulado “The state of the World’s Birds” (O estado dos pássaros pelo mundo) nos dá uma dimensão dos impactos da devastação ambiental mundial na vida dos pássaros. De acordo com o estudo, uma em cada oito espécies de pássaros está em risco de extinção e 40% das espécies, estimadas em aproximadamente 11 mil variedades em todo o mundo, tiveram suas populações diminuídas em diferentes graus. De acordo com dados de uma outra organização, a IUCN, sigla em inglês da União Internacional para a Conservação da Natureza, a lista com as aves sob maior ameaça de extinção inclui um total de 1.469 espécies. A pesquisa da Bird Life, que levou 5 anos para ficar pronta, analisou as diversas interferências humanas no meio ambiente e os respectivos impactos nas populações de aves. A agricultura, tema que estamos explorando nas últimas postagens, é responsável por 74% desses impactos.
A exploração madeireira, que muitas vezes precede a implantação de grandes projetos de agricultura, ocupa a segunda posição entre as atividades que mais causam impacto nas populações de aves: cerca de 50% das espécies sob ameaça se encontram nessas regiões. Entre as principais ameaças se incluem também: a caça predatória (35% das espécies), mudanças climáticas (33% das espécies) e a criação de áreas habitacionais e comerciais (28% das espécies). Uma outra frente gravíssima de problemas é a introdução de espécies exóticas de animais em outros habitats que, segundo o estudo, já foi responsável pela extinção de 122 espécies de pássaros. Outras espécies animais que tem causado fortes impactos nas populações de aves são os ratos e outros roedores, que ameaçam cerca de 500 espécies de aves, gatos, responsáveis por ameaças à cerca de 202 espécies, e cães domésticos, que ameaçam cerca de 79 espécies.
As atividades agrícolas, como já mostramos, respondem de longe pelas maiores ameaças à sobrevivência das aves. A razão de todo esse impacto é bem conhecida – nos últimos 300 anos, a área total ocupada por atividades agrícolas aumentou cerca de 6 vezes em todo o mundo. Aqui no Brasil, país que tem uma colonização relativamente recente quando comparado a regiões ancestrais da África, Ásia e Europa, a velocidade dos desmatamentos para a formação de campos agrícolas foi bem mais intensa, com fortes reflexos nas populações de animais silvestres. Nas últimas décadas, as áreas do bioma Cerrado foram as mais impactadas pelo avanço das fronteiras agrícolas – no Estado de Minas Gerais, citando um dos exemplos mais críticos, o bioma perdeu cerca de 60% da sua área original nos últimos 50 anos.
De acordo com estimativas de especialistas, o Cerrado possui, aproximadamente, 10 mil espécies vegetais e mais de 1.300 espécies de animais vertebrados – a área ocupada pelo bioma é muito grande e ainda faltam muitos estudos para que se realize a catalogação completa das espécies. Cerca de 130 das espécies animais do Cerrado, ou cerca de 10%, estão ameaçadas de extinção. Essa lista inclui anfíbios, aves, invertebrados aquáticos e terrestres, mamíferos, peixes e répteis. Segundo as estimativas, no Cerrado são encontradas entre 837 e 935 espécies de aves, conforme a fonte pesquisada, sendo que apenas 150 dessas espécies são específicas do bioma, um fator que reduz o número de espécies sob risco iminente de extinção – as demais espécies também podem ser encontradas em outras regiões e biomas do país.
O pica-pau-do-parnaíba (Celeus obrieni), espécie nativa de áreas do Cerrado no Piauí, é exemplo de ave sob forte risco no bioma. A espécie (vide foto) tem hábitos alimentares bastante específicos, com nítida preferência por algumas espécies de formigas que vivem em áreas de taboca, uma espécie de bambu típica do Cerrado na região, e também em áreas cobertas por embaúbas. Com o desaparecimento dessas espécies vegetais devido aos avanços das fronteiras agrícolas, o pica-pau-do-parnaíba corre risco de extinção por falta de alimento. Outra espécie de ave bastante característica de áreas de Cerrado e que está sofrendo uma forte pressão ecológica é a ema (Rhea americana). Essa grande ave, a maior espécie das Américas, tem sofrido com a redução das áreas de campos naturais, seu habitat original. Apesar de conseguir se adaptar à vida em meio às grandes plantações, as emas sofrem com a caça predatória: o animal, que chega a pesar cerca de 30 kg, tem uma carne bastante apreciada pelas populações de algumas regiões.
Uma outra espécie de ave bastante emblemática é a ararinha-azul (Cyanopsitta spixii), espécie que num passado distante era encontrada em áreas de Cerrado no Piauí e no Tocantins, mas simplesmente desapareceu dessas regiões e, atualmente, só existem alguns poucos exemplares da espécie em áreas da Caatinga, bioma que também abrigava a espécie. De uma beleza singular, a ararinha-azul foi intensamente caçada para venda a criadores de pássaros de todo o mundo, o que, junto com a destruição dos habitats, foi a principal causa do declínio da espécie. Entidades conservacionistas internacionais estimam que restaram apenas 160 exemplares da espécie no mundo (dados de agosto de 2018), a imensa maioria em coleções de zoológicos estrangeiros. Instituições brasileiras têm realizado intensos esforços para a reprodução de espécimes em cativeiro, com vistas ao repovoamento de antigos habitats em áreas de mata nativa.
Torçamos para que sobrem algumas áreas nativas de Cerrado para receberem de volta essa magnífica espécie de ave e de muitas outras espécies do bioma ameaçadas de extinção.