FALANDO UM POUCO SOBRE A FORMAÇÃO DOS SOLOS

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Na nossa última postagem falamos rapidamente do gravíssimo problema de erosão dos solos e usamos como exemplo o processo de destruição da grossa camada dos solos de massapê na faixa litorânea da Região Nordeste. Conforme apresentamos no texto, a derrubada da Mata Atlântica para a implantação dos grandes canaviais, pouco a pouco foi resultando no carreamento de grandes volumes dos solos de massapê na direção dos corpos d’água – a região perdeu a mata, a maior parte dos férteis solos de massapê e também teve sua antiga e espetacular rede de cursos d’água assoreada e fortemente reduzida. Os impactos ambientais da indústria canavieira na Região Nordeste foi uma espécie de “pacote completo”

Os diversos tipos de solos férteis existentes no mundo não surgiram de uma hora para outra – eles são o resultado de um longo conjunto de processos físicos, químicos e biológicos. Podemos definir solo como uma camada fina sobre uma camada rochosa, sendo constituído por diversos tipos de minerais. Esses minerais se formaram a partir dos intemperismos, que são as alterações físicas e químicas a que as rochas foram expostas desde a sua origem na superfície da terra. Os principais compostos do solo são minerais como a areia e a argila, que garantem as características estruturais do solo, a matéria orgânica, responsável pela fertilidade, a água, elemento responsável pela dissolução dos nutrientes e o ar. 

Para você entender a formação dos solos é interessante começarmos falando da formação das rochas – e um lugar onde grandes formações rochosas estão surgindo nesse exato momento é o Estado americano do Havaí, onde o vulcão Kilauea está ativo e expelindo grandes quantidades de lava, que nada mais é que rocha em estado líquido. A lava escorre por força da gravidade e vai se acumulando sobre os solos já existentes ou corre na direção do mar, formando “novos” solos. Se você fizer uma pesquisa na internet, poderá encontrar imagens fantásticas mostrando as ondas de lava incandescente do Kilauea atingindo o oceano e se solidificando. 

Pois bem – quando as lavas esfriam, o que resta é uma paisagem árida e completamente sem vida, uma vez que a grande maioria das plantas não sobrevive sobre essas rochas ígneas: uma das únicas exceções são os líquens (vide foto). Os líquens são organismos simbióticos, formados por um fungo associado a uma alga verde ou azul, com grande capacidade de sobrevivência em locais inóspitos. Os líquens gradativamente começam a “colonizar” esse novo ambiente e, pouco a pouco, começam a criar uma finíssima cada de material orgânico sobre a superfície rochosa. 

As rochas também passam a sofrer desgastes – as alterações da temperatura provocam expansão e contração das camadas superficiais, provocado trincas e desfolhamentos de finas placas de rocha. Com a exposição às chuvas e ao vento, essas camadas de rocha vão se fragmentando e se juntando aos pequenos depósitos de matéria orgânica criados pelas colônias de líquens. Conforme essa camada de solo fértil vai aumentando, sementes de outras plantas que chegam arrastadas pelo vento conseguem germinar e há uma aceleração no processo de formação de matéria orgânica É esse processo lento e gradativo, chamado de gênese dos solos, o responsável pela formação das terras férteis dos solos das florestas, matas e outras formações vegetais, que algum dia serão usadas pela agricultura. Cada centímetro na espessura desse solo pode levar séculos para se consolidar, mas basta uma chuva forte sobre um solo desnudo para todo esse trabalho acabar arrastado pelas águas

Existem cinco fatores principais para a formação dos solos: o clima, onde temos a radiação solar, a pluviosidade e a pressão atmosférica; os organismos vivos que se desenvolverão e criarão camadas de matéria orgânica; o relevo; o material de origem, que está associado aos tipos de rocha que formam a superfície da região e serão determinantes do tipo de solo que será formado e, não menos importante, o tempo – muito tempo. Regiões de clima quente e de alta pluviosidade, como os Trópicos, tendem a formar camadas de solo em menor tempo do que regiões mais frias ou de baixa umidade. Quanto maior a quantidade de água, mais completo e rápido é o processo de intemperismo – aqui está o segredo de grandes florestas como a Amazônica e a Mata Atlântica. 

Um ponto fundamental e que não pode faltar nessa exposição é a capacidade que os solos têm de reter e regular os fluxos de água, garantindo assim o fornecimento de água para todas as formas vivas, animais e vegetais, e controlando a quantidade e a velocidade que os excedentes de água das chuvas vão chegar aos cursos d’água. Essa é uma capacidade que é desenvolvida ao longo do desenvolvimento dos solos e da vegetação de uma floresta, atingindo um ponto de equilíbrio – a súbita remoção da cobertura vegetal, para criação de um campo agrícola por exemplo, pode romper rapidamente esse frágil equilíbrio e grandes volumes de solo passarão a ser carreados pelas águas das chuvas. 

A busca por um ponto de equilíbrio para os solos das terras onde se pratica agricultura é um novo paradigma que se coloca para os produtores – a Terra é finita e as atividades humanas ao longo dos séculos já nos custaram grandes volumes de solos férteis. Precisamos administrar muito bem os “estoques” que restaram. 

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AGRICULTURA, ÁGUA E A EROSÃO DOS SOLOS

Erosão de solos

Nas últimas publicações falamos sobre os impactos ambientais criados pela produção da cana-de-açúcar, que é a terceira maior cultura perene em nosso país, só perdendo em volume de produção e área ocupada para a soja e o milho. A cana-de-açúcar foi o primeiro cultivar a ser produzida em larga escala aqui no Brasil, já nos primeiros anos da colonização e ocupação efetiva das terras ao longo da costa. O açúcar era uma das mercadorias mais valiosas nos séculos XV e XVI e os portugueses dominavam como ninguém o seu processo de produção.

De acordo com testemunho de um viajante flamengo chamado Emilio van den Bussche, plantações de cana-de-açúcar existiam em Portugal desde o ano 1159. Com o avanço das navegações portuguesas e a descoberta de novos territórios, a cultura gradativamente passou a ser levada para essas novas terras: as primeiras mudas de cana-de-açúcar chegaram na Ilha da Madeira por volta de 1425, em 1460 ao arquipélago dos Açores e em 1493 nas ilhas São Tomé e Príncipe. À sombra dos canaviais seguiu-se a introdução da mão-de-obra escrava – braços e pernas africanos para movimentar as engrenagens da indústria açucareira.

No Brasil, conforme já apresentamos em postagem anterior, as mudas de cana-de-açúcar chegaram nas mesmas naus que trouxeram os primeiros colonizadores. Sem perder tempo, grandes áreas de mata começaram a ser derrubadas e queimadas, de forma a liberar “terras virgens” para a formação dos canaviais. Comerciante e traficantes de pau-brasil frequentavam as costas do país desde os primeiros anos após o descobrimento e as autoridades portuguesas e, especialmente, os navegadores, já tinham excelentes mapas e informações sobre os melhores locais da costa para a construção de “portos” para o escoamento da futura produção do açúcar. A foz do rio Capibaribe, nas proximidades do local onde foi fundada a cidade de Olinda, e a Baía de Todos os Santos, local escolhido para a construção da cidade de Salvador, são dois exemplos de locais abrigados e com condições ideais para a construção e operação de portos.

Toda a faixa costeira desde Santa Catarina (nos tempos do Tratado de Tordesillas, esse era o limite Sul da possessão portuguesa na América do Sul) até o Rio Grande do Norte era coberta pela Mata Atlântica, apresentando solos de altíssima fertilidade. Na região Nordeste, em particular, destacavam-se os solos de massapê. Na descrição de Josué de Castro em seu antológico Geografia da Fome, os solos de massapê apresentam “terra escura, gorda e pegajosa, que recobre em espessa camada porosa os xistos argilosos e os calcários do Cretáceo – é de uma magnífica fertilidade“. A formação desses solos foi o resultado da combinação da densa cobertura vegetal da Mata Atlântica com as características físico-químicas dos solos e um regime de chuvas equilibrado. Ao longo de vários séculos, essa combinação permitiu a formação de uma grossa camada de húmus com características bem particulares – o massapê.

Os colonizadores, homens de mentalidade renascentista e com conhecimentos científicos dos mais precários, não se importaram nenhum um pouco em estudar e conhecer melhor esse novo mundo de clima tropical e com uma temporada de chuvas torrenciais – a urgência de produzir e embarcar quantidades crescentes de açúcar para a Metrópole era a pauta de todos os dias. E, para que se preocupar com o amanhã, quando de dispunha de estoques incontáveis de matas para se derrubar e formar novas áreas para as plantações…

A erosão sistemática das terras passou a fazer parte das paisagens nordestinas – com as margens dos muitos rios completamente despidas de vegetação e com morros e vales sem a proteção das árvores, as abençoadas e fortes chuvas de verão se transformaram rapidamente em “ladras” de terras férteis, arrancando e arrastando para o leito dos rios as grossas camadas de massapê, fruto de um longo e minucioso trabalho da natureza. Os férteis solos, em poucos anos, se transformavam em campos empobrecidos, onde só o ralo capim brotava. Instituíram-se então as derrubadas rotineiras e sistemáticas de novos trechos de matas e a abertura de novas terras agricultáveis. E foi assim, em pouco mais de dois séculos, que o Trecho Nordestino da Mata Atlântica e as férteis terras de massapê desapareceram e se transformaram apenas em notas de rodapé nos livros de história.

Se você quer ter uma ideia de como era essa maravilhosa floresta que um dia já cobriu grande parte do litoral nordestino, recomendo uma viagem pela rodovia Rio-Santos – o trecho entre o litoral Norte do Estado de São e o Sul do Rio de Janeiro ainda preservam a Mata Atlântica à beira mar. Já os coqueirais das costas dos Estados da região Nordeste, esses surgiram a partir dos cocos trazidos da Índia e nada tem a ver com a nossa flora nativa.

A erosão e o carreamento de solos férteis pelas chuvas é, ainda hoje, um dos problemas mais sérios da agricultura. Continuaremos a falar disso na próxima postagem.

AGRICULTURA E FLORESTAS – UM ETERNO CONFLITO

Canaviais

A “invenção” da agricultura, conjunto de eventos que aconteceram entre 10 e 12 mil anos atrás, foi a primeira grande revolução vivida pela humanidade e foi magistralmente definida pelo escritor Alvin Toffler como “A Primeira Onda”. A pequena humanidade de então, gradativamente foi abandonando a vida nômade de caçadores e coletores e passando a viver ao lado dos grandes rios, locais onde era possível praticar a agricultura. 

Isso tudo você já leu aqui neste blog e em mais uma infinidade de fontes diferentes. O que os autores raramente costumam falar e escrever é que a agricultura foi uma atividade criada e desenvolvida originalmente nas estepes da Ásia e nas áreas de várzea de grandes rios como o Nilo, no Norte da África, ou no Indus e Ganges, rios do subcontinente indiano. Esses ecossistemas têm vegetação extremamente rala – as estepes asiáticas são cobertas em sua maior parte por gramíneas, lembrando muito os Pampas gaúchos; as áreas de várzea costumam apresentar grandes extensões de juncais, como por exemplo os papiros do rio Nilo, além de vegetação arbustiva e algumas árvores. Praticar agricultura nestes tipos de terrenos é bem diferente da prática em regiões cobertas por densas florestas, onde primeiro é necessário derrubar e queimar as grandes árvores, formando assim uma espécie de “estepe” artificial, para só depois começar a arar a terra e a semear os grãos e plantar os legumes, frutas e verduras. 

Um grande exemplo do impacto da agricultura sobre as áreas florestais foi o que aconteceu no continente europeu, que originalmente apresentava grandes extensões cobertas por densas florestas. Após as migrações de sucessivos grupos humanos já habituados à prática da agricultura em suas terras de origem no Oriente Médio e Ásia Central, as florestas da Europa passaram a ser derrubadas gradativamente. Um grande exemplo é a Inglaterra, país que já foi completamente coberto por florestas e que hoje tem algo como 2% da cobertura vegetal original – a famosa Floresta de Sherwood, esconderijo do lendário Robin Hood, hoje em dia não passa de um pequeno bosque, que lembra muito um parque urbano. 

A introdução da agricultura aqui no Brasil começou na década de 1530, época em que desembarcaram em nossas terras os primeiros colonizadores, que nas suas “bagagens” trouxeram as primeiras mudas de cana-de-açúcar, bois para puxar os arados e as grandes carroças de lenha (naquela época, para se produzir 1 kg de açúcar, era necessária a queima de 20 kg de lenha nos engenhos coloniais) e alguns escravos africanos, uma vez que se imaginava usar a mão de obra dos indígenas. Havia um “pequeno obstáculo” para o início da formação dos primeiros canaviais – toda a faixa Leste das costas do Brasil era coberta por uma densa floresta, que mais tarde acabou batizada de Mata Atlântica

Originalmente, a Mata Atlântica cobria uma extensa faixa de terras ao longo do litoral brasileiro, desde o Norte do Rio Grande do Sul até o Rio Grande do Norte. Em alguns trechos, como nos Estados de São Paulo e Paraná, a floresta avançava continente a dentro atingindo áreas da Argentina e do Paraguai. A área original da Mata Atlântica é calculada em pouco mais de 1,3 milhão de km² – o que restou em nossos dias é menos de 10% dessa área. No litoral da região Nordeste, a Mata Atlântica ocupava uma estreita faixa ao longo do litoral, com uma largura que variava entre 30 e 80 km e que ainda hoje é conhecida como a Zona da Mata. 

Exploradores e cronistas das primeiras décadas da colonização falavam da imponência da Mata Atlântica no litoral nordestino, onde se encontravam grandes árvores e grandes rios – por mais estranho que isso possa parecer nos dias atuais, a água era um elemento dominante na faixa litorânea do Nordeste. Preste atenção neste trecho do livro Nordeste, de Gilberto Freire: 

“Rios do tipo do Beberibe, do Jaboatão, do Una, de Serinhaém, do Tambaí, do Tibiri, do Ipojuca, do Pacatuba, do Itapuá. Junto deles e dos riachos das terras de massapê se instalaram confiantes os primeiros engenhos. Rios às vezes feios e barrentos, mas quase sempre bons e serviçais, prestando-se até a lavar os pratos das cozinhas das casas-grandes e as panelas dos mucambos (ou mocambos).” 

A introdução da cultura da cana-de-açúcar na região Nordeste gradativamente foi destruindo a floresta a “ferro e a fogo” – grandes trechos da Mata Atlântica arderam continuamente dia e noite durante décadas, liberando assim espaço para o plantio de novas mudas das plantas e garantindo a produção continua do valioso açúcar. Esse avanço feroz da agricultura contra as matas nordestinas teve um altíssimo custo ambiental – os riquíssimos e férteis solos de massapê, gradativamente, passaram a ser carreados pelas chuvas e arrastados na direção desses grandes rios descritos por Freire; os próprios rios, por fim, acabaram assoreados, poluídos e com caudais irremediavelmente reduzidos. Dois dos rios citados, o Beberibe – afluente do rio Capibaribe, e o Ipojuca, ambos localizados no Estado de Pernambuco, não por acaso estão na lista dos rios mais poluídos do Brasil. E sem os solos de massapê e a grande fartura de água dos dias de outrora, a produtividade desses canaviais também foi caindo gradativamente.

São esses impactos ambientais, que a história da cultura da cana-de-açúcar no Nordeste brasileiro resume tão bem, que a agricultura já provocou e que ainda continua provocando em algumas regiões do Brasil e do mundo, e que precisam ser repensados. Ao mesmo tempo em que todos os seres humanos dependem da agricultura para a produção dos alimentos e matérias primas de todos os tipos, também precisam das águas dos rios. É fundamental que se garanta que os recursos hídricos continuem fluindo e com águas de boa qualidade para todos. 

O AÇÚCAR E O CONSUMO DE ÁGUA

Acucar

Na postagem anterior falamos rapidamente sobre a cultura da cana-de-açúcar no Brasil, atividade econômica que está profundamente intricada na própria história do país – a produção de açúcar em grande escala foi a primeira atividade econômica organizada em nosso país, especialmente na região Nordeste. Até meados do século XVII, quando a produção colonial brasileira foi superada pelas colônias britânicas, espanholas e francesas nas ilhas do Mar do Caribe, nosso país-colônia era o líder mundial na produção de açúcar. Além da concorrência com nações estrangeiras, a indústria açucareira no Nordeste sofreu um forte golpe com a descoberta de grandes reservas de ouro na região do atual Estado de Minas Gerais a partir da última década do século XVII, quando enormes contingentes de colonos e escravos abandonaram os canaviais e se embrenharam nos sertões em busca do cobiçado ouro. Alguns cálculos históricos afirmam que 2/3 da então população brasileira da época estava envolvida com essa prospecção e o garimpo do ouro.

Apesar disto, o cultivo da cana-de-açúcar nunca foi abandonado no Brasil e a atividade se manteve viva ao longo dos séculos. O Brasil é, há várias décadas, o maior produtor mundial de açúcar e de etanol extraído da cana-de-açúcar. De acordo com dados da UNICA – União da Indústria da Cana-de-Açúcar, a área total ocupada pelo cultivo da cana-de-açúcar no Brasil é da ordem de 10,2 milhões de hectares – no Estado de São Paulo, essa área plantada corresponde a 5,6 milhões de hectares (dados de 2016). Segundo estimativas dessa entidade, a produção nacional de açúcar prevista para a safra 2018 será de aproximadamente 38,6 milhões de toneladas; o Estado de São Paulo, que detém aproximadamente 60% da produção nacional, terá uma produção de aproximadamente 24,6 milhões de toneladas. A produção total de etanol é estimada em 27,9 milhões de m³, sendo que a produção paulista está estimada em 13,2 milhões de m³.

O cultivo da cana-de-açúcar é a terceira maior cultura temporária em área ocupada, só ficando atrás das áreas usadas para o plantio de soja e do milho. As safras de cana se dividem em dois períodos distintos no país – nas regiões Norte e Nordeste, que respondem por aproximadamente 10% da produção nacional de cana-de-açúcar, faz-se a colheita da cultura entre os meses de setembro e março; já na grande região Centro-Sul, a safra da cana se realiza entre os meses de abril e novembro. Essa diferença regional entre os períodos de safra está ligada diretamente às diferenças climáticas, especialmente no que diz respeito aos períodos das chuvas.

Conforme comentamos na postagem anterior, a cana-de-açúcar é uma planta que necessita de grandes quantidades de água para se desenvolver e, especialmente, para produzir o seu “fruto” mais importante – o caldo de cana ou garapa, como é popularmente conhecido. Cerca de 90% da massa da cana-de-açúcar é formada por água e, durante o processo de moagem, cerca de 70% desse volume líquido da planta é recuperado na forma de caldo, que devidamente processado se transforma em açúcar, etanol, aguardente (a famosa “água que passarinho não bebe”), rapadura, entre outros produtos.

Para estimarmos o volume total de água consumido apenas na produção do açúcar (que engloba os gastos de água para o crescimento das plantas e também os gastos nos processos nas industrias), vamos utilizar o número que apresentei na postagem anterior, com a estimativa de litros de água utilizados para se produzir 1 kg de açúcar: entre 1.500 e 1.800 litros, valores que, convertidos em metros cúbicos, correspondem entre 1,5 e 1,8 m³ de água para cada kg de açúcar produzido. Como a produção de açúcar está sendo apresentada em toneladas, precisamos ajustar esses números, que ficarão entre 1.500 e 1.800 m³ de água para cada tonelada de açúcar produzido. Feitos os devidos cálculos, são utilizados entre 57,9 e 69,4 bilhões de m³ de água na produção total de açúcar no Brasil; no Estado de São Paulo, o consumo corresponde a valores entre 36,9 e 44,3 bilhões de m³ de água.

E o que esses números significam?

Um ser humano consome, em média, 55 m³ de água por ano (são aproximadamente 150 litros de água a cada dia). Esse consumo inclui banhos, descargas sanitárias, limpeza da habitação, lavagem de roupas, preparação de alimentos e o próprio consumo de água na forma de bebida. O que é consumido em água para a produção do açúcar no Brasil, caso os meus cálculos e as premissas estejam corretas, seria suficiente para atender o consumo anual de uma população entre 1 e 1,2 bilhão de habitantes – quase uma Índia. Se considerarmos apenas o Estado de São Paulo, essa população ficaria entre 654 e 800 milhões de habitantes. 

Muito mais do que um exercício de matemática, esses números mostram o impacto parcial da produção de um único produto de origem agrícola, o açúcar, no consumo geral da água. E como a agricultura é, de longe, a atividade humana que mais consome água em todo o mundo, é importante racionalizar ao máximo esse uso e evitar perdas de grandes volumes de água ao longo dos processos produtivos.

Cada litro economizado, conta muito no final dos processos.

A “ÁGUA QUE PASSARINHO NÃO BEBE”, OU FALANDO DA CANA-DE-AÇÚCAR

Canavial - foto Clóvis Ferreira

Meus avós maternos eram sitiantes e, até mais menos 1975, eles viveram numa pequena propriedade rural nas proximidades da cidade de Lutécia, na região Centro-Oeste do Estado de São Paulo. Até aquela época, o café era uma das culturas dominantes na agricultura daquela região e de grande parte do Estado – aliás, meu avô era um pequeno produtor de café. Em meados da década de 1970, o Governo militar criou o Pró-Álcool – Programa Nacional do Álcool, voltado à produção de álcool para uso como combustível veicular – os cafezais foram arrancados e todo o nosso Estado acabou transformado em um grande canavial (vide foto). A cultura da cana sempre existiu em São Paulo, porém, em escala bem menor e com fins “mais nobres”, como a produção do açúcar e das famosas “caninhas paulistas”, aquela “água que passarinho não bebe”… 

A cana-de-açúcar (saccharum officinarum) chegou ao Brasil na década de 1530, nas mesmas embarcações que trouxeram os primeiros Donatários das Capitanias Hereditárias, onde merecem destaque Martim Afonso de Sousa, fundador da Capitânia de São Vicente, embrião do Estado de São Paulo, e Duarte Coelho, Donatário da Capitânia de Pernambuco. O açúcar era um dos produtos mais valorizados naquele período e a Coroa Portuguesa tudo fez para transformar sua grande colônia sul-americana numa das grandes produtoras mundiais. Em Pernambuco e em outras Capitânias da Região Nordeste, a produção do açúcar foi a principal base econômica nos séculos XVI e XVII; em São Vicente, a produção do açúcar não prosperou – os ataques frequentes de piratas aos engenhos inviabilizaram a cultura e os chamados “paulistas” acabaram se dedicando a outras atividades mais rentáveis, entre elas a caça e a venda de índios escravizados para as outras Capitânias. 

A área total ocupada pela cana-de-açúcar atualmente no Brasil é de aproximadamente 9 milhões de hectares, onde se obtém uma produtividade média de 100 toneladas por hectare – algumas variedades da planta chegam a ter uma produtividade de até 185 toneladas por hectare. A produção total de cana-de-açúcar no país é de aproximadamente 690 mil toneladas (dado de 2011) – o Estado de São Paulo é o maior produtor nacional com uma participação de 52% na produção total de cana-de açúcar

Segundo especialistas em botânica, a cana-de-açúcar é originária das Ilhas Filipinas e a planta tem parentesco com algumas espécies de gramíneas, Através de sucessivos melhoramentos genéticos e cruzamentos, a planta foi ganhando corpo e produzindo quantidades cada vez maiores de seiva doce, matéria prima para a produção do açúcar. Os indianos foram os primeiros a produzir o çakkara, palavra em sânscrito usada originalmente para designar o açúcar. Os árabes adaptaram a palavra para súkkar e posteriormente os gregos para sáckcharon – o açúcar ganhou o mundo e o nome foi adaptado em diferentes línguas: azúcar, azucre, sucre, azukre, sucre, suggar, siúcra, zucchero, suiker, zucker, sukker, socker, sukke, sykur e sokeri, respectivamente em espanhol, galego, catalão, basco, francês, inglês, irlandês, italiano, holandês, alemão, dinamarquês, sueco, islandês, norueguês e finlandês. 

A produção da cana-de-açúcar necessita de grandes volumes de água, uma vez que, na composição da planta, 90% da sua massa é constituída por água. A maioria dos processos fisiológicos e bioquímicos da planta usam água, onde o líquido desempenha funções como solvente, transportador de nutrientes, regulador de temperatura, tanto no resfriamento das plantas através de evapotranspiração quanto na manutenção e distribuição do calor. Durante o processo de moagem nas usinas de produção de açúcar e de álcool, cerca de 70% do peso das canas colhidas é recuperado na forma de caldo, a popular garapa, e o restante é chamado de bagaço, matéria seca que pode ser usada como forração e fertilizante para os solos ou queimada em uma unidade geradora de energia elétrica. Em média, a produtividade de açúcar é de 13,5 toneladas por hectare. Já a produtividade de álcool (etanol) fica entre 85 e 90 litros para cada tonelada de cana-de-açúcar

De acordo com informação do site Water Footprint, para se produzir 1 kg de açúcar há um consumo entre 1.500 e 1.800 litros de água, o que nos dá uma idéia do consumo total nas grandes plantações. Há um esforço dos produtores no sentido de afirmar que o consumo de água nas lavouras de cana é bem menor do se divulga. Inclusive, encontrei um comunicado de uma grande cooperativa de produtores de açúcar e álcool afirmando que os canaviais paulistas consomem menos de 10% de toda a água usada em irrigação no Estado de São Paulo. Sem nos prendermos inicialmente a um volume total, podemos afirmar que a água é um elemento fundamental em todos os processos da indústria canavieira, desde o plantio das mudas até o processamento das canas nas usinas. 

E como falar de água e agricultura é o tema atual do blog, falaremos mais e com maiores detalhes sobre a cana-de-açúcar nos nossos próximos posts

O GAVIÃO CARAMUJEIRO E OUTRAS ESPÉCIES SOB AMEAÇA NOS BANHADOS

Gavião Caramujeiro

Nas postagens anteriores, falamos dos problemas ambientais criados pela expansão descontrolada dos arrozais na direção das áreas de banhado no Estado do Rio Grande do Sul.  Apesar dos importantes benefícios econômicos e sociais gerados pela atividade, o custo ambiental é extremamente alto – diversas espécies animais e vegtais estão sob ameaça; nascentes de importantes rios também. Encerrando esse tema, separei um longo trecho de um postagem anterior que mostra com maiores detalhes os impactos ambientais que as áreas de banhado dos Pampas gaúchos têm sofrido nas últimas décadas:

Os banhados são ecossistemas extremamente ricos em vida, podendo ser comparados aos bancos de corais dos oceanos. Funcionando como uma espécie de “esponja natural”, as áreas de banhado acumulam grandes volumes de água nos períodos de chuva, auxiliando inclusive no controle das cheias dos rios; nos períodos de seca, fornecem água para as lagoas, garantido a sobrevivência de um sem número de espécies animais e vegetais. Os solos úmidos dos banhados são ricos em matéria orgânica, resultante da decomposição dos juncos e gramíneas – essa excepcional fertilidade dos solos tornou essas áreas em alvo para a expansão das fronteiras agrícolas.

As algas estão na base da cadeia alimentar das áreas de banhado. Estes vegetais se nutrem a partir da filtragem das partículas em suspensão na água, desempenhado um papel de filtro biológico do ecossistema. Diversas espécies de moluscos se alimentam destas algas e, por sua vez, servem de alimento para diversas espécies de peixes – aves locais e migratórias buscam alimento e abrigo nos banhados, assim como toda uma cadeia de animais como capivaras, lontras, ratões-do-banhado e jacarés-do-papo-amarelo. Toda uma frágil teia de vida e de inter-relações entre espécies animais e vegetais sobrevive nos banhados.

Um exemplo da fragilidade do equilíbrio ambiental dos banhados pode ser visto numa espécie de caramujo encontrado nestes locais – a pomácea. Esse caramujo é uma importante fonte de alimento para diversas espécies de aves, sobretudo ao gavião caramujeiro (vide foto), espécie que se alimenta exclusivamente desta “iguaria”. A drenagem dos banhados para a implantação de culturas de grãos ou o carreamento de grandes volumes de resíduos de defensivos agrícolas, pode levar à extinção de grandes colônias deste caramujo – a maioria das aves perderá um dos seus alimentos: o gavião caramujeiro, entretanto, perderá a sua única e exclusiva fonte de alimentação.

Um outro exemplo da importância biológica das áreas de banhado tem a ver com uma série de aves migratórias que utilizam estes ecossistemas como áreas de descanso, alimentação e até como territórios de nidificação. Os cisnes-do-pescoço-preto (Cygnus melanocoryphus) tem seu território distribuído desde a Terra do Fogo, no extremo Sul da América do Sul até áreas na região Sudeste do Brasil – esse extenso território inclui, além do nosso território, regiões da Argentina, Chile, Uruguai, Paraguai e Ilhas Malvinas. Diversos banhados dos pampas gaúchos ficam no caminho das rotas migratórias da espécie. Uma outra espécie, a coscoroba (Coscoroba coscoroba), também chamada de cisne-coscoroba e capororoca, é uma ave migratória com território indo desde a Patagônia, no sul da Argentina e do Chile, até as regiões Sul do Brasil e Estados como São Paulo e Mato Grosso do Sul. Estas aves utilizam áreas de banhados do extremo Sul para descanso, alimentação e nidificação ao longo de suas migrações. O comportamento instintivo destas aves é o resultado de milhares de anos de adaptação ao meio ambiente e, quando um dos seus habitats é destruído ou modificado, estes animais não conseguem mudar seus hábitos rapidamente – grupos inteiros de animais podem morrer de fome ou simplesmente não conseguir se reproduzir, colocando a espécie sob pressão e ameaça de extinção.

As áreas de banhado também têm importância ímpar para os rios gaúchos. Conforme já comentamos, eles atuam na regulação dos níveis de água tanto nos períodos de cheias quanto de secas; também são fundamentais para a manutenção da biodiversidade das espécies animais que vivem nos rios, incluindo-se peixes, crustáceos, mamíferos, aves e répteis, que têm nos banhados importantes áreas de alimentação e reprodução. Uma função crítica desempenhada pela vegetação dos banhados é a retenção e a depuração de sedimentos e despejos que correm na direção da calha dos rios, auxiliando na manutenção da qualidade das águas.

Nos banhados também se encontram nascentes que contribuem com substanciais volumes de água, recurso importante nos períodos de seca. Diversos rios em todo o Estado do Rio Grande do Sul têm sofrido fortes impactos devido a esta sistemática e contínua destruição dos banhados, onde destacamos os problemas dos rios Caí, Gravataí e dos Sinos, corpos d’água que, infelizmente, integram a lista dos dez rios mais poluídos do Brasil.

O ARROZ NOSSO DE CADA DIA, OU AINDA FALANDO DA DESTRUIÇÃO DOS BANHADOS SULINOS

Arroz

O arroz com feijão é uma das combinações mais importantes da alimentação dos brasileiros e faz parte da identidade nacional desde os tempos coloniais. Graças a essa particularidade, o Brasil é o maior produtor e consumidor de arroz fora da Ásia, continente onde o grão é a base alimentar de inúmeros países. A produção de arroz no Brasil atinge a cifra anual de 15 milhões de toneladas, sendo que 12,14 milhões de toneladas atendem ao mercado consumidor interno e a diferença é exportada. A maior parte da produção do grão no país está concentrada no Estados da Região Sul, responsáveis por 75% da produção nacional. 

O Rio Grande do Sul é, disparado, o maior produtor brasileiro de arroz, apresentando 25,6% da área cultivada e 44,5% da produção nacional. A rizicultura gera receitas anuais de R$ 8 bilhões e emprega aproximadamente 350 mil trabalhadores em todo o Brasil. Vejam que os números são respeitáveis do ponto de vista econômico e social, mas, apesar de “tudo de bom” que a cultura do grão representa para inúmeros municípios e populações, o arroz causa uma série de problemas ambientais – no Rio Grande do Sul, o custo ambiental da produção de arroz está na destruição dos banhados, tema que abordamos na postagem anterior, quando falamos dos problemas no Banhado Grande

De acordo com dados da UFRGS – Universidade Federal do Rio Grande do Sul, a área original ocupada pelo conjunto de banhados da região conhecida como Banhado Grande correspondia a 450 km²; a partir da década de 1970, com o sistemático avanço das plantações de arroz e com a implantação dos canais de irrigação, incluindo-se também as obras realizadas pelo DNOS – Departamento Nacional de Obras e Saneamento, as áreas de banhado sofreram uma substancial diminuição – em meados da década de 1980, estas áreas estavam reduzidas a apenas 138 km²; no início da década de 1990, os banhados da região estavam limitados a uma área equivalente a 60 km². Estima-se que a área atual do Banhado Grande corresponda a apenas 10% da área original encontrada na época do início da colonização e povoamento da região. 

Um dos maiores responsáveis pela dramática redução do Banhado Grande foi um canal de drenagem com extensão total de 20 km, construído pelo DNOS, uma antiga autarquia do Governo Federal na década de 1970, com o objetivo de ampliar as áreas produtoras de arroz. Com a abertura desse canal principal e de uma série de canais transversais menores, a região ficou livre das enchentes anuais e extensas áreas “secas” foram disponibilizadas aos arrozeiros para o aumento da área plantada. Esses conjunto de canais comprometeu a capacidade do Banhado Grande em acumular grandes volumes de água e alterou consideravelmente os regimes fluviais do rio Gravataí – no período chuvoso, o rio passou a apresentar fortes correntezas e grandes volumes de água; no período da seca, sem o fornecimento de água pelos banhados, o rio se apresenta com baixíssimos níveis de água, comprometendo o abastecimento das populações e dificultando a diluição dos grandes volumes de esgotos lançados in natura na calha do rio. As obras, feitas com o uso de grandes volumes de recursos públicos, beneficiou um pequeno grupo de arrozeiros e causou prejuízos gigantescos para centenas de milhares de habitantes da região, além de danos, muitos irreversíveis, para a vida natural. 

Além da redução dos caudais do importante rio Gravataí, há um outro grave problema – resíduos de fertilizantes de pesticidas usados nas plantações são arrastados para a calha dos arroios, nome dado na região Sul para córregos e riachos, e acabam atingindo a calha do rio Gravataí. Estes resíduos químicos podem ser extremamente prejudiciais para a saúde das populações que são abastecida com a água desses rios – o rio Gravataí é responsável pelo abastecimento de mais de um milhão de pessoas na Região Metropolitana de Porto Alegre. O rio Gravataí tem pouco mais de 3 km de extensão e suas águas atravessam o trecho Norte dessa região, onde fica uma parte importante do cinturão verde local. Conforme já comentamos em postagem anterior, os chamados cinturões verdes são importantes áreas produtoras de verduras e vegetais frescos, que abastecem os mercados das médias e grandes cidades; as águas de irrigação usadas nessas plantações costumam ter uma qualidade discutível, especialmente devido à contaminação por esgotos – os resíduos químicos das plantações de arroz encontrados nas águas dos rios só pioram esse quadro. 

O Banhado Grande é só um exemplo do avanço dos arrozais contra essas áreas tão importantes para o meio ambiente, tanto como habitat da vida selvagem quanto na acumulação e fornecimento de água em nascentes de rios importantes para o abastecimento de populações. 

Imagino que você pode estar pensando que a proibição do cultivo de arroz seria uma solução possível – evidentemente que não. Precisamos encontrar formas de produzir os alimentos que nossa população precisa e que nosso país necessita para exportar e gerar receitas, porém, sem destruir os sistemas naturais. Conforme já apresentamos em postagens anteriores, existem tecnologias modernas de irrigação com impactos ambientais bem menores – precisamos passar a utilizar essas tecnologias e avaliar com seriedade os impactos ambientais das atividades rurais em nosso país. 

A RIZICULTURA E A DESTRUIÇÃO DOS BANHADOS NO RIO GRANDE DO SUL

Saracura do banhado

Nesta série de postagens, estamos tratando dos impactos da agricultura irrigada no meio ambiente. Os usos da água na agricultura correspondem, em média, a 70% do consumo da água disponível em uma região – aqui no Brasil, esse consumo é até um pouco maior: 74%. Como se já não fosse suficiente esse alto consumo de água, a maior parte dos sistemas de irrigação em uso são altamente ineficientes e têm perdas próximas a 50%. Já mostramos vários exemplos em outros países – é hora de começarmos a falar dos problemas da irrigação aqui no Brasil. Comecemos falando dos impactos das atividades agrícolas nos banhados sulinos. 

Os banhados são áreas planas e alagadiças, típicas das regiões dos Pampas gaúchos. Em outras regiões são chamados de charco, pântano, brejo, várzeas, turfas, entre outros. São áreas de transição entre ecossistemas aquáticos e terrestres, que têm uma série de funções ecológicas importantes – uma das mais importantes é a capacidade que as áreas de banhado têm de armazenar grandes quantidades de água nos períodos chuvosos e liberar lentamente essa água acumulada nos períodos de seca. Os banhados são, literalmente, ecossistemas reguladores dos fluxos de água dos rios e abrigam uma grande biodiversidade de espécies animais e vegetais. 

Existem aproximadamente 600 espécies de aves identificadas no Rio Grande do Sul, das quais, aproximadamente 1/3 utilizam as áreas de banhados em algum momento de suas vidas. Cerca de 100 espécies de aves, de espécies nativas e migratórias, utilizam as áreas de banhado para nidificar. Também são inúmeras as espécies de peixes, mamíferos, répteis, anfíbios, crustáceos e insetos que tem como habitat as áreas de banhado. Essa rápida descrição mostra a importância desse ecossistema para a vida animal, vegetal e para a formação de inúmeros riachos e rios em toda a região dos Pampas sulinos. O avanço dos cultivos de arroz na direção das áreas de banhado no Rio Grande do Sul está, literalmente, destruindo esses ecossistemas. Vejamos o exemplo do Banhado Grande: 

O Banhado Grande, localizado entre os municípios de Santo Antônio da Patrulha, Gravataí, Glorinha e Viamão, reúne todas estas características, recebendo contribuições de inúmeros cursos d’água de diversos municípios, inclusive de áreas dos Banhados Chico Lomã e dos Pachecos. O Banhado Grande é o principal formador do rio Gravataí. Por sua importância regional, a região foi elevada a APA – Área de Proteção Ambiental, a partir do Decreto Estadual n° 38.971, de 23 de outubro de 1998. Com uma área total de 133 mil hectares, esta APA reúne áreas do Banhado Grande, Banhado de Chico Lomã e Banhado dos Pachecos, tendo como principais objetivos a proteção dos ecossistemas naturais restantes e a recuperação das áreas degradadas

Formado pelos biomas Pampa e Mata Atlântica, o Banhado Grande ocupa uma área correspondente a 2/3 da bacia hidrográfica do rio Gravataí. A vegetação original é composta predominantemente por espécies de banhados e de matas de restinga, sobre os solos arenosos da Coxilha das Lombas, que é uma região com as chamadas paleodunas, resquícios de tempos antigos quando a região foi coberta pelas águas do Oceano Atlântico. Entre as espécies vegetais destacam-se a tarumã, árvore símbolo da cidade de Gravataí, o angico, o açoita-cavalo, a guajuvira, os araçás, as pitangueiras, entre outras espécies. Na fauna, são destaques os famosos ratões-do-banhado, as capivaras, os lobos guarás, jacarés-do-papo-amarelo e também os cervos-do-pantanal – aliás, a região é o último refúgio destes animais na região Sul do Brasil.  

Um outro animal, o curioso tuco tuco (Ctenomys lami), é uma espécie de roedor que lembra uma pequena marmota americana e só é encontrada na região da Coxilha das Lombas – a espécie está sob forte ameaça de extinção pela diminuição do seu habitat.  Os terrenos úmidos também possuem uma rica variedade de répteis e anfíbios. Entre as aves merecem destaque o inhambu, a garça branca, a pomba, a saracura (vide foto) e o araquã, uma espécie de faisão, além de uma infinidade de aves migratórias que buscam refúgio e alimentação nos banhados durante as escalas de suas longas jornadas. 

Os solos dos banhados possuem grandes volumes de matéria orgânica em decomposição, resultado do acúmulo de folhas, gramíneas e juncos mortos – estas características tornam estes solos altamente férteis e cobiçados pelos agricultores. As áreas de entorno do Banhado Grande vêm sendo ocupadas por grandes extensões de cultivos agrícolas, especialmente arroz, desde a década de 1940. Estes produtores, inicialmente, passaram a abrir redes de canais para a irrigação de suas plantações – esses canais passaram a funcionar como drenos, reduzindo gradativamente as áreas encharcadas e aumentando as áreas agricultáveis, que avançaram sem controle contra as terras dos banhados. 

Além dos impactos diretos resultantes da redução das áreas dos banhados, a produção do arroz necessita de grandes volumes de água, que é bombeada ininterruptamente das áreas úmidas e dos rios, geralmente nos meses de janeiro e fevereiro, época de maior demanda pela cultura e, coincidentemente, auge do período das chuvas, quando os banhados acumulam grandes estoques de água. As áreas de banhados, que funcionam como esponjas naturais, acumulam água nos períodos de chuva e fornecem água nos períodos de seca – sem poder acumular a água desviada para os arrozais, os banhados ficarão com estoques muito reduzidos para fornecimento ao meio ambiente no período das secas.  

Um outro problema grave, resultante do bombeamento de água para os arrozais, são os resíduos de fertilizantes e de pesticidas que são carreados com as águas excedentes e que voltam para as áreas de banhado. Esses produtos químicos interferem com os ciclos de vida de algas, insetos e pequenos crustáceos, que vivem em meio a água e vegetação do banhado, e que estão na base da cadeia alimentar do ecossistema, sendo fundamentais para a alimentação de peixes, aves, mamíferos, anfíbios e répteis.  

Continuaremos com esse assunto na próxima postagem. 

OS DESAFIOS DA AGRICULTURA IRRIGADA NA AUSTRÁLIA

Trigo na Austrália

Nas duas postagens anteriores, falamos da baixa disponibilidade de água no continente australiano, uma característica natural que foi grandemente amplificada durante a chamada Seca do Milênio, uma estiagem absolutamente fora dos padrões climáticos do país e que se estendeu entre os anos 2000 e 2009. Além de todos os problemas no abastecimento das cidades e indústrias, a agricultura da Austrália foi fortemente prejudicada nesse período. 

A bacia hidrográfica dos rios Murray-Darling, a mais importante da Austrália, ocupa uma área de 1,061 milhão de km² e concentra 40% da área agrícola e 85% de toda a área irrigada do país. Essa região agrícola é responsável por 75% da produção de grãos da Austrália e ocupa áreas dos Estados de Queensland, Nova Gales do Sul e Vitória. Além da disponibilidade de água, recurso bastante escasso no continente, essa região apresenta climas Mediterrâneo (temperado) e Subtropical. As cidades mais importantes da Austrália ficam nessa região: Sidney, Adelaide, Brisbane, Melbourne e Camberra, a capital do país. 

Com a redução drástica das chuvas a partir do ano 2000 e sem a recarga dos aquíferos alimentadores das nascentes dos rios da bacia hidrográfica dos rios Murray-Darling, a redução dos caudais foi imediata, caindo para 1/5 da média histórica, e a produção agrícola despencou. A produção de arroz, citando o exemplo de uma cultura altamente dependente de água, sofreu uma redução de 98%. A produção de trigo (vide foto), um dos grãos mais importantes da Austrália, que ocupava um patamar da ordem de 24 milhões de toneladas/ano, despencou para 13 milhões de toneladas/ano

E não foram apenas as culturas agrícolas que sofreram com a maior seca já registrada no continente australiano: as florestas de eucalipto, uma árvore nativa e uma das marcas registradas do país, sofreram uma mortalidade de 80% por causa da falta de chuvas. Uma área florestal equivalente a soma dos territórios da França e da Alemanha foi destruída

O clima da Austrália sempre teve um padrão climático bastante definido e, ao longo de aproximadamente 120 anos de observações sistemáticas, sempre ocorreram secas de intensidade variada a cada dois anos. Essa previsibilidade das secas moldou o padrão de comportamento dos agricultores, que sempre mantiveram reservas de água em açudes e reservatórios para esses momentos de seca. A Seca do Milênio fugiu completamente de qualquer planejamento ou previsibilidade. 

Conforme comentamos na postagem anterior, as autoridades do Governo Federal e dos Estados, assim que perceberam a gravidade da situação, rapidamente tomaram uma série de medidas com o objetivo de reduzir drasticamente o consumo de água pelas populações das cidades, indústrias e produtores agrícolas. O Primeiro Ministro da Austrália à época, ao ser questionado por um jornalista sobre a eventual continuidade das restrições ao uso de água para irrigação das plantações, medida que chegou a ser tomada por um curto período, afirmou que “a proibição da irrigação teria um impacto potencialmente devastador na economia australiana.” 

De acordo com a legislação da Austrália, os recursos hídricos pertencem aos Estados, que são os responsáveis pela gestão e a outorga dos usos. Com o agravamento da seca no país, o Governo Federal australiano baixou novas leis, passando a posse dos recursos hídricos para a União e estabeleceu novas regras para a outorga dos usos. Um dos pontos mais importantes e interessantes dessa nova política foi a criação de mercado de compra e venda de água, muito parecido com o mercado de ações. Um determinado produtor agrícola teria de procurar os órgãos federais responsáveis e solicitar a compra de um volume de água, necessário para a irrigação de suas plantações, pagando um “valor de mercado” por essa água.  

Esse alto custo da água forçou os agricultores a desenvolver planos de gestão e de controle dos volumes gastos, racionalizando ao máximo o consumo de água. Os sistemas de irrigação tradicionais, onde as perdas médias de água são da ordem de 50%, rapidamente foram aposentados e sistemas mais eficientes passaram a ser implantados. Apesar das quedas na produção de grãos durante o período de duração da Seca do Milênio, a agricultura irrigada australiana acabou saindo fortalecida, com a modernização dos sistemas de irrigação e a mudança da mentalidade dos produtores, que passaram a se preocupar com o aumento da eficiência e a redução do consumo de água no campo. 

Como diz um velho ditado: há males que vem para o bem! 

A SECA DO MILÊNIO NA AUSTRÁLIA

Seca do Milênio

Segundo alguns estudos históricos, navegadores portugueses e holandeses atingiram a costa Norte do continente australiano em diversas ocasiões a partir do início do século XVI e acabaram não demonstrando maiores interesses por aquela terra seca e inóspita – as verdejantes e úmidas ilhas indonésias e as costas do Sudeste asiático lhes pareceram mais promissoras. Foi somente no ano de 1770, que o lendário capitão James Cook, no comando do navio britânico HMS Endeavor, atingiu a costa Leste da Austrália e tomou posse das terras oficialmente em nome da Coroa Inglesa. 

O início da colonização da Austrália se deu em 1788, quando teve início a implantação de uma colônia penal na região de Botany Bay – essa colônia foi o embrião da cidade de Sidney. A partir do início do século XIX, novos contingentes de imigrantes foram chegando ao continente australiano e novas cidades passaram a ser fundadas na faixa costeira. O deserto interior australiano, o Outback, era totalmente desconhecido. No contato com os povos aborígenes, que habitavam a Austrália há dezenas de milhares de anos, esses colonizadores ouviram lendas que falavam de um grande “mar interior” com águas doces. 

As especulações sobre esse “mar interior” ganharam força em 1827, ano em que Thomas J. Maslen publicou o seu Atlas do Mundo, onde, curiosamente, foi incluído um mapa da Austrália onde aparecia esse mar, localizado nas cabeceiras dos rios Macquire e Castlereagh. Anos mais tarde, o irlandês George Fletcher Moore publicou um livro, onde reforçava a ideia da existência desse “mar” nas proximidades da cidade de Perth. Foram muitos os exploradores que se embrenharam pelos sertões australianos na busca desse lendário mar interior ( uma expedição, inclusive, levou um bote beleeiro na viagem) e a única coisa que encontraram foram as terras secas abrasadas pelo forte sol do interior australiano. 

A Austrália é continente mais seco do mundo e, na falta desse “mar interior”, os colonizadores moldaram suas cidades e vidas dentro de uma modesta disponibilidade de recursos hídricos. Com o crescimento das cidades e com as facilidades criadas pelas estações de tratamento e as redes de distribuição de água, as populações das cidades australianas acabaram se esquecendo da carência generalizada desse recurso e o consumo aumentou substancialmente. Essa “farra da água” acabou, abruptamente, a partir do ano 2000, quando uma seca forte e generalizada passou a assolar todo o país. Esse inédito evento climático, que se estendeu até o ano de 2009, foi chamada de a Seca do Milênio. De acordo com vários especialistas estrangeiros e australianos em clima, esse evento foi uma espécie de antecipação das mudanças climáticas globais na região. 

A forte intensidade da seca rapidamente foi sentida nos reservatórios de armazenamento de água das principais cidades do país – um exemplo foi o que aconteceu no reservatório Wivenhoe, o principal da cidade de Brisbane, capital do Estado de Queensland, que viu sua capacidade reduzida em poucos meses para 16%. Sem fontes alternativas para atender ao abastecimento das populações, os Governos Central e dos Estados rapidamente passaram a adotar medidas emergenciais para a redução do consumo da água. Exemplos: 

– No Sudeste do Estado de Queensland foram feitos grandes investimentos em programas de eficiência hídrica e de restrições ao uso da água. Em algumas cidades, a economia de água chegou a 60%, atingindo um nível de consumo de 125 litros diários por habitante; 

– Foram veiculadas campanhas de comunicação em massa, falando da crise hídrica e ensinando como a população poderia contribuir com a economia de água

Distribuição gratuita de kits “faça você mesmo” para a população, contendo reguladores de pressão para água e arejadores para chuveiros e torneiras

– Campanhas para a troca gratuita de até dois chuveiros, por habitação, por modelos mais eficientes;  

Troca de até dois vasos sanitários, por habitação, por modelos de baixo consumo de água: os Governos locais subsidiavam a compra dos vasos sanitários e pagava o custo de instalação por um encanador autorizado; 

Imposição de metas agressivas de redução do consumo de água para as empresas concessionárias dos serviços de saneamento básico. Os Governos vincularam o atingimento dessas metas de economia à renovação da licença de concessão e operação dessas empresas; 

– Realização de obras de infraestrutura em sistemas de distribuição, armazenamento, reuso, armazenamento de águas de chuva em cisternas entre outras

– Construção das polêmicas usinas de dessalinização, que em algumas cidades fornecem até 30% da água consumida pela população

A Austrália conseguiu “sobreviver” à Seca do Milênio e, mesmo depois de superada a crise hídrica, as principais cidades conseguiram manter o consumo de água em valores abaixo da média histórica – isso demonstra que a população mudou seu comportamento em relação ao desperdício e uso abusivo da água. Aqui no Brasil, enfrentamos situações muito parecidas em várias regiões e, infelizmente, não aprendemos muita coisa. – as crises passam e tudo volta como era dantes…