ENFIM, CHEGARAM AS ABENÇOADAS CHUVAS DE VERÃO!

Chuva

Verão é sinônimo de muito calor, praias e, principalmente, de chuvas em grande parte do país.

De acordo com dados da Agência Americana de Meteorologia e Oceanografia (NOAA), que divulga previsões meteorológicas de alcance global, o fenômeno La Niña prosseguirá durante o verão e início do outono brasileiro, porém, com uma intensidade classificada entre fraca e moderada. La Niña é um fenômeno climático natural que, oposto ao El Niño, consiste na diminuição da temperatura na superfície das águas do Oceano Pacífico Tropical Central e Oriental, com reflexos no clima de todo o mundo e afetando o ciclo das chuvas aqui no Brasil.

Na região Norte, este verão promete ser mais chuvoso que o normal. Na região Nordeste, que vem enfrentando uma fortíssima estiagem desde 2011, as notícias não muito animadoras – apesar de La Niña normalmente trazer chuvas fortes para a região, neste verão a previsão é de precipitação inferior à média. As temperaturas no Oceano Atlântico não ficarão em patamares favoráveis à precipitação intensa e frequente – isto significa que, infelizmente, teremos a continuidade dos problemas de falta de água na região do Semiárido, noticiadas em tantas postagens aqui no blog.

Nas regiões Sudeste e Centro-Oeste, as previsões indicam que as chuvas ficarão dentro da média, podendo ocorrer chuvas um pouco acima da média em algumas áreas do Centro-Oeste. Na região Sul, as chuvas também deverão cair dentro da média histórica, porém com má distribuição temporal.

Uma das características dos anos em que há a ocorrência do fenômeno La Niña são os poucos períodos de calor persistente. Entretanto, as previsões da NOAA indicam temperaturas acima da média neste verão no Rio Grande do Sul, no Oeste do Paraná e de Santa Catarina, em Mato Grosso do Sul, além de Roraima. Para a maior parte do país, as temperatura deverão ficar próximas da média histórica, com alternância entre períodos de calor e temperaturas mais baixas.

Verão também é sinônimo de problemas com as enchentes, alagamentos, desmoronamentos de encostas e outras fatalidades ligadas à nossa precariedade em infraestruturas para o controle das águas pluviais e da incapacidade de nossas cidades na gestão do crescimento urbano. Também é nesta época que as falhas e os problemas na gestão dos resíduos sólidos ficam mais evidentes – as chuvas carregam e espalham os resíduos, aumentando ainda mais o drama dos alagamentos nas ruas e avenidas das cidades.

Sem querer bancar o chato, sempre que chega o verão, ele costuma trazer a reboque uma série de doenças há muito conhecidas por todos nós, especialmente a onipresente dengue. Nestes últimos anos, a dengue passou a ser acompanhada por outras doenças como as febres ZikaChikungunya, além da febre amarela em algumas regiões. Todas estas doenças são transmitidas por mosquitos – destaque para o famoso Aedes Aegypti. A reprodução destes mosquitos está associada com os focos de água parada, que no verão aumentam substancialmente, favorecendo muito a reprodução dos mosquitos e a proliferação das doenças. Resta-nos torcer para que os surtos sejam menores que em anos anteriores, já que a prevenção, que consiste no trabalho conjunto de populações e autoridades na eliminação dos focos de procriação dos mosquitos, não funciona como deveria.

2017 foi um ano muito complicado e, acredito eu, não vai deixar muitas saudades para todos nós. Mesmo assim, para o blog, as coisas andaram bem – conseguimos publicar, entre trancos e barrancos, 265 postagens, conseguindo um total de 31 mil visualizações: nada mal para um espaço com temáticas tão específicas. Ano passado, quando começamos, foram publicadas 131 postagens, com apenas 471 visualizações (ou seja, só os amigos mais próximos acessaram o blog). Espero que em 2018 consigamos ter uma produção tão boa como a desse ano e que o número de “amigos” aumente ainda mais.

Meus mais sinceros votos de boas festas e que todos tenham um maravilhoso 2018. E que as abençoadas chuvas de verão continuem caindo por todos os cantos do país!

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UM NOVO RÉVELION E A VELHA POLUIÇÃO NA BAIA DA GUANABARA

BAIA DE GUANABARA

A cidade e o Estado do Rio de Janeiro tem sofrido muito nestes últimos tempos devido ao desgoverno geral que tomou conta da administração pública. Funcionários públicos com salários atrasados, escolas sendo obrigadas a fechar por causa de tiroteios, tropas federais deslocadas para ajudar no policiamento de ruas e de bairros, políticos tradicionais presos por causa de denúncias de corrupção, fuga de empresas e de investimentos em todo o Estado. O tradicional bom humor dos cariocas e fluminenses, por razões mais que óbvias, já não é o mesmo de antigamente.

Uma boa notícia divulgada hoje informa que a tradicional comemoração do Révelion este ano deve marcar um “ponto de virada” no desempenho da rede hoteleira da cidade do Rio de Janeiro. Os hotéis estão projetando uma taxa de ocupação de 75% durante o Verão, um volume que era comum antes da crise econômica que se abateu sobre o Estado. Durante o período das festas de fim de ano, a projeção indica uma taxa de ocupação próxima dos 90%. Em bairros mais tradicionais como Ipanema e Leblon, a taxa de ocupação poderá atingir a marca de 97%. Que lotem as praias durante a tradicional queima de fogos.

Como sempre acontece todos os anos, milhões de olhos vão ficar voltados para as águas do Oceano Atlântico e, infelizmente, serão poucos os que vão olhar para um problema que se arrasta há décadas na região: a poluição da Baia da Guanabara. Para lembrar somente um dos muitos projetos e planos assumidos pelas autoridades locais para a despoluição da Baía da Guanabara, havia o compromisso de reduzir em 80% o volume de esgotos lançados nas águas como parte integrante do Projeto Olímpico da Cidade do Rio de Janeiro – o ano de 2016 e a sua Olimpíada já ficaram para trás e até agora nada

Um outro grande projeto, anunciado com muita pompa e confetes foi o PDBG – Programa de Despoluição da Baía da Guanabara, que vigorou entre 1995 e 2006. Com investimentos de mais de R$ 2,5 bilhões do BID – Banco Interamericano de Desenvolvimento e do JICA, Banco de Desenvolvimento do Japão, os resultados obtidos se mostraram um verdadeiro fracasso. Existem inúmeras explicações técnicas e burocráticas para esse verdadeiro papelão. Na minha opinião, o problema maior (sem levar em conta os desvios de verbas e a corrupção) foi a prioridade dada à construção das ETEs – Estações de Tratamento de Esgotos, obras mais complexas e caras, deixando a construção das redes coletoras de esgotos em segundo plano – sem conseguir transportar os esgotos para tratamento nas ETEs, o sistema inteiro não vale nada. Essas ETEs acabaram abandonadas e os esgotos continuaram a fluir na direção da Baía da Guanabara através de rios e córregos.

Lembro que durante as competições de vela na Olimpíada, batalhões de embarcações foram contratadas pelas autoridades para “pescar” todo o lixo flutuante que estivesse sobre as águas e assim diminuir um pouco a imagem de poluição na Baía da Guanabara. Redes de contenção foram montadas em inúmeros rios e córregos com foz na Baía, de forma a evitar que lixo e resíduos sólidos chegassem às águas, porém sem qualquer efeito no bloqueio dos esgotos e demais efluentes contidos nas águas – algumas estimativas afirmam que são 10 mil litros de esgotos a cada segundo.

A Baía da Guanabara ocupa uma área com aproximadamente 400 km² e acumula um volume de água com cerca de 3 bilhões de m³. A área de influência direta é bem maior e ocupa algo em torno de 4.000 km², onde estão incluídos os maciços e as colinas da Serra do Mar, a Baixada Fluminense, extensas áreas de manguezais e uma rede hidrográfica com aproximadamente 50 rios e córregos que despejam, em média, 200 mil litros de água por segundo na Baía da Guanabara. Essa grande região incorpora um total de 16 municípios, sendo que 10 estão totalmente inseridos na bacia hidrográfica (Duque de Caxias, Mesquita, São João de Meriti, Belford Roxo, Nilópolis, São Gonçalo, Magé, Guapimirim, Itaboraí e Tanguá) e 6 de forma parcial (Rio de Janeiro, Niterói, Nova Iguaçu, Cachoeiras de Macacu, Rio Bonito e Petrópolis). Nesta região vive 80% da população do Estado do Rio de Janeiro, estimada em 17 milhões de habitantes de acordo com o IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística.

Diferente de outras grandes Regiões Metropolitanas brasileiras que dispõem de grandes rios como o Tietê e o Iguaçu para dispersar seus esgotos e demais efluentes, a Região Metropolitana do Rio de Janeiro se utiliza dos inúmeros rios e córregos da sua rede hidrográfica para lançar a maior parte dos seus efluentes diretamente nas águas da Baía da Guanabara. Em áreas mais urbanizadas das cidades, tubulações de emissários de esgotos se juntam aos cursos naturais, poluindo as águas de forma difusa. Como se já não bastasse toda a poluição lançada por via hídrica, a Bacia da Guanabara também recebe o lançamento diário de dezenas de toneladas de resíduos sólidos dos mais diferentes tipos, que descartados de maneira irregular em ruas, avenidas e em terrenos baldios, acabam carreados para dentro de rios e córregos, alcançando assim as águas da Baía.

A situação da Baía da Guanabara só não é mais crítica devido ao seu contato com o Oceano Atlântico, que com suas correntes marinhas consegue renovar completamente as águas da Baía a cada duas semanas, Mesmo com toda esta ajuda da natureza, a qualidade das águas na Baía não é das melhores e a maioria das 44 praias é considerada imprópria para banhos. Existem alguns pontos onde a poluição das águas é considerada crítica: a Península do Caju, o Canal do Fundão e o Porto do Rio de Janeiro, além da foz dos rios Irajá, Sarapui e Iguaçu. O trecho com os melhores índices de qualidade ambiental é a região do fundo da Baía da Guanabara, onde fica a APA – Área de Proteção Ambiental, do Guapimirim.

O contato de banhista, pescadores, velejadores ou qualquer outra pessoa com as águas da Baía da Guanabara pode levar a uma exposição a bactérias, vírus e protozoários. Entre as doenças mais comuns que podem ser desencadeadas por este contato estão as gastroenterites, que podem provocar vômitos, enjôos, dores no estômago, diarreia, dores de cabeça e febres. Também podem ocorrer infecções nos olhos, ouvidos, nariz e garganta. Com menor frequência podem ocorrer doenças mais graves como Hepatite A, cólera e febre tifóide. A melhor coisa a se fazer é evitar o contato com estas águas.

Lembrando de diversas espécies de golfinhos que estão sendo afetados pela poluição de rios e mares, sobre os quais tratamos em postagem anterior, a Baía da Guanabara já foi um habitat importante para os botos-cinza. De acordo com estudos da Faculdade de Oceanografia de UERJ – Universidade Estadual do Rio de Janeiro, a população deste cetáceo sofreu uma redução de 90% nos últimos 30 anos devido ao alto grau de degradação ambiental das águas.

Considerada por especialistas como uma das quatro mais belas baías de todo o mundo, a Baía da Guanabara agoniza a olhos vistos, com autoridades de todos os níveis de governo “batendo cabeça” e sem conseguir controlar a poluição. E, nesse caso específico, a solução do problema não se deveu à falta de recursos. Tudo isto é lamentável para as cidades da região – centenas de milhares de turistas que irão passar o período das festas de fim de ano no Rio de Janeiro, por exemplo, poderiam incluir passeios, pescarias e prática de esportes náuticos nas águas da Baía da Guanabara, assim como fazem em outras importantes baías do mundo como a de Sidney, na Austrália, e na de Nápoles, na Itália, entre muitas outras mundo afora. Esta seria uma forma de aumentar o período de estadia dos turistas na região e levar os recursos financeiros gerados pelas atividades turísticas para outros municípios da Região Metropolitana, especialmente aqueles com seus territórios voltados para a Baía da Guanabara.

BARRAGEM DE SOBRADINHO CONTINUA NA “UTI”, MAS JÁ “RESPIRA SEM AJUDA DE APARELHOS”

Sobradinho

As fortes chuvas que caem em Minas Gerais, Goiás e região Oeste da Bahia têm levado grandes volumes de água para a calha do Rio São Francisco e, lentamente, começam a recuperar o nível da Barragem de Sobradinho, no Norte da Bahia. No último sábado, dia 16 de dezembro, o nível do reservatório atingiu a marca de 4,16% – pode até parecer pouco, mas, há exatamente um mês atrás, o nível da água equivalia a 2,8%. A vazão do rio São Francisco está em 1.200 m³/s – um mês atrás a vazão mal chegava aos 360 m³/s. Com a melhoria do nível do reservatório, a vazão da Barragem está mantida em 600 m³/s, o que ajuda a, pelo menos, manter as condições precárias da foz do rio São Francisco, que como todos devem lembrar, vem sofrendo com a intrusão de água salina. Como eu expressei no título da postagem, usando termos médicos como referência, a situação da Barragem de Sobradinho ainda é muito grave, mas vem apresentando sinais animadores de melhora.

O ano de 2017 foi cheio de baixos e cada vez mais baixos na Barragem de Sobradinho. Em junho, escrevi uma postagem já alertando sobre os riscos de colapso em Sobradinho: o nível das águas estava abaixo dos 15% da capacidade total, o volume mais baixo desde a formação do Lago há 38 anos. Naquela ocasião, a CHESF – Companhia Hidrelétrica do Rio São Francisco, foi obrigada a reduzir a vazão para 650 m³/s, a menor de sua história, como uma forma de evitar (ou pelo menos adiar) a chegada do reservatório no chamado “volume morto”. A mesma medida foi estendida à Usina Hidrelétrica de Xingó já na região do baixo Rio São Francisco. Essa redução de vazão aumentou os problemas enfrentados na foz do rio São Francisco, especialmente a intrusão ou língua salina: o Velho Chico, sem forças para enfrentar as águas do Oceano Atlântico, sofre cada vez mais com a entrada de águas salgadas na sua calha, fenômeno que torna as águas salobras e afeta o abastecimento de dezenas de cidades, a agricultura, a navegação, a pesca e a vida de dezenas de milhares de habitantes locais.

Todo este esforço acabou não surtindo o efeito esperado – no dia 27 de outubro, a Barragem de Sobradinho entrou no volume morto, com o nível de água no reservatório atingindo a inédita marca de 3,14%. Apesar de toda a região do Semiárido nordestino enfrentar uma das mais fortes estiagens dos últimos 100 anos, os baixos níveis de água na represa de Sobradinho estão associados aos problemas de falta de chuvas nos Estados de Minas Gerais e Goiás75% dos caudais da bacia hidrográfica do Rio São Francisco vêm das áreas do Cerrado nestes Estados, que, conforme já comentamos em postagens anteriores, também vêm sofrendo muito com a seca. Em regiões do Norte de Goiás, inclusive, a forte seca fez com que alguns rios perenes secassem completamente nos períodos mais secos dos últimos anos, lembrando muitos rios da região da Caatinga. Com a chegada deste período das chuvas no final de novembro, fortes tempestades passaram a castigar grandes áreas de Minas Gerais e de Goiás, causando enchentes e fortes estragos em algumas cidades. Apesar de todos os prejuízos, as águas destas fortes chuvas chegaram aos afluentes formadores e também ao rio São Francisco e, lentamente, correram para o Norte da Bahia, onde encontraram a Barragem de Sobradinho com um nível abaixo dos 3%. Pouco a pouco, o nível do reservatório foi aumentando e hoje já passou dos 4%. É importante se lembrar que o Verão, época das fortes chuvas nas cabeceiras das principais nascentes formadoras da bacia hidrográfica do São Francisco, só começa no dia 21 de dezembro – muita água ainda há de chegar na Barragem de Sobradinho.

É claro que há motivos de sobra para comemorar; porém, é sempre importante lembrarmos que os problemas na bacia hidrográfica do rio São Francisco são muito sérios e não basta ficar esperando a chegada do período das chuvas para que os volumes de água nas calhas dos rios aumentem. Os problemas em Minas Gerais se acumulam desde o século XVII, quando as primeiras jazidas de ouro foram descobertas no Estado – milhares de aspirantes a garimpeiros abandonaram as regiões produtoras de açúcar no litoral da Colônia e se embrenharam nas matas e rios das Minas Geraes. Costumo comentar que estes “garimpeiros” reviraram todas as pedras e barrancos das margens dos rios mineiros na busca de ouro e diamantes. Em menos de um século, seus esforços produziram o equivalente a 1.000 toneladas de ouro, riqueza que seguiu diretamente para os cofres de Portugal. Como ninguém é de ferro, sabemos que “certos volumes” de ouro foram desviados pelas autoridades e burocratas locais – muitos de vocês devem se lembrar dos “santos-do-pau-oco” que nos contavam nas aulas de História do ensino fundamental. A destruição de matas e de rios iniciada no Ciclo do Ouro só fez crescer até os dias de hoje, reduzindo em muito os caudais e contribuindo para o assoreamento das calhas dos rios que formam a bacia hidrográfica do rio São Francisco.

Em regiões do Cerrado em Goiás, Tocantins e Oeste da Bahia, a destruição das fontes de água é bem mais recente – começou a cerca de meio século com a expansão das culturas de grãos e de pastagens para a criação de gado. O Cerrado, mais conhecido como o Berço das Águas do Brasil, passou a sofrer intensamente com a derrubada de suas matas tão características, que hoje se calcula reduzidas a menos de 50% da cobertura vegetal original. Sem as árvores e arbustos com seus sistemas de raízes profundas, a recarga dos aquíferos do Cerrado está se tornando cada vez mais difícil, o que tem resultado em rios com volumes cada vez menores de água.

O resultado da destruição das matas de Minas Gerais e de áreas de Cerrado por todo o Brasil Central se vê com muita clareza nas poucas águas que o velho rio São Francisco vêm apresentando nos últimos anos – o outrora grandioso Rio da Integração Nacional agora mais parece um filete de água cercado de enormes bancos de areia por todos os lados. É essa destruição sistemática do rio São Francisco que levou a Barragem de Sobradinho ao colapso – sem água não existe um reservatório.

Qualquer melhora no nível da Barragem de Sobradinho deve sempre ser comemorada. A recuperação de todo o potencial do reservatório, porém, é um processo muito mais amplo, que envolve um longo e profundo projeto de recuperação ambiental de toda a bacia hidrográfica do Rio São Francisco. Isso meus caros, será um trabalho para muitas e muitas gerações.

UM QUARTO DA POPULAÇÃO BRASILEIRA VIVE NA LINHA DA POBREZA

Foto Yasuyoshi Chiba- AFP

Na última sexta-feira, dia 15 de dezembro, o IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, divulgou o estudo Síntese de Indicadores Sociais, onde constatou que um quarto da população brasileira vive na linha da pobreza. De acordo com o estudo, essa camada de pessoas pobres não vive apenas com pouco dinheiro, mas em situações de moradia muito abaixo da média nacional.

Pode até parecer estranho para muitos leitores que um blog voltado para questões de recursos hídricos e saneamento básico dedique uma de suas postagens para falar sobre o problema da pobreza aqui em nosso país. Mas existe, porém, uma relação direta entre pobreza e recursos hídricos – vejam alguns exemplos: as beiradas de rios e córregos são alguns dos locais que normalmente acabam sendo ocupados por comunidades de desfavorecidos por dificuldades econômicas – os problemas ambientais enfrentados por rios e córregos urbanos, que já são muitos, só aumentam. Parte destas populações utiliza a queima de madeira como fonte de energia para cozinhar e para aquecimento; essa madeira, muitas vezes, é obtida a partir da derrubada de fragmentos florestais encontrados nas áreas urbanas ou em regiões muito próximas – esses desmatamentos contribuem para o carreamento de areia e sedimentos para as calhas dos corpos d’água. Outro problema ambiental diretamente relacionado é o descarte de resíduos sólidos nas águas dos rios e córregos urbanos, uma vez que estas comunidades não são atendidas pelos serviços públicos de coleta de resíduos.

Os dados analisados mostram que, na média, 62,1% dos brasileiros vivem em domicílios com acesso simultâneo à três serviços de saneamento básico – abastecimento de água potável por rede pública, esgotamento sanitário por rede coletora de esgotos ou por rede coletora pluvial (que não é o ideal pois os esgotos não passam por um sistema de tratamento) e coleta de resíduos sólidos domiciliares – o famoso lixo doméstico, por coleta direta e indireta. Porém, o equivalente a um quarto da população – 52 milhões de brasileiros, vive com uma renda per capita equivalente a US$ 5.50 por dia, um valor que o Banco Mundial considera como uma das linhas de pobreza; somente 40,4% desta população pobre vive em “domicílios” que são atendidos por um dos três serviços básicos de saneamento – o restante vive em domicílios onde não há cobertura total dos serviços básicos de saneamento: há de se admitir que muita gente não dispõe de nenhum destes serviços.

A palavra saneamento é derivada da expressão em latim sanus, que significa “de boa saúde” ou “sadio”. Por extensão, quando falamos de saneamento básico estamos imaginando uma situação onde buscamos uma boa saúde para toda uma comunidade e imaginamos que cada cidadão esteja saudável. Somente para relembrar, as atividades e serviços de saneamento básico incluem o abastecimento de água potável; a coleta, afastamento e tratamento dos esgotos (domésticos e industriais); o manejo das águas pluviais ou de chuva; a coleta, o transporte e a disposição final ou reutilização dos resíduos sólidos – o controle de pragas e vetores (ratos, baratas, mosquitos etc) é uma consequência direta do pleno funcionamento de todos estes serviços. Quando constatamos através de um estudo que um quarto da população de nosso país vive sem as condições mínimas de salubridade ficamos revoltados, especialmente quando vemos as muitas “malas de dinheiro” nos noticiários, circulando entre as mãos de empresários corruptores e políticos corruptos, enquanto faltam verbas públicas para a realização das obras mais elementares de infraestrutura.

Estes relatórios costumam utilizar uma linguagem bastante formal, onde não é possível enxergar com precisão os problemas mais específicos – vou citar um exemplo: os pesquisadores poderão até descobrir que um determinado número de famílias de uma favela sobrevive comendo carne de rato; os dados tabulados mostrarão uma situação de extrema pobreza, afirmando que um determinado número de famílias vive em habitações de “padrão subnormal”, onde os hábitos alimentares incluem o “consumo de carne de animais de pequeno porte”. Dentro desta linha de abordagem, a pesquisa divulgada pelo IBGE afirma que o estudo “mediu quatro inadequações das moradias – vamos entender melhor isto:

  • Ausência de banheiro ou sanitário de uso exclusivo dos moradores: por falta de espaço físico ou de condições técnicas que permitam o despejo dos efluentes por força da gravidade ou “morro abaixo” num linguajar popular, estes conglomerados de habitações “subnormais” costumam possuir poucos “banheiros” de uso coletivo nas partes mais baixas do terreno. Além das dificuldades de acesso em períodos noturnos e em dias de chuva, as condições de limpeza e higiene não costumam ser as melhores;
  • “Habitações” construídas predominantemente de materiais não duráveis: falamos aqui dos chamados “barracos” construídos com restos de madeiras, folhas de zinco, placas plásticas e até mesmo com paredes fechadas com o uso de papelão. Em comunidades mais antigas, as casas muitas vezes são reconstruídas com blocos e tijolos, porém com sérios problemas de alicerces (terrenos instáveis ou alagadiços) e sujeitas à colapsos estruturais e deslizamentos de encostas;
  • Adensamento excessivo: as construções nos terrenos ocupados (normalmente são áreas particulares, invadidas por grupos de “sem tetos”) são feitas uma ao lado da outra, deixando-se apenas espaços estreitos entre as filas de “casas” para funcionarem como vielas de circulação pública. O adensamento das construções somado ao uso de materiais altamente inflamáveis como madeira e papelão, frequentemente, resulta em grandes incêndios onde dezenas de casas são consumidas em poucas horas pelas chamas;
  • Ônus excessivo com o aluguel: este problema é mais comum nos chamados “cortiços”, habitações normalmente construídas em alvenaria e que são subdivididas em unidades pequenas, que são sublocadas à famílias de baixíssima renda. Os valores desembolsados pelas famílias com aluguel iguala ou ultrapassa 30% do rendimento familiar. Pagamentos de aluguéis ocorrem com menos frequência em favelas, especialmente nas que estão localizadas em áreas mais nobres das cidades; os valores gastos pelas famílias com aluguel nas favelas também consome parte substancial da renda.

Estas estatísticas normalmente escondem os dramas pessoais vividos por estas populações de miseráveis – gostaria de citar, mais uma vez, o exemplo da diarreia, doença que costumo chamar de “assassina silenciosa de criancinhas.” A diarreia é provocada por toxinas bacterianas como a do estafilococus, infecções por bactérias como a Salmonella e a Shighella, infecções virais e parasitas intestinais causadores de amebíase e giardíase, transportados para o sistema gastrintestinal por água ou comida contaminada. Os sintomas variam da simples dor estomacal à diarreia persistente ou à presença de fezes pastosas.

Em localidades em que não há rede de abastecimento de água potável, as populações não tem outra opção senão utilizar águas de rios, riachos, açudes, cacimbas e de poços; não são raras as vezes em que essas águas estão contaminadas por fezes de animais e por esgotos domésticos gerados nas casas dos próprios moradores dessa localidade e despejados nas ruas, corpos de água ou em fossas negras que podem contaminar o lençol freático – a ingestão ou uso dessa água com contaminantes é um dos maiores causadores da diarreia. Uma das faces mais tristes dessa estatística mostra que crianças a partir de um ano de idade são as mais vulneráveis aos efeitos devastadores da diarreia. A causa é muito simples: é a partir dessa idade que as crianças começam a engatinhar pelo chão das casas e são expostas aos patógenos que foram trazidos na sola dos sapatos dos moradores, solas estas impregnadas pelos esgotos que correm a céu aberto nas ruas e calçadas das chamadas “comunidades carentes”. Quem já viu uma criança engatinhando sabe que elas alternam as mãos entre o chão e a boca – havendo patógenos no piso, a contaminação será inevitável.

E a foto que usei para ilustrar essa postagem mostra exatamente essa realidade – uma comunidade carente, com esgoto correndo a céu aberto – são os chinelos desta jovem mãe que poderão carregar as bactérias causadoras da diarreia para dentro de sua própria casa. Muito trágico.

OS GOLFINHOS E A POLUIÇÃO DOS RIOS

Baiji

Quem é da minha faixa etária deve se lembrar de Flipper, uma série de televisão da década de 1960 que marcou época e que mostrava as aventuras de um golfinho super esperto e seus amigos. Os golfinhos pertencem à família dos Cetáceos, mamíferos marinhos altamente inteligentes e encontrados em todos os mares do mundo. Existem algumas espécies de água doce – o boto-cor-de-rosa (Inia geoffrensis) dos rios da Amazônia é uma das espécies mais conhecidas aqui do Brasil; outra espécie brasileira é o boto cinza ou tucuxi (Sotalia fluviatilis). Existem ainda duas sub-espécies: o boto-boliviano (Inia boliviensis) e o boto-do-araguaia (Inia araguaiensis).

A primeira vez que vi um destes golfinhos de água doce foi em 2010, quando estive trabalhando em obras de saneamento básico no Estado de Rondônia. Estava com alguns amigos em uma espécie de bar na beira do rio Candeias (imagine uma cobertura de palha com alguns bancos de madeira feitos da forma mais improvisada possível). Estávamos jogando conversa fora numa tarde de domingo particularmente quente quando, a aproximadamente cinco metros de distância, um boto cinza saltou da água e olhou fixamente para mim. Todos na mesa estavam distraídos ou de costas para a água – alertados da presença do boto, todos levantaram da mesa e passaram a olhar fixamente para o rio, esperando que o animal saltasse novamente. Ele simplesmente desapareceu.

Conversando depois com um amigo da região, fiquei sabendo que os botos da Amazônia são extremamente curiosos – ele provavelmente estava ouvindo o ruído das conversas na mesa e saltou da água para ver o que estava acontecendo. Para mim, única testemunha do salto, foram alguns dos segundos mais maravilhosos da vida. Eu já havia visto várias espécies de cetáceos em cativeiro, especialmente golfinhos, orcas e belugas em aquários de parques americanos. A sensação de avistar um espécime selvagem cara a cara foi simplesmente fantástica e superou todas as outras.

Os golfinhos de água doce ainda existentes são fósseis vivos, que descendem das primeiras espécies que surgiram na Terra (no início, eram animais semi aquáticos) e que deram origem aos golfinhos e baleias que vivem atualmente nos oceanos. Além das espécies da Amazônia, aqui no continente americano existe uma outra que vive tanto no oceano quanto na água doce – o golfinho-do-rio-da-prata (Pontoporia blainvillei) e, vou incluir na lista por conta própria, a vaquita (Phocoena sinus), uma espécie pequena que habitava as águas da região do delta do rio Colorado e um trecho de mar ao norte do Golfo da Califórnia.

Devido aos seríssimos problemas ambientais do Rio Colorado, praticamente não há mais água doce na região do delta e a vaquita está em risco de extinção eminente – biólogos calculam que restam no máximo vinte animais da espécie. Na Ásia existiam duas espécies: os golfinhos da espécie Platanista gangetica, divididos em duas sub-espécies – o golfinho-do-rio-Ganges (Platanista g. gangetica) e o golfinho do rio Indo (Platanista g. minor), além dos golfinhos da família Lipotidae da China, o baiji (Lipotes vexillifer), espécie provavelmente extinta desde 2007.

O baiji (vide foto), também chamado de golfinho-lacustre-chinês ou golfinho branco, tinha como habitat principal o rio Yangtzé, um dos maiores rios da Ásia e sobre o qual falamos em postagem anterior. Relatos antigos falam que os baijis eram encontrados aos milhares ao longo de toda a bacia hidrográfica do Yangtzé. A pesca predatória, a construção de barragens de represas, a navegação intensa e, principalmente, a grande poluição das águas do rio foram as responsáveis pelo irreversível declínio da espécie.

A última vez que um exemplar de baiji foi avistado nas águas do rio Yangtzé foi em dezembro de 2006. No ano de 2007, uma grande expedição científica, que durou seis semanas, realizou intensas buscas, não encontrando nenhum espécime vivo. Caso a extinção do baiji seja confirmada (oficialmente, ele é declarado funcionalmente extinto), esta será a primeira extinção de um Cetáceo como resultado direto da interferência humana no meio ambiente. Estudos científico indicam que o baiji vinha habitando a bacia hidrográfica do rio Yangtzé há, pelo menos, 20 milhões de anos, mas não resistiu a uns poucos milênios de convivência com o seres humanos.

Outra espécie que está correndo seríssimos riscos é o golfinho-do-rio-ganges, cujo habitat se estende por toda a bacia hidrográfica dos rios Ganges e Bramaputra, entre outros rios menores da Índia Oriental, do Nepal, do Butão e de Bangladesh, onde se encontra o grande Delta do Rio Ganges. Na época das Monções, período de fortes chuvas em toda a Ásia, esses golfinhos se aproveitavam da alta dos níveis dos rios e subiam as correntes até chegar aos sopés das montanhas das Himalaias.

Relatos de viajantes e de naturalistas ingleses na Índia do século XIX costumavam mencionar que estes golfinhos viviam em grandes bandos – nos dias atuais, os animais costumam viver sós ou em pequenos bandos com no máximo dez indivíduos, o que já é a indicação de um forte declínio populacional. O susu, nome popular que a espécie recebe da população, costuma emergir em intervalos de 30 a 45 segundos para respirar na superfície; algumas vezes ele pode ser observado nadando com o “bico” para fora, lembrando muito os crocodilos da espécie gavial, encontrados em toda a Índia. Estes golfinhos podem ser encontrados em águas rasas com até um metro, mas parecem preferir mesmo as regiões com águas mais profundas.

Diferente de outros golfinhos de rios e mares, o susu do Ganges não possui o cristalino nos olhos, o que torna o animal praticamente cego. Os cientistas especulam que os animais provavelmente conseguem detectar a direção e a intensidade da luz, porém se utilizam basicamente do seu sofisticado sentido de ecolocalização ao nadar. Golfinhos e baleias possuem órgãos especiais que lhes permite usar ondas sonoras para localizar presas e obstáculos nas águas escuras, um sistema bastante parecido com os sonares eletrônicos utilizados por navios e submarinos.

A intensa poluição nas águas do rio Ganges está tornando a sobrevivência do susu um grande desafio. O despejo de esgotos e efluentes industriais nas águas do rio tem reduzido os estoques de peixes e de pequenos crustáceos, os principais alimentos do cardápio dos golfinhos. A construção de diversas barragens ao longo de toda a calha do rio Ganges é um outro problema – estes obstáculos criam barreiras para o livre fluxo dos animais em suas rotas de migração e isola populações, um mal que leva à redução da variedade genética dos animais e prenuncia a extinção da espécie.

As imensas ilhas de lixo flutuante com todos os tipos de resíduos também criam graves problemas para a navegação por ecolocalização – a grande quantidade de obstáculos na água transforma as imagens geradas em verdadeiros labirintos nos cérebros dos animais, o que resulta em estresse intenso. Caso não venham a ser tomadas medidas de controle da poluição das águas e adotadas políticas sérias para a gestão dos resíduos sólidos na bacia hidrográfica do rio Ganges, o destino dos seus golfinhos será o mesmo dos baijis do rio Yangtzé: a eminente extinção.

Um exemplo mundial de revitalização e recuperação da qualidade ambiental de um rio pode ser encontrado no município de Cubatão, a apenas 50 km do centro de São Paulo. Até a década de 1980, Cubatão e seu rio homônimo eram conhecidos pela alcunha de “Vale da Morte”. Num esforço sem precedentes na história brasileira, diversos níveis de governo juntaram esforços e 95% das fontes de poluição das águas e do ar foram controladas ao longo de vinte anos, tornando a região irreconhecível para os antigos moradores. Entre 2007 e 2009 trabalhei em obras de redes de esgotos na cidade, onde conheci muitos moradores antigos da região.

Um destes moradores, um senhor bem idoso, me mostrou um trecho do rio Casqueiro, um dos braços que formam o delta do rio Cubatão, onde funcionava uma espécie de “maternidade” de golfinhos até o início da década de 1960. As fêmeas vindas do mar aberto buscavam a tranquilidade das águas do Casqueiro para ter os seus filhotes e lá ficavam por algumas semanas até que os “bebês” estivessem fortes o bastante para enfrentar a força e os perigos do oceano. Aquele senhor me confidenciou que um dos seus maiores sonhos, antes de morrer, seria o de ver novamente estes golfinhos nadando no hoje recuperado rio Casqueiro.

Que consigamos salvar todos estes golfinhos para as futuras gerações.

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BOTO DO ARAGUAIA: UMA ESPÉCIE RECÉM DESCOBERTA E JÁ EM RISCO DE EXTINÇÃO

AS ÁGUAS “PURAS” DO GANGES

Allahabad

A cidade de Gangotre é um importante centro de peregrinação do hinduísmo, localizada no alto da Cordilheira do Himalaia a pouco mais de 20 km da “nascente” do rio Ganges. Existem, pelo menos, 6 nascentes do rio na região, mas a caverna Gaumukh é a “nascente sagrada”. Dezenas de milhares de hindus realizam todos os anos uma perigosa jornada até Gangotre, enfrentando algumas das estradas mais perigosas do mundo, vias que, em muitos trechos, não passam de um simples recorte nas rochas, tendo os altos paredões das Himalaias de um lado e profundos abismos do outro. A indestrutível fé destes crentes é o combustível que os move rumo a uma altitude de mais de 3.000 metros na busca das puras águas do Ganges, que na fé hindu materializa a deusa Maa Ganga, a Mãe Ganga.

Estas águas, que de acordo com a fé hindu têm o poder de limpar os pecados do corpo com apenas uma gota, são cada vez mais uma figura de linguagem: os 4.000 anos do hinduísmo não resistiram aos últimos 50 anos de descaso e poluição criados pelo rápido desenvolvimento e industrialização da Índia. O rio Ganges, manancial de abastecimento e fonte da vida física e espiritual de mais de 400 milhões de pessoas, foi transformado num dos rios mais poluídos do mundo. Deixem-me retomar o assunto ainda falando dos problemas de poluição na cidade de Kanpur:

Conforme comentado na última postagem, Kanpur é um centro industrial no Norte da Índia que concentra empresas especializadas no tratamento e processamento de couros. Nestas atividades são utilizados diversos produtos químicos que contém diversos metais pesados, em especial os sais de cromo, o arsênico e o mercúrio. Descartados sem maiores cuidados, os efluentes das indústrias produzem grandes estragos no meio ambiente aquático e, indiretamente nas pessoas – já comentei sobre os impactos da poluição na pesca.

Os agricultores de Kanpur, simplesmente por falta de fontes de água alternativa, utilizam as águas do rio Ganges para irrigar suas culturas. Aqui é importante citar o problema da bioacumulação, onde seres vivos, plantas e animais, acumularão os poluentes dissolvidos na água em suas células. Uma fruta ou legume que tenha sido irrigado com estas águas contaminadas apresentará pequenos índices dos mesmo metais pesados em sua estrutura – um animal ou pessoa que consuma qualquer um destes alimentos, receberá essa carga de poluentes. Os metais pesados se acumulam no organismo, que não consegue metabolizar as substâncias – quanto maior e mais continuado for o consumo destes alimentos, maior será o acúmulo dos metais pesados no organismo dos consumidores. Os hospitais da cidade recebem, a cada dia, mais de 300 pacientes apresentando sinais de intoxicação cumulativa de metais pesados, diarreia, gastroenterites e febres virais.

Estudos clínicos realizados pelos hospitais encontraram um outro problema – metade das pessoas atendidas apresentam altos índices de anemia. A grande incidência da doença levou a mais estudos, onde se concluiu que a água contaminada do rio Ganges produz uma alteração no metabolismo das plantas – elas não conseguem absorver adequadamente os minerais do solo e não produzem as vitaminas e os açúcares nutritivos em quantidades adequadas: os habitantes consomem os alimentos mas não recebem os níveis de nutrientes e de calorias que se espera – daí aparecem os casos de anemia.

Além da poluição por esgotos industriais, esgotos domésticos e resíduos agrícolas de todos os tipos, o rio Ganges é o destino final de todos os tipos de detritos gerados pela grande população que se distribui ao longo de suas margens. Há uma classe especial de detritos sobre a qual precisamos tecer alguns comentários – as cinzas e as oferendas geradas nas cerimonias de cremação dos mortos, um ritual dos mais tradicionais do hinduísmo. A cidade de Varanasi é o mais importante “crematório” de toda a bacia hidrográfica do rio Ganges.

Varanasi é considerado um dos locais mais sagrados da fé hindu e o lar espiritual dos mais de 330 milhões de deuses e deusas do panteão hindu. Famílias de toda a Índia transportam seus falecidos entes queridos até Varanasi para que sejam cremados cerimoniosamente. A cidade também recebe milhares de pessoas idosas e doentes, que almejam passar seus últimos dias na terra às margens do rio Ganges. De acordo com dogmas do hinduísmo, quem morre nas margens do Ganges, em especial na cidade de Varanasi, pode conseguir a salvação final sem ter de enfrentar uma nova reencarnação. A indústria da cremação e da assistência aos idosos e doentes é extremamente próspera em Varanasi – pacotes básicos de cremação, com direito à madeira de sândalo, flores, incenso e supervisão de um sacerdote tem um custo a partir de U$ 20.00. Alguns pontos de cremação chegam a realizar cem cerimônias funerárias a cada dia. Quando o corpo do fiel é totalmente consumido pelas chamas, suas cinzas e todas as oferendas são lançadas nas águas do Ganges.

Os rituais funerários não param por aí – famílias muito pobres, população bastante significativa na Índia, dificilmente conseguem pagar por uma cerimônia de cremação – seus mortos são amarrados a pedras e acabam por ser lançados diretamente nas águas do rio. Os dogmas hindus também têm algumas restrições à cremação: corpos de mulheres grávidas, de bebes e de sadhus (homens santos) são considerados puros e não precisam ser cremados – também são jogados diretamente nas águas do Ganges. Some-se a esta “classe de resíduos” os corpos de animais sagrados como as vacas. Esses “resíduos” de corpos humanos e de animais se espalham por todo o leito do rio Ganges.

Um evento religioso que marcou uma mudança de paradigma em relação ao grau de deterioração das águas do rio Ganges foi o Festival de Allahabad de 2007 (vide foto). Esta cidade fica localizada a aproximadamente 150 km de Varanasi e todos os anos recebe uma multidão de peregrinos em uma festa religiosa que dura 45 dias. Este festival  recebe uma multidão que pode somar 70 milhões de fieis – é a maior concentração humana em um único local do mundo. Um dos pontos altos das celebrações é o chamado “banho real”, quando toda essa turba se dirige ao rio Ganges. Em 2007, porém, as coisas não correram segundo a tradição – os sadhus, uma casta de homens sagrados que tem 4 milhões de seguidores e que, normalmente, são os primeiros a entrar nas águas do Ganges para o banho cerimonial, simplesmente se recusou a entrar nas águas devido ao alto grau de poluição. Relatos falam de ilhas de resíduos flutuantes com muito lixo e corpos em decomposição, além de água muito suja e malcheirosa. O impasse foi tão sério que grupos de fieis ameaçaram praticar suicídio coletivo como forma de protesto. Após dois dias de impasse, as autoridades resolveram abrir as comportas de uma represa para forçar a renovação das águas – feito isso, os rituais puderam ser retomados.

O Festival de Allahabad de 2007 foi um marco para os destinos do rio Ganges – houve uma quebra de paradigma em relação à cultuada pureza das águas: autoridades e religiosos perceberam que a poluição das águas sobrepujou qualquer dogma de fé, atribuindo uma pureza celestial ao Ganges – o rio já estava praticamente morto e alguma coisa precisava ser feita com seu “corpo”. Vários projetos de saneamento ambiental e de controle mais efetivo da poluição passaram a ser discutidos com seriedade.

As altas taxas de crescimento demográfico transformarão a Índia no país mais populoso do mundo em 2030, quando será atingida a marca de 1,5 bilhão de habitantes, superando a população da China. Em 2035, conforme comentei na última postagem, a geleira de Gangotre, onde nasce o rio Ganges, poderá ter desaparecido. Mais alarmante ainda – em 2020, será superado o ponto de equilíbrio entre o tamanho da população e as reservas de água: passará a existir gente demais para água de menos. Alguma coisa precisará ser feita para garantir o suprimento de água no país, seja pelos homens, seja pelos deuses.

Enquanto isso, o rio Ganges continua recebendo a cada 1 segundo cerca de 1.000 litros de esgotos e muitas toneladas de resíduos.

GANGES: O RIO MAIS VENERADO E POLUÍDO DA ÍNDIA

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Na minha última postagem falei sobre os alarmantes e assustadores problemas de poluição das águas dos rios da China. Para mostrar que os chineses não estão sozinhos nesta questão, deixem-me falar um pouco sobre os problemas de abastecimento de água na Índia e da extrema poluição do rio Ganges.

A Cordilheira do Himalaia, também chamada simplesmente de Os Himalaias, é conhecida como a cadeia que tem as mais altas montanhas do mundo. Estas montanhas se distribuem por cinco países – Paquistão, Índia, China (incluindo o invadido Tibete), Nepal e Butão, formando um arco com 2.500 km de comprimento e 400 km de largura. De acordo com a Teoria da Deriva Continental (também conhecida como Teoria das Placas Tectônicas de Alfred Wegener), as montanhas dos Himalaias começaram a se formar a cerca de 40 milhões de anos, quando a massa de terras que forma o subcontinente indiano se chocou contra o continente asiático. A margem Norte da placa tectônica, a chamada Placa Indiana, penetrou por baixo da Placa Euroasiática, provocando o levantamento dos solos e dando origem às montanhas dos Himalaias e ao Planalto Tibetano.

O nome Himalaia vem do sânscrito, uma língua ancestral do Nepal e da Índia , e significa “morada das neves”. A razão para a escolha do nome é muito simples: essas montanhas concentram as maiores geleiras fora da Antártica e a água resultante dos derretimentos em vários pontos da Cordilheira formam as nascentes dos mais importantes rios da Ásia: Indo, Bramaputra, Irauádi, Yangtzé (Rio Azul), Huang He (Rio Amarelo), Mekong, Amu Daria, Syr Daria, além do famoso rio Ganges, responsável pelo abastecimento de mais de 400 milhões (algumas fontes afirmam que são 500 milhões) de pessoas na Índia e em Bangladesh.

O Ganges é considerado o rio mais venerado do mundo. De acordo com a mitologia hindu, “qualquer um que se banhar nas águas sagradas do rio terá sua alma purificada – morrer nas margens do rio é ganhar a entrada no céu.” Na fé hindu, uma única gota de água do rio Ganges tem o poder de limpar todos os pecados do corpo. Calcula-se que 1 milhão de pessoas se banhe nas águas do Ganges a cada dia. Nenhum outro rio do planeta tem tanta influência na cultura e na religião de um povo como o Ganges.

A nascente mais importante do rio Ganges fica na Cordilheira do Himalaia, numa gruta sob a geleira Gaumukh, palavra que significa “boca da vaca”. De acordo com a crença popular, é nesse local que a deusa Ganga assume uma forma física, que é representada pelas águas do rio. Os populares a chamam de Maa Ganga, o que significa a Mãe Ganga, aquela que provê o sustento para todos os seus filhos. Esse “sustento” pode ser traduzido na água usada no abastecimento, lembrando que em muitas partes do Norte da Índia o Ganges é a única fonte de água perene disponível para a população; outra interpretação que pode ser dada a “sustento” faz referência à produção agrícola – as águas do rio Ganges são as que mais carregam sedimentos entre todos os rios do mundo, sedimentos que se depositam nas margens do rio, especialmente nas Planícies Indo-Gangéticas, a região mais densamente povoada e considerada o celeiro da Índia. Esses sedimentos são ricos em nutrientes naturais e elementos químicos como fósforo e enxofre, que fertilizam as terras e garantem boas colheitas.

Desde a década de 1940, a geleira de Gaumukh sofreu um recuo de quase 3 km, além de perder quase 1 km na sua espessura. Esse fenômeno está sendo observado em diversas geleiras da Cordilheira do Himalaia. De acordo com estudos realizados pelo Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas da ONU – Organização das Nações Unidas, as geleiras dos Himalaias, onde se encontram as nascentes dos maiores rios da Ásia, podem começar a desaparecer a partir do ano de 2.035 devido ao aquecimento global e as mudanças climáticas. A questão é particularmente preocupante porque os principais rios da região que têm suas nascentes nas geleiras do Himalaia são responsáveis pelo abastecimento de mais de 2 bilhões de pessoas em diversos países.

Apesar de todas as preocupações com o futuro das águas do rio Ganges, a maior preocupação no momento são os altíssimos níveis de poluição das suas águas e seus impactos na saúde das populações que vivem ao longo dos seus mais de 2.500 km de extensão. Apesar de todos os dogmas religiosos que tratam da pureza sagrada das águas do Ganges, a realidade mostra que suas águas podem ser classificadas como uma das mais poluídas do mundo.

Vou citar como exemplo Khanpur, um importante centro industrial às margens do rio Ganges. A cidade tem uma população estimada em 4 milhões de habitantes e cresceu sem maiores preocupações com o planejamento urbanístico e com a implantação de infraestrutura de saneamento básico (todos devem conhecer cidades como este mesmo perfil aqui no Brasil). A base da economia local são as indústrias ligadas ao curtimento e processamento do couro, especialmente bovino, algo que para mim é bastante intrigante já que a vaca é considerada um animal sagrado para os hindus. Dos cerca de 370 curtumes da cidade, pelo menos metade despeja os seus efluentes diretamente no rio Ganges, sem qualquer tipo de tratamento. A esses efluentes industriais se somam todos os efluentes domésticos gerados pela população de Khanpur.

Um dos principais produtos químicos usados nos processos de tratamento do couro são os sais de cromo, uma substância que mumifica o material e impede que o couro apodreça com o passar do tempo. O cromo é um metal de transição com importantes aplicações na metalurgia, especialmente na produção do aço inoxidável. Os compostos de cromo (estado de oxidação +6) são muito oxidantes e podem ser altamente nocivos. Em altas concentrações, estes compostos podem causar diversos problemas à saúde humana, indo desde problemas respiratórios, infecções, infertilidade e deficiências congênitas. Lançado junto com os efluentes nas águas dos rios, o cromo pode causar problemas nas guelras dos peixes e também provocar alguns tipos de câncer em animais que bebam ou mantenham contato com estas águas. Profissionais que trabalham nos curtumes, expostos diariamente a toda uma gama de produtos químicos, podem apresentar problemas como rinite, problemas no estômago, lesões na pele e, em casos extremos, riscos de desenvolver câncer no pulmão. Além dos sais de cromo, os curtumes utilizam outros tipos de produtos químicos como corantes, amaciantes e vernizes, que resultam na emissão de outros poluentes como o mercúrio e o arsênico.

Pois bem – populações que vivem abaixo da cidade de Khanpur e que tradicionalmente viviam da pesca no rio Ganges, atualmente não conseguem retirar o seu sustento das águas: os cardumes de peixes despareceram e os poucos peixes que conseguem capturar têm uma fração do peso normal para as espécies. Testes feitos por pesquisadores em amostras de água recolhidas e em peixes capturados no rio encontraram, além de altíssimos níveis de cromo, níveis de arsênico e de mercúrio 64 e 120 vezes, respectivamente, acima dos limites toleráveis. Mesmo a água usada no abastecimento de parte da população da cidade, que passa por um processo convencional de tratamento, apresenta altos níveis de cromo, mercúrio e arsênico; ou seja, todos estão sendo afetados pela poluição das águas por metais pesados.

O caso da poluição no rio Ganges é bem extenso – continuaremos a falar dele na próxima postagem. Até lá.

OS “PESCADORES DE CORPOS” NA CHINA, OU POR QUE TANTA PREOCUPAÇÃO COM A POLUIÇÃO DAS ÁGUAS?

Pescadores de corpos

A cena inicial do filme “Império do Sol”, produção de Steven Spielberg de 1987, é das mais intrigantes – caixões flutuando no mar são abalroados por um navio de guerra da Marinha Japonesa, tendo como fundo a música Suo Gân, uma tradicional canção de ninar em língua galesa.

Confesso que já realizei diversas pesquisas para entender a cena – a resposta mais plausível que consegui encontrar (podem existir outras respostas melhores, mas é importante lembrar que o regime comunista que dirige a China desde os anos de 1940 sempre fez um grande esforço para esconder os “podres” da sua história) afirma que, após a invasão japonesa na Manchúria na Segunda Guerra Mundial, os chineses da região passaram a enfrentar enormes dificuldades para viajar de uma cidade para outra.

Muitos cidadãos que morreram em Xangai na época, não puderam ser transportados para as cidades de origem para serem velados e enterrados por seus amigos e familiares – a solução encontrada era lançar os caixões nas águas do rio Yangtzé para assim fazerem a “viagem final”.

Sempre que eu leio ou escrevo alguma coisa sobre o problema dos recursos hídricos na China, essa cena deste filme me veem à memória instantaneamente – os problemas relacionados à disponibilidade e à poluição das águas neste país são simplesmente trágicas. Vale a pena analisarmos estes problemas lá do outro lado do mundo para percebermos quão trágica poderá se tornar essa questão aqui no Brasil, caso não sejam tomadas medidas para reverter a situação de poluição generalizada que começa a tomar conta de grande parte dos nossos rios.

A China é o país mais populoso do mundo – 21% da população mundial é compostas por chineses, o que representa um total de 1,36 bilhões de pessoas. Apesar dessa formidável população, o território chinês possui apenas 7% dos estoques de água doce do planeta – para efeito de comparação, o Brasil, que tem um território um pouco menor do que a China e uma população 6,6 vezes menor, possui 12% das reservas de água doce do planeta.

Como se a carência de água já não fosse um problema colossal para o país, na China também existe um enorme desequilíbrio regional na disponibilidade de água – o Norte da China é bastante árido (se vocês se lembram das aulas de geografia, é lá onde encontramos o Deserto de Gobi), concentrando 42% da população e apenas 14% das reservas de água do país: seria algo como imaginarmos a região do Semiárido brasileiro com uma população 12 vezes maior.

Um dos grandes projetos de infraestrutura em andamento atualmente na China é a construção de um sistema com 2.500 km de canais que permitirão a transposição de mais de 40 bilhões de metros cúbicos de água do rio Yangtzé para as regiões do Norte do País. Os investimentos previstos são de US$ 62 bilhões, divididos em três fases e com previsão de conclusão para o ano de 2050.

Apesar dos históricos problemas de disponibilidade e distribuição da água, o fabuloso crescimento econômico da China se deu a partir da apropriação de uma grande parcela da água disponível e, muito pior, poluindo rios e fontes de água da forma mais selvagem possível. Até o ano de 1980, a demanda de água pelo setor industrial era de apenas 7% das reservas disponíveis – nos dias atuais, essa demanda subiu para 25%.

Os despejos e poluentes lançados nos corpos d’agua do país, cresceram em proporções ainda maiores – calcula-se que entre 60 e 70% do rios chineses estão poluídos, com níveis de poluição que transformam os nossos rios mais poluídos em “regatos das montanhas”, repetindo uma expressão que usei em uma postagem anterior. Um relatório oficial do governo chinês, divulgado em 2012, informava que “cerca de 40% dos rios chineses estão seriamente poluídos” e “20% estão tão poluídos que suas águas são tóxicas e impróprias ao contato humano”.

Essa demanda cada vez maior de água por parte das indústrias está gerando um problema, bastante conhecido por todos nós, que é a superexploração das fontes de água. Um grande exemplo deste problema pode ser observado no rio Hai, o terceiro maior rio do país – dados do ano de 2007 indicavam que o rio tinha a capacidade para fornecer 17,3 bilhões de metros cúbicos por ano – a retirada de águas neste mesmo rio em 2007 contabilizou um total de 26 bilhões de litros de água.

Isso significa que todos os demais usos das águas do rio foram comprometidos – navegação, irrigação, diluição de poluentes, vida aquática e preservação da paisagem – sobrou apenas um leito seco com um filete de água correndo no talvegue, a parte mais baixa do canal.

Os dois maiores rios da China, o Yangtzé (rio Azul), com 6.300 km de extensão, e o Huang He – também conhecido como Huang Ho (rio Amarelo), com 5.464 km de extensão, apresentam altos níveis de poluição, porém estão muito longe dos níveis encontrados em rios menores. As grandes fontes de poluição destes dois rios são as indústrias dos setores petroquímico e químicoexistem cerca de 10 mil indústrias na bacia hidrográfica do rio Yangtzé e outras 4 mil no rio Huang He, que se instalaram e se expandiram em uma época em que tudo era permitido por conta do intenso crescimento econômico da China.

Nos últimos anos, a política ambiental chinesa sofreu uma verdadeira guinada e, gradativamente, estão sendo implantadas leis e normas ambientais para controlar e reverter esta situação caótica. A China é hoje o país líder na emissão de Certificações Ambientais da Série ISO 14001.

A questão da poluição das águas, entretanto, está muito longe de uma solução. Um caso recente ilustra didaticamente o problema: em 2013, as autoridades ambientais começaram a observar um grande volume de carcaças de porcos descendo o rio Yangtzé na direção da importante Xangai, cidade símbolo do desenvolvimento econômico da China. Ao longo de várias semanas, foram retiradas cerca de 20 mil carcaças das águas do rio. Investigações posteriores revelaram que um surto viral atingiu as fazendas de uma importante região agropecuária do país e os produtores não pensaram duas vezes – jogaram os animais mortos nas águas do Yangtzé.

Existe, porém, uma face muito mais trágica e teneborosa da poluição dos rios chineses: é o expressivo aumento do número de corpos humanos que estão sendo encontrados boiando nos rios. O caso em questão não envolve o assassinato de pessoas e o descarte dos corpos – representa o aumento do número de suicídios no país. Na China estão sendo registrados 200 mil suicídios por ano, um dos maiores valores absolutos em termos mundiais (em termos percentuais, em razão da grande população do país, o número não é tão expressivo).

Cerca de 80% destas mortes ocorrem nos rios (pessoas que se jogam de pontes, por exemplo) e, curiosamente, dois terços dos suicidas são mulheres. A quantidade de corpos humanos flutuando nos grandes rios atingiu números tão assombrosos que acabou por levar à criação de uma nova profissão entre os chineses: os pescadores de corpos. Muitos desses profissionais, inclusive, são funcionários públicos das prefeituras ribeirinhas e trabalham por razões humanitárias.

Os trabalhadores da “iniciativa privada” tem uma outra motivação – ao “pescar” um corpo no rio, esses profissionais tentam localizar a família do morto, objetivando receber alguma recompensa pelo “importante trabalho”. Os “pescadores” afirmam que recuperam de 80 a 100 corpos por ano. A foto nada agradável que ilustra essa postagem foi tirada em 2010 nas proximidades da cidade de Lanzhou, onde existe uma barragem e os corpos se acumulam no local.

Esta rápida incursão nos problemas de abastecimento e poluição das águas na China nos dá uma clara ideia da falta de limites do ser humano quanto o assunto é o desenvolvimento econômico às custas da destruição da natureza. Você pode até imaginar que coisas deste tipo nunca irão acontecer aqui no Brasil – ao contrário, já aconteceram e um dos maiores exemplos é a cidade de Cubatão, no litoral de São Paulo: nas décadas de 1970 e 1980, a cidade chegou a ser considerada a mais poluída do mundo e recebeu o trágico apelido deVale da Morte”. Felizmente, a situação foi revertida e 95% das fontes de poluição em Cubatão se encontram hoje sob controle.

A história da humanidade , porém, tem mania de repetir os acontecimentos do passado…

PS: A imagem que ilustrava originalmente essa postagem era bem menos dramática, porém, após um leitor acusar o blog de divulgar fake news pelo teor da matéria, me senti obrigado a publicar uma das fotos reais – minhas sinceras desculpas a quem se incomodar com a imagem. Os links em negrito no texto levam diretamente às reportagens originais sobre o assunto.

OS MUITOS “TIETÊS” DO BRASIL

Despejo de Esgotos em Rio

Meses atrás, publiquei uma série com mais de 80 postagens onde tratei longamente da lista com os dez rios mais poluídos do Brasil. O ranking com estes rios foi elaborado por inúmeros especialistas e faz parte da publicação “Indicadores de Desenvolvimento Sustentável”, do IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Os dois primeiros colocados na lista dos rios mais poluídos do Brasil, são os rios Tietê, no trecho que atravessa a Região Metropolitana de São Paulo, e o Iguaçu, no seu trecho inicial na Região Metropolitana de Curitiba.

Poucos dias após a conclusão desta série de postagens, a ANA – Agência Nacional de Águas, divulgou o “Atlas dos Esgotos – Despoluição de Bacias Hidrográficas”, um estudo que mostra que 81% dos municípios brasileiros despeja, pelo menos, 50% dos esgotos que produzem diretamente nos rios e córregos locais sem realizar qualquer tipo de tratamento nestes efluentes. Uma das conclusões do estudo – cada Estado brasileiro possui o seu próprio “Tietê”. Como é um tema extremamente relevante para a área dos recursos hídricos, vamos retomar o assunto.

A coleta e, muito menos, o tratamento dos esgotos produzidos pelas nossas cidades nunca tiveram qualquer prioridade pelas administrações municipais – e olhem que o problema vem de muito longe. Segundo nos informam alguns cronistas do passado, os administradores portugueses no período colonial tinham uma política para a fundação das vilas – era necessário se escolher uma localidade onde existissem, pelo menos, dois rios: um rio para atender ao abastecimento de água e outro para o lançamento dos esgotos e do lixo produzido pela população. Um exemplo clássico desta política “urbana” foi a escolha do sítio onde foi fundada a Vila de São Paulo de Piratininga, embrião da atual cidade de São Paulo – o local que ficou conhecido como Pátio do Colégio ficava bem próximo do rio Tamanduateí, que forneceu água para o abastecimento da cidade até a metade do século XIX; bem perto dali encontramos o rio Anhangabaú, atualmente canalizado, que era usado para o despejo do esgoto e do lixo da vila. Há um detalhe interessante nesta escolha – os índios que moravam na região diziam que o Anhangabaú era uma espécie de rio mal-assombrado e local onde se encontravam espíritos perdidos. Estas qualidade negativas, se é que podemos classificá-las assim, contribuíram na fatídica escolha deste rio.

Este descaso com o problema dos esgotos persiste até os nossos dias – cerca de 90% dos 5.570 municípios brasileiros tratam menos de 60% dos seus esgotos; na realidade, a maioria das cidades lança todo o esgoto nos cursos d’água – este valor percentual foi estabelecido como uma “nota de corte” para efeito da pesquisa. Apenas 769 cidades brasileiras, a maioria localizada na região Sudeste, têm índices de tratamento de esgotos superiores a 60%. Considerando-se os Estados, somente São Paulo, Paraná e o Distrito Federal atingirão o índice de tratamento de 60%. A pesquisa revela também que quase 70% dos municípios não tem uma única estação de tratamento de esgotos.

De acordo com dados apurados pela pesquisa, são produzidas diariamente 9,1 mil toneladas de DBO (Demanda Bioquímica de Oxigênio), que é a medida da carga de esgotos despejada em um corpo d’água. Quando se analisa o volume de efluentes gerados diariamente por uma casa, por exemplo, se observa que mais de 95% é formado por águas servidas – águas usadas na lavagem de louça, roupas, banhos e em serviços de limpeza; as fezes e as gorduras, matérias que necessitam de tratamento e remoção no processo de tratamento do esgoto, correspondem a uma parcela mínima dos efluentes – é essa parcela que é indicada pela DBO. Se considerarmos que apenas 39% dos esgotos gerados pelas cidades recebem tratamento, concluímos que um volume de 5,5 mil toneladas de DBO são lançadas diariamente em nossos rios – esse volume é suficiente para encher 2 mil piscinas olímpicas.

De acordo com informações da ANA – Agência Nacional de Águas, o despejo indiscriminado de esgotos nos rios faz com que tenhamos uma extensão total de 83 mil km de águas incluídas na Classe 4 – são rios considerados mortos, com uso restrito apenas para navegação e como elemento paisagístico. De acordo com o CONAMA – Conselho Nacional do Meio Ambiente, os rios recebem uma classificação de 0 a 4 – um rio classificado como 0 ou Classe Especial pode ter sua água consumida sem tratamento, necessitando apenas da adição de cloro; já um rio Classe 4 tem águas altamente poluídas e são tão sujos que a captação da água para uso em abastecimento, dessedentação animal e irrigação de lavouras é proibido. Esses 83 mil km de rios com águas altamente poluídas correspondem à soma total da extensão dos 17 maiores rios do mundo – é esse o volume de água, tão necessária em nossos tempos, que nossas cidades simplesmente inutilizam ao não tratar seus efluentes adequadamente.

Sempre que se fala de poluição de rios, o Tietê surge como a principal referência, uma vez que aparece como o número 1 na lista dos 10 rios mais poluídos do Brasil. O trecho mais poluído do rio é o trecho conhecido como Médio Tietê, que recebe uma enorme carga de poluentes ao atravessar a Região Metropolitana de São Paulo. Apesar de todos os esforços que as cidades da região vem realizando há várias décadas, aqui é importante lembrar que algumas das cidades mais ricas do Brasil ficam nesta região, cerca de 32,8% do volume de esgotos gerados ainda é despejado sem tratamento nos rios da região e acabam sendo carreados para a calha do rio Tietê. Mesmo estando bem abaixo da média da maioria das cidades brasileiras, este volume de esgotos provoca uma mancha de poluição que avança por 130 km rio abaixo – em décadas passadas essa mancha de poluição era bem maior, atingindo cerca de 300 km. Esse exemplo mostra que mesmo em regiões onde existem recursos para se investir em sistemas de coleta e de tratamento de esgotos, os resultados demoram a aparecer e as dificuldades técnicas para a execução das obras são enormes.

De acordo com estimativas da ANA, serão necessários investimentos de R$ 150 bilhões para implantar e regularizar os sistemas de coleta e de tratamento de esgotos das cidades brasileiras até o ano de 2035, prazo estabelecido no PLANSAB – Plano Nacional de Saneamento, para o Brasil universalizar o tratamento de água e esgotos. Todos vocês que têm acompanhado os noticiários, que falam dos sucessivos escândalos envolvendo empreiteiras e políticos, sabem, ou ao menos imaginam, a quantidade de irregularidades e problemas que surgiriam caso esse volume de recursos fossem disponibilizados para a execução de todo esse conjunto de obras – grande parte do dinheiro, simplesmente, “escorreria pelo esgotos…”

Enquanto a solução para os problemas dos esgotos não surge, seja pela falta de incapacidade gerencial das prefeituras e governos, seja pela falta de recursos ou pela corrupção generalizada, continuamos a assistir rios importantes se transformarem em verdadeiros canais de esgotos a céu aberto. Para piorar a situação, vemos que muitos destes rios são as fontes de abastecimento de muitas cidades, que tem de arcar com gigantescos investimentos em sistemas captação, armazenamento e tratamento de água a fim de conseguir abastecer as suas populações. Ou seja, uma cidade despeja todos os seus esgotos num rio, que poucos quilômetros a frente irá fornecer a água que abastecerá uma outra cidade – é no, mínimo, uma insanidade se agir desta maneira…

Continuamos no próximo post.

A SECA NO SERTÃO DO CARIRI E AS TEMPESTADES EM MINAS GERAIS

Roliúde Nordestina

As chuvas continuam fortes em diversas regiões do Estado de Minas Gerais, atingindo também o Norte do Espírito Santo, grande parte de Goiás e o Distrito Federal, Sul de Mato Grosso do Sul e Oeste do Estado de São Paulo. Lembro que ainda faltam duas semanas para o início oficial do Verão, época que marca o período das fortes chuvas em grande parte das regiões Central, Sudeste e Sul do país. Enquanto isso, os sertanejos de boa parte do Semiárido olham para cada pequena nuvem que aparece no céu dos sertões do Nordeste, rezando para que caiam algumas gotas de chuva sobre as terras secas.

Na minha última postagem citei alguns números da chuva em Belo Horizonte, a fim de mostrar a intensidade das precipitações: em alguns bairros da capital, choveu o equivalente a 292 mm apenas nos primeiros 4 dias do mês – a média histórica de chuvas em Belo Horizonte no mês de dezembro é de 319,4 mm. Quem lida com recursos hídricos e que já está acostumado com esses números, sabe que estamos falamos de chuvas absolutamente volumosas. Porém, sempre que eu coloco este tipo de informação em meus textos, fico me perguntando se quem os ler conseguirá entender exatamente o que significam. Vou tentar explicar de um jeito bem didático:

O índice pluviométrico corresponde à somatória das precipitações de água (o que inclui chuva, neve e granizo) sobre uma área equivalente a 1 m², durante um determinado período de tempo. A medida utilizada é o milímetro (mm) e o período de tempo é escolhido conforme a necessidade: pode ser um dia, um mês, um ano.

Imagine que você queira saber qual é a quantidade de chuva que cai aí no quintal da sua casa durante um certo mês. Para determinar esta quantidade, que é o índice pluviométrico, você vai precisar instalar um recipiente em uma área aberta, que tenha condições de armazenar toda a água das chuvas que cairão ao longo do mês. Esse recipiente é teórico e corresponde a uma caixa com 1 metro de largura, 1 metro de profundidade e 1 metro de altura – feitas as devidas contas, esta caixa tem capacidade para armazenar 1 metro cúbico ou 1.000 litros de água. Para facilitar a leitura, imagine que esta caixa possui uma régua com graduação em milímetros colada em uma das faces internas – o zero estará voltado para o fundo da caixa. Conforme as chuvas vão caindo no seu quintal, uma parcela da água ficará armazenada dentro desta caixa – cada 1 mm de água acumulada na caixa corresponderá a 1 litro de água da chuva. No caso de Belo Horizonte, uma caixa coletora equivalente a esta indicaria que em 4 dias, o volume de água de chuva acumulado atingiu a marca de 292 mm – ou seja, foram 292 litros de água de chuva para cada metro quadrado de terreno em 4 dias. Fazendo os cálculos, podemos afirmar que choveu o equivalente a 73 milímetros ou 73 litros de chuva a cada dia sobre cada metro quadrado deste terreno.

No dia a dia, os meteorologistas e demais profissionais que precisam coletar dados sobre o volume de chuvas usam um pequeno equipamento conhecido como pluviômetro, que é uma versão bem reduzida desta caixa e, desta forma, bem mais fácil de se transportar e manusear. São instalados diversos pluviômetros em uma determinada região e o índice pluviométrico será calculado em função da média das leituras. Existe uma versão bem mais moderna do pluviômetro – o pluviógrafo, que realiza a leitura automaticamente e faz o registro em uma planilha ou gráfico; alguns modelos transmitem as informações via rádio ou celular diretamente para uma central de monitoramento do clima.

Agora que você já tem uma ideia do significado de índice pluviométrico, vamos comparar os volumes das recentes chuvas de Belo Horizonte com o índice equivalente da cidade mais seca do Brasil: Cabaceiras no Estado da Paraíba, mais conhecida como a “Roliúde Nordestina”.

Localizada no sertão do Cariri, no chamado Planalto da Borborema, a cidade de Cabaceiras fica a 180 km da capital da Paraíba, João Pessoa. Com uma população de pouco mais de 5 mil habitantes, Cabaceiras se orgulha da produção cinematográfica local, onde já foram filmados 25 longas metragens dos mais diversos gêneros. Destacam-se “O Auto da Compadecida”, do diretor Guel Arraes, baseado em uma peça de Ariano Suassuna e lançado em 1999; “Cinema, Aspirinas e Urubus”, de Marcelo Gomes e “Romance”, também dirigido Guel Arraes. A alcunha “Roliúde Nordestina” vem daí e a cidade acabou criando um Memorial Cinematográfico. Uma outra atração turística natural de grande fama na cidade é o Lajedo de Pai Mateus, uma formação rochosa a 25 quilômetros do centro da cidade, formada por grandes pedras arredondadas, cada uma com até 45 toneladas.

A precipitação média anual na cidade de Cabaceiras é de apenas 348 mm, resultante de chuvas que ocorrem normalmente em apenas dois meses do ano. O período de estiagem na cidade dura entre dez e onze meses. Não é incomum a ocorrência de tempestades violentas nos períodos das chuvas – em 29 de abril de 2011 choveu o equivalente a 108,2 milímetros em apenas 24 horas – este índice é bem mais alto que os 73  mm registrados em Belo Horizonte nos primeiros dias deste mês de dezembro.

Para que você tenha uma ideia exata da aridez de Cabaceiras, a precipitação média mensal é de apenas 29 mm ou menos de 1 mm de chuva a cada dia. Ou seja, a chuva que caiu em um único dia na capital mineira corresponde a mais de dois meses de chuva em “Roliúde” – para tornar o roteiro ainda mais dramático, já que estamos falando de um polo cinematográfico, podemos fazer a comparação em dias: é necessária a soma de 73 dias de chuva em Cabaceiras para se atingir o volume acumulado em um único dia de chuva em Belo Horizonte neste início de dezembro. Nem os melhores roteiristas da verdadeira Hollywood conseguiriam imaginar um cenário mais dramático do que o sertão do Cariri.

Felizmente, desde o início de 2017, a situação de Cabaceiras é um pouco melhor do que em anos anteriores graças à inauguração de um ramal do Eixo Leste do Sistema de Transposição das Águas do Rio São Francisco. Este ramal, que chega até a cidade de Monteiro na Paraíba, está despejando 7 m³ de água no leito do Rio Paraíba, que atravessa o município de Cabaceiras. Depois de acompanhar o leito do rio completamente seco por mais de cinco anos, a população de Cabaceiras agora pode admirar de camarote, sobre as muitas formações rochosas da região, a passagem das águas em meio à vegetação ainda devastada pela forte estiagem e sentir alguma esperança de um futuro melhor. Quem gosta de cinema, talvez associe esta imagem a uma cena do filme “Laurence da Arábia”, um dos grandes clássicos do cinema – depois de atravessar o deserto da Península do Sinai a pé e sem nenhum suprimento de água, o protagonista da história avista a imagem surreal de um grande navio passando atrás das dunas: ele e os companheiros acabavam de chegar ao Canal de Suez no Egito.

Este dois casos mostram os extremos climáticos de nosso país e expõem com absoluta clareza a falta de infraestrutura para lidar com os problemas ligados à água – tanto o excesso, como no caso das enchentes que assistimos em Belo Horizonte, quanto a falta do precioso líquido nas regiões do Semiárido nordestino. No Sertão do Cariri, as águas, que vem sendo prometidas desde os tempos de Dom Pedro II, finalmente começaram a chegar, mais ainda falta muito a se fazer: estações de tratamento e redes de distribuição para levar a água a toda a população e canais de irrigação que permitam transformar os campos em “jardins”.

Ou seja – ainda faltam muitas cenas para finalizar a saga da “Roliúde Nordestina” e os dramas das muitas cidades assoladas pelas fortes chuvas de verão.