
Na última postagem falamos dos grandes problemas ambientais do rio dos Sinos, um dos mais importantes da faixa Leste do Rio Grande do Sul. Uma característica marcante desse rio e que se repete em inúmeros outros rios gaúchos é o fato das suas nascentes estarem localizadas dentro de regiões nos domínios da Mata Atlântica, enquanto que a maior parte da sua calha e a foz se encontram dentro de áreas de Pampas. Esses dois biomas dominam as paisagens gaúchas.
Falando de uma forma bastante simplificada, existem grandes diferenças entre os solos das áreas de domínio dos dois biomas no Rio Grande do Sul. Na faixa Norte do Estado, onde dominam a Floresta Ombrófila Densa e a Floresta Ombrófila Mista, chamadas genericamente de Mata Atlântica, encontramos solos profundos e férteis, que favoreceram o desenvolvimento de árvores de grande porte. Já nas regiões de domínio do bioma Pampa, encontramos solos mais rasos que favorecem o predomínio das gramíneas.
O bioma Pampa ocupa pouco mais de 60% do território do Rio Grande do Sul. Esse bioma atravessa fronteiras e se estende na direção da Argentina e do Uruguai. O clima frio e seco dessas regiões resulta em processos de decomposição lenta da matéria orgânica e que levam à formação dos chamados chernossolos.
Na faixa costeira e ao redor das grandes lagoas, os solos se desenvolveram sob condições de excesso de água e/ou com grande concentração de areia Nessas regiões são encontrados solos dos tipos gleissolos, planossolos e neossolos quartzarênicos. Todos esses solos favorecem o desenvolvimento de gramíneas, vegetação arbustiva e de pequenos bosques, características marcantes das paisagens dos Pampas.
Essas diferenças nos tipos de vegetação também se refletem nos mecanismos de absorção de água e de recarga de lençóis freáticos e aquíferos. Em áreas de Mata Atlântica, as principais aliadas desses processos são as grandes raízes das árvores. Nas áreas de Pampas, as áreas dos banhados são as principais responsáveis por esses processos.
Os banhados são ecossistemas extremamente ricos em vida, podendo ser comparados aos bancos de corais dos oceanos. Funcionando como uma espécie de “esponja natural”, as áreas de banhado acumulam grandes volumes de água nos períodos de chuva, auxiliando inclusive no controle das cheias dos rios.
Nos períodos de seca, os banhados fornecem água para as lagoas, garantido a sobrevivência de um sem número de espécies animais e vegetais. Um grande número de arroios, os pequenos córregos e riachos, e rios da região dos Pampas têm suas nascentes em áreas de banhados.
E qual é a importância das áreas cobertas com florestas de Mata Atlântica para as regiões de campos dos Pampas?
Importantes e caudalosos rios que cruzam os Pampas têm suas nascentes e principais rios formadores localizados em outros biomas. Como exemplo podemos citar o rio Paraná, o mais importante da Argentina. Os rios formadores do Paraná ficam dentro de áreas de Cerrado, de Mata Atlântica e do Pantanal Mato-grossense, dentro dos territórios do Brasil, Paraguai e Bolívia. Qualquer devastação ambiental nessas áreas tem reflexos diretos nos volumes e na qualidade das águas que correm na direção dos Pampas argentinos, criando problemas “em cadeia” nessa região.
Um importante rio dos Pampas do Extremo Sul e que está enfrentando uma série de problemas ambientais criados dentro de áreas da Mata Atlântica é o rio Uruguai. Esse rio se forma na Serra Geral, na divisa dos Estados de Santa Catarina e Rio Grande do Sul, a partir da junção dos rios Pelotas e Canoas. O rio Uruguai percorre um total de 1.262 km, marcando primeiro a fronteira entre o Brasil e a Argentina, e depois a fronteira desse país com o Uruguai até atingir sua foz no rio da Prata.
O trecho da bacia hidrográfica do rio Uruguai entre os Estados de Santa Catarina e Rio Grande do Sul fica quase que inteiramente dentro do bioma Mata Atlântica. Conforme apresentamos em diversas postagens anteriores, essas regiões sofreram grandes desmatamentos ao longo dos processos de ocupação dos territórios por diferentes frentes colonizadoras. A Mata das Araucárias, o mais importante subsistema florestal da Mata Atlântica na região foi o mais impactado com esses desmatamentos.
De acordo com os levantamentos mais recentes, a Mata das Araucárias está reduzida a meros 3% de sua área original. Lembro aqui que o pinho das araucárias era uma madeira de ótima qualidade e de alto valor no mercado. Além das araucárias, essas florestas também eram ricas em outras espécies de árvores com madeiras nobres como a imbuia, o cedro, o marfim e a peroba. Esse fabuloso potencial madeireiro levou a uma superexploração dessas matas, que foram praticamente dizimadas.
Essa tremenda perda de massa florestal, além de todos os problemas ecológicos para as espécies animais e vegetais, resultou em graves prejuízos para os corpos hídricos. Sem a presença da floresta, a infiltração da água das chuvas nos solos foi bastante reduzida. Com a redução das reservas subterrâneas de água, os volumes que brotam nas nascentes também foram reduzidos, um problema que fica mais evidente nos meses de seca. Também é importante lembrar que a cobertura florestal protege os corpos hídricos contra a entrada de sedimentos.
A degradação da qualidade das águas nessas regiões por poluentes de origens diversas também é muito grande. No Oeste de Santa Catarina, onde existe uma grande concentração de propriedades rurais dedicadas à criação de porcos, os rios sofrem com o lançamento de grandes volumes de efluentes orgânicos gerados nessas criações – o rio Chapecó é um exemplo desse tipo de contaminação. O mesmo problema ocorre no Rio Grande do Sul, porém, com uma predominância de propriedades especializadas na criação de gado bovino. O rio Passo Fundo exemplifica esse problema.
Outra fonte importante de poluentes que são carreados para as águas da bacia hidrográfica é a agricultura, formada principalmente por cultivos de milho, trigo e soja. Essas culturas demandam grandes volumes de fertilizantes e agrotóxicos, produtos que geram muitos resíduos e que são arrastados para as calhas dos rios pelas chuvas. O uso inadequado desses solos agrícolas também resulta em grandes carreamentos pelas águas das chuvas de areia, solos agrícolas e outros resíduos para os rios.
Não menos importantes são os grandes volumes de esgotos domésticos e industriais gerados em cidades como Lages, Chapecó, Erechim e Passo Fundo, que são despejados nas águas dos rios sem tratamento. A esses efluentes se somam parte dos resíduos sólidos gerados nesses centros urbanos e que não recebem uma destinação adequada – parte desses resíduos, fatalmente, acabará sendo arrastada para os corpos d’água.
Esses graves problemas no rio Uruguai ficaram mais evidentes nesses últimos meses devido à forte seca que assolou e que ainda que ainda assola grande parte do Rio Grande do Sul – dois terços dos municípios gaúchos estão em estado de emergência. O rio Uruguai apresenta atualmente os mais baixos níveis observados nos últimos 80 anos (vide foto). E com a redução do volume de água no rio, a concentração dos poluentes aumenta.
Em resumo – grande parte dos problemas enfrentados pelo rio Uruguai dentro dos domínios do bioma Pampa estão sendo gerados pelo trecho da bacia hidrográfica que fica dentro de regiões de Mata Atlântica. A devastação dos Pampas, que é o segundo bioma brasileiro mais degradado e que já perdeu mais de 60% de sua área original, completa o quadro de degradação das águas do rio Uruguai e de muitos outros rios do Rio Grande do Sul.
Nós maltratamos e destruímos os biomas e depois ficamos reclamando da seca e da falta de água.