
O rio Jequitinhonha nasce nos contrafortes da Serra do Espinhaço, conhecida por muitos como a Cordilheira Brasileira, a cerca de 320 km de Belo Horizonte na localidade de Serro. Graças ao terreno acidentado e as dificuldades de acesso, as matas da região permanecem praticamente intocadas. Nos seus primeiros dez quilômetros de curso, o Jequitinhonha é um rio de águas limpas e cristalinas.
A situação ambiental do rio muda drasticamente ao receber as águas do seu primeiro grande afluente – o Córrego Acabassaco. Esse corpo d’água recebe toda a descarga de esgotos domésticos do povoado de Pedro Lessa e despeja esses efluentes no rio Jequitinhonha, um drama que se repetirá inúmeras vezes em todos os rios da bacia hidrográfica até o encontro das suas águas com o Oceano Atlântico em Belmonte, no Estado da Bahia.
Pedro Lessa, que é um distrito de Serro, surgiu no século XIX como um quilombo de escravos fugitivos. Conta a tradição oral dos locais que os escravos “fugidos” se embrenhavam nas densas matas da região, onde dispunham de muitas frutas e caça para subsistir – o rio Jequitinhonha provia água limpa e fresca para todos. A derrubada de matas e o avanço da agropecuária mudou completamente as paisagens da região e essa degradação é visível na situação atual do rio.
Conforme já tratamos em diversas postagens anteriores, a região das Geraes ganhou uma enorme importância nacional nos primeiros anos do século XVIII após as notícias da descoberta de ouro na lendária Serra do Sabarabuçu por bandeirantes paulistas. Em pouco mais de cinquenta anos, cerca de 2/3 da população da colônia abandonaria as terras do litoral açucareiro de então e se embrenharia nos sertões das Geraes para tentar a sorte nos garimpos.
Esse sonho dourado, que fez a fortuna de poucos e a ruína de muitos, mal conseguiu chegar vivo até o final daquele século – os veios de ouro se esgotaram e a produção caiu drasticamente. Sem a riqueza desse metal e com uma grande população para sustentar, os mineiros rapidamente passaram a se dedicar à outras atividades econômicas como a agricultura e a pecuária. No Vale do Jequitinhonha, os grandes rebanhos bovinos, vindos principalmente da Bahia, começaram a chegar nos últimos anos do século XIX. O auge desse processo, conhecido como “colonização baiana”, se deu entre 1890 e 1930.
De acordo com registros de cronistas e viajantes do início do século XX, esses rebanhos se estabeleceram em regiões de chapadas e caatingas da margem esquerda do rio Jequitinhonha, em localidades como Santo Antônio das Salinas, atual Salinas, Comercinho do Bruno, atual Comercinho, e Santa Rita, atual Medina. Segundo consta, eram essas as localidades que apresentavam as maiores áreas de campos há época. As boiadas alcançariam as matas do rio Pampã, próximo da divisa com a Bahia, do rio São Mateus, já no Espírito Santo, além do Vale do rio Mucuri, que nasce no Nordeste de Minas Gerais e deságua no Sul da Bahia.
No extremo Lesta do Vale do Jequitinhonha, onde existiam grandes planícies cobertas por densas matas, os criadores de gado passaram a derrubar e a queimar as matas, criando pastagens artificialmente, prática que já era feita nas áreas locais de caatinga. A pecuária se consolidou em localidades como Fortaleza, atual Pedra Azul, Salto Grande, Jacinto e Palestina, atual Jordânia. Os pecuaristas introduziram o gado zebu nessa região em 1920.
Derrubar e queimar matas para a criação de pastagens já era uma pratica comum em toda a região do Semiárido Nordestino desde o século XVII. Conforme comentamos em outras postagens, as boiadas e os criadores de gado foram expulsos do litoral açucareiro do Nordeste – os animais invadiam as plantações e comiam os brotos adocicados da cana de açúcar. Após inúmeros conflitos, um Decreto Real proibiu a criação de gado a menos de 60 km da costa.
As regiões do Agreste e do Semiárido Nordestino não dispunham da mesma abundância vegetal da Zona da Mata, nome dado à faixa de terras cobertas pela Mata Atlântica. Contando com pequenas faixas de campos entre trechos de vegetação arbustiva e os caatingais, essa região não tinha capacidade para sustentar grandes boiadas. Foi então que os criadores iniciaram a pratica das queimadas das árvores e arbustos, aumentando artificialmente as áreas de pastagens.
Um depoimento importante sobre essa prática nos foi legado por Euclides da Cunha (1866-1909), militar e escritor brasileiro que, em 1897, foi mandado para os sertões da Bahia como jornalista correspondente da Guerra de Canudos.
“Ainda em meados deste século, no atestar de velhos habitantes das povoações ribeirinhas do São Francisco, os exploradores que em 1830 avançaram, a partir da margem esquerda daquele rio, carregando em vasilhas de couro indispensáveis provisões de água, tinham, na frente, alumiando-lhes a rota, abrindo-lhes a estrada e devastando a terra, o mesmo batedor sinistro, o incêndio. Durante meses seguidos viu-se no poente, entrando pelas noites dentro, o reflexo rubro das queimadas.”
Essa prática, que pode ter contribuído muito para a amplificação dos efeitos da seca no Semiárido Nordestino, foi introduzida no Norte de Minas Gerais pelos pecuaristas “baianos” e levou a uma enorme devastação de matas nativas, causando enormes problemas ambientais em toda a bacia hidrográfica do rio Jequitinhonha.
Antes da chegada da pecuária, as terras do Vale do Jequitinhonha eram usadas para fins agrícolas, produzindo milho, algodão, arroz, feijão, fumo, mamona, cana-de-açúcar e batatas. Segundo os relatos deixados pelo naturalista e botânico Auguste de Saint-Hilarie, que fez expedições na região nos últimos anos da década de 1810:
“Nessa área o milho rendia duzentos por um, a cana se desenvolvia admiravelmente bem e começava-se a plantar café. O algodão também rendia bastante: o espaço que se semeava com um alqueire de milho, rendia cento e vinte arrobas de algodão, sendo que três e meia arrobas desse algodão bruto davam uma arroba de algodão limpo (descaroçado).”
Os caboclos locais usavam a técnica do desmate a fogo, conhecido localmente como roça de toco. A mata era derrubada e queimada, e as cinzas ajudavam na fertilização do solo. Essa fertilidade durava poucos anos, quando então eram abandonados e outras áreas eram desmatadas para novos plantios. Com a chegada das grandes boiadas, que eram muito mais lucrativas que essa agricultura itinerante, o volume e a extensão das queimadas aumentou exponencialmente.
Quando os terrenos degradados eram finalmente abandonados, as únicas plantas que brotavam nos solos ressequidos e calcinados eram ervas daninhas e capins com nomes populares como o “melão de São Caetano”, “mata-pasto”, “amargoso”, “pião roxo” e “rabo de raposa”. Como o gado bovino não aceitava esse tipo de alimento, essas áreas ficavam literalmente imprestáveis.
Esse uso inadequado dos solos e a destruição da cobertura vegetal tiveram reflexos diretos na quantidade e na qualidade das águas da bacia hidrográfica do rio Jequitinhonha. Inúmeras nascentes dos seus rios formadores secaram e tantas outras tiveram reduções substanciais nos volumes de água.
Os rios também passaram a sofrer com grandes volumes de sedimentos carreados pelas águas das chuvas, com a poluição e com os esgotos gerados por inúmeras cidades, entre outros problemas. Esse somatório de problemas transformou o Vale do Jequitinhonha numa das regiões mais pobres do Brasil.
Felizmente, essa situação começou a mudar nas últimas décadas. O Vale do Jequitinhonha vem se destacando no plantio de florestas comerciais de eucalipto e na produção de carvão vegetal, um produto altamente valorizado pelas empresas siderúrgicas de Minas Gerais.
De acordo com dados do IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, a produção da região em 2015 foi de 1.310.683 toneladas de carvão vegetal. Um dos destaques dessa produção é a microrregião de Salinas, onde encontramos os municípios de São João do Paraíso, Taiobeiras, Rio Pardo de Minas e Indaiabira.
Além dos ganhos sociais e econômicos, esse reflorestamento está contribuindo para a melhoria das condições ambientais dos rios da bacia hidrográfica do Jequitinhonha. Ainda é pouco diante do grande estrago histórico feito na região, mas já é um ótimo começo.