OS CANAVIAIS DE CASTELO, OU A QUEBRA NA PRODUÇÃO DE CACHAÇA NO PIAUÍ

Serra do Apiapaba

Na divisa entre os Estados do Ceará e do Piauí encontramos a Serra da Ibiapaba (vide foto) também chamada de Serra Grande, Chapada de Ibiapaba e Cuesta da Ibiapaba. A imensa massa rochosa domina o relevo de Norte a Sul, com altitudes médias de 750 metros. Na face nordeste da Serra, que fica voltada para a Depressão Cearense, o relevo é bastante íngreme, apresentando uma vegetação densa, considerada como um fragmento da Mata Atlântica. A região é uma zona de transição, apresentando micro biomas com características de Cerrado, Mata dos Cocais, Caatinga e também Floresta Amazônica. A fauna desta face da Serra é extremamente rica, apresentando uma variada diversidade de aves e mamíferos, incluindo onças-pardas, veados-campeiros e pacas. O ambiente físico é diferenciado também pelos altos índices pluviométricos, superiores a 2 mil mm/ano, os mais intensos do território cearense.

A face Oeste da Serra da Ibiapaba, que fica voltada para o Piauí, possui um declive suave e gradual, apresentando terras férteis e grande fartura de fontes e quedas de água. Uma cultura que se adaptou bem ao lado piauiense da Serra foi a cana-de-açúcar, o que levou ao desenvolvimento de polos de produção de açúcar, rapadura, mel de engenho e, principalmente, de cachaças artesanais de muito sucesso em toda a região. Uma das cidades com maior reputação na produção destas famosas cachaças é Castelo do Piauí.

Localizada a pouco mais de 180 km de Teresina, a cidade de Castelo possui uma população de pouco mais de 18 mil habitantes e muito poucos atrativos na zona urbana – porém quando se fala em cachaça, a cidade é uma referência regional de qualidade. A cidade possui diversas fábricas dedicadas à destilação da cachaça, sendo uma delas considerada uma das maiores do mundo neste ramo, com 80 alambiques de cobre para uso exclusivo na produção da bebida. A produção da cachaça é uma das atividades econômicas mais importantes para a economia local.

Pois bem – assim como aconteceu com a cultura do caju, com a criação de animais e a com produção de mel, atividades que apresentaram fortes quebras na produção devido à fortíssima estiagem que vem assolando toda a região do Semiárido desde 2011, as destilarias de Castelo do Piauí também estão apresentando fortes quebras na sua produção. Com a falta de chuvas, as fontes de água da Serra do Ibiapaba começaram a secar, afetando como nunca a produção dos canaviais – calcula-se que a quebra da safra de cana chegou aos 60%. Sem grandes volumes de cana para moer, a produção de cachaça despencou. Uma das fábricas da cidade, que já chegou a produzir 1 milhão de litros de cachaça em anos anteriores, este ano deve chegar a uma produção máxima de 600 mil litros. Se você, caro leitor, não gosta de cachaça assim como eu, provavelmente não sentirá os efeitos dessa redução na produção – entretanto, para alguns milhares de fãs das cachaças artesanais em todo o Nordeste, em especial no Piauí e no Ceará, isso é uma verdadeira tragédia!

Em 2016, por conta dos problemas criados pela seca em toda a região, a Prefeitura de Castelo do Piauí foi obrigada a cancelar a festa do Carnaval na cidade. Em outras regiões do Nordeste, especialmente em cidades das regiões do litoral, uma notícia destas provocaria uma verdadeira revolta popular. Em Castelo, a população aceitou o cancelamento com relativa naturalidade – a festa mais importante da cidade é a Cachaça Fest, que em 2017 será realizada nos últimos dias do mês de julho. Esta FESTA (em letras maiúsculas mesmo) costuma atrair um público diário de 40 mil pessoas, o que representa mais que o dobro da população da cidade, público que vem apreciar as famosas “cachaças artesanais descansadas em toneis de garapeira”, experimentar as comidas e os quitutes típicos da Serra da Ibiapaba e se divertir muito ao som de inúmeros grupos musicais de toda a região. A Cachaça Fest é o verdadeiro carnaval da cidade. Com as notícias da quebra da produção das industrias locais, há um temor generalizado pela não realização desta FESTA, não por falta de público, mas por falta de cachaça.

A Serra da Ibiapaba é uma região disputada – e olhem que não estou me referindo apenas aos turistas e “cachaceiros” de plantão. Os Estados do Piauí e do Ceará disputam o controle da região, literalmente, há séculos.

Com aproximadamente 3 mil km², o que corresponde a quase três vezes o tamanho do município de São Paulo, a Serra do Ibiapaba está envolvida em uma disputa fronteiriça desde os tempos do Império. Um decreto assinado pelo Imperador Dom Pedro I, que tentava arbitrar uma solução para a antiga disputa, transferiu uma área na região do litoral do Ceará para o Piauí – em contrapartida, o Ceará recebeu do Piauí uma área equivalente na região do Semiárido. Porém, a questão não foi completamente resolvida – os dois Estados tem interesse mesmo é nas terras férteis e de clima ameno da Serra da Ibiapaba. Quase que totalmente cercada por regiões secas e de clima Semiárido, a Serra da Ibiapaba é uma verdadeira ilha verdejante: a questão agora está nas mãos do STF – Supremo Tribunal Federal e serão necessários muitos anos e muitas negociações para que os dois Estados consigam chegar a um acordo.

O relevo da Serra do Ibiapaba é do tipo Cuesta, uma formação que normalmente ocorre nos limites de bacias sedimentares. Cuesta é a definição geomorfológica usada para se nomear uma elevação ou serra com um cume assimétrico e com inclinação longa e suave. Com altitudes médias de 700 metros, esta Serra intercepta as massas de ar carregadas de umidade que vem do litoral. A umidade é direcionada para o alto dos morros, onde ocorre a condensação do vapor e a formação das chamadas chuvas orográficas ou chuvas de relevo. Conforme já comentamos, os índices de pluviosidade da Serra da Ibiapaba são bastante altos para uma região no meio do Semiárido e são as águas destas chuvas que alimentam os aquíferos, garantindo, em épocas normais, uma grande disponibilidade de fontes de água, elemento essencial para a produção agrícola em todas as terras de entorno da Serra. Com o agravamento da estiagem iniciada ainda em 2011, as massas de ar úmido vindas do litoral foram se tornando cada vez mais raras – sem as chuvas no alto da Serra, os aquíferos foram secando gradativamente e, sem as preciosas fontes de água do Ibiapaba, todas as culturas ficaram comprometidas – flores, frutas e, em especial, as lavouras de cana-de-açúcar de Castelo do Piauí. Por fim, é a produção de cachaça que fica abalada pela falta de matéria-prima.

Como eu venho comentando em minhas últimas publicações, a seca, além do drama que produz na vida de pessoas, animais e plantas pela falta de água – o elemento mais fundamental para a vida, compromete e desorganiza toda a economia da região do Semiárido, criando problemas que durarão muito mais tempo do que a falta de água.

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