A CONSTRUÇÃO DA ESTRATÉGICA RODOVIA CUIABÁ-SANTARÉM

Rodovia Cuiabá-Santarém

Até uns 25 anos atrás, eu trabalhava no setor de marketing de uma grande empresa multinacional do ramo eletroeletrônico. Certa feita, um colega da filial escocesa da empresa veio realizar um trabalho aqui no Brasil e passou duas semanas trabalhando comigo. Na véspera da viagem de retorno, resolvi levar esse colega para conhecer as praias do Guarujá no litoral de São Paulo, uma viagem de pouco mais de 80 km. O gringo, simplesmente, ficou alucinado com o visual da estrada pela Serra do Mar e com a praia, que apesar de estar longe da beleza das praias da Região Nordeste, era infinitamente melhor que as praias pedregosas e de águas geladas da Escócia. 

Um detalhe interessante dessa viagem foi uma parada num restaurante para o almoço. Numa das paredes do estabelecimento havia um gigantesco mapa do Brasil, onde o escocês fez questão de ver a região onde nós estávamos. Foi nesse momento que o estrangeiro se deu conta do tamanho colossal do nosso país – o trecho de 80 km da nossa viagem, que num país pequeno como a Escócia é relevante, no mapa do nosso país era desprezível. A incredulidade desse colega mostrou-se ainda maior quando lhe disse que o território brasileiro sozinho ocupava uma área equivalente a mais de 80% do território da Europa – o olhar de espanto do escocês deixava nítido que ele, nem de longe, imaginava isso. 

As dimensões continentais do Brasil já foram muito “maiores” – até uns 70 anos atrás, cerca de 2/3 do nosso território ficava em regiões isoladas e pouco habitadas como o Centro-Oeste e a Amazônia. A “Marcha para o Oeste”, criada no primeiro Governo do Presidente Getúlio Vargas (1930-1945), foi o primeiro marco do nosso avanço na ocupação total do nosso território. A abertura de grandes estradas, que começou com o Plano Rodoviário criado no Governo do Presidente Juscelino Kubitschek (1957-1961) e que ganhou muita força no PIN – Plano de Integração Nacional, no período dos Governos Militares (1964-1985), permitiu a integração do país como um todo. Se você conferir num mapa o que foi essa integração, verá que o país mais que “triplicou de tamanho” sem aumentar um único km² em suas fronteiras internacionais. 

No caso da Região Amazônica, tema da sequência de postagens que estamos publicando, a abertura de rodovias como a Cuiabá-Porto Velho e a Belém-Brasília foram fundamentais na criação de acessos rodoviários a localidades isoladas do país. Os Territórios Federais do Guaporé, atual Estado de Rondônia, e do Acre, citando como exemplo, só eram acessíveis por via fluvial navegando nos rios da Bacia Amazônica, ou de avião. O mesmo acontecia com a cidade de Belém, no Estado do Pará, que se comunicava com o restante do país majoritariamente via navegação de cabotagem. No encalço dessas obras vieram outras – as Rodovias Transamazônica, a Cuiabá-Santarém e a Porto Velho-Manaus. Falemos um pouco da Cuiabá-Santarém. 

A abertura de uma ligação terrestre entre as cidades de Cuiabá, no Mato Grosso, e Santarém, no Pará, se mostrou estratégica dentro do conceito de Segurança Nacional pregado pelo PIN, cujo lema era: Integrar para não entregar. O fantasma da Internacionalização da Amazônia tirava o sono dos militares brasileiros, que não poupariam esforços na defesa do território brasileiro. A construção dessa rodovia ficou inteiramente a cargo dos BEC – Batalhões de Engenharia e Construção, do Exército Brasileiro. 

As obras foram iniciadas em 1971, quando o 9° Batalhão de Engenharia e Construção foi deslocado do Rio Grande do Sul para Cuiabá, iniciando a construção da rodovia no sentido Norte. Esse Batalhão montou dois acampamentos – o primeiro na região de Rio Verde, que se transformaria depois no embrião da cidade de Lucas do Rio Verde; o segundo acampamento foi instalado na Serra do Cachimbo, entre o Sul do Pará e o Norte do Mato Grosso. Na cidade de Santarém foi instalado o 8° Batalhão de Engenharia e Construção do Exército, que iniciou a construção da segunda frente de obras da rodovia no sentido Sul. 

O trabalho conjunto de cerca de 1.500 homens desses dois batalhões permitiu que, em 5 anos, fosse aberta uma Rodovia com cerca de 1.700 km de extensão. A vegetação extremamente densa da Floresta Amazônica e as fortes chuvas no período do Inverno Amazônico, que reduzia o período de obras para cerca de 4 meses a cada ano, limitou o avanço das frentes de serviço. De acordo com informações do Exército, as obras causaram a morte de 32 homens – nenhum deles vítima de acidentes de trabalho, mas devido aos males de doenças como a malária e a febre amarela. 

Para contornar os problemas logísticos e de falta das mais precárias infraestruturas, os militares construíram alojamentos e escritórios móveis, montados sobre o chassi de carretas – conforme as frentes de obras avançavam, essas unidades eram rebocadas e estacionadas em novos acampamentos. Outra fonte de dificuldades eram os avanços das unidades de topografia, que eram obrigadas a seguir através de picadas abertas a facão e que chegavam a ficar 40 dias isoladas na selva. Essas unidades eram abastecidas por aviões, que jogavam os suprimentos seguindo os sinais de fumaça das unidades no meio da floresta. 

O avanço simultâneo das duas frentes de serviço cruzou o território de diversos grupos indígenas, a grande maioria já contatada anteriormente por sertanistas e sem maiores incidentes de relacionamento. Um momento extremamente tenso das obras ocorreu quando os indígenas da tribo Kreen-a-Karone, conhecidos como os Gigantes da Amazônia, foram encontrados. Essa era uma tribo isolada e bastante temida pelos outros índios. Os famosos antropólogos Orlando, Cláudio e Leonardo Villas-Bôas, que figuram entre os criadores do Parque Indígena do Xingu, foram chamados pelos militares e fizeram um intenso trabalho de aproximação e pacificação. Por segurança, as obras do trecho ficaram paralisadas durante os trabalhos dos sertanistas, que optaram por uma polêmica transferência dos indígenas para o Xingu. 

Com a abertura e consolidação dos trechos da Rodovia, o Governo Federal passou a realizar leilões para a concessão de terras a empresas de colonização interessadas. Essas empresas se responsabilizavam pela abertura de estradas vicinais e pelo loteamento das terras. Uma dessas empresas foi a SINOP – Sociedade Imobiliária do Noroeste do Paraná, que criou diversos núcleos habitacionais na região, inclusive a cidade que recebeu seu nome e que hoje já conta com uma população de 180 mil habitantes.  

A região Norte do Estado de Mato Grosso se transformou na maior produtora de grãos do Brasil nas últimas décadas e a Rodovia Cuiabá-Santarém se transformou em umas das principais opções logísticas para o escoamento da produção. Os grãos seguem de caminhão até a cidade de Santarém, nas margens do rio Amazonas, onde são embarcadas em navios cargueiros e exportadas para todo o mundo. Apesar de toda a sua importância, uma parte importante da Rodovia não recebeu o revestimento asfáltico – esses trechos ficam praticamente intransitáveis na época das chuvas. Em anos recentes, foram muitas as reportagens que mostravam milhares de caminhoneiros presos nos imensos atoleiros da Rodovia Cuiabá-Santarém. 

Nos últimos anos, com uma maior intensidade nos últimos meses, os Batalhões de Engenharia do Exército Brasileiro receberam a missão de recuperar e asfaltar esses trechos da Rodovia, onde se inclui a construção de várias pontes e outras obras complementares. Se por um lado, essas obras resultarão em uma enorme melhoria nas comunicações e transportes dessa importante fronteira agrícola do país, elas também resultarão, no médio e longo prazo, num aumento da pressão para abertura de novas áreas agrícolas em trechos ainda preservados da Floresta Amazônica. No nosso atual modelo de agricultura, que pressupõe a derrubada da mata para a criação de campos agricultáveis para a produção de grãos como a soja, podemos esperar novas frentes de impactos ambientais na Região. 

Conforme estamos comentando nessa sequência de postagens, o processo contínuo de interiorização e de integração das diferentes Regiões brasileiras levou a abertura de uma verdadeira Caixa de Pandora. Na mitologia grega, Pandora foi a primeira mulher criada por Zeus, muita parecida com a Eva da nossa tradição judaico-cristã. Consta que Pandora, contra a vontade de Zeus, abriu um jarro que continha todos os males do mundo – uma vez aberto, esse jarro (ou caixa, como é mais conhecido) não poderia ser fechado novamente.  

É mais ou menos isso o que ocorre hoje na Amazônia – não há como voltar atrás com o avanço da “civilização”… 

Para saber mais:

A NOSSA AMAZÔNIA

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