A imagem idealizada da Floresta Amazônica que muita gente aqui no Brasil e no mundo inteiro têm, mostra uma floresta com árvores gigantescas e muito próximas umas das outras, onde só se consegue chegar navegando através de rios grandes e caudalosos. Nesta floresta densa vivem milhares de espécies animais e vegetais; em clareiras isoladas no meio da mata, tribos de diversas etnias indígenas vivem felizes e em plena harmonia com a natureza. De repente, uma grande queimada começa a destruir grandes trechos dessa floresta, consumindo os habitats de pessoas e animais, e transformando a antiga mata num mar de cinzas.
Essa imagem idílica da Amazônia está um “pouquinho” longe da realidade. Na verdade, o que chamamos de Floresta Amazônica é um conjunto de diferentes sistemas florestais, onde se incluem florestas secas com grandes árvores, florestas inundáveis com vegetação adaptada aos ciclos de cheias, várzeas e campos alagáveis, manguezais, manchas de cerrado e cerradões, entre muitos outros biomas. Uma forma de visualizar todo esse conjunto de diferentes biomas é imaginarmos uma grande colcha de retalhos (do tipo patchwork), onde cada cor ou padronagem de tecido representa um diferente tipo de sistema florestal ou bioma. Esse grande conjunto de sistemas florestais ocupa uma área de aproximadamente 5,5 milhões de km², distribuídos em 9 diferentes países – 60% dessa floresta fica dentro do território brasileiro.
Para complicar um pouco mais o entendimento do que é a Floresta Amazônica, existe aqui no Brasil um conceito geográfico e econômico chamado de Amazônia Legal. Esse conceito tem suas origens em 1953, quando o Governo Federal regulamentou o Plano de Valorização Econômica da Amazônia. Esse Plano foi modificado em 1966, quando foi criada a SUDAM – Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia, e passou a ser usado o nome de Amazônia Legal.
A área ocupada pela Amazônia Legal é de 5,2 milhões de km², cerca de 1 milhão de km² a mais que a área ocupada pela Floresta Amazônica “real” no país, o que corresponde a cerca de 61% do território do Brasil. Essa área “extra” da Amazônia Legal é formada basicamente por áreas de transição entre o Cerrado e os diferentes sistemas florestais tipicamente amazônicos – muitas das famosas imagens de grandes queimadas da Amazônia que correram o mundo nessas últimas semanas ocorreram justamente nessas áreas de Cerrado e de transição da Amazônia Legal.
Conforme mostramos rapidamente na nossa última postagem, foi a construção da Rodovia BR-364, no início da década de 1960, que permitiu a ligação terrestre entre as cidades de Cuiabá, no Estado de Mato Grosso, e Porto Velho, capital do então Território do Guaporé, atualmente Estado de Rondônia. Anos depois, a rodovia foi estendida até o Território do Acre. Antes da realização dessa obra, a Amazônia Ocidental só podia ser acessada por via fluvial em rios da Bacia Amazônica ou então por avião. Com a construção dessa Rodovia, foi aberta também a principal porta de entrada para a migração de colonizadores, especialmente originários da Região Sul do Brasil, em direção ao Sudoeste da Amazônia.
A partir dessa integração rodoviária ao restante do território brasileiro, o Território do Guaporé passou a assistir uma forte onda migratória. Em 1970, a população do Território chegou aos 100 mil habitantes; em 1979 atingiu a marca de 423 mil e em 1982 atingiu 608 mil habitantes. Atualmente, o Estado de Rondônia tem 1,8 milhão de habitantes e possui uma relevante produção agrícola, especialmente de grãos como a soja, e pecuária. O rio Madeira se transformou numa importante via para o escoamento da produção local e também de cargas vindas do Estado de Mato Grosso.
Agora, um detalhe importante dessa rápida colonização de Rondônia – grande parte dessas frentes agrícolas e de produção pecuária no Estado foram implantadas em áreas de Campos Amazônicos, um tipo de formação vegetal muito parecido com as áreas de Cerrado do Brasil Central e bastante diferente da imagem idealizada da densa Floresta Amazônica com grandes árvores.
Cerca de 1/3 do território do atual Estado de Rondônia, cerca de 71 mil km² ou 2,5 vezes a área do Estado de Alagoas, eram cobertas por Campos Amazônicos. Essas áreas, que se mostram na forma de grandes ilhas cercadas pela Floresta Amazônica, apresentam a ocorrência de plantas e animais típicos do Cerrado. Ao longo das suas complexas histórias, tanto a Floresta Amazônica quanto o Cerrado apresentaram aumentos e reduções de suas áreas totais, acompanhando as mudanças climáticas do planeta. Os Campos Amazônicos são resquícios de um grande aumento da área do Cerrado até cerca de 10 mil atrás, quando a Floresta Amazônica voltou a crescer e isolou muitas áreas desse bioma.
A colonização e o povoamento dessas extensas áreas de Campos Amazônicos em Rondônia coincidiram com os esforços da EMBRAPA – Empresa Brasileira de Pesquisas Agropecuárias, na climatização e adaptação de grãos, especialmente a soja, às condições de clima e de solos do Cerrado. A soja, conforme já apresentamos em postagens anteriores, é originária da China, onde vem sendo cultivada há cerca de 5 mil anos e foi criada a partir do cruzamento de duas espécies selvagens. É um grão com alto teor de gordura e proteína, com diversos usos para a alimentação humana e sobretudo na produção de rações para a alimentação de animais.
Plantios experimentais do grão começaram a ser feitos no Brasil a partir dos últimos anos do século XIX. A soja passou a ser plantada no Brasil em escala comercial no Rio Grande do Sul a partir da década de 1920, quando um pastor luterano norte-americano distribuiu sementes trazidas dos Estados Unidos para um grupo de agricultores pobres da região de Santa Rosa, no Oeste gaúcho. Adaptadas a um clima temperado, essas sementes produziram bem no extremo Sul do país.
A partir da década de 1960, a EMBRAPA passou a realizar diversos trabalhos com a soja, buscando desenvolver variedades que se adaptassem aos solos e clima do Cerrado do Brasil Central. Os solos desse bioma apresentam altos teores de alumínio e uma grande acidez, sendo considerados pobres e improdutivos. Na década de 1950 foram desenvolvidas técnicas de correção dos solos como a calagem e a aplicação de calcário – a acidez dos solos deixou de ser um grande problema. Em meados da década de 1970, a EMBRAPA conseguiu desenvolver as primeiras variedades de soja adaptadas ao plantio no Cerrado, abrindo assim uma nova e importante frente para o avanço da agricultura no Brasil Central e fortalecendo a política da “Marcha para o Oeste”.
Essa mesma tecnologia agrícola desenvolvida para o Cerrado também se mostrou adequada para os solos dos Campos Amazônicos – a produtividade da soja nessas regiões de Rondônia está entre as mais altas do Brasil (vide foto). Essa ocupação “humana” dos Campos Amazônicos, é claro, causou todo um conjunto de impactos à biodiversidade do bioma, muito similares aos observados no Cerrado. A partir do sucesso na colonização desses sistemas florestais, novas ondas migratórias de colonizadores que chegaram ao Estado a partir da década de 1980, passaram a ocupar e avançar contra as bordas do Sul da Floresta Amazônica. Não por acaso, foi justamente essa região a que apresentou o maior número de queimadas e incêndios nessa última temporada.
É sempre importante observar e lembrar que todos os problemas de devastação e de degradação ambiental, que observamos hoje nessa região e em outras do grande território da Amazônia, não surgiram da noite para o dia e não podem ser resolvidos com o reflorestamento dessas áreas, como sugeriu o Presidente da França, Emmanuel Macron, em muitas das suas falas em defesa da “Nossa Amazônia”. A situação é bastante complexa e envolve muitos interesses políticos e econômicos, recursos naturais e estratégicos, além de muita gente, gente essa que foi estimulada a migrar para a Amazônia por diferentes Governos ao longo dos últimos 50 anos. De um jeito figurado, podemos dizer que “depois que abriram essa caixa de Pandora, será bastante difícil de fechar”…
Como eu sempre costumo dizer, na Amazônia tudo é superlativo – os rios, as matas, a biodiversidade e também os problemas.
Para saber mais:
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