Nas postagens publicadas nesses últimos dias, começamos falando dos problemas decorrentes da falta de chuvas em áreas das Regiões Centro-Oeste e Sudeste, o que poderá criar dificuldades na capacidade de geração de energia elétrica. Essas duas regiões respondem por cerca de 70% de toda a energia hidrelétrica gerada no Brasil. O desenvolvimento desse assunto acabou nos levando à abordagens de outras fontes alternativas de energia como a fotovoltaica, a eólica e a queima da biomassa, um subproduto da cana de açúcar.
Como entramos no tema cana de açúcar, precisamos falar da produção das cachaças brasileiras para fechar esse assunto. A cachaça recebe uma infinidade de nomes nas diferentes regiões do Brasil. Eu separei alguns dos mais populares e também alguns dos mais divertidos: aguardente, pinga, água que passarinho não bebe ou que onça não bebe, abençoada, arranca-bofe, benza-a-deus, carinhosa, depravada, destronca-peito, encorajadora, fumegante, jabiraca, limpa-trilho, loirinha, passa-dor, tenebrosa, urina-de-santo, vermífugo, xamêgo, entre muitos, muitos, outros.
De acordo com informações do PBDAC – Programa Brasileiro de Desenvolvimento da Aguardente de Cana, Caninha ou Cachaça, a produção total da bebida está na casa de 1,3 bilhão de litros/ano, sendo que cerca de 75% desse total é proveniente da fabricação industrial e 25%, de alambiques artesanais. Esse volume corresponde a aproximadamente 1% da produção total de álcool ou etanol do Brasil.
A cachaça de cana de açúcar foi “inventada” no Brasil dos primeiros tempos da colonização. Algumas fontes afirmam que os responsáveis pela criação dessa bebida genuinamente brasileira foram os escravos que trabalhavam nos engenhos de produção de açúcar. Esses trabalhadores buscavam uma bebida para aliviar e suportar as agruras do pesado trabalho nas lavouras, nas moendas e nas casas de purga. Eu acredito que pode até haver alguma verdade histórica nisso, mas é preciso lembrar que a humanidade já consumia bebidas destiladas muitos séculos antes disso e é muito provável que alguns desses escravos tenham sido trazidos desde regiões de Portugal ou dos seus territórios onde já se destilavam bebidas.
Existem indícios arqueológicos que apontam para a produção de vinho no Cáucaso, famosa região da Eurásia, há cerca de 8 mil anos atrás. Além de indicações claras do cultivo de uvas pelas populações dessa região, foram encontrados vestígios de jarros e outros recipientes cerâmicos usados na produção e no armazenamento da bebida fermentada. Testes químicos feitos em sofisticados laboratórios isolaram traços desses vinhos ancestrais em muitas dessas peças cerâmicas. Na Mesopotâmia, região da Ásia Central que viu nascer uma infinidade de civilizações como os sumérios, os babilônicos e os assírios, era comum o consumo de vinhos e também de cervejas, uma bebida que até hoje faz muito sucesso.
Os antigos egípcios ferviam algumas dessas bebidas fermentadas e aromatizadas em ambientes fechados, onde doentes eram colocados para inalar os “vapores com propriedades curativas“. Nesses procedimentos era usada uma espécie de chaleira com o bico recurvado para baixo, de onde pingava um caldo concentrado das bebidas. Ao estudar a origem dessa bebida concentrada, os sábios egípcios acabaram desenvolvendo o processo de destilação. Os gregos registraram e divulgaram por todo o mundo antigo o processo de destilação criado pelos egípcios, a partir do qual era extraída o que eles chamavam de “água que pega fogo” ou “água ardente”. Esse processo seria adotado por muitos alquimistas, que produziam uma infinidade de elixires e poções com propriedades místicas e medicinais.
Com a popularização do processo de destilação, passaram a surgir novos tipos de bebidas como os conhaques destilados dos vinhos, as grapas italianas e as cachaças de bagaceira feitas a partir da fermentação das cascas das uvas, as vodcas de cereais tão comuns no Leste europeu e nas estepes da Ásia. Não podemos esquecer dos saquês do Extremo Oriente feitos a partir do arroz, do whisky das tribos celtas das Ilhas Britânicas, entre muitas outras bebidas criadas ao longo da história.
Aqui no Novo Mundo surgiram o rum das Ilhas do Caribe, um destilado feito a partir do melaço da cana de açúcar, e a tequila mexicana, destilada de uma massa fermentada de cactos, bebidas essas contemporâneas da cachaça brasileira. Também é preciso citar os bourbons norte-americanos, uma espécie de “whiskey” de milho, e os piscos Andinos, um destilado muito parecido com a grapa e com a cachaça de bagaceira. Ou seja – as populações humanas sempre foram muito criativas para descobrir e desenvolver os mais diferentes tipos de bebidas alcoólicas.
Se existem dúvidas sobre a origem exata da cachaça, é fato histórico que ela se tornou uma bebida marginal, consumida pela grande massa de escravos negros e populações pobres do Brasil Colonial. As elites do país consumiam vinhos, conhaques e cachaças de bagaceira trazidos diretamente de Portugal, além de bebidas originárias de países “amigos” do Reino. A importação dessas bebidas era monopólio de alguns grupos econômicos poderosos e com relacionamentos muito próximos da nobreza lusitana. Esses grupos pagavam altos impostos a El Rey.
Os senhores dos grandes engenhos de açúcar do país, que necessitavam da importação maciça de mão de obra africana, descobriram que essa bebida apreciada pela “ralé” podia ser usada como uma valiosa moeda de troca na compra das “peças” de escravos. Além da cachaça, os negociantes de escravos nas costas da África e também os traficantes que faziam o transporte para as Américas aceitavam escambos com fumo em rolo, armas de fogo e pólvora, além é claro de ouro e prata.
A escravidão na África já era uma prática milenar muito antes da descoberta das Américas e envolvia inúmeros grupos étnicos em eterno conflito no interior do continente. Grupos ou tribos derrotadas em guerra eram presos e levados como “mercadoria” para as muitas feitorias dos comerciantes de escravos do litoral. Muitos desses grupos não usavam moedas em suas negociações e preferiam fazer trocas por produtos do seu interesse – e a cachaça agradava muitos desses grupos. Essa nova “utilidade” para as cachaças acabou por retirar a produção da bebida da mais absoluta clandestinidade e por incluí-la na lista de produtos dos engenhos ao lado do açúcar, das rapaduras e dos melados.
Por volta de meados do século XVIII, as autoridades portuguesas acabaram por aceitar oficialmente a produção da cachaça e passaram a taxar o produto. Durante muito tempo, essas autoridades vinham acusando a bebida de causar perda de produtividade nos engenhos de cana e de prejuízos nas atividades de mineração do ouro. Na realidade, o problema ficava por conta da concorrência “desleal” com os vinhos e cachaças produzidos em Portugal, o que gerava grandes prejuízos aos fabricantes e importadores dessas bebidas.
A partir de 1756, a venda das cachaças de cana de açúcar passou a representar uma das mais importantes fontes de arrecadação de impostos da Coroa portuguesa no Brasil. Consta, inclusive que, grande parte dos volumes financeiros utilizados para a reconstrução de Lisboa depois do grande terremoto de 1755, vieram dos impostos sobre as cachaças. Mesmo legalizadas e importantes para a economia do Reino, a bebida popular ainda continuaria sendo ignorada e desprezada pelas elites do país.
O grande divisor de águas na história da cachaça brasileira só ocorreria em 1922, durante a lendária Semana de Arte Moderna. Os artistas brasileiros ali reunidos como Mario de Andrade, Tarsila do Amaral, Oswald de Andrade, Victor Brecheret, Plínio Salgado, Anita Malfatti, Menotti del Picchia, Heitor Villa-Lobos, Sérgio Milliet e Di Cavalcanti, entre muitos outros, buscavam uma identidade própria e uma maneira mais livre para expressar a arte e a cultura dos brasileiros.
A cachaça, uma bebida típica da população brasileira mais pobre e altamente discriminada pelas elites, foi transformada em um dos símbolos da “brasilidade”. Manifestações da cultura popular como o samba e o baião também foram destacadas por esses “subversores da arte” e “espíritos cretinos e débeis”, conforme afirmaram muitos dos grandes jornais há época.
Desde então, as populares cachaças, caninhas e aguardentes começaram a sair dos guetos e foram conquistando seus espaços no mercado e na preferência das classes médias e altas da população. Os fabricantes passaram a investir em marcas, embalagens, propagandas e estratégias de mercado. Em 1997, foi publicado um Decreto Federal, de número 2314, o qual passou a padronizar e a classificar oficialmente a bebida.
Para receber a denominação de cachaça, caninha, cana ou aguardente de cana, algumas das suas principais denominações, a bebida deve ter como matéria prima a cana de açúcar e apresentar uma graduação alcoólica entre 38% e 54%, a uma temperatura de 20°. A bebida pode receber a adição de até 6 gramas de açúcar para cada litro – nos casos em que essa adição seja superior a 6 gramas e inferior a 30 gramas de açúcar por litro, a denominação deverá ser acrescida da palavra “adoçada”.
Todos os Estados brasileiros produzem suas próprias cachaças, existindo algumas características bem regionais em algumas delas. As cachaças artesanais ou de alambique estão concentradas nos Estados de São Paulo, Minas Gerais, Rio de Janeiro e Bahia. A maior parte da produção industrial de cachaça está concentrada nos Estados de São Paulo, Pernambuco e Ceará. A cadeia produtiva da cachaça envolve cerca de 30 mil produtores, a imensa maioria pequenos produtores artesanais.
A cachaça é a terceira bebida destilada mais consumida no mundo e a primeira no Brasil. As exportações ainda são modestas e tem como principais compradores Estados Unidos, Alemanha, Paraguai, Itália, Uruguai e Portugal, que consomem cerca de 8,5 milhões de litros/ano. Cachaças que são vendidas a preços entre US$ 1.00 e US$ 2.00 aqui dentro do Brasil, podem atingir preços acima dos US$ 20.00 nesses países, o que demonstra que produzir cachaça pode ser um ótimo negócio para muita gente.
Pessoalmente, eu não gosto da maior parte das bebidas destiladas onde incluo as cachaças. Todavia, quem gosta desse tipo de bebida, aqui no Brasil e no exterior, fala mil maravilhas das cachaças brasileiras. Então, se a bebida é boa e o povo gosta, não existe mal nenhum em beber uns “goles” com muita moderação e responsabilidade.