OS MITOS E AS LENDAS DAS MARGENS E ÁGUAS DO VELHO CHICO

Carranca do rio São Francisco

Sempre que falamos de rios, lagos, represas e outros corpos d’água, a primeira imagem que vem à nossa mente é a de um rasgo ou de uma depressão no solo cheia de água. Porém, um rio ou qualquer outro corpo d’água é algo que extrapola os limites do mundo físico das águas, dos relevos e das populações, e também flui sutilmente por caminhos imateriais. 

Simon Schama, escritor e historiador britânico, sintetizou esse sentimento com essa afirmação: 

“Ver um rio equivale a mergulhar numa grande corrente de mitos e lembranças, forte o bastante para nos levar ao primeiro elemento aquático de nossa existência intrauterina”. 

Em uma postagem anterior eu citei a “moura encantada”, um mito derivado de antigas lendas celtas do Norte de Portugal, da Galícia e todo o Norte da Espanha e Oeste da França, que ilustra muito bem essa dimensão mítica das águas. Essa lenda fala de espíritos travestidos na forma de lindas mulheres, que eram vistos nas margens de rios e que encantavam os homens como as sereias.

Essas lendas sobreviveram aos romanos, aos suevos, aos muçulmanos e também ao predomínio do cristianismo na Península Ibérica. Ainda hoje, lendas sobre as mouras e as bruxas (as “mouras tortas”) estão muito presentes no folclore da Galícia e do Norte de Portugal. 

Aos tempos da chegada dos primeiros exploradores lusitanos ao litoral do Nordeste do Brasil, não foi de se estranhar a fascinação que as mulheres indígenas criaram nesses homens. As histórias que ouviam desde a infância e que falavam de mulheres de cabelos e olhos escuros, corpos bem formados e que se banhavam e se penteavam nas margens dos rios pareciam se tornar realidade.

Com o início da colonização do Brasil e, especialmente devido à falta de mulheres lusitanas e africanas, essas mulheres indígenas passaram a ter um papel fundamental como companheiras e esposas desses homens, gestando em seus ventres as primeiras gerações de “brasileiros”. 

Curiosamente, os indígenas da região Nordeste e das terras ao longo da bacia hidrográfica do rio São Francisco já tinham sua própria lenda sobre uma sereia das águas – a Uiara. Essa deusa das águas é de uma imensa beleza e possui cabelos longos. Ela costuma cantar nas noites de lua cheia. Pescadores, ribeirinhos e indígenas prestam suas homenagens ofertando presentes para a Mãe d’Água.

O mito da Uiara é muito parecido com o da Iara, dos indígenas da região da Bacia Amazônica, e também lembra muito as lendas de Iemanjá, a rainha do mar de origens africanas. Isso demosntra que as águas e margens do rio São Francisco se tornaram um ponto de encontro de mitos europeus, indígenas e africanos. 

Nêgo D'água

Outra criatura mítica que “vive” nas águas do rio São Francisco é o Nêgo D’água (vide imagem acima). Ele é descrito como uma criatura de pele escura e que tem a aparência de um rapaz de porte atlético. Tem a cabeça sem qualquer fio de cabelo e orelhas pontudas. Os pés e as mãos têm garras afiadas, com membranas interdigitais como os anfíbios. Vive no fundo Rio, junto com os surubins, dourados, piaus e curimatãs-pacus. Em outros rios do Brasil ele é conhecido como Caboclo D’água.  

Para alguns, ele é um protetor das águas. Para outros, uma terrível ameaça. Os ribeirinhos dizem que ele gosta de gargalhar forte, o que costuma apavorar quem está por perto. De vez em quando, ele se deita sobre as grandes pedras no meio do rio para tomar sol. Os pescadores fazem de tudo para não cruzar com o Nêgo D’água e sempre trazem uma garrafa de cachaça em seus barcos para uso “emergencial” nos casos de um encontro acidental: eles fazem a oferenda da bebida para que a criatura não vire a jangada ou a canoa. 

Muitos dizem que as oferendas de pouco adiantam: a brincadeira preferida do Nêgo D’água é atormentar os seres humanos tirando os peixes dos anzóis, partindo as linhas, rasgando as redes ou assustando quem estiver nos barcos. Também gosta de aterrorizar as mães: costuma carregar as crianças que tomam banho longe das margens do rio. 

Os ribeirinhos mais antigos também juram que no fundo do rio São Francisco se esconde um gigantesco e multicentenário surubim, conhecido como Minhocão. De tão velha, a criatura perdeu as suas barbatanas e o corpo ficou anelado e comprido como o verme. Quando enfurecido, o ser desfere golpes violentos contra as embarcações, que naufragam e vão, aos destroços, para o fundo do rio. O Minhocão também tem a má fama de escavar sob os barrancos da beira do rio, derrubando as casas dos “beiradeiros” que teimam em se aproximar perigosamente dos seus domínios. 

Outra tradição mitológica bastante característica do rio São Francisco é o uso das carrancas nas proas das embarcações. Marinheiros e pescadores são, desde os primórdios da história da humanidade, criaturas supersticiosas. A força, os perigos e os mistérios do mar, passados também para as águas dos grandes rios, deram origem a quantidades imensas de crendices e histórias folclóricas em todos os cantos do mundo. Relatos de monstros e serpentes marinhas, sereias, leviatãs, entre outras criaturas sobrenaturais, são encontrados ainda hoje na cultura popular de muitos povos.  

Antigos moradores das costas da Escandinávia, os vikings nos legaram um importante conjunto de tradições folclóricas e uma complexa mitologia. Os velozes barcos destes implacáveis bárbaros eram chamados de knörr, na versão curta para transporte de carga, e langskip, uma versão com casco mais longo usada em batalhas. Uma característica marcante dessas naus era a presença de um dragão ou cabeça de serpente marinha, conhecido como drakkar, esculpido em madeira na proa do barco.  

drakkar tinha a função de espantar monstros marinhos que, eventualmente, cruzassem o caminho da embarcação e, de quebra, colocavam em pânico qualquer população que avistasse uma dessas naus de perfil inconfundível navegando nas costas oceânicas dos mares do Norte. Um exemplo do terror que tomava conta das populações nesses ataques ainda pode ser encontrado na língua castelhana – quando as crianças não se comportam bem, as mães espanholas dizem que el  noruego” – o norueguês ou o viking, vai levá-las embora. 

Curiosamente e sem que haja uma explicação concreta para a prática, imagens antropomórficas muito parecidas com os antigos drakkar passaram a ser esculpidas pelas populações ribeirinhas do São Francisco a partir de meados do século XIX, e instaladas nas proas das embarcações, virando uma espécie de marca registrada do Velho Chico. 

Os ribeirinhos e pescadores passaram a atribuir características místicas às carrancas: espantar os maus espíritos, evitar que a embarcação afundasse ou que passasse por maiores perigos durante as fortes chuvas, além funcionar como um amuleto para atrair muitos peixes. Essa tradição, infelizmente, vem perdendo força – com a redução dos estoques pesqueiros e com as dificuldades na navegação no rio São Francisco, é cada vez menor o número de embarcações com carrancas singrando as águas do rio. 

Todos esses mitos e crendices das populações ribeirinhas e de pescadores podem ser encontrados nas águas e margens dos grandes rios do mundo. Um didático exemplo que podemos citar são os grandes rios da Bacia Amazônica. Devido à forte de presença da cultura dos povos indígenas na região, existem inúmeras encantarias e lendas associadas as águas

Sempre que falamos dos problemas ambientais que estão destruindo as águas de nossos rios, precisamos ter consciência que essa destruição extrapola os aspectos físicos e geográficos e atinge em cheio a toda uma herança cultural viva das populações ribeirinhas, dos pescadores e dos indígenas que vivem a longo das margens e que se “nutrem” das águas desses rios. 

O importante rio São Francisco não sofre apenas dos males da poluição, do assoreamento de sua calha e da redução dos caudais de suas águas. Muito dessa cultura e de todo esse conjunto de encantarias e lendas também estão a desaparecer, pouco a pouco. 

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