SURUBIM: O PEIXE QUE JÁ FOI SÍMBOLO DO RIO SÃO FRANCISCO

Surubim

A primeira vez que ouvi falar em surubim foi durante uma conversa em um almoço com colegas de trabalho em Recife, lá por meados dos anos de 1980. A empresa em que trabalhava na época tinha uma fábrica na capital pernambucana e, de quando em vez, era necessário fazer algum trabalho por lá. De acordo com esses colegas, verdadeiros experts no assunto, o sabor do surubim é algo incomparável. É um peixe bastante apreciado na culinária por ter muita carne e poucas espinhas.

O delicioso surubim – também é conhecido como pintado em algumas regiões, é um dos maiores peixes de água doce do Brasil, podendo atingir até 1,8 metro de comprimento e peso de até 90 kg. Para você não achar que é “conversa de pescador”, incluí uma foto do peixe publicada por uma das mais importantes revistas de pesca do país. É encontrado nas bacias hidrográficas do Rio Amazonas, do Rio da Prata e, cada vez menos, no Rio São Francisco – por isso a ironia usada no título. O desaparecimento do peixe, que já foi um ícone da gastronomia regional em toda a bacia hidrográfica do Velho Chico, é acima de tudo um alerta da degradação ambiental das águas e da falta de condições para a sobrevivência da espécie. Outros peixes, além do surubim, também estão em situação crítica – entre os mais afetados estão as espécies migratórias como o curimatá-pacu, curimatá-pioa, dourado, matrinxã, piau-verdadeiro e o pirá. Vamos entender o que está acontecendo:

Uma quantidade enorme de espécies de peixes migra de uma região para outra na época da reprodução, num fenômeno conhecido como piracema. Estas espécies de peixes nadam correnteza acima buscando as águas calmas e límpidas das nascentes, onde a desova poderá ser feita com segurança nas águas rasas e livres de predadores e onde os alevinos encontrarão condições de crescer, até um tamanho que lhes proporcione maiores chances de sobrevivência, antes de se aventuram em águas mais profundas. Existem diversas alterações ambientais que podem dificultar ou impedir a migração destes peixes: construção de barragens de usinas hidrelétricas sem “escadas” para peixes; contaminação das águas por esgotos, produtos químicos e venenos como fertilizantes e defensivos agrícolas; assoreamento e entulhamento de canais com todo o tipo de resíduos; pesca predatória e a sobrepesca (especialmente durante a época da piracema); destruição das nascentes por atividades como agricultura e mineração, entre outras causas.

Um outro problema grave é a introdução de espécies exóticas de peixes, lançados nos rios sem maiores estudos sobre os impactos e alterações ambientais que causarão no ecossistema; na bacia do Rio São Francisco foram introduzidos o bagre-africano, a carpa e o tucunaré, que ocuparam nichos ecológicos de espécies endêmicas e se tornaram verdadeiras pragas. No Velho Chico você encontra todos estes problemas, o que afetou completamente o ciclo de vida dos peixes migratórios e destruiu aquele que já foi considerado um dos rios mais abundantes em relação a pescado no país – havia registros de 158 diferentes espécies de peixes na bacia hidrográfica, algumas endêmicas. De grandes produtoras de pescados, as cidades ribeirinhas do Velho Chico passaram a condição de importadoras do produto, especialmente da região amazônica. Uma das espécies mais importadas é o cachara, um peixe de couro da Amazônia muito parecido com o surubim, pescado em rios do Maranhão e do Pará. Muitos restaurantes preparam tilápias criadas em cativeiro e tambaquis importados da Argentina – o bom e velho surubim do São Francisco está cada vez mais difícil de se encontrar nas casas dos moradores e nas mesas dos restaurantes ao longo dos rios da região.

Um exemplo da má gestão histórica das águas do Velho Chico foi a decisão pela construção da Usina Hidrelétrica de Sobradinho durante a época dos governos militares. O Lago de Sobradinho, formado após o fechamento das comportas, se transformou no maior espelho d’água artificial do Brasil, porém com baixas profundidades – foi justamente essa característica um dos fatores principais para a evaporação total do Lago Poopó na Bolívia, comentado em um dos posts desta série. O Lago de Sobradinho é um campeão em perda de água por evaporação, atingindo, segundo algumas fontes, a marca de até 250 m³ por segundo – essa perda representa o volume de água necessário para o abastecimento anual de uma população de 144 milhões de habitantes. Um outro erro de projeto ou falta de preocupação com a preservação das espécies do Rio São Francisco foi a não inclusão de escadas para peixes, dispositivo que permite a passagem ou migração de espécies através das barragens. Antes da construção da barragem da Usina Hidrelétrica de Sobradinho, existiam diversas lagoas temporárias, onde grandes cardumes de peixes migratórios se reuniam para iniciar a migração rumo as cabeceiras dos rios para a procriação.

A análise genética de amostras de peixes coletadas e conservadas há quase 30 anos e comparadas com amostras de peixes coletados recentemente mostraram que houve uma grande redução da diversidade genética dos animais – isso mostra que a construção da barragem do Lago de Sobradinho criou um obstáculo físico para os peixes que vem de outras regiões do médio São Francisco, impedindo a renovação dos cardumes de peixes de piracema. A pouca diversidade genética de uma população de animais ou de plantas é, de acordo com a Biologia da Conservação, um caminho perigoso para a extinção de espécies, fato que, infelizmente, já se observa com o surubim e outras espécies de peixes do Velho Chico.

Continuaremos essa “viagem” pelas águas do Velho Chico no nosso próximo post.

Veja também:

O RISCO DE EXTINÇÃO DO SURUBIM DO IGUAÇU, OU OS PROBLEMAS DA ICTIOFAUNA ENDÊMICA

SURUBIM DO JEQUITINHONHA: UMA ESPÉCIE CRITICAMENTE AMEAÇADA

A BIODIVERSIDADE AMEAÇADA DO LAGO GUAÍBA, OU OS PESCADORES DO DOURADO “PERDIDO”

A PIABANHA E O RIO PARAÍBA DO SUL

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20 Comments

  1. […] Falando em mineração, é importante lembrarmos que os problemas causados pela atividade são históricos na região. O chamado Ciclo do Ouro em Minas Gerais durante o período colonial é um bom exemplo para que você entenda o processo de assoreamento e entulhamento da calha de um rio. Calcula-se que durante o período foram retiradas das minas e enviadas para Portugal, conforme a fonte, entre 800 e 1.000 toneladas de ouro. É evidente que nunca se terá certeza do volume total de ouro extraído das minas por que muita coisa foi desviada: você, durante as aulas dos tempos do ensino fundamental, deve ter ouvido muitas histórias sobre os “santos do pau oco” – esculturas de santos com compartimentos secretos, usados para se desviar ouro das autoridades portuguesas. Vamos usar o valor oficial: a mineração moderna usa um parâmetro que diz ser necessário vasculhar 1 tonelada de terra e/ou minérios para se obter 5 gramas de ouro – adotando-se esse mesmo parâmetro e considerando que foram extraídas de 800 a 1.000 toneladas de ouro na região das Minas Geraes no período, estaremos admitindo que foram movimentadas entre 160 mil e 200 mil toneladas de terra e minérios nesta exploração, aproximadamente três vezes o vazamento de resíduos que matou o Rio Doce. Considerando que foi uma exploração altamente predatória, podemos afirmar que a maior parte desse volume de resíduos acabou carreada para os rios, provocando todo o tipo de assoreamento e entulhamento dos canais. Segundo ribeirinhos e pescadores do Rio São Francisco, existiam trechos do rio que tinham profundidades de até 20 metros no passado e que hoje em dia se tornaram extremamente rasos, o que demonstra o grau de assoreamento do rio. Conforme comentamos no último post, a redução da profundidade da lâmina d’água do Velho Chico é uma das causas do desaparecimento/extinção de  várias espécies de peixes como o surubim. […]

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