Nas últimas postagens falamos da verdadeira saga em que se transformaram as obras do projeto de Transposição das águas do rio São Francisco. Imaginado ainda em meados do século XIX, nos tempos do reinado de Dom Pedro II, o projeto só começou a tomar forma em 2007, com a promessa de conclusão das obras em 2012. Depois de incontáveis feitos e malfeitos, desvios de dinheiro e superfaturamento de obras, o projeto vem se arrastando e agora há promessas de conclusão das obras até 2021. Os custos saltaram dos R$ 4,5 bilhões iniciais para mais de R$ 12 bilhões até agora.
Fugindo um pouco desse “lado negro” das obras, existe um aspecto muito importante do projeto que acaba ficando em um segundo plano – a degradação ambiental do rio São Francisco, o manancial responsável pelo fornecimento de toda a água usada na Transposição. Chamado carinhosamente de “Velho Chico” por alguns e de “rio da integração nacional” por outros, o São Francisco está sofrendo com a destruição de áreas de matas em suas nascentes e tributários, com o assoreamento criado por atividades agrícolas e mineradoras, com a poluição e com a redução dos seus caudais, entre muitos outros problemas.
Com aproximadamente 2.830 km de extensão, o rio São Francisco tem suas nascentes na Serra da Canastra, no Oeste de Minas Gerais, e de lá segue por um longo curso através de áreas do interior do Brasil até chegar na sua foz entre os Estados de Alagoas e Sergipe. As águas da bacia hidrográfica do Rio São Francisco servem 521 municípios em 6 Estados da Federação: Goiás, Minas Gerais, Bahia, Pernambuco, Sergipe e Alagoas, além do Distrito Federal.
Após a conclusão de todas as obras do Sistema de Transposição, as águas do Rio São Francisco chegarão com força até dezenas de cidades no interior dos Estados da Paraíba, Ceará e Rio Grande do Norte. Apesar de não ser a maior bacia hidrográfica brasileira, posto ocupado com louvor pela bacia Amazônica, a do rio São Francisco poder ser considerada a mais importante pelo “conjunto da obra”.
As nascentes dos principais rios formadores da bacia hidrográfica do rio São Francisco ficam dentro dos domínios do bioma Cerrado. Aliás, das 12 grandes bacias hidrográficas brasileiras, 8 tem rios com nascentes nos domínios do Bioma Cerrado, chamado por muitos de “berço das águas”. Nas últimas décadas, conforme já tratamos em inúmeras postagens aqui do blog, o Cerrado foi transformado na principal fronteira agrícola do Brasil e a intensa derrubada de matas nativas para a criação de campos cultiváveis tem afetado as nascentes de todas essas bacias hidrográficas.
A importância do Cerrado para o rio São Francisco pode ser facilmente comprovada na formação dos seus caudais de águas – cerca de 37% da bacia hidrográfica do rio fica dentro de terras do Cerrado Mineiro e essa região responde por 75% das águas despejadas na calha do São Francisco. Explicando de uma forma bem simples: se as nascentes dos rios do Cerrado pararem repentinamente de despejar suas águas na calha do rio São Francisco, o volume de águas do rio se reduzirá a apenas 25% do seu volume total.
Da Serra da Canastra até a sua foz no Oceano Atlântico, o rio São Francisco recebe contribuições de 168 afluentes (ou rios tributários) – são 90 na margem direita e 78 na margem esquerda. Entre esses rios, destacam-se os rios das Velhas, Abaeté, Paracatu, Jequitai, Rio Verde Grande, Carinhanha, Pajeú, Salitre, Corrente, Pará e Urucuia. No total, a bacia hidrográfica do rio São Francisco ocupa uma área de 641 mil km² ou cerca de 6,5% do território brasileiro. Apesar de estar muito longe do tamanho da bacia Amazônica, as águas do Velho Chico atravessam grande parte da região do Semiárido Nordestino – daí vem a sua grande importância.
A “descoberta” oficial da foz do Rio São Francisco se deu no dia 4 de outubro do ano de 1501, quando uma expedição exploratória comandada pelo navegador Américo Vespúcio fazia o primeiro mapeamento da costa brasileira. O rio foi batizado em homenagem a São Francisco de Assis, santo homenageado nesta data pelo calendário da Igreja Católica. Segundo o relato desses primeiros exploradores, a força da correnteza do rio era tão intensa que suas águas doces avançavam até 4 quilômetros mar adentro. Esse fato também é relatado por antigos capitães de navios mercantes que entravam pelo canal do Rio São Francisco em direção da cidade de Penedo, no Estado de Alagoas.
Parte dos indígenas que viviam nas margens do São Francisco chamavam o rio de Opará, nome que pode ser traduzido como “grande como o mar” ou “rio-mar. Outras tribos usavam o nome Pirapitinga, que significa “rio onde se pesca o peixe da casca branca”. Ambos os nomes indígenas expressam a importância das águas do rio São Francisco para essas antigas comunidades indígenas, o que não mudou nada ao longo do tempo para inúmeras comunidades ribeirinhas e cidades que surgiram ao longo das margens do rio.
Ainda falando em peixes, o rio São Francisco e toda a sua bacia hidrográfica já foram considerados os mais abundantes em pescados do Brasil e as atividades pesqueiras sempre foram importantes para o trabalho e alimentação das populações locais. Os registros indicam que já foram encontradas 158 espécies de peixes em suas águas, sendo muitas dessas espécies endêmicas. Entre as principais espécies de peixes do rio São Francisco destacam-se o curimatá-pacu, curimatá-pioa, dourado, matrinxã, piau-verdadeiro, o pirá e, sobretudo, o surubim, peixe considerado símbolo do rio. Aiás, a postagem aqui do blog onde falamos do surubim é a campeã absoluta em visitações.
Apesar de tudo isso, o Velho Chico é um dos mais maltratados rios brasileiros, sofrendo de todos os tipos de males: desmatamento de matas ciliares – especialmente a perda das famosas veredas dos contos de Guimarães Rosa, contaminação das suas águas com rejeitos de um sem número de mineradoras, despejo de esgotos in natura e de todos os tipos de resíduos, assoreamento intenso, represamento das águas para geração de eletricidade, além do uso cada vez maior de suas águas para alimentar sistemas de irrigação.
Como se não bastasse isso tudo, observa-se nitidamente uma mudança climática que está alterando os padrões de chuva em parte da sua bacia hidrográfica, que recebe cada vez menos água para alimentar um rio cada vez mais explorado – o resultado é um corpo d’água cada vez mais seco e enfraquecido, cada vez mais necessário para o abastecimento e usos na região com menor disponibilidade de recursos hídricos do país.
Um rio não é apenas um rasgo ou depressão no solo, através da qual as águas drenadas de toda uma região escorrem rumo ao oceano. Rios alimentam e sustentam comunidades inteiras de seres vivos – plantas, animais e pessoas, são fontes de trabalho, renda, transporte e de muitas histórias e lendas. Os rios são as veias que irrigam e mantém a vida em todos os recantos de sua bacia hidrográfica. E o rio São Francisco é tudo isso.
O nosso Velho Chico merece destaque entre todos os demais rios brasileiros: pela imensa população das cidades e regiões que dele dependem, pelo clima e aridez de grande parte das terras que atravessa e também pela sua importância na história e economia do Brasil.
Continuaremos na próxima postagem.
[…] UM “VELHO” CHAMADO “CHICO”, OU FALANDO DO RIO SÃO FRANCISCO […]
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