Nesses últimos meses, as chuvas na bacia hidrográfica do rio São Francisco estão sendo bastante generosas. O lago de Sobradinho, que em meados de 2017 chegou ao nível mais baixo de sua história – 2,8%, hoje esbanja saúde e está com 82,2% de sua capacidade (dados do ONS – Operador Nacional do Sistema Elétrico, em 22/07/2020). Outros reservatórios ao longo da calha do rio também estão muito “bem na fita”: Três Marias está com 87,12% de sua capacidade e Itaparica está com 87,77%.
Infelizmente, não é sempre que o rio vive com essa “fartura” de águas nesses últimos tempos.
Conforme comentamos em uma postagem recente, foi inaugurado um novo trecho do Sistema de Transposição de águas do rio São Francisco. As abençoadas águas do Velho agora estão chegando aos sertões do Ceará, um dos Estados da Região Nordeste que, historicamente, mais sofreu com grandes estiagens. Quando todas as obras, que vêm se arrastando desde 2007, forem concluídas, as águas do rio São Francisco chegarão a 12 milhões de sertanejos, amenizando assim os gravíssimos problemas de abastecimento no Semiárido Nordestino.
Entre os inúmeros problemas ambientais que estão afetando a “saúde” do Velho Chico, a redução dos caudais é um dos mais críticos. A origem desse mal está diretamente ligada aos avanços da agricultura em áreas do Cerrado, bioma que concentra perto de 75% das nascentes dos rios tributários (ou afluentes) do São Francisco.
As áreas de Cerrado foram consideradas por muito tempo como inadequadas para a agricultura comercial de larga escala. Com solos extremamente ácidos e considerados pouco férteis, extensas regiões do território brasileiro ficaram ocupadas por pequenas propriedades rurais e por reduzidas lavouras de subsistência durante vários séculos. Foi graças ao desenvolvimento de tecnologias para a correção do solo e, principalmente, com o desenvolvimento de sementes adaptadas para crescimento em regiões do Cerrado que esse panorama começou a mudar rapidamente já na década de 1970.
Os Governos militares da época tinham enorme interesse na expansão da produção de grãos em regiões do país de baixa população, especialmente na região do Cerrado brasileiro. O mundo vivia na época um momento complicado da Guerra Fria entre russos e americanos, que disputavam a liderança da humanidade. Aqui no Brasil, os nossos militares estavam preocupados com algumas ideias como a internacionalização da Amazônia, proposta feita por algumas nações estrangeiras há época – a prioridade dos Governos militares era a ocupação, no menor tempo possível, de grandes vazios em nosso território.
O Cerrado era considerado plano e com farta disponibilidade de recursos hídricos para a irrigação. Desde a mudança da capital brasileira para a nova cidade de Brasília em 1960, foram feitos grandes investimentos na construção de rodovias em direção ao Planalto Central e para toda a Região Centro-Oeste, o que favorecia tanto o escoamento da produção de grãos quanto o fluxo de imigrantes de outras regiões na direção da nova fronteira agrícola.
Um marco dessa época, um período que ficou imortalizado pela alcunha de “Brasil Grande”, foi a construção da Rodovia Transamazônica, que ia desde o Leste da Paraíba até o Oeste do Estado do Amazonas, um caminho para “levar homens sem terras para uma terra sem homens”. Alguns anos antes, sucessivos Governos haviam trabalhado na integração da Região Norte ao restante do país através de novas rodovias. Datam dessa época a abertura das Rodovias Cuiabá-Porto Velho, Cuiabá-Santarém e a Belém-Brasília. Essas novas rodovias incentivaram centenas de milhares de famílias, especialmente da Região Sul, a migrarem para as Regiões Centro-Oeste e Norte.
Em meados da década de 1970, a EMBRAPA – Empresa Brasileira de Pesquisas Agropecuárias, através do seu Centro Nacional de Pesquisa de Soja, passou a trabalhar em pesquisas para o desenvolvimento de cultivares de grãos adaptados às condições de solo e de clima do Cerrado brasileiro. No final da década de 1970, foram anunciadas as primeiras variedades de soja adaptadas ao clima Tropical e a esses solos, algo que mudaria completamente os rumos da agricultura no Brasil.
Os campos agrícolas se expandiram rapidamente na direção de Mato Grosso, que acabou dividido em Mato Grosso e Mato Grosso do Sul, Rondônia e Acre, de um lado, e Norte de Goiás, que acabou se transformando no Estado de Tocantins, Oeste da Bahia e, mais recentemente, na direção do Sul do Estado do Piauí e do Maranhão. Regiões do Cerrado nos Estados de Minas Gerais, São Paulo e Paraná, que já estavam ocupadas por cidades e plantações, experimentaram saltos na produtividade.
Atualmente, os antigos domínios do Cerrado concentram 36% de todo o rebanho bovino e 63% da produção de grãos do Brasil – 30% do Cerrado foi transformado em pastagens para boiadas. No Cerrado, a soja representa 90% (15,6 milhões de hectares) da agricultura do bioma. Mais da metade (51%) da soja produzida no Brasil vem de plantações no bioma Cerrado.
Nos últimos dez anos, o Cerrado foi o bioma brasileiro que sofreu a maior perda de área nativa – 50 mil km², área maior do que o território do Estado do Rio de Janeiro. A região conhecida como MATOPIBA, que incorpora áreas dos Estados do MAranhão, TOcantins, PIauí e BAhia, é atualmente a maior fronteira agrícola de expansão da cultura da soja e apresenta as maiores perdas de vegetação e de espécies animais nativas do Cerrado. A FIOL – Ferrovia de Integração Oeste Leste, atualmente em construção, deverá aumentar ainda mais a pressão da agricultura sobre o Cerrado da região.
Toda essa expansão de campos agrícolas e de pastagens em áreas de Cerrado tem um alto custo ambiental, que se traduz na redução dos caudais das bacias hidrográficas com nascentes no bioma – das 12 grandes bacias hidrográficas brasileiras, 8 tem nascentes em áreas do Cerrado, com destaque para a bacia do Rio São Francisco. A redução nos volumes de água faz-se sentir por todo o território brasileiro. Infelizmente, o avanço da fronteira agrícola que se viu nos últimos 50 anos já consumiu aproximadamente metade do bioma, fragmentando o Cerrado em inúmeras ilhas – ilhas de vegetação cercadas por campos de grãos por todos os lados.
A vegetação nativa do Cerrado tem como principal característica sistemas de raízes muito profundos – essas raízes, normalmente, são bem maiores do que a parte visível da planta acima do solo. Esses sistemas radiculares super dimensionados foram uma resposta evolutiva das plantas ao clima e as características dos solos do Cerrado, onde o lençol freático e os aquíferos são muito profundos. Na temporada das chuvas, essas raízes permitem que a água infiltre com mais facilidade nos solos, ajudando assim no processo de recarga de aquíferos e lençóis subterrâneos de água.
Com o avanço das frentes agrícolas no Cerrado nas últimas décadas, uma parte considerável da vegetação nativa foi derrubada e a dinâmica de recarga das águas do subsolo foi profundamente comprometida. As raízes da soja e do milho, plantas que agora abundam no bioma, são extremamente curtas e pouco ajudam no processo de infiltração da água no solo. Sem a recarga natural, o nível dos aquíferos e dos lençóis de águas estão ficando cada vez mais profundos, o que, por sua vez, reduz a quantidade de água que “brota” das inúmeras nascentes – são essas águas que estão deixando de chegar na calha do rio São Francisco, especialmente nos meses de seca.
A água que hoje está armazenada nas represas do rio São Francisco, represas essas que fazem parte de grandes complexos hidrelétricos, rapidamente serão utilizadas na geração de energia elétrica. Se a próxima temporada de chuvas na bacia hidrográfica não for das melhores, voltaremos a ver em breve o recuo das águas em grande parte das margens do Velho Chico.
São níveis altos e baixos cada vez mais preocupantes.