O Lago de Sobradinho, no rio São Francisco, é um dos maiores lagos artificiais do mundo e uma espécie de “termômetro” que indica como anda a saúde do nosso Velho Chico. O lago foi formado em meados da década de 1970 e faz parte do complexo da Usina Hidrelétrica de Sobradinho, a mais importante geradora de energia elétrica da Região Nordeste. Na sua capacidade máxima de armazenamento, o Lago de Sobradinho pode apresentar um espelho d’água com mais de 4,2 mil km².
De acordo com dados do dia 15/07/2020 do ONS – Operador Nacional do Sistema Elétrico, o Lago de Sobradinho está com 88,8% de sua capacidade, o maior volume de água registrado desde 2012. As outras duas grandes represas do rio São Francisco – Três Marias e Itaparica, também estão esbanjando saúde com 88,66% e 84%, respectivamente. Depois de vários anos de chuvas irregulares e abaixo da média histórica, a bacia hidrográfica do rio São Francisco voltou a receber ótimos volumes de águas nesses últimos meses.
Em dezembro de 2019, o nível do reservatório se encontrava com apenas 25% da sua capacidade. Já no início do último mês de março, o nível de Sobradinho superava a marca dos 50% e, muito melhor, em diversos momentos o reservatório passou a receber volumes diários de água equivalentes a 1% da sua capacidade máxima. Esse excepcional volume de águas permitirá a plena operação da usina hidrelétrica por vários meses e também garantirá a captação dos grandes volumes de água necessários para o Sistema de Transposição das águas do rio São Francisco em direção aos sertões de Pernambuco, Paraíba, Ceará e Rio Grande do Norte.
Notícias tão boas assim relativas ao rio São Francisco e ao Lago de Sobradinho, infelizmente, não são tão frequentes. Ao contrário – nos últimos quatro anos, desde que iniciamos as postagens diárias aqui no blog, as publicações referentes a Sobradinho sempre foram preocupantes, demonstrando claramente a situação de degradação da bacia hidrográfica do rio São Francisco.
Em meados de novembro de 2017, citando um exemplo da caótica situação de Sobradinho, o nível do reservatório estava em 2,8%, o mais baixo desde a formação do Lago. Cerca de um mês depois, graças à chegada do período das chuvas, o nível do reservatório subiu um pouco e atingiu a marca de 4,16%. A postagem publicada há época afirmava que “Sobradinho ainda estava na UTI (Unidade de Terapia Intensiva), mas já respirava sem aparelhos”.
Cerca de seis meses antes dessas postagens, já alertávamos sobre a situação crítica do reservatório – em junho daquele ano, o nível das águas estava em 15% e em queda. Nas regiões de Petrolina, em Pernambuco, e de Juazeiro, na Bahia, famosas pela grande produção de frutas em sistema de irrigação, os produtores já demonstravam grande preocupação com o recuo das águas do Lago de Sobradinho. As mangueiras das bombas de captação de água estavam sendo aumentadas quase que diariamente – lembro de alguns casos onde esse aumento forçado das mangueiras chegou a 2 km.
A construção da Usina Hidrelétrica de Sobradinho ocorreu numa época em que estava em voga o chamado “desenvolvimento a qualquer custo”. Sob a alegação que o bem estar coletivo era o mais importante, grandes obras de engenharia e de infraestrutura eram feitas sem estudos de impacto ao meio ambiente e sem maiores preocupações sociais. Essa fase foi bastante agravada aqui no Brasil durante o chamado Regime Militar ou regime de exceção, como muitos preferem chamar, que se estendeu de 1964 até 1985. Alegando questões de Segurança Nacional, muitas dessas obras se valiam do uso da força de todo o aparato de repressão do Governo.
Para a formação do gigantesco Lago de Sobradinho, cerca de 75 mil pessoas tiveram de ser remanejadas de suas terras e casas, grande parte “na marra”. Um verdadeiro marco dessa saga sertaneja é relembrado na música “Sobradinho”, de Sá, Guarabyra e Zé Rodrix. A letra fala das cidades de Casa Nova, Pilão Arcado, Remanso e Sento Sé, que tiveram partes ou a totalidade de suas áreas urbanas inundadas durante o enchimento do reservatório em 1974.
Muito mais do que serem desapropriados de suas terras e propriedades, essas populações ressentem da forma como esse processo foi conduzido. Frequentemente eu recebo mensagens de algum desses desalojados, onde se comenta, por exemplo, a diferença na qualidade das terras agrícolas que foram oferecidas como “compensação” – em oposição às terras férteis da beira do rio São Francisco, muitos agricultores foram transferidos para regiões no meio do Semiárido, com baixa disponibilidade de água e com solos duros e ressequidos, onde a prática agrícola é quase inviável.
Outra reclamação frequente foram os valores pagos como indenização para muitos, dinheiro que foi insuficiente para comprar terras de boa qualidade. Uma prática que foi muito frequente durante a construção de Sobradinho foram as compras de terras por corretores imobiliários com “bons amigos” na CHESF – Companhia Hidrelétrica do rio São Francisco, empresa responsável pelas obras. Esses espertalhões sabiam com antecedência as áreas que seriam desapropriadas e também os valores que seriam pagos em indenizações aos proprietários.
Com muita habilidade e boa conversa, esses “corretores” abordavam os proprietários e ofereciam valores extremamente baixos pelas terras. O fio da conversa era: o enchimento da represa vai cobrir suas terras e você vai perder tudo – melhor ganhar pouco do que perder muito! Analfabetos de “pai e mãe”, como dizemos no meu bairro, e sem maiores informações, muita gente acabou caindo nessa conversa. Depois, com a apresentação da escritura de posse das propriedades, esses “corretores” recebiam as indenizações reais pagas pela CHESF. Muita gente ficou milionária com esse golpe.
Um outro lado desse “golpe” do Lago de Sobradinho dizia respeito às futuras margens do reservatório. Propriedades rurais que se encontravam a dezenas de quilômetros do rio São Francisco em terras áridas e que não tinham um grande valor, passaram a ser compradas a preços baixos por gente que conhecia o projeto e que sabia onde ficariam os limites do espelho d’água. Anos depois, com o Lago já formado, muitas dessas valorizadas propriedades foram transformadas em marinas, hotéis, clubes e em fazendas dedicadas à produção irrigada.
Os planejadores estatais dos tempos do Regime Militar e os gananciosos que se aproveitaram do drama desencadeado a partir da construção da Usina Hidrelétrica de Sobradinho, entretanto, não se preocuparam com a preservação ambiental da bacia hidrográfica do rio São Francisco. Muito mais do que os pesados investimentos para a construção de uma grande barragem para o represamento, o Lago dependerá sempre da chegada dos caudais do rio para a manutenção do seu nível de águas.
Conforme comentamos na postagem anterior, a maior parte das nascentes dos rios formadores do São Francisco se encontram em áreas do Bioma Cerrado. Desde a década de 1970, quando foram desenvolvidas variedades de soja e milho adaptadas às características dos solos e climas do Cerrado, esse bioma passou a assistir uma feroz e implacável derrubada de suas matas para a formação de campos agrícolas. Sem a sua cobertura vegetal, os aquíferos e lençóis subterrâneos de águas do Cerrado não são recarregados adequadamente e os volumes de águas das nascentes diminuem a cada ano que passa.
O resultado de todo esse conjunto de agressões ambientais se mostra em vazões cada vez menores no rio São Francisco e em níveis cada vez mais instáveis no Lago de Sobrinho. O que estamos assistindo hoje – um Lago quase cheio, é uma exceção à regra.
Vamos detalhar tudo isso em novas postagens.
[…] OS ALTOS E BAIXOS DO LAGO DE SOBRADINHO […]
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