Imagine que você foi contratado para trabalhar no meio da Floresta Amazônica. Seus contratantes lhe prometeram um salário fixo, participação nos lucros, moradia, alimentação e suporte técnico. Empolgado com as boas perspectivas profissionais, você se lança rumo ao desconhecido e, dentro de poucas semanas, já se encontrará nos confins desconhecidos da Amazônia. Aí, você descobre que tudo não passava de uma grande armação e que terá que trabalhar num regime de semiescravidão em troca de comida, além de ter contraído uma enorme dívida com seus contratantes.
A história da imensa maioria dos seringueiros arregimentados para trabalhar na Amazônia foi mais ou menos essa. Flagelados pelas sucessivas secas no Semiárido Nordestino, centenas de milhares de sertanejos foram convencidos a migrar para a Amazônia, onde poderiam fazer fortuna em poucos anos trabalhando nos seringais, quando voltariam com muito dinheiro no bolso para as suas cidades de origem. Conforme mostramos numa série de postagens, esses trabalhadores foram enganados e depois abandonados a sua própria sorte com o fim do Primeiro Ciclo da Borracha.
A partir de 1913, quando os seringais do Sudeste Asiático superaram a produção do látex da Amazônia, teve início um processo contínuo de desemprego dos seringueiros e de todos os demais profissionais que trabalhavam envolvidos com a extração do látex no meio das matas. Não existem números oficiais sobre o número real de seringueiros levados de todo o Brasil, principalmente da Região Nordeste, para a Amazônia – existem estimativas que falam de 500 a 700 mil trabalhadores. Na década de 1940, quando o látex da Amazônia voltou a ser lembrado devido a invasão dos territórios ingleses do Sudeste Asiático por tropas japonesas na II Guerra Mundial, números do Governo brasileiro falavam de 30 mil seringueiros em toda a Amazônia brasileira.
Onde foram parar essas centenas de milhares de seringueiros, uma vez que uns poucos conseguiram voltar para suas cidades de origem?
Uma das respostas possíveis a essa pergunta: os seringueiros desempregados se transformaram em eficientes caçadores de animais silvestres e passaram a fornecer peles e couros para o mercado da moda internacional. De acordo com estudos detalhados feitos por pesquisadores brasileiros e americanos, que tomaram como base os dados oficiais das alfândegas, entre 1904 e 1967, ano em que a caça de animais silvestres foi proibida no Brasil, cerca de 23 milhões de peles e couros de animais silvestres foram exportados pelo país. A foto que ilustra essa postagem mostra um curtume em Manaus na década de 1950, especializado no tratamento das peles e couros de animais silvestres.
A lista das espécies animais caçadas implacavelmente incluía onças-pintadas, gatos-maracajás, veados, lontras, ariranhas, peixes-boi, capivaras, antas, sucuris, jiboias, jacarés, entre outras espécies, donas de couros e pelagens consideradas exóticas e altamente valorizadas no mercado internacional. Após 1967, essa “indústria” continuou funcionando clandestinamente, com os couros e peles sendo exportados ilegalmente. A demanda por essas matérias-primas continuou até poucas décadas atrás, quando movimentos internacionais pela defesa dos animais passou a pressionar a indústria da moda, que diminui progressivamente seu uso.
Um exemplo de animal que foi intensamente caçado nos rios da Amazônia foi o jacaré-açú (Melanosuchus niger). É o maior membro da família dos jacarés, podendo atingir um comprimento de 4,5 metros e um peso da ordem de 300 kg. Existem relatos bastante consistentes de exploradores e cientistas de tempos passados que falavam de exemplares capturados que tinham mais de 6 metros de comprimento e peso da ordem de 500 kg. O jacaré-açu é um predador de topo de cadeia alimentar, atacando praticamente tudo o que encontrar em seu caminho, o que inclui peixes, anfíbios, aves, répteis (inclusive jiboias e sucuris), mamíferos de grande porte como onças, capivaras e antas, e, é claro, seres humanos.
De acordo com um detalhado estudo publicado por cientistas brasileiros na renomada revista Science Advances em 2016, entre 1904 e 1969, foram abatidos mais de 4,4 milhões de jacarés-açú em toda a Amazônia brasileira para aproveitamento do couro. O couro escuro do jacaré-açu, que podia cobrir uma área com até 10 m² de superfície, estava entre os mais valorizadas do mercado mundial. Sapatos, bolsas, malas, cintos, casacos e luvas feitos com esse couro eram encontrados nas lojas mais sofisticadas das grandes metrópoles mundiais e valiam uma pequena fortuna.
Os rios e igarapés da Amazônia sempre foram os principais caminhos para o transporte de pessoas e cargas por toda a floresta e, por essa razão, os animais aquáticos e semiaquáticos sempre foram os mais perseguidos pelos caçadores. Aos números dramáticos de jacarés-açu abatidos nesse período, podemos acrescentar 100 mil peixes-boi, 386 mil ariranhas e 400 mil capivaras. Da fauna terrestre, foram 5,4 milhões de catetos, uma espécie de porco selvagem, 4 milhões de veados-mateiros, entre outras vítimas.
Com a decadência da indústria do látex, centenas de milhares de seringueiros passaram a ser aliciados por comerciantes de couros e peles, sendo rapidamente transformados em mortais caçadores. O conhecimento adquirido ao longo de vários anos em caminhadas pelo meio da floresta em busca das seringueiras foi fundamental na busca e abate dos animais em seus habitats naturais. As mesmas redes de navegação que eram usadas para o escoamento das pélas de borracha, passaram a ser usadas para a venda dos couros e peles, assim como para o transporte dos produtos para as grandes cidades da Amazônia, onde se encontravam os depósitos dos grandes comerciantes internacionais.
Cálculos atualizados afirmam que esse comércio internacional de couros e peles de animais silvestres da Amazônia movimentou aproximadamente US$ 500 milhões entre 1904 e 1969. É claro que a imensa maioria dessa fabulosa massa de recursos ficou na mão dos grandes comerciantes e intermediários – os caçadores, que faziam o trabalho sujo e insano nos confins da Floresta, ficaram com as migalhas. Passadas várias décadas dessa fase negra de nossa história, muitas das populações animais ainda não recuperaram suas antigas populações, especialmente as espécies aquáticas e semiaquáticas. Um exemplo são os jacarés-açú, que eram abundantes em todos os rios da Bacia Amazônica, e que agora só são encontrados em alguns rios e dentro de áreas indígenas e parque nacionais.
Uma das grandes ironias do Ciclo da Borracha é que, apesar de toda a superexploração da mão-de-obra dos seringueiros, essa atividade gerou muita prosperidade econômica para muita gente sem causar prejuízos ambientais para a Floresta Amazônica. Esse ciclo das peles e dos couros, ao contrário, foi devastador para muitas espécies animais, levando algumas como o peixe-boi à beira da extinção.
Esses eventos, tanto os positivos quanto os negativos, devem servir de exemplo para o desenvolvimento de ações de desenvolvimento sustentável em toda a Amazônia em nossos dias atuais.
Para saber mais:
[…] aqui que, com a decadência da indústria gomífera (ou do látex) na década de 1920, muitos seringueiros passaram a caçar animais da fauna nativa da Amazônia para o aproveitamento do couro e das peles, que eram vendidas a preços de “banana” para […]
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