O Primeiro Ciclo da Borracha, que se estendeu desde meados do século XIX até 1920, colocou a Amazônia no mapa econômico do Brasil pela primeira vez. De “fim de mundo” esquecido e desprezado do país, a região passou, em um curtíssimo espaço de tempo, a gerar cerca de 20% de todas as exportações brasileiras. Cidades desconhecidas da maioria da população, como foi o caso de Manaus e Belém, se modernizaram rapidamente, recebendo melhoramentos e modernidades ainda desconhecidas das grandes cidades brasileiras da época, incluindo-se na lista iluminação pública e bondes elétricos, redes de abastecimento de água e de coleta de esgotos, grandes teatros, entre outros avanços.
Essas cidades também abrigavam uma sofisticada elite econômica, consumidora ávida de tudo o que havia de bom e de melhor no mundo naquela época. Homem se vestiam com os mais elegantes e caros trajes ingleses e as mulheres desfilavam com a última moda francesa. Consta, inclusive, que as famílias dos grandes Senhores da Borracha não tinham qualquer preocupação com a lavagem dessas roupas – elas eram empacotadas e despachadas para as mais sofisticadas lavanderias de Paris. Navios para transportar esse tipo de carga não faltavam – havia uma forte demanda para o transporte dos grandes volumes de látex produzidos na Amazônia, que chegou a responder por 95% da produção mundial, e grandes embarcações a vapor fervilhavam em toda a calha do grande rio Amazonas.
Toda essa pujança econômica foi construída com o suor e o sangue de centenas de milhares de seringueiros espalhados pelos quatro cantos da Floresta Amazônica e explorados pelos Coronéis dos Barrancos, nome mais popular dado aos grandes seringalistas. A extração e o processamento do látex foram estruturados sob um sistema semi-escravagista (em alguns lugares como no rio Putumayo, no Peru, era abertamente escravagista), onde pessoas miseráveis eram recrutadas sob a promessa de altos ganhos financeiros. Os sertões do Semiárido Nordestino forneceram a maior parte da mão-de-obra usada nos seringais da Amazônia.
Para surpresa da grande maioria dos seringalistas e comerciantes de látex da Amazônia, que imaginavam que suas seringueiras produziriam sua seiva com exclusividade até o final dos tempos, seringais plantados em territórios do Império Britânico iniciaram sua produção já nos primeiros anos do século XX. Milhares de sementes da Hevea brasiliensis foram contrabandeadas secretamente para a Inglaterra em 1876 pelo aventureiro inglês Henry Wickham e botânicos conseguiram fazer vingar cerca de 2.900 mudas de seringueiras nas estufas de jardins botânicos como o Kew Gardens de Londres. A partir de 1894, visando atender o explosivo aumento do consumo da borracha da nascente indústria automobilística, essas mudas passaram a ser plantadas no Sudeste Asiático, mudando para sempre o mercado do látex e decretando o fim do Primeiro Ciclo da Borracha da Amazônia.
Esse efêmero ciclo econômico, que viveu seu auge entre as décadas de 1870 e 1910, pode ser explicado facilmente pela lei “da oferta e da procura”, a mais antiga e fundamental regra do mercado – quando existe uma grande procura por um determinado produto, seu preço sobe. No caso do látex da Amazônia, o mercado surgiu em torno de uma matéria-prima nova, que de uma hora para outra ganhou uma grande importância para as indústrias, e que era produzida por um monopólio regional. Sob essas regras, os “donos” desse mercado ditavam as regras e os preços da commodity.
Com o surgimento “inesperado” de uma região concorrente, os territórios do Império Britânico no Sudeste Asiático, o mercado passou a ser inundado com uma matéria-prima mais barata e com melhor qualidade, que além de tudo gozava de preferência de compra pelos grandes consumidores. O látex produzido na Amazônia acabou varrido do mercado mundial em um curto espaço de tempo. O Brasil perdeu 20% de suas receitas externas em menos de uma década, comprometendo perigosamente a balança comercial do país. Os estragos nas finanças nacionais aumentariam muito mais após 1929, quando uma profunda crise econômica internacional fechou o mercado mundial do café, um produto que respondia por metade das exportações do Brasil há época – tempos muito difíceis.
Uma importante matéria-prima contemporânea está seguindo um caminho muito parecido com o do látex e pode ajudar a entender como uma crise setorial como essa pode acontecer – falamos do lítio. Esse elemento químico é fundamental para a produção de ligas metálicas e, principalmente, para a fabricação de baterias para computadores e telefones celulares. Os principais países produtores de lítio são o Chile e a Argentina – metade das reservas mundiais conhecidas desse elemento ficam na Bolívia. Essa concentração de uma importantíssima matéria-prima industrial na mão de um grupo muito pequeno de produtores, nesse caso falamos de “indígenas sul-americanos”, não agrada as grandes potências mundiais, que são obrigadas a pagar caro, além de ficaram sujeitas as cotas de produção determinadas por esses produtores.
As grandes indústrias eletroeletrônicas internacionais têm feito pesados investimentos em pesquisa e desenvolvimento, buscando encontrar elementos químicos alternativos ao lítio – será questão de tempo até que o lítio sul-americano se torne irrelevante no mercado mundial. Como aconteceu com a indústria gomífera da Amazônia, os produtores de lítio vão acabar com um grande “mico” nas suas mãos e milhares de mineiros vão acabar perdendo seus trabalhos e sua fonte de renda.
A imensa maioria dos grandes Senhores da Borracha da Amazônia perdeu a maior parte do seu patrimônio com o fim repentino da indústria gomífera – os mais esbanjadores de dinheiro, acabaram na miséria . As maiores vítimas, porém, foram os seringueiros e demais trabalhadores braçais que viviam nos confins das matas, próximos aos seringais. Esses trabalhadores foram lançados na mais completa miserabilidade de uma hora para outra.
Conforme comentamos em postagem anterior, esses trabalhadores eram proibidos de plantar ou de cultivar qualquer tipo de alimentos, sendo forçados a concentrar todos os seus esforços na extração da seiva e na produção das pélas de látex. Todo o precário abastecimento de alimentos e de outros gêneros de primeira necessidade era fornecido pelos barracões dos seringais, a preços exorbitantes e marcados em uma caderneta para desconto na futura produção. Esse sistema cruel mantinha os trabalhadores eternamente endividados, ao mesmo tempo que lhes garantia uma segurança alimentar mínima. A ruptura repentina do sistema levou esses trabalhadores à fome e ao desespero.
Apesar da aparente exuberância, a vida na Floresta Amazônica exige grandes esforços e artimanhas para a obtenção de alimentos. Na época das chuvas, os peixes se dispersam nas áreas alagadas, dificultando a pesca. As cheias também forçam os animais terrestres a migrar para os terrenos mais altos, dificultando a caça. A produção de frutas e outros alimentos de origem vegetal também acompanha esse ciclo de secas e cheias dos rios. Os indígenas e as populações tradicionais da região têm suas vidas sincronizadas com esse ciclo das águas e possuem todo um conjunto de estratégias tradicionais para se alimentar em cada uma dessas épocas. Um migrante dos sertões do Semiárido Nordestino, que foi colocado “artificialmente” nesse ambiente inóspito, sofrerá muito para sobreviver com o fim súbito do fornecimento regular de alimentos pelos seringais. Milhares de pessoas, quiçá famílias inteiras, morreram de fome e à míngua com o fim brusco da extração do látex.
Esse abandono súbito de trabalhadores, que foram convencidos a mudar para a Amazônia sob falsas promessas, se tornará uma característica da ocupação regional e se repetirá diversas vezes ao longo de todo o século XX. Um dos exemplos clássicos disso ocorrerá com os Soldados da Borracha na Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Nós falaremos disso na próxima postagem.
Para saber mais:
[…] OS IMPACTOS ECONÔMICOS E SOCIAIS DO DESMANTELAMENTO DA INDÚSTRIA DO LÁTEX NA AMAZÔNIA […]
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