A CARÊNCIA DE RECURSOS HÍDRICOS NO SUDESTE DA INGLATERRA

Ponte de Londres

Uma imagem estereotipada de Londres que a literatura e o cinema construíram é a de uma cidade extremamente chuvosa. Londrinos prevenidos saindo de suas casas com suas inseparáveis sombrinhas e guarda-chuvas fazem parte do imaginário popular. É difícil de imaginar que uma cidade com essas “características” sofra com falta de água em suas torneiras. Por mais improvável que possa parecer, é exatamente isso o que está acontecendo em Londres e em diversas cidades do Sudeste da Inglaterra.

Chove muito no Reino Unido – a média anual é de 1.200 mm. Para efeito de comparação, são 300 mm no Afeganistão e menos de 100 mm no Egito. O grande problema para parte significativa da Inglaterra é que o grosso dessas chuvas caem no Norte do país, nas montanhas da Escócia e no País de Gales. No Sudeste da Inglaterra, onde vivem mais de 18 milhões de pessoas, a pluviosidade média é inferior a 600 mm anuais. Londres, a maior e mais importante cidade do país, fica bem no meio dessa região e já sofre com a escassez de água.

Além da menor ocorrência de chuvas, a região Sudeste da Inglaterra vem apresentando precipitações com volumes abaixo da média histórica. Em 2018, a região teve uma sequência de 6 meses com chuvas abaixo da média. Em 2017, a mesma região registrou os 10 meses mais secos em 100 anos. De acordo com as projeções climáticas, a incidência de verões mais quentes e mais secos no Sudeste da Inglaterra deverá aumentar em cerca de 50% nos próximos anos.

Dados divulgados recentemente pelo Governo Britânico mostram que 28% dos aquíferos subterrâneos e cerca de 18% dos rios e reservatórios da Inglaterra têm suas águas captadas de forma não sustentável. O mesmo levantamento mostra que apenas 17% dos rios do país apresentam uma boa qualidade ambiental, algo que contrasta bastante com a propaganda oficial, repetida incessantemente, falando da recuperação da qualidade das águas do Tâmisa, rio que até 60 anos atrás era um dos mais poluídos do mundo.

Rio Tâmisa

Um agravante para a crescente escassez de água no Sudeste da Inglaterra é o consumo per capita de água pela população, que se encontra na casa de 150 litros por dia. Em regiões e países onde a precipitação anual é similar à do Sudeste da Inglaterra, o consumo é bem menor, situado na casa dos 500 litros por habitante/ dia. Segundo os especialistas, as populações das cidades dessa região da Inglaterra precisarão readequar os seus hábitos para reduzir o consumo de água, uma mudança que não é nada fácil.

Uma das alternativas para aumentar a disponibilidade de água para as populações, o que aliás já vem sendo implementado há alguns anos, é a construção das chamadas EPAR – Estações de Produção de Água de Reuso. Basicamente, essas estações realizam um tratamento muito mais completo dos esgotos de uma região, lançando a água tratada nos reservatórios de abastecimento, reforçando assim os estoques. Apesar do rígido controle da qualidade e das excepcionais condições técnicas, essa “água de esgoto” implica em sérios problemas de ordem psicológica junto à população. É um tanto repulsivo imaginar que a água que você está bebendo hoje era a “merda de um desconhecido” até ontem.

Uma outra alternativa, essa contando com uma ampla aprovação das populações, é a dessalinização da água do mar, uma fonte abundante num país ilhéu. O uso de água dessalinizada está se tornando uma alternativa interessante para o abastecimento de diversas cidades e países. Alguns casos europeus de bastante sucesso são os da cidade de Barcelona e das Ilhas Baleares, na Espanha, e da Ilha de Malta no Mar Mediterrâneo.  

Além dos problemas criados pelos efluentes altamente salinos que restam nos processos de produção dessa água, existem os altos custos energéticos envolvidos. Num país onde as principais fontes geradoras de eletricidade são as termelétricas a carvão e as centrais de energia nuclear, os custos de produção da água dessalinizada poderão ser proibitivos.

Contar com uma disponibilidade de água muito aquém das necessidades adequadas para o abastecimento de populações é uma realidade que atormenta gestores de cidades e países pelo mundo afora. Nas postagens aqui do blog existem inúmeros exemplos como os das cidades do Rio de Janeiro, Fortaleza, Nova York, Los Angeles, Cidade do Cabo, Sydney, entre muitas outras, e em países como Israel, Emirados Árabes Unidos e Curaçao. 

A Região Metropolitana de São Paulo é um exemplo dos desafios diários para o abastecimento de água. O principal sistema de água da Região é o famoso Cantareira, onde os principais rios formadores dos reservatórios têm suas nascentes no Sul do Estado de Minas Gerais. Em alguns casos, a água precisa viajar mais de 160 km até chegar na torneira dos consumidores.

Em 2014, uma fortíssima seca se abateu sobre a região dos reservatórios do Sistema Cantareira, o que forçou toda a população que dependia dessas águas a adotar um fortíssimo racionamento. Outro exemplo mais recente foi o que se abateu sobre a Cidade do Cabo, na África do Sul, em 2018. Uma grande seca regional levou toda a Cidade à beira do colapso – em diversos momentos, a disponibilidade de água per capita se limitou a cerca de 50 litros por dia.

A situação no Sudeste da Inglaterra ainda não chegou a tais extremos, porém, toda a cautela e economia de água se fazem necessárias. Com as mudanças climáticas globais, a Inglaterra vem apresentando um clima cada vez mais quente. No último mês de fevereiro, os termômetros de Londres chegaram a apresentar temperaturas de 21,2 ° C. Apesar de ser uma temperatura “fichinha” para os padrões que estamos acostumados aqui no Brasil, essa é uma temperatura absurdamente alta para o final do inverno inglês.

Um exemplo extremamente didático do que está ocorrendo na Inglaterra é o crescimento da produção de vinhos genuinamente ingleses no Sul do país. O clima das Ilhas Britânicas nunca foi o mais favorável para a produção de uvas, apesar de todos os esforços feitos desde os tempos do Domínio Romano há mais de 2 mil anos atrás. Com a chegada de verões cada vez mais quentes, os campos ingleses passaram a rivalizar com os congêneres franceses e a produção de uvas e bons vinhos, algo impensável até poucas décadas atrás na Inglaterra, cresce vigorosamente.

A escassez e a destruição das fontes de água são dois dos maiores problemas da atualidade. Especialistas afirmam que, dentro de poucas décadas, a disputa pelo controle e acesso a essas fontes será a principal razão para o conflito armado entre países. As disputadas águas do rio Nilo na África, por exemplo, têm potencial para desencadear um grande conflito armado nos próximos anos.

Os ingleses, principalmente os londrinos, que se cuidem…

O IMINENTE COLAPSO DO SISTEMA DE ESGOTOS DE LONDRES

Obras na rede de esgotos de Londres

Nas últimas semanas publicamos uma longa série de postagens falando de problemas ambientais em diversos países mundo afora. Já apareceram por aqui problemas em países como Madagascar, Bangladesh, Gana, República Democrática do Congo, Nigéria, Venezuela, Bolívia e Índia. Esses países, a exceção da Índia, são chamados de países em desenvolvimento ou, para muita gente ainda, nações do “terceiro mundo”. A Índia melhorou bastante nas últimas décadas e já é reconhecida como uma nação emergente. 

Problemas ambientais, é claro, não acontecem apenas em países mais pobres – nações ricas também tem lá os seus “pecados” ambientais. Vamos falar hoje do verdadeiro colapso que está se desenrolando nos esgotos de Londres, um problema que aliás já está fazendo parte da rotina de grandes cidades dos Estados Unidos, do Canadá e de outras nações ricas. 

Construído a partir de meados do século XIX, o sistema de esgotos da cidade de Londres mudou radicalmente a “cara” da grande metrópole inglesa, que àquela altura convivia com mais de 200 mil fossas sépticas vazando por todos os lados e com dejetos correndo a céu aberto. O rio Tâmisa, um verdadeiro símbolo da Londres contemporânea, era naquela época uma imensa vala de efluentes de todos os tipos, esgotos domésticos e industriais, além de local de descarte de lixo, muito lixo. 

A gravíssima deterioração do rio Tâmisa teve início com a chamada Revolução Industrial em meados do século XVIII. O aperfeiçoamento da máquina a vapor pelo matemático e engenheiro escocês James Watt deu um verdadeiro impulso aos sistemas de produção da época e a Inglaterra passou a fabricar produtos de todos os tipos em série, numa escala que, guardadas as devidas proporções, lembra a China atual. A Inglaterra se tornou uma grande potência econômica e militar, pagando um alto preço ambiental e social para isso, com altíssimos níveis de poluição do ar e da água, montanhas de resíduos de todos os tipos, além de uma grande massa de trabalhadores explorados até os limites da dignidade.  

Eu tenho aqui entre meus livros uma publicação – Nos confins do mundo, que conta o relacionamento pessoal um tanto tumultuado entre o grande naturalista Charles Darwin e Robert Fitzroy, capitão do famoso navio Beagle em sua viagem de volta ao mundo entre 1828 e 1831. Entre interessantes descrições sobre a épica viagem, o autor do livro – Harry Thompson, faz minuciosas descrições sobre a caótica situação ambiental da velha Londres. Eram ruas cobertas por uma grossa camada de excrementos de cavalos, pilhas de ossos apodrecendo ao lado dos muitos matadouros de animais que existiam na cidade, fuligem de carvão por todos os lados, superpopulação, entre outros problemas de uma metrópole que superava a marca de 1 milhão de habitantes. 

Uma das maiores vítimas de toda a poluição daquele período foi o rio Tâmisa, que corta a cidade de Londres no sentido Leste-Oeste, e que recebia grandes cargas de todos os tipos de efluentes, que iam dos esgotos domésticos até os resíduos de produtos químicos de inúmeras fábricas. Um marco da poluição do rio se deu no verão do ano de 1858, quando algumas sessões do Parlamento Britânico, que fica numa das margens do Tâmisa, tiveram de ser suspensas – ninguém aguentava o mal cheiro que as águas exalavam.  

Esse período entrou para a história com o nome nada glorioso de “O Grande Fedor”. Depois de dois meses de náuseas e muito incômodo, os Parlamentares aprovaram um projeto que já estava pronto há cinco anos – o início das obras do sistema de esgotos de Londres, trabalho que foi delegado ao engenheiro Joseph Bazalgette (o distinto cavalheiro que aparece em destaque vistoriando as obras na foto que ilustra essa postagem). Lentamente, a história do rio Tâmisa começaria a mudar.  

A partir da década de 1860, com o início da operação dos sistemas de esgotos, a situação do rio Tâmisa começou a melhorar, mas a solução não foi definitiva. O sistema de esgotos que foi implantado não tratava os efluentes – as tubulações da rede captavam os esgotos e simplesmente os redirecionavam para despejo no rio Tâmisa abaixo da cidade. Em 1950, o decadente rio Tâmisa foi considerado biologicamente morto. Foi a partir dessa época que começaram os investimentos para a construção de estações de tratamento de esgotos em toda a calha do rio. 

Em meados da década de 1970, depois de cerca de 25 anos de investimentos no tratamento dos esgotos das cidades, um salmão nadando nas águas do rio foi visto por moradores. O salmão é uma espécie de peixe que passa a maior parte da sua vida nas águas dos oceanos, mas que há época da reprodução entra nos rios e sobe a correnteza em busca de águas calmas para acasalar e desovar. A espécie é bastante exigente no quesito qualidade das águas – se esse salmão estava nadando no rio Tâmisa, era um sinal de que as coisas estavam indo muito bem, obrigado. 

Recentemente, o sistema de esgotos de Londres voltou a ocupar espaço nos noticiários – em setembro de 2017, uma gigantesca massa formada por gordura, fraldas descartáveis, lenços umedecidos e óleo congelado, entre muitos outros resíduos, provocou um colossal entupimento em um trecho do sistema de esgotos. De acordo com cálculos feitos pelos técnicos da concessionária de águas e esgotos de Londres, o aglomerado de sujeira pesava cerca de 130 toneladas e se estendia por cerca de 260 metros de tubulações. Equipes de manutenção gastaram três semanas para desobstruir as tubulações e remover os pedaços do que foi chamado de “o monstro dos esgotos” pelos tabloides sensacionalistas da Inglaterra. 

Longe de ser um caso isolado, os entupimentos nas redes de esgotos de Londres e de outras grandes cidades inglesas provocados por grandes blocos de gordura misturada com resíduos estão se tornando perigosamente frequentes. É claro que nem todos têm as dimensões do “monstro dos esgotos” de 2017. Esse tipo de massa gordurosa ganhou o nome de “fatberg”, um neologismo inspirado na palavra iceberg, os grandes blocos de gelo que flutuam aleatoriamente pelos mares. A palavra, inclusive, passou a fazer parte do Dicionário Oxford, um dos mais importantes da língua inglesa, em 2015. 

De acordo com informações das diversas concessionárias de águas e esgotos da Inglaterra, são registradas perto de 25 mil ocorrências graves com entupimento das redes de esgotos a cada ano – cerca de metade dessas ocorrências envolvem os chamados “fatbergs”. Entre as explicações dadas pelos especialistas para essa grande frequência de entupimentos das tubulações está a mudança de hábitos alimentares das populações, onde a participação das frituras não para de crescer. 

Lanchonetes do tipo fast food, restaurantes e pubs, entre outros estabelecimentos, preparam e servem uma infinidade de pratos fritos, que vão desde as tradicionais batatas fritas com peixe até hamburgueres e pratos orientais, onde grandes volumes de óleo vegetal são utilizados. Para evitar os custos de descarte do óleo usado, que de acordo com as leis ambientais locais precisa ser recolhido e reprocessado por empresas especializadas, muitos donos de restaurante acabam lançando esse óleo na rede de esgotos. Em contato com a água fria, esse óleo rapidamente se transforma numa massa sólida de gordura

A esse hábito nada saudável se juntam outros da vida moderna – o descarte de todo o tipo de resíduos nas privadas. São preservativos, bitucas ou guimbas de cigarro, lenços umedecidos, absorventes femininos, papel higiênico, fraldas descartáveis, entre muitos outros. Esses resíduos se misturam com os grandes blocos de gordura formando verdadeiros “tampões” no interior das centenárias galerias de esgotos. A intensidade e a frequência dos entupimentos das redes de esgotos estão assustando e preocupando os fleumáticos ingleses. 

Os londrinos não estão sozinhos nessa situação – o mesmo problema tem se repetido principalmente em cidades dos Estados Unidos, do Canadá, da Europa e da Indonésia, entre muitos outros países. Aqui no Brasil, onde as redes de esgotos são bem mais modestas em termos de dimensionamento (diâmetro de tubulações) que as inglesas, a frequência é menor, mas esse tipo de problema também vem ocorrendo. 

Como se vê, já vão longe os tempos em que os sistemas de esgotos eram a melhor solução ambiental para o despejo de águas servidas e esgotos. Ou se mudam os hábitos dos habitantes das cidades ou será necessário se reinventar as redes coletoras de esgotos. 

OS PREJUÍZOS PROVOCADOS PELA DEGRADAÇÃO AMBIENTAL E PELAS MUDANÇAS CLIMÁTICAS NA ÍNDIA

FILE PHOTO: A man pedals his cycle rickshaw during monsoon rains in New Delhi

Ao longo das últimas postagens, apresentamos alguns dos graves problemas ambientais da Índia. Essa grande nação asiática vem apresentando um dos maiores índices de crescimento econômico do mundo, porém, grande parte desse crescimento se dá a partir da degradação ambiental. E como não existe “almoço grátis” (There is no free lunch), uma frase de origem popular que foi adotada pelos economistas e que expressa a ideia de que é impossível conseguir algo sem dar nada em troca, toda essa degradação ambiental tem um custo econômico. 

Segundo um estudo feito pelo Banco Mundial há alguns anos atrás, a poluição e as agressões ambientais custam anualmente cerca de US$ 80 bilhões ou cerca de 6% do PIB – Produto Interno Bruto, da Índia. A degradação e poluição das fontes de água e a poluição do ar das grandes cidades do país foram os grandes destaques desse estudo. Nas palavras de um dos economistas do Banco Mundial durante a apresentação desse relatório: “Cerca de 23% da mortalidade infantil e 2,5% de todas as mortes de adultos no país podem ser atribuídos à degradação ambiental”. 

Os efeitos das mudanças climáticas regionais que já estão acontecendo no país poderão tornar essa conta ainda muito mais salgada. Vamos entender isso:

Relembrando o que apresentamos em postagens anteriores, Nova Déli, a capital do país, é a cidade com a maior poluição do ar em todo o mundo. Muito pior – 14 das 15 cidades com o ar mais poluído do mundo estão na Índia. De acordo com estudos realizados pela Universidade de Chicago, nos Estados Unidos, um indiano médio que vive nessas cidades terá uma expectativa de vida 10,2 anos menor do que uma pessoa que vive em ambientes com uma atmosfera mais saudável. Isso sem falar nos problemas de abastecimento de água e despejo de esgotos, da degradação das florestas, da má gestão dos resíduos sólidos, da mineração e uso do carvão mineral entre outros problemas ambientais graves. 

Além desse grande conjunto de problemas, a Índia está começando a sofrer com maior intensidade os problemas criados pelo aumento das temperaturas no planeta. O Oceano Índico, conforme já apresentamos em postagens anteriores, é o que tem se mostrado mais susceptível às mudanças do clima mundial. O derretimento de grandes massas de gelo no Continente Antártico tem alterado suas correntes marinhas e tem se observado um gradual aumento na temperatura das águas do Oceano Índico. Essas mudanças estão provocando alterações nos ciclos de chuvas na África, com algumas regiões apresentando fortes secas e outras têm chuvas em excesso

No Golfo de Bengala se observa um gradual aumento do nível do oceano – as águas salgadas avançam cada vez mais continente a dentro, aumentando a salinização em alguns rios e nas águas do lençol freático em Bangladesh. A extensa região alagável do Delta do Rio Ganges, conhecida localmente como Sundarbans, está cada vez mais ameaçada. Essa região possui a maior concentração de manguezais arbóreos do mundo, com uma área superior a 10 mil km² entre a Índia e Bangladesh. Calcutá, uma das maiores cidades da Índia, está encravada no Oeste dessa região e já sofre com as mudanças climáticas locais

Calcutá, ou Kolkota na língua bengali, tem cerca de 14 milhões de habitantes em sua Região Metropolitana, ocupando a terceira posição entre as áreas urbanas com maior população da Índia, atrás de Nova Déli e de Mumbai. Calcutá foi fundada em 1690 e, durante muito tempo, foi a cidade mais importante da Índia, tendo sido inclusive a capital da Índia Britânica entre 1833 e 1912. A posição estratégica da cidade, localizada em um dos braços principais do Delta do Rio Ganges, oferecia uma fácil ligação entre as águas do Oceano Índico e as terras ao longo do Ganges, o rio mais importante e sagrado da Índia. 

As terras do Delta do rio Ganges sempre foram classificadas entre as mais férteis do mundo e, durante séculos, formaram um dos celeiros da antiga Índia (atualmente, a maior parte dessas terras estão em Bangladesh). Durante o período das Chuvas da Monção, grandes volumes de sedimentos são carreados desde as terras altas da bacia hidrográfica do Ganges, fertilizando naturalmente os solos e garantindo abundantes colheitas. De alguns anos para cá, infelizmente, mudanças climáticas regionais têm provocado um avanço cada vez maior de águas do mar através dos inúmeros canais do Delta (o que é chamado de língua salina), o que está salinizando águas e solos, e vem prejudicado sistematicamente as colheitas. 

A elevação do nível do Oceano Índico também tem provocado um aumento na intensidade das enchentes e das tempestades que atingem toda essa região, causando a perda de muitas casas e vidas. Os desalojados do lado indiano dos Sundarbans, sem contar com melhores condições para recomeçar suas vidas, migram em massa para a Região Metropolitana de Calcutá.  

Antigas áreas de várzea e terrenos baixos nas margens dos rios acabaram sendo transformadas em grandes favelas, com milhares de casas improvisadas sendo construídas sobre palafitas, que são estacas de madeira encravadas nos terrenos pantanosos. Cerca de um terço da população de Calcutá vive nessas favelas. 

A cidade de Calcutá tem uma altitude média entre 1,5 e 9 metros acima do nível do mar e, em razão disso, sempre foi assolada por enchentes durante as Chuvas da Monção. Durante esses períodos, as ruas, avenidas e terrenos mais próximos dos rios e canais apresentavam uma pequena lâmina de água, algo que não representava grandes problemas. Com a recente elevação do nível do mar, a cidade passou a conviver com enchentes severas e generalizadas na época das chuvas. Os moradores das regiões das favelas são os que mais sofrem com essas enchentes. 

Outro gravíssimo problema para as populações da Região Metropolitana de Calcutá são as águas fortemente poluídas do rio Ganges. Além de comprometer o abastecimento da população, essas águas também carregam quantidades fabulosas de lixo, lodo e entulhos, que cobrem o fundo dos canais, lagos e áreas de várzea com uma grossa camada de sujeira, deixando cada vez menos espaço para acomodar os excedentes de água do período das chuvas. Sem espaços para acomodar a água, a cidade se vê invadida por enchentes cada vez mais catastróficas. 

E os problemas não param – de acordo com estudos da Universidade de Calcutá em Hazra, entre 1955 e 2015, a cidade apresentou o triplo de dias com tempestades torrenciais (com chuvas acima de 100 mm) quando comparado à primeira metade do século XX. Isso significa que, além de uma grave piora na capacidade de drenagem das águas por causa do assoreamento de rios e canais e aumento do nível do Oceano Índico, a região de Calcutá também está sofrendo com o aumento da incidência de fortes chuvas. 

De acordo com projeções da OCDE – Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico, a se manterem as emissões dos gases causadores do efeito estufa e das mudanças climáticas globais, até 2070, Calcutá poderá ser uma das cidades com populações mais expostas às inundações costeiras do mundo. Muita gente poderá ser forçada a se mudar para outras regiões com terrenos mais altos ou distantes da costa – imaginem os custos sociais e financeiros dessa mudança.

Quem viver, verá! 

OS CAÇADORES DE RATOS DE MUMBAI, OU FALANDO DOS PROBLEMAS DE SANEAMENTO BÁSICO DA ÍNDIA

Praia de Versova Mumbai

Pode até ser difícil de acreditar, mas a foto que ilustra essa postagem mostra a Praia de Versova, a maior da cidade de Mumbai na Índia, em 2015. O antigo cartão postal e um dos orgulhos da cidade, gradativamente foi transformado em um grande aterro sanitário. Grandes volumes de resíduos sólidos, principalmente plásticos, descartados de forma inadequada pelos mais de 18 milhões de habitantes da cidade ao longo dos anos, acabavam sendo carreados pelas chuvas e arrastados até a orla marítima da metrópole. 

Segundo alguns registros dessa época, a camada de resíduos sobre a faixa de areia superava a marca de 1,5 metro de espessura. Foi então que um jovem advogado da cidade, Afroz Shah, iniciou uma grande campanha pela limpeza da praia. Arrebanhando inúmeros voluntários, entre anônimos e celebridades do cinema de Bollywood, a campanha durou 86 semanas e retirou cerca de 5 mil toneladas de lixo da praia. Palmeiras foram plantadas na orla e também foram instalados vários banheiros públicos. Os resíduos nunca pararam de chegar até a praia, mas, desde então, estão sendo melhor controlados. 

Essa rápida introdução nos dá uma ideia dos gigantescos problemas de saneamento básico da maior cidade da Índia e resume a situação caótica do país nesse quesito. Há gravíssimos problemas de poluição dos corpos d’água, solos e ar; deficiências no tratamento da água e no abastecimento de populações; na falta de banheiros; na geração e no descarte de resíduos sólidos, o que implica em sérios problemas no controle de vetores, entre muitos outros. 

Os mais de 1,34 bilhão de indianos produzem cerca de 40 bilhões de litros de águas residuais ou esgotos a cada dia. Apesar de parecer um número fabuloso, esse volume de esgotos é um reflexo dos problemas de saneamento básico no país – cada indiano tem acesso a apenas 30 litros de água “potável” por dia, volume que está muito abaixo da recomendação da OMS – Organização Mundial de Saúde, que preconiza 100 litros de água por habitante/dia

Cerca de 80% de todo esse volume de esgotos é despejado em riachos, rios e mares sem nenhum tipo de tratamento. A Índia tem 8 mil municípios e, de acordo com um estudo feito em 2011 pelo Conselho Central de Controle de Poluição, apenas 160 municípios do país contavam com centrais de tratamento de esgotos. Nos últimos anos foram feitos grandes investimentos em saneamento básico no país, mas essa situação evoluiu muito pouco.

Em Mumbai, como em outras grandes cidades do país, a situação é bem mais delicada. Perto de 55% da população da cidade vive em favelas, como é o caso de Dharavi, a “favela celebridade” da Índia, que foi um dos cenários do filme “Quem quer ser um milionário” (Slumdog Milionaire – 2008). Ocupando uma área superior a 1,75 milhão de metros quadrados e com uma população estimada em 1 milhão de habitantes, essa favela virou um ponto turístico de Mumbai

No imenso labirinto de ruas e vielas dessa favela, a população pobre teima em sobreviver e superar as grandes dificuldades do dia a dia. Existem cerca de 100 mil pequenas oficinas instaladas em fundos de quintais e casas, que produzem de tudo e até chegam a exportar seus produtos para países vizinhos. Apesar de sustentar e gerar empregos para grande parte da sua população, essas microempresas também geram grandes volumes de resíduos sólidos, que se juntarão aos resíduos domiciliares e esgotos domésticos que abundam nas ruas. 

De acordo com dados de 2012, Mumbai gera mais de 6% de todos os resíduos sólidos da Índia, resíduos que são depositados a céu aberto em quatro grandes lixões ao redor da cidade. Um verdadeiro exército de homens, mulheres e crianças passam suas vidas nesses lixões garimpando resíduos com algum valor. Os jovens protagonistas do filme “Quem quer ser um milionário” passam parte de suas vidas trabalhando em um desses lixões. 

A fim de tentar reduzir os volumes de resíduos sólidos da cidade, a Prefeitura de Mumbai baixou recentemente um decreto que limita gradualmente a produção e venda de plásticos descartáveis para embalagens, pratos, copos, talheres, entre outros itens. Até 2022, a Prefeitura espera zerar a produção e o descarte desse tipo de plásticos, além de estimular o uso de outros materiais reutilizáveis. 

A Índia é o terceiro maior produtor mundial de plásticos, só perdendo para os Estados Unidos e para a China, com uma produção anual de 19,3 milhões de toneladas, quase o dobro da produção do Brasil. Desse total, apenas 5,7% ou pouco mais de 1 milhão de toneladas, são recicladas. A situação do país como geradora de resíduos plásticos só não é pior por que o consumo per capita é de apenas 11 quilos – nos Estados Unidos, para efeito de comparação, o consumo anual é de 109 quilos de plástico por habitante

Agora, um detalhe curioso sobre Mumbai – essa é a única cidade da Índia, talvez até do mundo, que possui um departamento na sua Prefeitura com funcionários especializados na caça aos ratos. São cerca de 40 funcionários públicos concursados e alocados especificamente para essa função. Por mais nojento e repugnante que essa atividade possa parecer a você, saiba que os concursos públicos para essas vagas são bastante disputados, atraindo milhares de candidatos – ser funcionário público em um país como a Índia é um grande privilégio. 

Caçadores de ratos de Mumbai

Além desse pequeno exército governamental, centenas de caçadores free lancer são contratados pela Prefeitura. Esses caçadores têm como meta abater, pelo menos, 30 ratos a cada noite, recebendo um pagamento equivalente a US$ 0.10 por cabeça – para os padrões salariais da Índia, esse é um ótimo rendimento. Se você gosta de cinema, recomendo o filme indiano Dhobi Ghat (Mumbai Diaries) que, entre seus personagens, conta o drama de um jovem dalit (casta mais baixa da sociedade indiana) que trabalha como lavador de roupas durante o dia e caçador de ratos a noite, e que acaba se apaixonando por uma jovem milionária. 

A crescente classe média indiana fica indignada a cada nova produção cinematográfica do país que teime em mostrar todas as mazelas e os gravíssimos problemas sociais dos pobres do país. A Índia é, disparada, a maior produtora de filmes do mundo. Contando com 26 línguas oficias e mais de 400 línguas e dialetos minoritários, o país é uma verdadeira linha de produção de filmes. Bollywood, a versão indiana de Hollywood, fica em Mumbai e concentra a maior parte das produções. Os indianos mais ricos gostam mesmo é dos romances açucarados, musicais e filmes épicos, que mostram toda a beleza, a cultura e a história do país. 

Esses indianos endinheirados sentem um imenso orgulho dos grandes avanços tecnológicos da Índia, com suas inúmeras centrais nucleares, poderosas forças armadas, bombas atômicas e, é claro, das altas taxas de crescimento econômico e da iminente trajetória do país rumo à terceira posição entre as maiores economias do mundo. Falar de pobres que ganham a vida caçando ratos, de esgotos, de lixo ou da falta de banheiros no país, é vergonhoso demais para eles. 

A PODEROSA INDÚSTRIA FARMACÊUTICA DA ÍNDIA E SEUS MUITOS PROBLEMAS AMBIENTAIS, OU OS CACHORROS AZUIS

Cachorro azul da Índia

Em meio aos inúmeros problemas causados pela pandemia do Corona vírus, surgiu uma luz no fim do túnel com os bons resultados do uso da hidroxicloroquina no combate à Covid-19. Apesar das intensas discussões entre especialistas pró e contra, o Ministério da Saúde acaba de liberar o uso dessa substância para o tratamento dos casos graves da doença. Em discurso transmitido em Rede Nacional, o Presidente da República anunciou que negociou junto ao Primeiro Ministro da Índia a compra de um grande lote de insumos químico-farmacêuticos para a produção local de novos lotes de hidroxicloroquina para atender ao aumento da demanda pelo remédio. 

A Índia, para os que não sabem, é uma das maiores produtoras mundiais de remédios e de químicos-farmacêuticos do mundo. Há várias décadas, empresas químicas e farmacêuticas multinacionais começaram a se instalar no país em busca de baixos custos de produção, especialmente no item mão de obra. O país é um centro de excelência na formação de profissionais de alto nível e de pesquisa básica, com um custo em salários equivalente a 30% dos seus congêneres americanos e europeus. Muitos laboratórios indianos também foram beneficiados com esse boom e cresceram muito. 

Um outro importante atrativo que levou à instalação de grandes empresas químicas e farmacêuticas em países em desenvolvimento como a Índia, o Brasil e a Malásia, foram as leis trabalhistas e ambientais muito mais brandas que nos seus países de origem. Nos velhos tempos do “desenvolvimento a qualquer custo” em décadas atrás, valia tudo. Muitos dos processos envolvidos na produção de produtos químicos e farmacêuticos são muito perigosos e potencialmente danosos ao meio ambiente. 

Eu passei a maior parte da minha adolescência morando ao lado de uma grande indústria farmacêutica e num raio de 3 km da minha casa existiam, pelo menos, outras três grandes empresas desse ramo. A poluição do ar liberada por essas empresas tornava a chuva que caia no bairro uma das mais ácidas da cidade de São Paulo.  

Notícias sobre incêndios e explosões nesses laboratórios eram frequentes e corriam a “boca pequena” nas vizinhanças (nos tempos do Regime Militar, essas notícias eram controladas ou censuradas). Lembro também que, de vez em quando, cobaias usadas nos testes fugiam de suas gaiolas nos laboratórios e apareciam nos quintais de muitas casas – certo dia, um porquinho-da-Índia (conhecido em muitas regiões como preá) apareceu no quintal da minha casa e acabou sendo devolvido ao laboratório. 

Graças às particularidades sociais e econômicas da Índia, essas indústrias prosperaram muito mais por lá e, por outro lado, já causaram e ainda causam problemas ambientais muito mais graves do que por aqui. Um dos casos mais dramáticos da história da humanidade aconteceu em 1984 na cidade de Bhopal, na região central da Índia, onde um vazamento de gases tóxicos de uma fábrica da empresa norte-americana Union Carbide matou, pelo menos, 3 mil pessoas (dados extra oficias falam de até 10 mil mortos)

Um erro de operação no sistema de dutos levou ao vazamento de 40 toneladas de gases tóxicos. A nuvem de gases que se formou nas áreas de entorno da fábrica contaminou cerca de 500 mil pessoas – a maioria dos mortos eram moradores de rua das castas mais baixas da sociedade indiana, pessoas que não possuíam documentos e que, por razões políticas, foram facilmente escondidas das estatísticas da tragédia. Muita coisa mudou na Índia depois desse “acidente”, mas os problemas ainda são muitos. 

Em agosto de 2017 publiquei uma curiosa postagem, onde mostrei que os cachorros vira latas de algumas cidades da Índia estavam ficando azuis por causa da forte poluição de resíduos de indústrias químicas lançados em rios do país. Os cachorros costumam mergulhar nos rios em busca de alimento e ficavam com o pelo coberto por resíduos químicos. Esse era o caso de Nova Mumbai, cidade que abriga um importante pólo industrial, que naquela época contava com cerca de 997 fábricas dos segmentos da química, farmacêutica, engenharia e processamento de alimentos. As autoridades locais abriram uma investigação que parece ter acabado em nada.

Mas os problemas vão muito além da tradicional poluição das águas. Estudos sobre o aumento da resistência das bactérias aos antibióticos indicaram que a poluição gerada pelas fábricas desse tipo de medicamento na Índia e na China está afetando as populações vizinhas a essas fábricas e estão provocando um aumento da resistência dos microorganismos.  

Os efluentes líquidos liberados por essas fábricas carregam grandes quantidades de resíduos dos antibióticos e esses são absorvidos pelas pessoas que consomem água contaminada. Com a presença contínua dos antibióticos em seus organismos, as bactérias presentes no corpo dessas pessoas desenvolvem resistência a esses medicamentos e se transformaram no que os cientistas e médicos chamam de superbactérias

Caso qualquer uma dessas pessoas adquira uma doença grave, onde venha a ser necessário o uso de antibióticos, eles não farão efeito por causa da resistência adquirida pelas superbactérias. Assim, uma doença que poderia ser controlada com o uso dessa medicação não fará efeito e o paciente correrá um sério risco de morte. 

Os estudos feitos na Índia utilizaram dados coletados nas vizinhanças das principais indústrias farmacêuticas do país, onde foram identificados 16 focos de resistência a antibióticos. Um exemplo: em rios e corpos d’água dos arredores da cidade de Hyderabad foram encontradas quantidades de resíduos até mil vezes maiores do que aquelas que são encontradas em rios dos chamados países desenvolvidos. Isso nos dá uma ideia da situação nessas comunidades. 

Além de estimular a proliferação de superbactérias entre as populações dessas comunidades, esses resíduos causam outros tipos de drama – cerca de 60 mil recém nascidos morrem por ano na Índia por causa de doenças associadas a bactérias super-resistentes. Um exemplo é a bactéria Klebsiella pneumoniae, associada a pneumonia e meningite, além de infecções no sangue e no trato urinário – essa bactéria aumentou sua resistência de 29% em 2008 para 57% em 2014

A origem dessa emissão descontrolada de resíduos de medicamentos está diretamente ligada a regras muito frouxas na segurança da produção e no uso de maquinários antigos, na falta de sistemas de filtragem adequados, treinamento precário de funcionários e, principalmente, na ganância de empresas que querem ganhar muito e gastar o mínimo possível, sem se preocupar com a saúde dos seus funcionários e comunidades vizinhas de suas fábricas. 

Autoridades de saúde alertam que as superbactérias “made in” Índia podem se espalhar facilmente pelo mundo e criar uma série de transtornos para a saúde de populações de outros países, inclusive naqueles onde ficam as matrizes das multinacionais farmacêuticas causadoras desse problema. 

Encerrando – uma das tristes memórias que eu guardo dos noticiários sobre a tragédia de Bhopal foi a justificativa que um dos advogados da Union Carbide apresentou em um tribunal americano, justificando os baixíssimos valores de indenização oferecidos às famílias das vítimas indianas da tragédia: “Não se pode comparar o valor da vida de um cidadão norte-americano com a de um indiano”.  Passados mais de 35 anos, o processo jurídico de Bhopal ainda não foi concluído.

Parece que a antiga mentalidade dos empresários estrangeiros não mudou muita coisa mesmo tendo se passado tantos anos desde aquela trágica noite em Bhopal

A MINERAÇÃO E O USO INTENSIVO DO CARVÃO NA ÍNDIA E SUAS CONSEQUÊNCIAS NA POLUIÇÃO AMBIENTAL

Global Coal

A Índia, uma das economias que mais cresce no mundo, é um país sedento por energia, especialmente a energia elétrica. Com taxas de crescimento anual na casa dos 6% nos últimos anos, o país só fica atrás da China nesse quesito. Com uma população gigantesca na casa dos 1,34 bilhão de habitantes, o país precisa gerar cerca de 1 milhão de empregos a cada mês somente para absorver a mão de obra dos jovens que estão entrando no mercado de trabalho. 

Dada as características físicas do país, onde não existem tantos rios caudalosos e adequados à construção de grandes centrais de geração hidrelétrica como no Brasil, a maior e mais importante fonte de energia na Índia é o carvão mineral, com uma participação na matriz energética acima dos 40%. A seguir vêm os biocombustíveis, especialmente a lenha e os resíduos, com uma participação de 24%, onde é importante citar que perto de 70% da população do país usa lenha para cozinhar. A seguir vem o petróleo e seus derivados, com cerca de 16% de participação, entre outras fontes energéticas como a eletricidade gerada em usinas hidrelétricas e nucleares. 

Apesar de todos os esforços do Governo Central para aumentar a capacidade de geração elétrica no país, mais de 20% dos indianos não tem acesso à elétricidade. Isso significa que perto de 300 milhões de pessoas, a maioria pertencendo às classes mais pobres do país, passa suas noites sob a luz de velas, lampiões e fogueiras, além de não ter acesso ao uso de quaisquer equipamentos eletrônicos, eletrodomésticos e outros confortos da sociedade moderna.  

O consumo per capita de energia elétrica das famílias indianas que têm acesso à rede elétrica e que tem condições de arcar com os custos dessa energia é muito baixo, equivalente a apenas 7% do que gasta uma família típica dos Estados Unidos. A precária rede elétrica do país sofre frequentemente com apagões e muitas empresas não conseguem trabalhar com a produção a plena carga devido às limitações no fornecimento de eletricidade. 

Essa demanda reprimida cria fortíssimas pressões para a expansão da rede de geração e de distribuição de energia elétrica. Surge aqui um grande problema ambiental – mais de 60% da geração de energia elétrica da Índia é feita em centrais termelétricas à carvão, uma das fontes energéticas mais sujas e poluentes do mundo. O potencial de geração hidrelétrica é limitado e o país tem feito investimentos, dentro dos seus limites orçamentários, para ampliação da geração de energia elétrica em centrais nucleares (a Índia possui 21 unidades em operação e tem outras 6 em projeto ou construção) e também em fontes renováveis como a energia solar. 

Usina termelétric a carvão na Índia

O consumo anual de carvão na Índia é superior a 600 milhões de toneladas por ano, o que coloca o país entre os maiores consumidores desse insumo do mundo e, de quebra, na posição de um dos maiores emissores de gases poluentes devido a queima do combustível. Perto de 90% do carvão usado no país é extraído localmente. Existem centenas de projetos para a construção de novas centrais de geração termelétrica aguardando a aprovação pelos órgãos governamentais, que têm resistido ao máximo em liberar novas autorizações. 

A mineração do carvão na Índia é extremamente problemática e altamente impactante ao meio ambiente. Cerca de 90% do carvão produzido no país vem de minas a céu aberto, que são as mais impactantes ao meio ambiente. A maior parte do carvão indiano tem baixo poder calorífico, o que o torna altamente poluente e emissor de grandes quantidades de cinzas, sendo considerado duas vezes mais poluente do que o carvão usado na Europa e nos Estados Unidos

Devido à alta densidade populacional na Índia, tanto as minas quanto as usinas termelétricas sempre ficam localizadas próximas a alguma cidade, onde as populações acabam sendo afetadas diretamente pelos poluentes gerados tanto pela extração quanto pela queima do carvão. Um dos principais poluentes é o mercúrio, um metal pesado que causa inúmeros problemas à saúde humana. 

De acordo com estudos feitos em 2013, a poluição do ar gerada pela mineração e pela queima do carvão está associada a 20 milhões de novos casos de asma e de problemas cardíacos na Índia a cada ano. Também está associada a mais de 100 mil mortes prematuras de crianças (sendo que 10 mil dessas mortes são de crianças com menos de 5 anos de idade). Além de toda a tragédia humana, essas doenças geram um custo extra de US$ 4,6 bilhões ao sistema de saúde do país.

Como acontece em todo o mundo, o avanço da mineração sobre as áreas naturais da Índia é uma grande fonte de degradação ambiental. De acordo com estudos da Ação Ambiental Kalpavriksh, uma organização indiana de defesa das florestas, somente entre 1990 e 2004, foram liberadas perto de 200 licenças para exploração mineral no país, abrangendo uma área de aproximadamente 200 mil km². Segundo o grupo, essas áreas de mineração ameaçam mais de 90 santuários da vida selvagem e parques nacionais, colocando em risco a biodiversidade e importantes fontes de água. 

Grande parte dessas licenças se referem a minas de carvão, minério de ferro, bauxita e calcário, entre outros minerais. As regiões afetadas incluem especialmente os Estados do Rajastão, MaharashtraOrissa Jharkland, locais onde se encontram remanescentes florestais e biomas sensíveis. Aqui é importante lembrar que desde o início do século XIX, quanto a região ainda era uma colônia do Império Britânico, a Índia iniciou um forte processo de desflorestamento com vistas à abertura de campos agrícolas e exploração madeireira. Cerca de 22% do território do país ainda é coberto por florestas e perto de 400 milhões de pessoas dependem da exploração dos seus recursos para sobreviver.

Além dos graves impactos ambientais, o avanço da mineração ameaça inúmeras minorias étnicas que vivem nessas regiões. A Índia é um verdadeiro caldeirão multicultural e étnico, inclusive com alguns grupos tribais semelhantes aos indígenas brasileiros. Há inúmeras tensões regionais com esses grupos, que sofrem economicamente e culturalmente com os impactos da mineração, principalmente do carvão, que além da intensa poluição do ar, afeta profundamente as fontes de abastecimento de água dessas comunidades. 

Além dos inúmeros problemas internos, a Índia ainda sofre com as fortes pressões da comunidade internacional. Desde a assinatura do Protocolo de Kyoto em 1997, que foi resultado de uma série de negociações iniciadas a partir da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre a Mudança do Clima de 1992, os países que ratificaram o acordo assumiriam o compromisso de reduzir as suas emissões entre 2008-2012 para uma média de 5% em relação aos níveis de 1990. Num segundo momento, as nações signatárias assumiriam o compromisso de reduzir as emissões entre 2013-2020 em pelo menos 18% abaixo das emissões de 1990.  

A índia, é claro, ficou muito longe de atingir qualquer uma dessas metas. Somente entre os anos de 2010 e 2015, o país aumentou sua capacidade de geração em usinas termelétricas a carvão em cerca de 73%. Nos últimos anos, felizmente, o país acabou reduzindo o ritmo do crescimento dessa fonte de energia e tem estimulado o crescimento de outras fontes energéticas. Um exemplo foi a construção de uma planta de geração de energia fotovoltaica no Estado de Madhya Pradesh, considerada a maior usina solar de toda a Ásia, ocupando uma área total de 323 hectares. 

A situação da Índia é o que se pode chamar de “entre a cruz e a espada” – uma forte demanda reprimida por energia elétrica de um lado e os gravíssimos efeitos da poluição do ar das grandes cidades e de importantes fontes de abastecimento de água no outro. Em tempos de mudanças climáticas globais e de graves consequências já visíveis do aumento da temperatura do planeta, essa é uma situação bastante difícil. 

 

A INDÚSTRIA DO COURO NA ÍNDIA E SEUS INSALUBRES E POLUENTES CURTUMES

Curtumes na Índia

De acordo com os Vedas, conjunto de textos religiosos hindus que remontam ao ano 1.500 a.C., a fertilidade das vacas foi associada a várias divindades. Graças a isso, o status do animal passou a ser elevado gradativamente dentro do contexto religioso e as vacas e bois, por extensão, passaram a ser considerados sagrados. Dentro do antigo sistema de castas da sociedade indiana, as vacas eram consideradas mais puras que os humanos brâmanes, a casta mais alta dos sacerdotes hindus. Esse status passou a garantir que as vacas não fossem mortas, feridas e que também pudessem circular livremente pelas ruas sem serem incomodadas. 

Durante séculos, vacas e bois eram encontrados vagando sossegadamente pelas ruas das cidades indianas, convivendo pacificamente com pessoas dos mais diferentes tipos e outras espécies animais, onde se incluem cães, gatos, carneiros, cabritos, elefantes, camelos, entre muitas outras. Vale ressaltar que as populações muçulmanas do país, para desespero da maioria hindu, sempre consumiram a carne de bovinos. Depois da independência da Índia em 1948 e das profundas mudanças sociais e econômicas vividas pelo país, as coisas começaram a mudar e as vacas passaram a perder lentamente sua condição de animal sagrado. 

Conforme já comentamos em uma postagem anterior, o consumo de carne bovina tem crescido entre os indianos da classe média, que consideram este alimento como um sinal de status num país em forte crescimento econômico. Também tem crescido os comunicados de roubo de gado – em 2019 foram registradas cerca de 40 mil ocorrências no país. Grupos criminosos roubam os animais e os transportam para abatedouros clandestinos, que por sua vez abastecem o mercado. Em grande parte do país o abate de gado ainda é proibido por força de lei

A grande ironia da situação é que a Índia se transformou em uma das grandes processadoras e produtoras de couro animal do mundo, com uma produção anual de mais de 180 milhões de metros quadrados em peças de couro (dados de 2013). Nessa conta se incluem couro de búfalos (Bos gaurus) e iaques (Bos grunniens), espécies bovinas muito próximas de bois e vacas, mas que estão livres da condição de sagradas.  

Couros de bois e vacas também acabam entrando nessa conta – além dos abates clandestinos que citamos, alguns Estados do país permitem o abate desses animais em frigoríficos especializados na exportação de carne – a Índia é um dos maiores exportadores mundiais de carne bovina e bubalina (búfalos). Também se incluem o couro de animais “sagrados” que morreram de morte natural e que têm seu couro retirado por dalits, a casta mais baixa entre os indianos (os chamados intocáveis ou impuros). 

Os curtumes indianos, conforme já comentamos anteriormente, são grandes poluidores do meio ambiente. Essas indústrias utilizam produtos que contém substâncias altamente tóxicas como mercúrio, arsênico e, principalmente, sais de cromo. Essas substâncias são utilizadas para mumificar e amaciar o couro, além de entrarem na composição de tintas, solventes e vernizes. Os resíduos desses produtos são em grande parte misturados aos efluentes que são despejados sem qualquer tipo de tratamento e poluem gravemente  as águas de córregos e rios usadas no abastecimento de cidades e vilas. 

Esses curtumes também são um dos ambientes de trabalho dos mais insalubres para milhões de trabalhadores. Em grande parte dessas instalações, os trabalhadores não usam os EPIs – Equipamentos de Proteção Individual, como luvas, máscaras, botas e aventais, equipamentos essenciais para quem lida em contato direto com produtos tóxicos. Muitos, inclusive, vivem mergulhados até a cintura nos tanques onde as peças de couro são tratadas, respirando vapores tóxicos e tendo pés, pernas e mãos em contato direto com todos esses produtos. 

O processo do curtimento do couro começa ainda nos abatedouros, quando as peças recém retiradas das carcaças dos animais são tratadas com pesticidas, que vão evitar o desenvolvimento de fungos durante o transporte das peças até os curtumes. As peças de couro possuem restos de carne, gordura, tendões, pêlos, fezes e outras impurezas, que vão precisar ser retiradas antes do início dos processos de curtimento. Até 70% do chamado couro cru se transforma em resíduos, que muitas acabam sendo descartados junto com os efluentes líquidos. Os profissionais que fazem essa limpeza, frequentemente, trabalham sem o uso de luvas e máscaras, respirando um ar contaminado e muito mal cheiroso.  

As peças de couro limpas são depois colocadas em tanques para lavagem e início do processo de curtimento. O processo mais usual para o tratamento do couro, e também o mais tóxico, é feito com o uso de sais de cromo. Para curtir 1 tonelada de couro são gastos entre 20 e 80 m³ de água, onde são adicionados cerca de 250 mg/l de cromo e cerca de 50 mg/l de sulfeto. Esses produtos tratam o couro, evitando que ele apodreça com o tempo

O cromo é um metal de transição com importantes aplicações na metalurgia, especialmente na produção do aço inoxidável. Os compostos de cromo (estado de oxidação +6) são muito oxidantes e podem ser altamente nocivos. Em altas concentrações, estes compostos podem causar diversos problemas à saúde humana, indo desde problemas respiratórios, infecções, infertilidade e deficiências congênitas. Lançado junto com os efluentes nas águas dos rios, o cromo pode causar problemas nas guelras dos peixes e também provocar alguns tipos de câncer em animais e populações humanas que bebam ou mantenham contato com estas águas. 

Profissionais que trabalham nos curtumes, expostos diariamente a toda uma gama de produtos químicos, podem apresentar problemas como rinite, problemas no estômago, lesões na pele e, em casos extremos, riscos de desenvolver câncer no pulmão. As instalações dos curtumes costumam ter estruturas improvisadas e sem as mínimas condições de segurança. Os trabalhadores estão sujeitos a riscos de quedas, exposição à cal, soluções químicas usadas no curtimento e a uma série de produtos químicos, ferimentos e lesões em máquinas e ferramentas de corte, inalação de gases tóxicos, afogamento em tanques, queimaduras químicas, entre outros problemas. 

Estudos médicos recentes têm associado os compostos de cromo hexavalente (Cr(Vl)) aos riscos de desenvolvimento de câncer respiratório nas fossas nasais e nos pulmões, além de câncer na bexiga, nos testículos e pâncreas. A EPA – Agência de Proteção Ambiental dos Estados Unidos, a IARC – Agência Internacional de Pesquisa em Câncer, e a OMS – Organização Mundial da Saúde, passaram a classificar o cromo hexavalente como cancerígeno e tem feito esforços para banir o seu uso. A maioria dos curtumes da Índia faz vista grossa a essas recomendações e o produto continua sendo usado em larga escala no país. 

Como resultado do contato direto e diário com todo um conjunto de produtos químicos tóxicos, os trabalhadores dos curtumes da Índia são facilmente reconhecíveis pelas manchas brancas na pele das mãos, dos pés e das pernas, cicatrizes das muitas doenças de pele e queimaduras químicas sofridas ao longo dos anos. Também são muitos comuns os trabalhadores “aposentados” (na realidade estão incapacitados para o trabalho) precocemente devido aos inúmeros problemas de saúde e doenças contraídas e acumuladas ao longo do tempo. Isso sem falar nas incontáveis viúvas e órfãos deixados por trabalhadores mortos em um sem número de “acidentes” nos curtumes. 

Os problemas criados no meio ambiente pelos inúmeros curtumes da Índia são enormes e precisam ser revolvidos no menor tempo possível. Mas a destruição de vidas de milhares de trabalhadores também é muito grande e não podem, de maneira alguma, serem esquecidas. 

AS QUEIMADAS NOS CANAVIAIS DA ÍNDIA E A POLUIÇÃO DO AR NAS GRANDES CIDADES

Mulher indiana cortando cana

Na postagem anterior falamos de um dos mais graves problemas ambientais da Índia – os altíssimos níveis de poluição do ar nas grandes cidades do país. De acordo com estudos realizados pela OMS – Organização Mundial de Saúde, 14 das 15 cidades com o ar mais poluído do mundo estão na Índia, onde se inclui Nova Déli, Mumbai, Calcutá, Chennai, Bangalore, Hyderabad, entre outras.

Além dos conhecidos problemas criados pelas emissões de veículos automotores, de fábricas e de centrais de geração termelétrica a carvão, as queimadas realizadas em propriedades rurais, especialmente em canaviais, também geram um substancial volume de gases poluentes.

A cana-de-açúcar é, há milhares de anos, uma das culturas agrícolas de destaque na Índia e a queima da sua palha nos momentos de colheita é feita para facilitar o corte das plantas. O Brasil é o maior produtor de cana-de-açúcar do mundo, usada como matéria prima para a produção de açúcar e de etanol (álcool combustível), entre outros produtos. A produção brasileira de cana-de-açúcar é da ordem de 720 milhões de toneladas.

A Índia vem na segunda posição, com uma produção anual de 320 milhões de toneladas, seguida pela China com 112 milhões de toneladas. Nesses dois países, a produção é destinada quase que exclusivamente para a produção do açúcar. Brasil, Índia e China produzem dois terços de toda a cana-de-açúcar do mundo. Cada indiano consome mais de 40 kg por ano e são os maiores consumidores de açúcar per capita do mundo. A média de consumo mundial é de 23 kg por habitante; nos Estados Unidos e na Europa o consumo é mais alto, da ordem de 32,5 e 35,1 kg, respectivamente.

Diferente do que acontece aqui no Brasil, onde grande parte da produção é feita em grandes propriedades, na Índia o plantio da cana-de-açúcar é realizado por pequenos produtores rurais em áreas com um tamanho médio de 1,8 hectares. Segundo estimativas do Governo central do país, são 30 milhões de propriedades produtoras, onde o plantio e a colheita manual são feitos por famílias. A queima de tantos canaviais ao mesmo tempo, assim como é feito em muitas regiões aqui no Brasil, gera enormes problemas ambientais.

A queima da palha de 1 tonelada de cana gera a emissão de 9 kg de CO2 (dióxido de carbono), além de outros gases como o monóxido de carbono (CO), o óxido nitroso (N2O), o metano (CH4). A queima da palha também contribui para a formação do ozônio (O3). Outro problema sério é a geração de fuligem – quem mora próximo de regiões produtoras de cana conhece bem o drama dos períodos de queima dos canaviais e da fumaça e da fuligem que invadem as casas dos moradores.

Um dos grandes problemas ambientais criados por esses gases é a chuva ácida, que contamina fontes de abastecimento de água, o que pode comprometer a biodiversidade, provocar a destruição de áreas florestais e induzir mortandades de peixes. Atingindo populações humanas, esses gases diminuem a resistência do organismo, causam infecções e irritação nos olhos, além de problemas cardiorespiratórios.

A cana-de-açúcar (Saccharum officinarum) é originária da Índia e resulta da hibridização de diversas espécies nativas do Sudeste Asiático, incluindo espécies do Subcontinente Indiano, China, Nova Guiné, Filipinas e Malásia, entre outras. Estudos indicam que o cultivo da planta começou por volta do ano 6 mil a.C, quando os indianos desenvolveram o processo de refino e produção do açúcar, que em sânscrito é çakkara. Os árabes adaptaram a palavra para súkkar e, posteriormente, os gregos usaram a palavra para sákcharon, raiz da conhecida palavra sacarose.

A produção do açúcar vem sendo uma atividade econômica fundamental para os indianos desde o passado remoto. Além de constituir uma parte importante da cultura e da culinária indiana, o açúcar sempre foi um importante produto de exportação. Mercadores indianos vendiam o açúcar em portos de todo o Oceano Índico, popularizando o seu consumo como remédio e alimento.

A partir da Índia, a cultura da cana-de-açúcar se estendeu para a Pérsia meridional e depois para a Península da Arábia. Os primeiros europeus a conhecer a cana-de-açúcar e a experimentar o açúcar foram provavelmente os soldados gregos que acompanhavam Alexandre III da Macedônia (356-323 a.C.). Mercadores árabes se encarregaram de espalhar o açúcar por todo o Oriente Médio, Norte da África, Ásia Central e Europa. Os primeiros canaviais na Europa surgiram no Sul da Espanha em 711 e na Sicília, ilha do Sul da Itália, em 827. Em Portugal, as primeiras mudas de cana-de-açúcar foram plantadas na região do Algarve a parte do ano de 1159.

Nas principais línguas da Europa Ocidental e dos países nórdicos é bastante fácil perceber que a palavra árabe seguiu o caminho dos mercadores: açúcar, azúcarazucre, sucre, azucre, sucre, suggar, siúcra, zucchero, suiker, zucker, sukker, socker, sukke, sykur e sokeri, respectivamente, em português, espanhol, galego, catalão, basco, francês, inglês, irlandês, italiano, holandês, alemão, dinamarquês, sueco, islandês, norueguês e finalndês.

A cana-de-açúcar chegou ao Brasil na década de 1530, nos mesmos navios que transportaram os primeiros colonizadores, escravos e bois. Desde a alta Idade Média, o açúcar se transformou em um dos produtos mais cobiçados do mundo, sendo vendido em gramas e a “peso de ouro” nas boticas da Europa. Durante os nossos três primeiros séculos de história, o plantio da cana e a produção do açúcar refinado para exportação foram as atividades econômicas mais importantes do Brasil. Essa cultura também foi a principal responsável pela destruição do trecho Nordestino da Mata Atlântica.

As principais regiões produtoras de açúcar no mundo se encontram nas zonas de clima tropical e subtropical, especialmente em países pobres e em desenvolvimento. Além dos problemas ambientais criados pela derrubada de matas para a abertura de campos agrícolas e da poluição gerada pela queima da palha na época das colheitas, a cultura do açúcar também é famosa pelo uso de mão de obra infantil e exploração dos trabalhadores. As famílias dos agricultores são pobres e as crianças são obrigadas a ajudar os pais desde a mais tenra idade.

Na Índia, onde 68% da população vive em áreas rurais, mais de 100 milhões de pessoas  dependem, direta e indiretamente, das atividades ligadas à produção da cana-de-açúcar. A imensa maioria é oriunda das camadas mais pobres da sociedade. Por mais problemas que a queima da palha possa gerar nas grandes cidades, a dependendência que essa imensa massa de pessoas tem da cultura da cana-de-açúcar coloca os Governantes contra a parede.

Em várias regiões do mundo, a queima dos canaviais não é mais necessária, uma vez que a colheita é feita por máquinas agrícolas. Aqui no Brasil, grandes esforços vem sendo feitos para minimizar esse problema. No Estado de São Paulo, citando um exemplo, as grandes usinas produtoras de açúcar são proibidas de queimar os canaviais desde 2017 e vem utilizando maquinário nas colheitas. Apesar dos enormes ganhos ambientais, essa mudança obrigou a requalificação de cerca de 400 mil trabalhadores que trabalhavam no corte da cana e que ficariam desempregados. Imaginar algo do tipo na Índia é quase impossível.

O grande dilema da Índia: escolher entre o doce sabor do açúcar e o combate aos graves efeitos da poluição em suas grandes cidades. Difícil escolha.

A SUFOCANTE ATMOSFERA DAS GRANDES CIDADES DA ÍNDIA

Poluição em Nova Déli

Em novembro de 2019, a capital da Índia – Nova Déli, e cidades vizinhas da Região Metropolitana foram tomadas, mais uma vez, por uma forte e densa nuvem de poluição, muito parecida com um nevoeiro. Voos foram cancelados por falta de segurança devido à baixa visibilidade, problema que também causou diversos engavetamentos nas grandes avenidas das cidades. Moradores que andavam pelas ruas passaram mal, com dificuldades respiratórias e vômitos. O Governo decretou estado de emergência, pedindo que a população não saísse às ruas, numa espécie de quarentena. Escolas, indústrias e comércio em geral permaneceram fechados por vários dias. 

De acordo com medições e análises da qualidade do ar, a atmosfera da região apresentava naquele momento uma concentração de partículas em suspensão de 113 microgramas para cada metro cúbico de ar. De acordo com as recomendações da OMS – Organização Mundial de Saúde, a concentração máxima de partículas finas a que uma pessoa pode ser exposta não deve exceder a 10 microgramas por metro cúbico de ar. Isso que indica que os moradores de Nova Déli e região de entorno estavam convivendo com níveis de poluição mais de dez vezes acima do máximo aconselhado

De acordo com estudos realizados pela Universidade de Chicago, nos Estados Unidos, a expectativa de vida de um indiano médio que vive dentro da atmosfera altamente poluída da capital da Índia é reduzida, em média, em 10,2 anos. Respirando um ar altamente poluído, esses indianos podem desenvolver inúmeras doenças, especialmente no trato respiratório como o câncer de pulmão e doenças cardiovasculares, e ficam sujeitos a uma morte prematura. Segundo os especialistas, respirar o ar da cidade têm riscos semelhantes ao de se fumar 50 cigarros por dia. 

De acordo com dados da Comissão Lancelot sobre Estudos sobre Poluição e Saúde, cerca de 25% das mortes que acontecem anualmente na Índia estão associadas aos efeitos nocivos da poluição do ar. Cerca de 92% das mortes provocadas pela poluição do ar acontecem em países de baixa e média renda como a Índia. Essa Comissão é uma iniciativa do jornal médico britânico Lancelot que tem como objetivo “aumentar a consciência global acerca da poluição química, superar a negligência com as doenças relacionadas à poluição e mobilizar os recursos e a vontade política necessários para enfrentar, efetivamente, os desafios existentes”. 

Um estudo feito pela OMS em 2014 feito em 1.600 cidades de 91 países, colocou Nova Déli na posição de cidade mais poluída do mundo. A capital indiana não está sozinha nessa situação – 14 das 15 cidades com o ar mais poluído do mundo estão na Índia. As principais fontes de poluição são os veículos, a queima de carvão em usinas termelétricas, indústrias antigas que não usam sistemas de filtros em suas chaminés e também a queima de palha de arroz e as queimadas dos canaviais feitas por agricultores. Em algumas épocas do ano, especialmente no inverno, as condições climáticas facilitam o acúmulo de poluentes. 

Conforme comentamos em postagens anteriores, a Índia é um dos países que mais crescem no mundo, tanto em termos econômicos quanto populacionais. O país tem cerca de 1,34 bilhão de habitantes, só perdendo para China. Projeções demográficas indicam que o país terá a maior população do mundo em 2035. Assim como acontece com a China, a mão de obra indiana é muito barata, o que torna o país atrativo para a produção de uma imensa gama de produtos de consumo, industriais e, especialmente, na área de tecnologia da informação, além da prestação de serviços. 

Esse contexto econômico e social transformou a Índia num dos maiores consumidores de energia elétrica do mundo e com um agravante – cerca de 2/3 de toda a energia elétrica consumida no país vem de centrais termoelétricas a carvão. Essa situação coloca o país entre os maiores emissores de dióxido de carbono do mundo e transforma a atmosfera das suas principais cidades em um inferno tóxico para seus moradores. A fortíssima poluição do ar se junta a poluição dos solos e das águas no país

As populações mais pobres das grandes cidades, como sempre, são as que mais sofrem com os altíssimos níveis de poluição do ar. Em Nova Déli, por exemplo, uma reportagem da AFP – Agência de Notícias France Press, apurou que o custo de uma máscara para se defender minimamente da poluição custa o equivalente ao ganho diário de um motorista de riquixá, os tradicionais triciclos motorizados usados no transporte de pessoas. Já um circulador de ar residencial com sistema de filtro custa o equivalente a um ano de salário desse motorista. 

O mesmo drama se estende aos operários da construção civil, ambulantes e vendedores de ruas, varredores de rua e coletores de lixo, lavadeiras e mais um sem número de atividades feitas ao ar livre. Também precisam ser incluídos nessa lista as imensas legiões de sem-teto que moram nas ruas e grotões das grandes cidades indianas, onde se incluem os dalits, membros das castas mais baixas da sociedade indiana, inválidos, idosos, órfãos e demais miseráveis do país. 

A cada nova crise ambiental, o Governo da Índia se apressa em apresentar novos programas para o controle das fontes de poluição. No orçamento de 2020, por exemplo, o Governo reservou US$ 45 milhões para o desenvolvimento de programas para o controle das principais fontes de poluição no país, um valor irrisório para as dimensões do problema. De acordo com especialistas locais, será necessária a criação de programas para o combate à poluição que sejam legalmente vinculantes, o que forçará as empresas e autoridades a se empenhar com vigor, sob o risco de severas penalidades para os infratores. 

Enquanto nada de efetivo é feito, os problemas ambientais não param de crescer. O forte crescimento populacional do país gera uma demanda mensal de 1 milhão de novos postos de trabalho, o mínimo necessário para absorver a população jovem que está entrando no mercado. Novas centrais de geração de energia elétrica estão em construção e existem planos para muitas mais. Empresas expandem suas linhas de produção sem maiores preocupações com os impactos ambientais. A crescente classe média indiana realiza seus sonhos de consumo comprando automóveis, que se juntarão a frota crescente de ônibus, caminhões, motocicletas e riquixás. 

A situação crítica da poluição do ar nas grandes cidades da Índia faz lembrar dos antigos problemas de Cubatão, município da Região da Baixada Santista em São Paulo, que na década de 1980 era conhecido como o Vale da Morte. A região abrigava um imenso complexo petroquímico e siderúrgico numa época em que valia tudo pelo desenvolvimento econômico. Depois de inúmeras tragédias, o Governo do Estado de São Paulo resolveu agir, sob forte pressão da opinião pública, e as coisas começaram a mudar – 95% das fontes de poluição foram controladas e a cidade é hoje um exemplo mundial de gestão ambiental

É bastante improvável que algo parecido aconteça na Índia num curto prazo, mas precisamos ser otimistas – tudo tem que ter limites. 

UM PROBLEMA DE SANEAMENTO BÁSICO ELEMENTAR NA ÍNDIA: A FALTA DE BANHEIROS

Quem quer ser um milionário

O surpreendente filme “Quem quer ser um milionário?” (Slumdog Millionaire) pegou o mundo de surpresa em 2008. A produção britânica/americana filmada na Índia e falando da realidade do povo indiano foi indicado em 10 categorias do Oscar e levou 8 estatuetas, inclusive o cobiçado prêmio de Melhor Filme. Contando com um elenco de atores desconhecidos no mundo ocidental e com um modesto orçamento de US$ 15 milhões, o filme lotou cinemas em todo o mundo e arrecadou mais de US$ 370 milhões em bilheterias – uma verdadeira façanha! 

Algumas das passagens do filme mostram a vida dura das populações pobres das favelas de Bombaim, antigo nome da cidade de Mumbai, onde salta aos olhos os imensos problemas de saneamento básico. Numa cena das mais divertidas, os protagonistas principais da história, Salim e Jamal Malik (vide foto), trabalham num “negócio” de locação de latrinas comunitárias para os moradores da favela, onde criam uma tremenda confusão. Para quem ainda não viu o filme, eu recomendo. Fugindo um pouco da ficção, um dos grandes méritos do filme foi mostrar ao mundo um dos grandes dramas das pessoas mais pobres da Índia – a falta de banheiros. 

De acordo com dados oficiais do Governo da Índia de 2011, aproximadamente 53% dos lares indianos não dispunham de uma latrina, o modelo de “vaso sanitário” mais usado no país. Isso indicava que 60% da população do país, que na época estava na casa de 1,25 bilhão de habitantes, ou defecava a céu aberto ou utilizava instalações sanitárias precárias como aquelas mostradas no filme “Quem quer ser um milionário”. Estamos falando de 750 milhões de pessoas sem acesso a instalações sanitárias adequadas

A defecação a céu aberto era e ainda é um dos grandes problemas de saúde pública na Índia e em muitos outros países do mundo. A ONU – Organização das Nações Unidas, calcula que cerca de 2,5 bilhões de pessoas no planeta não dispõem de instalações sanitárias e estipulou o dia 19 de novembro como o “Dia Mundial do Banheiro”, com o objetivo de destacar a importância do saneamento básico na vida das pessoas. De acordo com dados do UNICEF – Fundo das Nações Unidas para a Infância, 130 mil crianças indianas morreram de diarreia na Índia em 2013, o que corresponde a quase um quarto dessas mortes em todo o mundo. A diarreia está ligada diretamente à falta de saneamento básico. 

Olhando esses números absurdos pela primeira vez, você poderá ficar com a impressão que essa falta de instalações sanitárias das mais elementares nas residências dos indianos pode ser apenas uma consequência da pobreza da população. Ledo engano. Hábitos culturais e religiosos, machismo e até mesmo o sistema de castas, que divide a população em diferentes estratos sociais, estão na raiz do problema no país. 

Um exemplo de resistência à construção de banheiros em residências são os brâmanes (ou brâhmana), um dos mais importantes grupos religiosos da Índia. Esse grupo faz uma leitura bastante ortodoxa dos livros sagrados do hinduísmo, especialmente do Código de Manu, um conjunto de regras que regula a vida religiosa, civil e pessoal dos fiéis. Uma dessas regras, de ordem higiênica, diz que a população não pode defecar nas proximidades de suas casas, uma norma que acaba impedindo a construção de banheiros nas residências. Existem muitas vilas e pequenas cidades com população brâmane na Índia onde nenhuma das casas possui banheiros. 

Os moradores são obrigados a caminhar até as matas nas áreas de entorno para “se aliviar”. Essa situação peculiar é particularmente perigosa para as mulheres, que ficam expostas a ataques de maníacos sexuais e também ao estupro coletivo praticado por homens de outras castas ou religiões. É comum que essas mulheres se organizem em grupos, saindo de madrugada para as matas. Num grande esforço físico, essas mulheres passarão o dia inteiro “segurando” suas bexigas e intestinos, para só voltar às matas em grupo no início da noite. 

Em 2017, o ator e ativista indiano Akshay Kumarproduziu e atuou no papel principal do filme “Toilet, que se transformou num grande sucesso de bilheteria na Índia. O enredo, baseado em fatos reais, mostra o drama dos moradores de uma vila brâmane sem banheiros e o esforço do filho de um dos sacerdotes para mudar essa realidade. O Governo da Índia, que vem realizando esforços hercúleos para implantar redes de água e esgotos em todo o país, foi um dos grandes apoiadores da produção. Bill Gates, fundador da Microsoft e presidente da Fundação Bill e Melinda Gates, declarou que “Toilet” foi um dos melhores acontecimentos de 2017

O tradicional sistema de castas, que foi abolido pela Constituição da Índia pós-independência, ainda continua dividindo os indianos em uma escala hierárquica e é outra fonte importante de problemas. Os dalits, grupos que formam as castas mais baixas e mais pobres da sociedade indiana, costumam viver separados do restante da população e, via de regra, não usam (ou não podem usar) os banheiros públicos espalhados por todo o país. Chamados de intocáveis, os dalits realizam os trabalhos considerados indignos e sujos, onde se incluiu a lida com os mortos (animais ou pessoas), coleta de lixo, trabalhos com couro, escavação de fossas, varrição e lavagem de ruas, entre outros. 

Estatísticas indicam que 16% da população da Índia é formada por dalits, sendo que 80% dessa população vive em área rurais. Grande parte dos dalits que vivem nas áreas urbanas são obrigados a morar nas ruas, uma vez que eles não são bem-vindos nem entre os moradores das favelas. Ainda persiste entre muitos cidadãos a ideia que essas pessoas, consideradas impuras, precisam viver separadas do restante da população. Vivendo ao relento, essas populações não tem outra alternativa senão urinar e defecar em áreas públicas. 

Há vários anos, O Governo Central da Índia vem fazendo pesados investimentos para construir e “popularizar” o uso dos banheiros. Em 2014 foi lançado um grande programa para a construção de banheiros em todo o país e, até 2019, os dados indicam que 100 milhões de instalações já foram construídas, principalmente nas residências. Esses esforços já garantiram o acesso de mais de 600 milhões de pessoas aos sanitários. Apesar de todos esses esforços, muitos indianos ainda resistem ao uso desses banheiros. Muitas vilas e pequenas cidades de população brâmane, citando um exemplo, foram contempladas com a construção de banheiros públicos, mas os moradores mais velhos ainda mantêm as suas tradições seculares. 

Apesar de todos os benefícios que estas medidas sanitárias básicas (para não dizer elementares) trazem para as populações, o problema está muito longe de ser resolvido. A maior parte das redes de esgotos sanitários instaladas para atender a esse grande volume de novos banheiros lança os efluentes em córregos e rios sem qualquer tipo de tratamento, contaminando as fontes de água usadas para o abastecimento das mesmas populações. Um exemplo que citamos na postagem anterior é o importante rio Yamuna, que, entre outras cidades, abastece Nova Déli, a capital da Índia com seus 20 milhões de habitantes. De acordo com alguns especialistas locais, os caudais desse rio são “100% massa fecal”. 

Para um país que já sofre com uma baixa oferta de recursos hídricos para atender a sua imensa população, a Índia vai precisar redobrar, sabe-se lá como, seus esforços na área de saneamento básico e passar a construir também estações de tratamento de esgotos. É um enorme desafio para um país que está perto de se tornar a terceira maior economia do mundo, só ficando atrás dos Estados Unidos e da China, mas que, ao mesmo tempo, tem uma parte importante da sua população vivendo na miséria absoluta.