O surpreendente filme “Quem quer ser um milionário?” (Slumdog Millionaire) pegou o mundo de surpresa em 2008. A produção britânica/americana filmada na Índia e falando da realidade do povo indiano foi indicado em 10 categorias do Oscar e levou 8 estatuetas, inclusive o cobiçado prêmio de Melhor Filme. Contando com um elenco de atores desconhecidos no mundo ocidental e com um modesto orçamento de US$ 15 milhões, o filme lotou cinemas em todo o mundo e arrecadou mais de US$ 370 milhões em bilheterias – uma verdadeira façanha!
Algumas das passagens do filme mostram a vida dura das populações pobres das favelas de Bombaim, antigo nome da cidade de Mumbai, onde salta aos olhos os imensos problemas de saneamento básico. Numa cena das mais divertidas, os protagonistas principais da história, Salim e Jamal Malik (vide foto), trabalham num “negócio” de locação de latrinas comunitárias para os moradores da favela, onde criam uma tremenda confusão. Para quem ainda não viu o filme, eu recomendo. Fugindo um pouco da ficção, um dos grandes méritos do filme foi mostrar ao mundo um dos grandes dramas das pessoas mais pobres da Índia – a falta de banheiros.
De acordo com dados oficiais do Governo da Índia de 2011, aproximadamente 53% dos lares indianos não dispunham de uma latrina, o modelo de “vaso sanitário” mais usado no país. Isso indicava que 60% da população do país, que na época estava na casa de 1,25 bilhão de habitantes, ou defecava a céu aberto ou utilizava instalações sanitárias precárias como aquelas mostradas no filme “Quem quer ser um milionário”. Estamos falando de 750 milhões de pessoas sem acesso a instalações sanitárias adequadas.
A defecação a céu aberto era e ainda é um dos grandes problemas de saúde pública na Índia e em muitos outros países do mundo. A ONU – Organização das Nações Unidas, calcula que cerca de 2,5 bilhões de pessoas no planeta não dispõem de instalações sanitárias e estipulou o dia 19 de novembro como o “Dia Mundial do Banheiro”, com o objetivo de destacar a importância do saneamento básico na vida das pessoas. De acordo com dados do UNICEF – Fundo das Nações Unidas para a Infância, 130 mil crianças indianas morreram de diarreia na Índia em 2013, o que corresponde a quase um quarto dessas mortes em todo o mundo. A diarreia está ligada diretamente à falta de saneamento básico.
Olhando esses números absurdos pela primeira vez, você poderá ficar com a impressão que essa falta de instalações sanitárias das mais elementares nas residências dos indianos pode ser apenas uma consequência da pobreza da população. Ledo engano. Hábitos culturais e religiosos, machismo e até mesmo o sistema de castas, que divide a população em diferentes estratos sociais, estão na raiz do problema no país.
Um exemplo de resistência à construção de banheiros em residências são os brâmanes (ou brâhmana), um dos mais importantes grupos religiosos da Índia. Esse grupo faz uma leitura bastante ortodoxa dos livros sagrados do hinduísmo, especialmente do Código de Manu, um conjunto de regras que regula a vida religiosa, civil e pessoal dos fiéis. Uma dessas regras, de ordem higiênica, diz que a população não pode defecar nas proximidades de suas casas, uma norma que acaba impedindo a construção de banheiros nas residências. Existem muitas vilas e pequenas cidades com população brâmane na Índia onde nenhuma das casas possui banheiros.
Os moradores são obrigados a caminhar até as matas nas áreas de entorno para “se aliviar”. Essa situação peculiar é particularmente perigosa para as mulheres, que ficam expostas a ataques de maníacos sexuais e também ao estupro coletivo praticado por homens de outras castas ou religiões. É comum que essas mulheres se organizem em grupos, saindo de madrugada para as matas. Num grande esforço físico, essas mulheres passarão o dia inteiro “segurando” suas bexigas e intestinos, para só voltar às matas em grupo no início da noite.
Em 2017, o ator e ativista indiano Akshay Kumar, produziu e atuou no papel principal do filme “Toilet”, que se transformou num grande sucesso de bilheteria na Índia. O enredo, baseado em fatos reais, mostra o drama dos moradores de uma vila brâmane sem banheiros e o esforço do filho de um dos sacerdotes para mudar essa realidade. O Governo da Índia, que vem realizando esforços hercúleos para implantar redes de água e esgotos em todo o país, foi um dos grandes apoiadores da produção. Bill Gates, fundador da Microsoft e presidente da Fundação Bill e Melinda Gates, declarou que “Toilet” foi um dos melhores acontecimentos de 2017.
O tradicional sistema de castas, que foi abolido pela Constituição da Índia pós-independência, ainda continua dividindo os indianos em uma escala hierárquica e é outra fonte importante de problemas. Os dalits, grupos que formam as castas mais baixas e mais pobres da sociedade indiana, costumam viver separados do restante da população e, via de regra, não usam (ou não podem usar) os banheiros públicos espalhados por todo o país. Chamados de intocáveis, os dalits realizam os trabalhos considerados indignos e sujos, onde se incluiu a lida com os mortos (animais ou pessoas), coleta de lixo, trabalhos com couro, escavação de fossas, varrição e lavagem de ruas, entre outros.
Estatísticas indicam que 16% da população da Índia é formada por dalits, sendo que 80% dessa população vive em área rurais. Grande parte dos dalits que vivem nas áreas urbanas são obrigados a morar nas ruas, uma vez que eles não são bem-vindos nem entre os moradores das favelas. Ainda persiste entre muitos cidadãos a ideia que essas pessoas, consideradas impuras, precisam viver separadas do restante da população. Vivendo ao relento, essas populações não tem outra alternativa senão urinar e defecar em áreas públicas.
Há vários anos, O Governo Central da Índia vem fazendo pesados investimentos para construir e “popularizar” o uso dos banheiros. Em 2014 foi lançado um grande programa para a construção de banheiros em todo o país e, até 2019, os dados indicam que 100 milhões de instalações já foram construídas, principalmente nas residências. Esses esforços já garantiram o acesso de mais de 600 milhões de pessoas aos sanitários. Apesar de todos esses esforços, muitos indianos ainda resistem ao uso desses banheiros. Muitas vilas e pequenas cidades de população brâmane, citando um exemplo, foram contempladas com a construção de banheiros públicos, mas os moradores mais velhos ainda mantêm as suas tradições seculares.
Apesar de todos os benefícios que estas medidas sanitárias básicas (para não dizer elementares) trazem para as populações, o problema está muito longe de ser resolvido. A maior parte das redes de esgotos sanitários instaladas para atender a esse grande volume de novos banheiros lança os efluentes em córregos e rios sem qualquer tipo de tratamento, contaminando as fontes de água usadas para o abastecimento das mesmas populações. Um exemplo que citamos na postagem anterior é o importante rio Yamuna, que, entre outras cidades, abastece Nova Déli, a capital da Índia com seus 20 milhões de habitantes. De acordo com alguns especialistas locais, os caudais desse rio são “100% massa fecal”.
Para um país que já sofre com uma baixa oferta de recursos hídricos para atender a sua imensa população, a Índia vai precisar redobrar, sabe-se lá como, seus esforços na área de saneamento básico e passar a construir também estações de tratamento de esgotos. É um enorme desafio para um país que está perto de se tornar a terceira maior economia do mundo, só ficando atrás dos Estados Unidos e da China, mas que, ao mesmo tempo, tem uma parte importante da sua população vivendo na miséria absoluta.
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