Pode até ser difícil de acreditar, mas a foto que ilustra essa postagem mostra a Praia de Versova, a maior da cidade de Mumbai na Índia, em 2015. O antigo cartão postal e um dos orgulhos da cidade, gradativamente foi transformado em um grande aterro sanitário. Grandes volumes de resíduos sólidos, principalmente plásticos, descartados de forma inadequada pelos mais de 18 milhões de habitantes da cidade ao longo dos anos, acabavam sendo carreados pelas chuvas e arrastados até a orla marítima da metrópole.
Segundo alguns registros dessa época, a camada de resíduos sobre a faixa de areia superava a marca de 1,5 metro de espessura. Foi então que um jovem advogado da cidade, Afroz Shah, iniciou uma grande campanha pela limpeza da praia. Arrebanhando inúmeros voluntários, entre anônimos e celebridades do cinema de Bollywood, a campanha durou 86 semanas e retirou cerca de 5 mil toneladas de lixo da praia. Palmeiras foram plantadas na orla e também foram instalados vários banheiros públicos. Os resíduos nunca pararam de chegar até a praia, mas, desde então, estão sendo melhor controlados.
Essa rápida introdução nos dá uma ideia dos gigantescos problemas de saneamento básico da maior cidade da Índia e resume a situação caótica do país nesse quesito. Há gravíssimos problemas de poluição dos corpos d’água, solos e ar; deficiências no tratamento da água e no abastecimento de populações; na falta de banheiros; na geração e no descarte de resíduos sólidos, o que implica em sérios problemas no controle de vetores, entre muitos outros.
Os mais de 1,34 bilhão de indianos produzem cerca de 40 bilhões de litros de águas residuais ou esgotos a cada dia. Apesar de parecer um número fabuloso, esse volume de esgotos é um reflexo dos problemas de saneamento básico no país – cada indiano tem acesso a apenas 30 litros de água “potável” por dia, volume que está muito abaixo da recomendação da OMS – Organização Mundial de Saúde, que preconiza 100 litros de água por habitante/dia.
Cerca de 80% de todo esse volume de esgotos é despejado em riachos, rios e mares sem nenhum tipo de tratamento. A Índia tem 8 mil municípios e, de acordo com um estudo feito em 2011 pelo Conselho Central de Controle de Poluição, apenas 160 municípios do país contavam com centrais de tratamento de esgotos. Nos últimos anos foram feitos grandes investimentos em saneamento básico no país, mas essa situação evoluiu muito pouco.
Em Mumbai, como em outras grandes cidades do país, a situação é bem mais delicada. Perto de 55% da população da cidade vive em favelas, como é o caso de Dharavi, a “favela celebridade” da Índia, que foi um dos cenários do filme “Quem quer ser um milionário” (Slumdog Milionaire – 2008). Ocupando uma área superior a 1,75 milhão de metros quadrados e com uma população estimada em 1 milhão de habitantes, essa favela virou um ponto turístico de Mumbai.
No imenso labirinto de ruas e vielas dessa favela, a população pobre teima em sobreviver e superar as grandes dificuldades do dia a dia. Existem cerca de 100 mil pequenas oficinas instaladas em fundos de quintais e casas, que produzem de tudo e até chegam a exportar seus produtos para países vizinhos. Apesar de sustentar e gerar empregos para grande parte da sua população, essas microempresas também geram grandes volumes de resíduos sólidos, que se juntarão aos resíduos domiciliares e esgotos domésticos que abundam nas ruas.
De acordo com dados de 2012, Mumbai gera mais de 6% de todos os resíduos sólidos da Índia, resíduos que são depositados a céu aberto em quatro grandes lixões ao redor da cidade. Um verdadeiro exército de homens, mulheres e crianças passam suas vidas nesses lixões garimpando resíduos com algum valor. Os jovens protagonistas do filme “Quem quer ser um milionário” passam parte de suas vidas trabalhando em um desses lixões.
A fim de tentar reduzir os volumes de resíduos sólidos da cidade, a Prefeitura de Mumbai baixou recentemente um decreto que limita gradualmente a produção e venda de plásticos descartáveis para embalagens, pratos, copos, talheres, entre outros itens. Até 2022, a Prefeitura espera zerar a produção e o descarte desse tipo de plásticos, além de estimular o uso de outros materiais reutilizáveis.
A Índia é o terceiro maior produtor mundial de plásticos, só perdendo para os Estados Unidos e para a China, com uma produção anual de 19,3 milhões de toneladas, quase o dobro da produção do Brasil. Desse total, apenas 5,7% ou pouco mais de 1 milhão de toneladas, são recicladas. A situação do país como geradora de resíduos plásticos só não é pior por que o consumo per capita é de apenas 11 quilos – nos Estados Unidos, para efeito de comparação, o consumo anual é de 109 quilos de plástico por habitante.
Agora, um detalhe curioso sobre Mumbai – essa é a única cidade da Índia, talvez até do mundo, que possui um departamento na sua Prefeitura com funcionários especializados na caça aos ratos. São cerca de 40 funcionários públicos concursados e alocados especificamente para essa função. Por mais nojento e repugnante que essa atividade possa parecer a você, saiba que os concursos públicos para essas vagas são bastante disputados, atraindo milhares de candidatos – ser funcionário público em um país como a Índia é um grande privilégio.
Além desse pequeno exército governamental, centenas de caçadores free lancer são contratados pela Prefeitura. Esses caçadores têm como meta abater, pelo menos, 30 ratos a cada noite, recebendo um pagamento equivalente a US$ 0.10 por cabeça – para os padrões salariais da Índia, esse é um ótimo rendimento. Se você gosta de cinema, recomendo o filme indiano Dhobi Ghat (Mumbai Diaries) que, entre seus personagens, conta o drama de um jovem dalit (casta mais baixa da sociedade indiana) que trabalha como lavador de roupas durante o dia e caçador de ratos a noite, e que acaba se apaixonando por uma jovem milionária.
A crescente classe média indiana fica indignada a cada nova produção cinematográfica do país que teime em mostrar todas as mazelas e os gravíssimos problemas sociais dos pobres do país. A Índia é, disparada, a maior produtora de filmes do mundo. Contando com 26 línguas oficias e mais de 400 línguas e dialetos minoritários, o país é uma verdadeira linha de produção de filmes. Bollywood, a versão indiana de Hollywood, fica em Mumbai e concentra a maior parte das produções. Os indianos mais ricos gostam mesmo é dos romances açucarados, musicais e filmes épicos, que mostram toda a beleza, a cultura e a história do país.
Esses indianos endinheirados sentem um imenso orgulho dos grandes avanços tecnológicos da Índia, com suas inúmeras centrais nucleares, poderosas forças armadas, bombas atômicas e, é claro, das altas taxas de crescimento econômico e da iminente trajetória do país rumo à terceira posição entre as maiores economias do mundo. Falar de pobres que ganham a vida caçando ratos, de esgotos, de lixo ou da falta de banheiros no país, é vergonhoso demais para eles.
[…] OS CAÇADORES DE RATOS DE MUMBAI, OU FALANDO DOS PROBLEMAS DE SANEAMENTO BÁSICO DA ÍNDIA […]
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